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Distincao entre direitos reais e direitos pessoais

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Distinção entre direitos reais e direitos pessoais
Uma das partes fundamentais do Direito diz respeito ao conjunto de normas, leis, regulamentações, estudos, usos e concepções positivadas em torno dos bens ou coisas materiais que, abrangentemente, se apresenta na ciência jurídica e nas codificações como o direito das coisas.
Direito das coisas é o ramo do saber humano e das normatizações que trata da regulamentação do poder do homem sobre os bens e das formas de disciplinar a sua utilização econômica. Dir-se-ia que, em última instância, o ser humano é sempre movido tendo como motivo fundamental um fim econômico, o qual se concretiza na conquista de bens. Por isso, o direito das coisas, embora necessária a sua especificação dentro do universo do direito, repercute em todos os setores jurídicos, seja qual for a divisão que lhe empresta a metodologia na sua consideração geral.
Para Clóvis Beviláqua, “direito das coisas, na terminologia do Direito Civil, é o complexo de normas reguladoras das relações jurídicas referentes às coisas suscetíveis de apropriação pelo homem. Tais coisas são, ordinariamente, do mundo físico, porque sobre elas é que é possível exercer o poder de domínio. Todavia, há coisas espirituais que também entram na esfera do direito patrimonial, como é o direito dos autores sobre as suas produções literárias, artísticas ou científicas”.
Mas, desde os primórdios do aparecimento do direito, convencionou-se o direito das coisas como aquele que regula a propriedade, ou que trata das relações jurídicas entre o homem e as coisas suscetíveis de apropriação pelo ser humano.
Os bens que se revestem de tal qualidade, isto é, apreciáveis economicamente, compreendem a generalidade das coisas existentes no universo, excluídos os que são inesgotáveis e que não são passíveis de submissão às pessoas, como, o ar, a luz e a energia irradiadas pelo sol, a água dos oceanos e o calor.
A formação do mundo ocidental, desde os primórdios, ficou sedimentada em rígido sistema de defesa da propriedade.
Atualmente, no entanto, diante de socialização das mentalidades e mesmo das instituições, não se pode mais manter tal posição soberana da propriedade. Sobreleva o direito natural à vida e aos meios indispensáveis para que a pessoa se desenvolva dignamente. Por isso, facilita-se o acesso da pessoa à propriedade.
Dentro do direito das coisas, têm importância prevalente os direitos reais, sem, no entanto, esgotar seu conteúdo, pois envolve aquele igualmente, dentre outros institutos, a posse e seus efeitos.
De modo geral, a ideia que evidencia os direitos está na relação direta e imediata entre um sujeito e uma coisa objeto do direito.
Segundo a escola clássica, o conceito que mais se coaduna ao consenso universal é aquele que define o direito real como o poder jurídico da pessoa sobre a coisa, oponível a terceiros. Caracteriza o poder imediato e direto sobre o bem e a intermediação de outro sujeito. Nesta dimensão já se posicionava Lafayette Rodrigues Pereira: “O direito real é o que afeta a coisa direta e imediatamente, sob todos ou sob certos respeitos, e a segue em poder de quem quer que a detenha. Distingue-se pelas peculiaridades seguintes:
a) tem por objeto imediato coisa corpórea, móvel ou imóvel;
b) põe a coisa que é seu objeto em relação imediata com o sujeito do direito, sem dependência de ato ou prestação de pessoa determinada, isto é, a existência e o exercício real do direito pressupõem tão somente o sujeito ativo do direito e a coisa sobre que recai;
c) por parte de terceiros corresponde-lhe não a obrigação positiva de dar ou fazer, mas a obrigação negativa e geral de lhe respeitar o exercício – obrigação comum a todos os direitos que se traduz na inviolabilidade que os reveste;
d) da aderência direta e absoluta do direito real à coisa resulta que as ações criadas para protegê-lo podem ser intentadas contra quem quer que o usurpe ou o ofenda”.
Mais sinteticamente, diz Eduardo Espínola: “Direitos reais são os que têm como objeto as coisas, conferindo ao titular um poder direto e imediato sobre elas, com exclusão de qualquer outra pessoa”.
Em suma, tem-se em conta no direito real o poder de dominação do titular, excludente da ação de terceiros, isto é, opondo-se erga omnes, para o que lhe são próprios os caracteres de “sequela” e “preferência”. Através do primeiro, assegura-se ao titular do direito a possibilidade de segui-lo em poder de quem quer que o detenha ou possua. Pelo segundo, presente nos direitos reais de garantia, goza o titular do privilégio em satisfazer o seu crédito preferentemente aos demais credores, mesmo que amparados por garantia real posterior.
Outras qualidades aparecem, como a perpetuidade, que é inerente ao direito real, o qual existe enquanto perdura o domínio em favor de uma pessoa; a determinação, posto que sempre individuada a coisa; a aquisição via usucapião; a possibilidade de seu exercício pela simples posse; a limitação dos direitos reais, enumerados tanto pelo Código Civil aprovado pela Lei nº 3.071, de 1º.01.1916, como pelo Código Civil de 2002, introduzido pelas Lei nº 10.406, de 10.01.2002, e por leis esparsas, embora permitindo o surgimento de outros; persiste e prevalece erga omnes, ou adversus omnes, e é assegurado por razão real in natura, isto é, a coisa, ela própria, é o bem jurídico protegido. Será a coisa que voltará ao titular do direito pela reivindicação do que se julgar lesionado em seu direito. 
O estudo do direito das coisas, ou dos direitos reais, vinha regulado no livro II, da Parte Especial do Código Civil de 1916, arts. 485 a 862. Constituíam seu objeto a propriedade, nos múltiplos e importantes aspectos que essa categoria oferece, como no pertinente ao seu conceito, aos modos de aquisição e perda, ao seu exercício de direito e de fato; e os direitos reais sobre coisas alheias, que se consideram desmembrados da propriedade, neles incluídos os de gozo e os de garantias.
Consoante o Código Civil de 2002, este ramo do direito é tratado nos arts. 1.196 a 1.510, compondo o Livro III da Parte Especial.
Vários assuntos regulados por leis especiais se incluem neste ramo do direito, como algumas garantias reais instituídas em cédulas, e a propriedade intelectual, que abrange a propriedade literária, artística e científica (direito de autor) e a propriedade industrial.
Costuma-se delinear a distinção relativamente aos direitos pessoais, que compõem a parte do direito civil que trata das obrigações, e cujo objeto consiste em uma obrigação de fazer, ou de não fazer, ou de dar. Tem-se em conta uma conduta da pessoa humana, consubstanciada em uma prestação positiva (fazer ou dar), ou negativa (não fazer).
Na manifestação do direito, a pessoa é chamada a cumprir uma obrigação, ou a prestar um fato, ou a atender uma determinada função. Eis, ainda, a explicação de Lafayette Rodrigues Pereira: “Os direitos pessoais (obrigações) têm por objeto imediato não as coisas corpóreas, mas os atos ou prestações de pessoas determinadas. Um grande número destes atos (obligationes dandi), uma vez realizados, dá em resultado um direito real, efeito que suposto argua intimidade entre uns e outros direitos; todavia não lhes destrói a diferença. Aos direitos pessoais, atenta a sua essência (prestação ou ato de terceiro), corresponde a obrigação de dar ou fazer, ou de pessoa cuja vontade se acha vinculada por uma necessidade jurídica”.
Clara é a distinção apresentada por José de Oliveira Ascensão, partindo da distinção iniciada no Direito romano:
Procurando os mais longínquos antecedentes, devemos remontar à figura romana da actio in rem. Como sabemos, vigorou em Roma o princípio da tipicidade da tutela judicial: as situações subjetivas só eram atuáveis judicialmente à medida que coubessem nalguma das actiones que se reconheciam. Esta técnica levava a examinar todas as situações jurídicas subjetivas pelo prisma da ação. Não admira por isso que, com referência à ação, se tenha desenhado uma distinção que viria a ter maior alcance.
Trata-se da oposição da actioin rem à actio in personam. A actio in rem, para recorrer à expressão figurada, mas muito eloquente, que os jurisconsultos romanos utilizavam, dirigia-se contra uma coisa; a actio in personam dirigia-se contra uma pessoa, que deveria por consequência ser individualmente determinada.
Os autores cuidam de traçar a distinção entre uma classe e outra, o que surge da própria conceituação que se desenvolveu.
Predominam duas teorias: a clássica ou realista e a personalista. Pela primeira, o direito real se caracteriza como o poder da pessoa sobre a coisa, de modo direto e imediato, que se exerce erga omnes. O direito pessoal, ao contrário, opõe-se unicamente a determinada pessoa.
No direito real, surge um poder sobre a coisa – jus in re. No direito pessoal, a obrigação pode referir-se à coisa, mas para exprimir uma tendência para ela – jus ad rem, segundo explica Darcy Bessone, que salienta:
Na obrigação de dar, o direito só atinge por intermédio da pessoa do devedor, ao passo que, no direito real, o direito tem por objeto, imediata e diretamente, a própria coisa. Quem tem direito real, o tem independentemente da participação de outra pessoa. Acentua-se que o papel da pessoa, no direito pessoal, difere muito do que desempenha no direito real. No primeiro, o devedor, cumprindo a obrigação, presta colaboração para a realização do direito, pois é através da prestação prometida que ele se efetiva. No direito real, a participação de outra pessoa, que não seja o titular do direito, terá caráter de oposição, porque, sendo o direito real um poder jurídico direto e imediato sobre a coisa, somente interfere outra pessoa no quadro próprio dele para embaraçar-lhe o exercício, como ocorre, por exemplo, na usurpação de coisa alheia. No primeiro caso, a pessoa, que não seja o titular do direito, aparece como colaborador (direito pessoal); no segundo, aparece como opositor (direito real).
O direito real é o que cria entre a pessoa e a coisa uma relação direta e imediata, de sorte que se encontram nela dois elementos: a pessoa que é o sujeito ativo do direito; e a coisa, que é o objeto. O direito pessoal, ao contrário, traz uma relação entre a pessoa à qual o direito pertence e a outra pessoa que está obrigada relativamente àquela, em razão de uma coisa ou de um fato qualquer, de sorte que se apresentam três elementos: a pessoa que é o sujeito ativo do direito (o credor); a pessoa que é o sujeito passivo (o devedor); e a coisa (ou o fato), que é o objeto.
A causa eficiente do direito pessoal é a obrigação, unicamente a obrigação, seja qual for a fonte da qual ela deriva, como de um contrato, de um delito, ou da lei. No direito real, a causa eficiente é a alienação, ou os modos legítimos pelos quais se cumpre ou se efetiva a transmissão, no todo ou em parte, da propriedade.
Pela teoria personalista, iniciada por Marcel Planiol, que se inspirou em Kant, e por George Ripert, prosseguida, após, por Demogue e outros, com algumas nuances, não é possível estabelecer uma relação jurídica entre a pessoa e a coisa. Desenvolve-se a relação jurídica sempre entre duas pessoas, ou entre dois sujeitos – o ativo e o passivo. À coisa não se confere capacidade para firmar uma relação jurídica. Ademais, a oponibilidade a terceiros não se restringe aos direitos reais, mas envolve todos os direitos absolutos.
A distinção entre direitos reais e direitos pessoais estaria no sujeito passivo. Nos direitos pessoais, o sujeito passivo (ou devedor) é pessoa certa e determinada. Nos direitos reais, é indeterminado, o que redunda em uma obrigação passiva universal, consistente no dever de respeitar o direito. Como explica Darcy Bessone, com suporte em Planiol, não existe um devedor individual. Este surgirá “no momento em que se verificar a lesão no direito, pois o que há é uma obrigação passiva universal, uma obrigação de abstenção de todas as pessoas. Todas são obrigadas a se abster de qualquer ato sobre a coisa, em face do direito real. O devedor da obrigação seria a totalidade das demais pessoas, excetuado, na humanidade, apenas o titular do direito, que seria o credor”.
Ou, como explica Manuel Antonio Laquis, se descreve o direito real “como correlativo de una obligación pasiva universal, impuesta a todos menos al titular, y que consiste en la abstención de perturbar la posesión de este último”.
Todavia, não se mostra prática esta teoria, além de ter sofrido mudanças pelos próprios autores que a engendraram. Assim, a obrigação passiva universal de respeitar o direito constitui mais uma regra de conduta, e não um dever decorrente de uma relação bilateral. De sorte que, ao assumir uma obrigação contratual, não se comprometem as pessoas a respeitar os direitos reais de outrem. Ademais, tal incumbência é genérica a todos os direitos e não exclusivamente aos reais.
Em verdade, todo o direito, seja real ou pessoal, se estriba em relações jurídicas entre pessoas. Do ponto de vista científico, não há diferença alguma de natureza entre direito real e direito pessoal ou de crédito. Todo o direito se reduz a relações jurídicas ou a obrigações entre as pessoas. Existe uma ilusão ou um erro em crer ser possível uma relação de direito entre uma coisa e uma pessoa. O que ocorre é que, no direito real, a relação entre as pessoas se desenvolve em torno de um bem. Procura-se fazer preponderar uma relação de domínio sobre uma coisa. No direito pessoal ou de crédito, há um dever de fazer, ou não fazer, ou de dar, que se satisfaz na fase executória, sobre todo o patrimônio, ou todos os bens do sujeito passivo. Visa-se a declaração de um direito, que se realiza na totalidade dos bens, ou em quantos forem necessários, a fim de satisfazer o crédito de que é titular o autor. É o que deixa entrever Luis Rigaud, ao explicar que existem, no direito pessoal, a obrigação e a sanção, e que, na realidade, o objeto da obrigação do devedor é “la prestación a pagar (hecho o abstención) por el sujeto pasivo. La ejecución en la persona o sobre los bienes intervienen sólo como sanciones. La obligación queda, pues, como un vínculo de persona a persona, aunque la individualidad de la misma importa poco en derecho moderno”.
Ou seja, a obrigação que vincula as pessoas se realiza mediante a execução no patrimônio inteiro, ou quanto necessário, do sujeito passivo, enquanto, no direito real, as relações entre as pessoas têm em vista um bem específico.
Assim, o direito real consiste no poder jurídico, direto e imediato, do titular sobre a coisa, com exclusividade e contra todos. Tem, como elementos essenciais, o sujeito ativo, a coisa e a relação ou poder do sujeito ativo sobre a coisa, chamado domínio.
A propriedade é o direito real mais completo. Confere ao seu titular os poderes de usar, gozar e dispor da coisa, assim como de rea- vê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha (CC, art. 1.228). Quando todas essas prerrogativas acham-se reunidas em uma só pessoa, diz-se que é ela titular da propriedade plena. Entretanto, a propriedade poderá ser limitada quando algum ou alguns dos poderes inerentes ao domínio se destacarem e se incorporarem ao patrimônio de outra pessoa. No usufruto, por exemplo, o direito de usar e gozar fica com o usufrutuário, permanecendo com o nu-pro- prietário somente o de dispor e reivindicar a coisa. O usufrutuário, em razão desse desmembramento, passa a ter um direito real sobre coisa alheia, sendo oponível erga omnes.

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