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Apelação Cível n. 2011.101228-2, de Canoinhas Relator: Des. Domingos Paludo APELAÇÃO CÍVEL. USUCAPIÃO EXTRAORDINÁRIA. PROCEDÊNCIA NA ORIGEM. CONJUNTO FÁTICO-PROBATÓRIO SUFICIENTE AO RECONHECIMENTO, EM FAVOR DOS AUTORES, DA POSSE MANSA, PACÍFICA E ININTERRUPTA, COM ANIMUS DOMINI, POR PERÍODO SUPERIOR A 20 ANOS. CONFIGURAÇÃO DO LAPSO TEMPORAL NECESSÁRIO À PRESCRIÇÃO AQUISITIVA. REQUISITOS DO ART. 550 DO CÓDIGO CIVIL DE 1916 DEVIDAMENTE PREENCHIDOS. ATENDIMENTO À FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE. VERSÃO DA APELANTE, DE QUE O AUTOR TERIA SIDO SEU PREPOSTO, NÃO DEMONSTRADA. CONFRONTANTES QUE RECONHECEM OS AUTORES COMO DONOS DO IMÓVEL. INADMISSIBILIDADE DE DISCUSSÃO ACERCA DO TÍTULO DOMINIAL COMO FORMA DE ILIDIR A POSSE. SENTENÇA MANTIDA. MANIFESTAÇÃO DO INSS REQUERENDO QUE A REFERIDA AUTARQUIA PREVIDENCIÁRIA FOSSE SUBSTITUÍDA PELA UNIÃO-FAZENDA NACIONAL. PETIÇÃO DA FAZENDA NACIONAL EM QUE EXPRESSA NÃO POSSUIR INTERESSE NO PROCESSO E PEDE A SUA EXCLUSÃO DO FEITO. RECURSO DESPROVIDO. Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível n. 2011.101228-2, da comarca de Canoinhas (2ª Vara Cível), em que é apelante Abrahao Mussi S/A Indústria e Comércio, e apelados Artur Carlos de Castro e outros: A Primeira Câmara de Direito Civil decidiu, por votação unânime, conhecer e negar provimento ao recurso. Custas legais. Participaram do julgamento, realizado nesta data, os Exmos. Srs. Des. Domingos Paludo – Relator – , Des. Raulino Jacó Brüning – Presidente – e Des. Gerson Cherem II. Florianópolis, 23 de outubro de 2014. Domingos Paludo RELATOR Gabinete Des. Domingos Paludo RELATÓRIO Trata-se de recurso de Apelação interposto por Abrahao Mussi S/A Indústria e Comércio contra a sentença que, em Ação de Usucapião, julgou procedentes os pedidos formulados na inicial e reconheceu a prescrição aquisitiva em favor dos autores Artur Carlos de Castro e outros, de um imóvel rural com área de 1.836.786,00 m², situado na localidade de Pinhalzinho – Serra do Lucindo, município de Bela Vista do Toldo. A apelante alega que é a legítima proprietária da área, parte de um todo maior com 3.927.126,66 m², matriculado no CRI de Canoinhas sob o nº 7.267. Os autores estariam no terreno na qualidade de meros detentores, com autorização da empresa, sendo que o autor Artur Carlos de Castro era seu funcionário, conforme depoimentos prestados pelas testemunhas, razão por que não subsistiria o requisito do animus domini para fins de usucapião. As contrarrazões estão às 568/582. A Procuradoria da Fazenda Nacional manifestou-se às fls. 528/529, asseverando a inexistência de interesse da Fazenda Nacional e, por conseguinte, do INSS no feito. Este é o relatório. Gabinete Des. Domingos Paludo VOTO Presentes os pressupostos que regem a admissibilidade, conheço do recurso, e adianto: a sentença há que ser mantida, por seus próprios fundamentos. Insurge-se a empresa apelante contra a sentença de fls. 530/544, que reconheceu em favor dos autores a prescrição aquisitiva de um imóvel rural com área de 1.836.786,00 m², situado na localidade de Pinhalzinho – Serra do Lucindo, município de Bela Vista do Toldo. Sustenta que os autores não teriam preenchido os requisitos para a usucapião, na medida em que não possuem a área, com animus domini, por período superior a 20 anos, notadamente em razão de o autor Artur Carlos de Castro ter sido seu funcionário, usufruindo da propriedade por ato de mera liberalidade da empresa. Contudo, a insurgência não merece prevalecer. Inicialmente, importante frisar que, em 28 de agosto de 1998, o processo foi sentenciado (fls. 236/241), tendo sido indeferido o pedido da ação por que a magistrada entendeu, na oportunidade, que o fato de a empresa apelante ter retirado madeira do imóvel com a ciência dos autor Artur Carlos de Castro, sem qualquer objeção do mesmo e independentemente de sua anuência, além de importar interrupção do prazo da prescrição aquisitiva, configurou o reconhecimento, por parte dos autores, de que não eram os legítimos donos da área. Referida sentença, todavia, foi anulada por acórdão proferido por esta Egrégia Primeira Câmara de Direito Civil (fls. 291/294), sob o fundamento de que o direito à ampla defesa dos autores foi cerceado, pois indeferido o pedido de prova pericial, cuja realização seria imprescindível à demonstração de que a área usucapienda não estaria inserida naquela de matrícula nº 7.267, de propriedade da empresa Abrahao Mussi S/A , ora apelante. Baixados os autos, a perícia foi realizada (laudo às fls. 421/434), mas restou inconclusiva quanto à inserção, ou não, da área usucapienda dentro da matrícula nº 7.267: Apesar de ter sido possível identificar as porções de área ocupadas pelos Autores (favor vide levantamento topográfico, constante do Anexo II do presente Laudo Pericial), a conclusão sobre a determinação se a área usucapienda pretendida pelo Autor faz parte ou está contida na área descrita na Matrícula nº 7.267 do Requerido, restou prejudicada, uma vez que analisando-se somente as informações / dados do imóvel descrito na Matrícula nº 7.267, constante às fls. 22 dos Autos, não é possível aferir a localização exata da área pertencente aos Requeridos e, ainda, some-se o fato de que os Réus (ou qualquer representante deles) não estiveram na diligência "in loco", ou seja, não contribuíram com informações que levassem a perfeita localização da área em questão. (fl. 429, grifo nosso) Em face dessas conclusões o Juízo formou sua convicção, mediante o Gabinete Des. Domingos Paludo cotejo das demais provas acostadas ao caderno processual, no sentido de que os requisitos necessários à procedência da usucapião extraordinária estariam configurados nos autos. Em relação às dúvidas expostas na prova pericial sobre a inserção da área usucapienda no imóvel de propriedade da empresa apelante, de matrícula nº 7.267, entendeu ser dispensável tal informação, por tratar-se a usucapião de modo originário de aquisição da propriedade. Em outras palavras, ainda que a área requerida esteja inserida no imóvel dos Apelados, por que presentes os requisitos que configuram a usucapião, especialmente a posse mansa e pacífica por mais de 20 anos, isso não representa empecilho à aquisição da propriedade pelo Apelado. A sentença, da lavra da douta Juíza de Direito Janine Stiehler Martins, analisou os pontos controvertidos da presente demanda, no que tange ao preenchimento dos requisitos necessários à usucapião, de maneira singular, senão vejamos: [...] Como se entrevê do relatório supra apresentado, há uma contestação nos autos, opondo alegação de propriedade relativamente ao alegado pelos requerentes. Em audiência instrutória, foram ouvidas quatro testemunhas, a maioria ouvida no ano de 1993. Apresenta-se a seguir os principais pontos, destacados, dos referidos depoimentos. Depoimento pessoal do autor Artur Carlos de Castro – fls. 145: "nunca trabalhou para Abrahão Mussi. (...) Lá em Pinhalzinho entrou num terreno que estava meio abandonado e foi trabalhando; depois apareceu uma pessoa que disse que era dono, chamado Mussi. Dezoito anos depois que o depoente entrou no imóvel é que essa pessoa apareceu lá dizendo que era dono do imóvel. Depois que o requerente requereu usucapião é que Mário Mussi está tentando tirar o depoente de lá. (...) Nenhuma pessoa de sua família trabalhou para Abrahão Mussi. A mãe do depoente morou alguns anos naquele lugar, antes do depoente ir para lá. O terreno está todo cercado. Quando o depoente entrou no imóvel o Mussi lá entrou para retirar madeiras, mas o depoente revela que não podia fazer ele parar e explicou dizendo que era porque não tinha o usucapião. Mussi tirou toda a madeira de lei, retirou pinheiro, imbuia, canela. Mussi ficou retirando a madeira torno de um ano e pouco. (...) O depoente construiu casa no imóvel. (...) O terreno inteiro é utilizado. Mussiretirou madeira e nunca mais voltou no imóvel. O depoente nunca tentou impedir a entrada dos caminhões do Mussi.(...)Inquirido pelo juiz sobre o fato de João Maria Neves ter dito que o depoente já trabalhara para Abrahão Mussi, o depoente disse que isso não é verdade". Miguel Carlos de Castro Neto (fls. 151), filho de Artur: "(...) O pai do depoente nunca trabalhou para Abrahão Mussi. O depoente cresceu, casou-se e teve filhos, em número de cinco, e tudo isto no imóvel usucapiendo. (...)Todo o terreno é utilizado. Antes do requerimento do usucapião ninguém havia contestado a posse do imóvel. Na região as pessoas sabem que os autores são donos do imóvel(...)". Maria Lucidia Corrêa (fls. 153): "Conhece Artur há mais de 20 anos e há 14 é vizinha dele. A depoente é esposa de José Corrêa. Para a depoente os autores são proprietários do imóvel usucapiendo. O único imóvel que os autores possuem é este do Gabinete Des. Domingos Paludo usucapião. Ao que a depoente saiba, nunca ninguém tentou tirar as terras de Artur. Nunca viu e não sabe se a empresa Mussi entrou no terreno de Artur. Bem certo não sabe quem são os confrontantes de Artur. João de Deus Bueno, Otacílio Custódio de Melo fazem divisas, digo, faziam divisas com o terreno dos autores, mas hoje a depoente não sabe. Quatro ou cinco filhos casados de Artur trabalham no imóvel. (...) As pessoas da comunidade respeitam Artur como dono do imóvel". José Corrêa (fls. 154): "Faz 14 anos que o depoente mora em Pinhalzinho – Serra do Lucindo e quando foi para lá iniciou a vizinhança com Artur Carlos de Castro, vizinhança esta que existe até hoje. (...) Faz 27 ou 30 anos que Artur está no imóvel usucapiendo. Ao que o depoente disse, ninguém contestou a posse dos autores. (...) Nunca viu caminhão do Mussi puxando madeira do terreno usucapiendo. (...) Não conhece terreno da Mussi na localidade de Pinhalzinho". Octacílio Custódio de Melo (fls. 155): "Há perto de 40 anos conhece Artur. De 25 anos para cima Artur está no imóvel usucapiendo. Artur nunca saiu dali e continua com a família dele até hoje no local. (...) Há mais ou menos sete anos o depoente vendeu o imóvel que fazia divisa com Artur (...) Não comprou o imóvel nem da Mussi nem de João Sgário.O depoente chegou a vender madeira para Mussi. Abrahão Mussi ficou tirando madeira durante muito tempo do terreno do depoente. Não sabe se Abrahão Mussi entrou no terreno usucapiendo para retirar madeira. (...)". Maria Karvat (fls. 156): "Faz 28 anos que conhece Artur. Artur sempre morou no imóvel usucapiendo. Com ele moram hoje cinco filhos que são casados e vivem da agricultura e da pecuária. Não se lembra se Abrahão Mussi retirou alguma árvore do terreno usucapiendo. (...) Não se lembra de firmas tirando madeira das terras de Artur. Para a depoente, Artur sempre foi dono do terreno onde mora. Não sabe se Abrahão tinha algum terreno na localidade". João Maria de Deus Bueno (fls. 157): "(...) Faz uns vinte e poucos anos que Artur está sobre o imóvel. Não sabe se a posse de Artur foi ou não contestada. Artur sempre morou no imóvel. Artur e família exploram o imóvel até hoje. (...) Ao que o depoente saiba, Abrahão Mussi não tinha terreno na região (a não ser que fosse em algum canto que eu não conhecia) (...)" Mário Selbmann (fls. 158): " Apesar do nome Mário Selbmann constar no mapa de fls. 06, o terreno é da Safrobrás empresa da qual o depoente é sócio gerente. (...) o depoente teve o terreno de sua propriedade que faz divisa com o imóvel destes autos adquirido através de compromisso de compra e venda; (...) tal documento negociou apenas a posse do imóvel, tanto que foi ajuizada pela Safrobrás ação de usucapião(...) Uma parte do imóvel usucapiendo no qual estão os autores, é explorado – agropecuária e agricultura e a outra parte é ainda de floresta. Não sabe se na parte de floresta é ou não extraída erva-mate. Segundo o autor, ele está há mais de vinte anos no imóvel. Não sabe se o primeiro autor trabalhou para Abrahão Mussi. O imóvel usucapiendo está cercado com arame farpado. (...) Ao que saiba, Abrahão Mussi não fez nenhuma benfeitoria no imóvel usucapiendo. (...) O depoente não conhece nenhum terreno de Abrahão Mussi na localidade do imóvel usucapiendo (...) a ação de usucapião que o depoente se referiu acima já foi julgada, inclusive pelo Tribunal, tendo o usucapião sido indeferido. Desde o tempo em que o depoente está na região do imóvel usucapiendo, Gabinete Des. Domingos Paludo desconhece invasão de terras. Existe uma ação de Reintegração de Posse ajuizada por Abrahão Mussi depois que o usucapião foi indeferido (...)". Germano Lisboa (fls. 163): "Há mais de 15 anos conhece Artur Carlos de Castro e sua família; quando conheceu Artur de Castro ele já se encontrava no imóvel onde hoje está; (...)Nunca viu caminhões da Abrahão Mussi retirando madeira de dentro das terras dos autores. Ao que o depoente saiba a posse dos autores nunca foi contestada.(...)". Agenor Rocha de Almeida (fls. 164): "Faz uns cinquenta anos que o depoente conhece Artur (...) Faz mais ou menos 28 anos que Artur mora em Pinhalzinho.(...)No terreno moram quatro famílias: a de Artur, a de Augusto, Davino, Miguel e João Maria Castro. O depoente nunca viu ninguem perturbando a posse dos autores, nem mesmo qualquer empresa. Artur sempre permaneceu no mesmo local, nunca tendo saído dali (...)que o terreno é cercado com cerca de arame.(...)Toda a área é aproveitada pelos autores. (...) Antes de Artur entrar no imóvel as terras estavam abandonadas". Augusto Barbosa (fls. 165): "Há vinte e cinco anos por si assim mais ou menos o depoente conhece Artur. Nesta época Artur já morava no imóvel usucapiendo. (...)Também moram no imóvel Miguel, Davino e Augustinho, os quais são casados. (...); o terreno é cercado com quatro fios de arame (...)eles plantam milho e feijão no imóvel (...)Não conhece a empresa Abrahão Mussi. (...) Conhece Henrique Castro. Não conhece João Allionso. Não sabe se Henrique Castro trabalhava para Abrahão Mussi". Alfredo Alves dos Santos (fls. 166): "Faz mais de vinte anos que o depoente é vizinho de Artur. (...) Quando o depoente entrou no imóvel onde hoje se encontra Artur já estava ali no imóvel vizinho e por isto não saber dizer como fora que Artur ingressara no terreno dele. Nunca soube que alguém tivesse contestado a posse de Artur. Nunca viu a empresa Abrahão Mussi tirar madeira do terreno de Artur". Henrique Castro (fls. 167): "Conhece Artur desde criança; o depoente começou a trabalhar na empresa Abrahão Mussi em 1977 e nesta época já fazia uns três anos que Artur estava no imóvel usucapiendo. O depoente trabalhou até 1982 para Abrahão Mussi. (...)O depoente trabalhava como motorista e atendia criação (...) Foi o próprio Artur quem contou para o depoente que ali ele se encontrava no imóvel há três anos. O depoente não foi tirar madeira para Abrahão Mussi tirar no imóvel de Artur, mas a empresa tirou madeiras de lá. O depoente viu ser retirada madeira do imóvel usucapiendo. O depoente conhece Otacílio Custódio de Melo. Para ir no terreno de Otacílio Custódio de Melo tem que se passar por dentro do imóvel de Artur. (...) Não sabe dizer a que título Artur se encontrava no imóvel. Artur nunca se opôs a que empregados de Abrahão Mussi retirasse madeira. (...) O depoente trabalhava em todas as fazendas da firma Mussi. Perto do imóvel usucapiendo, antigamente, Abrahão Mussi também tinha uma fazenda, mas não sabe dizer se hoje tem-na ou não. (...) O depoente não sabe dizer como está o imóvel de Artur hoje em dia. Quando veio de Palmas o depoente ficou uns três meses na Fazenda dos Mussi que fica perto do terreno usucapiendo". João Maria de Souza (fls. 188): "Eu trabalhei muitos anos com a empresa Abrahão Mussi como encarregado de mato e praticamente conheci todos os imóveis que eles Gabinete Des. Domingos Paludo possuíam, inclusive a área usucapienda. Em 1975 eu contratei o Arturde Castro para ele cuidar da área onde posteriormente se localizou e veio a pedir usucapião. Eu me lembro que nós chegamos a fazer uma escrita com o Sr. Artur sobre essa situação. Ele poderia plantar sobre o imóvel e entregava metade da colheita para a empresa Mussi. Ele também fez nesta área várias cercas por empreitada, e eu levava para ele o material, acertava o preço e levava o pagamento. Na época o Sr. Artur já era casado e tinha filhos. (...)Quando a área foi sequestrada eu estive lá junto com o Oficial de Justiça para identificar o imóvel. Sob as minhas ordens o Artur permaneceu na área até que eu saí da empresa Mussi e eu não me lembro quando foi isto, mas esta situação ficou por aproximadamente 14 ou 15 anos. Depois que eu saí da empresa eu não sei quem foi que ficou no meu lugar. Eu não sei se foi designado outro supervisor para as áreas da empresa. Neste período muitas vezes o Artur chegou a comunicar invasão de terceiros nesta área e mesmo em outras vizinhas, sendo que sempre foram tomadas providências por parte da empresa. Faz muitos anos que eu não vou àquele local. (...) Durante aqueles quinze anos o Artur sempre respeitou a área como sendo da empresa Mussi. Nunca houve problema nenhum nos acertos feitos com a empresa e o Artur referentes às colheitas de cereais (...) Ele sempre entregava o percentual devido à empresa. As cercas que o Artur fazia eram a mando da empresa e esta sempre pagava tais serviços(...)". Conforme se pode observar da prova testemunhal, portanto, não se olvida que a posse dos requerentes remonta há mais de 20 anos, e que a comunidade os reconheça como proprietários da área. Uma única testemunha ouvida mencionou a que a empresa Mussi era proprietária da área, e que o autor Artur trabalhou para a referida empresa. Porém, apesar de mencionar a existência de contrato escrito acerca deste trabalho, nada foi acostado aos autos. Frise-se que, mesmo que vingasse a tese de que o autor trabalhou para a referida empresa, o testigo João Maria de Souza admite que Artur e sua família permaneceram no imóvel mesmo depois de rompido o vínculo contratual. As demais testemunhas desconhecem que a empresa Mussi fosse proprietária de imóvel na mesma região, salientando que nunca a viram exercendo atos de posse na área. Apesar de admitir o autor Artur que a empresa retirou madeiras na área usucapienda, denoto que se tratou de ato isolado, inexistindo provas de que, durante todo o tempo de posse, tenha isso ocorrido. O testigo Otacílio de Mello, a fls. 155, inclusive mencionou que chegou a vender (ele, a testemunha) madeiras para a empresa Mussi, mas a prova oral nada esclarece acerca de propriedade da referida empresa no local. Outrossim, apesar do documento de propriedade acostado pela ré, tivesse esta explorado economicamente seu imóvel, haveria no mínimo um início de prova nos autos, fosse ele documental ou testemunhal, o que não ocorre. De outra banda, as próprias famílias cujas confrontações coincidem com a área usucapienda e com o imóvel de matrícula de fls. 22 (famílias Karvat e Otacílio de Mello), comprovam que o autor sempre deteve a posse mansa, pacífica e ininterrupta do imóvel, com animus domini. Gabinete Des. Domingos Paludo Assim, não vejo outra solução, diante da dúvida na prova pericial acerca da coincidência das localizações dos imóveis, e considerando que tal ônus nesse sentido também é da requerida, cuja tese invocou (art. 333, II, CPC), que não a procedência da demanda. A própria informação de que a empresa requerida retirou madeiras da área ocupada pelo autor, isoladamente em um período, não pode comprovar oposição à posse dos requerentes, pois a prova testemunhal verte justamente no sentido de que isso ocorreu há muito tempo, não se prolongando a situação no tempo. Há testigos, inclusive, que desconhecem essa ação da requerida. Assim, trata-se de adoção dos princípios da função social da propriedade e também da função social da posse, esta também vigente no meio jurídico. E, no cotejo de ambos os princípios, fica evidente que dentre as partes, somente os autores comprovaram a utilização econômica do imóvel para fins de moradia e sustento. Nesse sentido, colhe-se da doutrina: "(...) a função social da posse implica uma visão mais ampla do conteúdo da posse e, ainda que não altere a sua qualificação como direito real, dá mais consistência aos argumentos dos que assim a qualificam. Não são os efeitos da posse ou os elementos da posse que se ampliam com a função social da posse, mas sim o seu próprio conteúdo. A posse deixa assim simplesmente de ser uma relação material do homem com a coisa decorrente do poder da vontade. Passa a ser visualizada como uma relação material, decorrente da vontade dotada de função social. Daí a necessidade de proteção da posse por si mesma e a convicção de que se trata de um direito, que entendemos tratar-se de direito real de natureza especial (...)" (ALBUQUERQUE, Ana Rita Vieira. Da função social da posse. Ed. Lumen Juris, 2002, p.199). É este o caso dos autos. De um lado, a dignidade da pessoa humana e o direito à moradia, perpassando ao mesmo tempo pelo reconhecimento, daí em diante, do direito de propriedade e a conservação e aproveitamento da posse por parte do proprietário/possuidor. Neste tocante, necessário distinguir que o legislador constituinte, mais precisamente no art. 182 da Constituição Federal, erigiu a ordenação da função social urbana através de diretrizes urbanísticas a serem instituídas pelo poder municipal. Distinguem-se, assim, as propriedades estáticas, não destinadas à produção, das dinâmicas, estas organizadas com objetivo de produzir e distribuir o consumo de bens. Embora haja muita discussão doutrinária do assunto, o jurista italiano Pietro Perlingieri admite que a propriedade estática possui função social, ao dizer: "'Seria obrigatório reservar à função social uma interpretação pela qual o social se contrapõe ao pessoal-individual, prevalecendo assim uma postura econômica e produtivista, ainda que atenuada, relativamente àquela condicística, pela referência à atuação das eqüânimes relações sociais e à noção de solidariedade social. A afirmação generalizada de que a propriedade privada tem função social não consente discriminações e obriga o intérprete a individualizá-la em relação à particular ordem de interesses juridicamente relevantes. Assim, tem função social não somente a propriedade da empresa mas também a da casa de habitação e dos bens móveis que ela contém, a da oficina de artesão e da propriedade do pequeno produtor (...) Cada Gabinete Des. Domingos Paludo uma com uma diversa intensidade de utilidade geral e individual, sem que entre elas devam encontrar-se lacerantes contrastes, com a consciência de que pode-se realizar a função social, como em todas as hipóteses de propriedades ditas pessoais, ao satisfazer exigências merecedoras de tutela, não necessariamente exclusivamente do mercado e da produção, mas também somente pessoais e existenciais individuais ou comunitárias" (apud COSTA, Cássia Celina Paulo Moreira da. A constitucionalização do direito de propriedade privada. Ed. América Jurídica, 2003, p. 195). A jurisprudência do TJSC não discrepa deste entendimento, ex vi da Apelação Cível n. 2007.040453-9, de Lages, Relator: Des. Sérgio Izidoro Heil, julgada em 18.06.10 (grifei): APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE USUCAPIÃO. INEXISTÊNCIA DE CONTROVÉRSIA SOBRE A UTILIZAÇÃO DO IMÓVEL, DE FORMA MANSA, PACÍFICA E ININTERRUPTA POR PRAZO SUPERIOR A 30 (TRINTA) ANOS. DISCUSSÃO RESTRITA À EXISTÊNCIA DE ANIMUS DOMINI. REQUISITO COMPROVADO POR PROVA TESTEMUNHAL E CORROBORADO PELO CONJUNTO PROBATÓRIO. VERSÃO DOS REQUERIDOS, DE QUE O BEM TINHA SIDO RECEBIDO PELOS AUTORES EM VIRTUDE DE COMODATO VERBAL, NÃO COMPROVADA. FRAGILIDADE DAS DECLARAÇÕES DO INFORMANTE OUVIDO A PEDIDO DOS REQUERIDOS. RELATO DOS FATOS QUE NÃO ENCONTRA RESPALDO NAS DEMAIS PROVAS PRODUZIDAS NOSAUTOS. PROCEDÊNCIA DO PEDIDO. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO. Neste diapasão, a Apelação cível n. 2007.055216-0, da Capital, Relator: juiz Jânio Machado, julgada em 16.07.08: APELAÇÃO CÍVEL. USUCAPIÃO EXTRAORDINÁRIO. POSSE VINTENÁRIA, MANSA, PACÍFICA E ININTERRUPTA. REQUISITOS DO ART. 550 DO CÓDIGO CIVIL DE 1916 PREENCHIDOS. DECLARAÇÃO, PELO JUIZ, DE UMA SITUAÇÃO JURÍDICA PREEXISTENTE. CERTIDÕES IMOBILIÁRIAS AFIRMANDO A IMPOSSIBILIDADE DE IDENTIFICAÇÃO DE ANTERIOR PROPRIETÁRIO DA ÁREA USUCAPIENDA. REQUISITO DO ART. 942 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL ATENDIDO. ALEGAÇÃO DE BURLA À LEI DE PARCELAMENTO DO SOLO URBANO. ART. 37 DA LEI N. 6.766, DE 19.12.1979. FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE. ART. 39 DA LEI N. 10.257, DE 10.7.2001. IMÓVEL QUE É ATENDIDO POR ENERGIA ELÉTRICA E ÁGUA TRATADA. COBRANÇA DE IMPOSTO MUNICIPAL. RECURSO DESPROVIDO. SENTENÇA MANTIDA. Na ação de usucapião, porque modalidade de aquisição originária da propriedade, o juiz limita-se a declarar uma situação jurídica preexistente. E uma vez preenchidos os requisitos estabelecidos pelo legislador ordinário, não pode o Município insurgir-se contra a pretensão sob o argumento, desarrazoado, de que há burla ao parcelamento do solo urbano, notadamente se a área é servida por energia elétrica e água tratada, inclusive sendo cobrado o imposto de competência municipal. E ainda: USUCAPIÃO - REQUISITOS PRESENTES - PROVAS TESTEMUNHAIS - LAPSO TEMPORAL COMPROVADO - CLANDESTINIDADE AFASTADA - FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE DEMONSTRADA - SUBSTITUIÇÃO DA PLANTA POR CROQUI - VALIDADE - DESCRIÇÃO DETALHADA DO BEM - RECURSO DESPROVIDO "Adquire Gabinete Des. Domingos Paludo o domínio do imóvel, por usucapião extraordinário, aquele que comprovar a posse mansa, pacífica e ininterrupta, por mais de 20 (vinte anos), independentemente de justo título e boa fé. Na usucapião, a comprovação do prazo prescricional para aquisição do domínio sobre o imóvel é feita com a verificação do decurso do tempo de posse e se utilizada com animus domini, sendo certo que a prova para o seu reconhecimento, mais das vezes, é depositada exclusivamente na testemunhal que, lídima, externa um juízo de segurança à procedência da ação". (AC n. 2005.027497-8, de Criciúma, rel. Des. Fernando Carioni, j. em 14-6-2006)." (Apelação Cível n. 2006.015755-8, de Araquari, rela.Desa. Salete Silva Sommariva, Terceira Câmara de Direito Civil, j. 14-11-2006). [...] (fls. 537/543, grifamos). A sentença está irretocável, devendo ser mantida na íntegra, por seus próprios fundamentos. Acrescento que os argumentos trazidos em sede recursal em nada modificam as conclusões a que chegou o Juízo. É despicienda a alegação da apelante de que o autor Artur Carlos de Castro era seu preposto e estava na propriedade por ato de mera tolerância sua, haja vista a inexistência de qualquer prova documental desse vínculo, ônus que lhe competia. Não há nos autos um contrato de trabalho. Não há um contrato de arrendamento. Não há, enfim, qualquer documento que forneça algum indício desse vínculo que a empresa alega ter possuído com o autor. Importante salientar que o fato de o autor Artur Carlos de Castro ter reconhecido que a empresa apelante entrou no imóvel e ali permaneceu, por cerca de um ano, retirando a madeira nativa, não implica interrupção da posse e da prescrição aquisitiva em favor dos autores, porquanto não representou privação ao uso que faziam da propriedade. Tratam-se os autores de pessoas humildes, que trabalham a terra como forma de garantir a própria subsistência, que muito provavelmente não dispunham de meios e nem de conhecimento – acerca de seus direitos enquanto possuidores – para impedir que a empresa entrasse no imóvel para retirar a madeira nativa, notadamente ao se considerar que, como relatou o autor à fl. 150, a apelante dispunha de funcionários armados. Forçoso concluir, portanto, que a ocupação da área pelos autores decorreu do abandono do imóvel por seu proprietário, que não deu ao bem a devida destinação. Ainda que a área usucapienda esteja inserida naquela de propriedade da empresa apelante, de matrícula nº 7.267, o direito a propriedade – a exemplo de todos os demais direitos fundamentais encartados no rol do art. 5º da CF/88 – não é absoluto, impondo-se seu exercício em consonância com a função social da propriedade, conforme dispõe o art. 5º, inc. XXIII, c/c art. 186, ambos da Carta Maior. É assim que o fundamento do instituto da usucapião, de acordo com Benedito Silvério Ribeiro, decorre do interesse social, ou interesse da coletividade, relativo à propriedade, isto é: Gabinete Des. Domingos Paludo [...] desde que presentes os requisitos daquele que está na posse mansa, pacífica e incontestada pelo legítimo proprietário, titular do domínio, a sua negligência ou inércia acarreta um sacrifício do particular, em favor do bem comum, isto é, ao possuidor que trabalha a terra ou a ela se ligue, produz riqueza e é útil na sociedade (Tratado de Usucapião. Vol. 1. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 167). A higidez do título dominial em nome de terceiros não obsta a possibilidade de usucapião do imóvel, desde que cumpridos os requisitos legais: in casu, o disposto no art. 550 do Código Civil de 1916, porquanto aplicável na espécie a norma de transição inserida no art. 2.028 do CC/2002 (mais da metade do período relativo à prescrição aquisitiva transcorreu sob a égide do diploma legal revogado), sendo necessário à configuração da prescrição aquisitiva para a usucapião extraordinária o exercício da posse mansa, pacífica e ininterrupta pelo prazo de 20 anos. Não obstante a multiplicidade de medidas judiciais e extrajudiciais que poderiam ser tomadas com o intuito de proteger a sua propriedade, a apelante quedou inerte, isto é, não ofereceu oposição à posse exercida pelos apelados sobre a área objeto da lide, ao longo de mais de 20 anos de duração. Nesse sentido assinala o entendimento jurisprudencial há muito consolidado nesta Corte, inclusive no que tange à inadmissibilidade da discussão dominial com o intuito de ilidir a posse: Usucapião extraordinário - Requisitos do art. 550 do CCB cumpridos - Ação procedente. Verificado o exercício da posse ad usucapionem por mais de 20 anos ininterruptos com animus domini defere-se perante o direito positivo brasileiro a aquisição pacífica dominial de caráter extraordinário, dispensando-se o justo título e a boa-fé do adquirente, bem como inadmite-se a discussão dominial para ilidir a posse. [...] (AC n. 1988.042282-8, rel. Des. Anselmo Cerello, em 14-04-1994). Acrescento que há manifestação do INSS requerendo que a referida autarquia previdenciária fosse substituída pela União-Fazenda Nacional (contra-capa dos autos) e petição da Fazenda Nacional em que expressa não possuir interesse no processo e pede a sua exclusão do feito (fls.528/529). Ante o exposto, considerando que os Apelados comprovaram ter exercido sobre a área em questão a posse mansa, pacífica e ininterrupta, com animus domini, por prazo superior a 20 anos e que a Apelante não logrou demonstrar os fatos desconstitutivos do direito dos Apelados à aquisição da propriedade mediante usucapião, merece ser mantida incólume a sentença recorrida. Este é o voto. Gabinete Des. Domingos Paludo