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A questão da neutralidade ética do direito Carlos Wagner Araújo Nery da Cruz, Juiz do Trabalho Titular da Vara do Trabalho de Oeiras – PI. Professor Efetivo do Curso de Bacharelado em Direito da Universidade Estadual do Piauí. Especialista em Direito e Processo do Trabalho pela UCAM. Mestre em Direito pela PUCRS. RESUMO O artigo tem por objetivo demonstrar que na aplicação do direito, como ciência jurídica, mostra-se possível se falar numa fundamentação moral do direito, mas não ética. Isso porque os princípios morais são dotados do caráter da universalidade, ao passo que os princípios éticos encontram-se assentados na individualidade de cada um. Portanto, defende-se uma neutralidade ética do direito, já que os valores éticos não podem justificar normas jurídicas, já que a ética não é universal. Palavras chaves: Ética. Moral. Neutralidade ética do direito. Sumário: 1. Introdução. 2. A ética e a moral. 3. Ética e moral para concepções de justiça. 4. Conclusão. 1. Introdução O direito como ciência jurídica se justifica pela sua fundamentação, mas ainda é comum certa dificuldade na compreensão da influência de normas morais e de valores éticos no direito. Daí vários questionamentos mostram-se de suma importância ao aplicador do direito, os quais não têm sido apreciados de forma correta, pelo menos na seara da ciência jurídica. Os estudiosos do direito têm direcionado mais seus conhecimentos no que se convencionou chamar de “operação” ou “aplicação” do direito, tanto é assim que se intitulam operadores ou aplicadores do direito. Noutro viés, temas recorrentes e sensíveis na formação do conhecimento jurídico são relegados a um plano menor, como é o caso da distinção entre ética e moral, além dos seus efeitos em face da ciência jurídica. A contribuição da filosofia do direito em tal sentido, portanto, mostra- se indispensável para que muitos questionamentos possam ser resolvidos. O direito também se embasa numa fundamentação moral ou ética? Há distinção entre moral e ética para fins interpretativos no direito? Que tipos de princípios são institucionalizados pelo direito, os princípios morais ou princípios éticos? E os valores éticos podem justificar normas jurídicas? Tais questões levantadas, portanto, são de suma importância na ciência jurídica, sendo que o debate sobre as mesmas pode abrir espaços pouco visitados pelos pensadores do direito, um direito verdadeiramente científico e possa transformar a realidade a sua volta. 2. A ética e a moral Kant ao dividir a filosofia o faz entre filosofia formal (lógica) e material (leis da natureza e leis da liberdade), sendo que a ciência das primeiras é conhecida como física e a ciência das segundas, ética, ou também teoria dos costumes.1 Poder-se-ia então se falar em uma matafísica da natureza e uma metafísica dos costumes, ambas com uma parte empírica como também uma parte racional. A parte racional da ética seria a moral propriamente dita.2 1 KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Lisboa: Edições 70, 1986. pág. 13. 2 KANT, Immanuel. Op. cit. pág. 14. A ética possui, então, uma parte empírica e uma parte racional. Quando se fala em empirismo na filosofia fala-se no conhecimento proveniente da experiência. A moral reflete o lado racional da ética, não propriamente decorrente da experiência. É por isso, pois, que as normas morais devem possuir a característica da universalidade, o que não ocorre com os valores éticos, vinculados ao tribunal da consciência de cada indivíduo. Assim, diz Kant que as leis morais e seus princípios diferenciam-se de tudo que contenha algo de empírico, por assim dizer: Essa diferença não só é essencial, mas também toda a filosofia moral encontra-se inteiramente assentada sobre sua parte pura, e, quando aplicada ao homem, não recebe um mínimo que seja do conhecimento do homem (antropologia), mas fornece-lhe, na qualidade de ser racional, leis, a prior.3 É possível afirmar, então, que normas jurídicas e normas morais, diferentemente de valores éticos, têm a pretensão de contar com uma validade universal fundamentada para todos, não importam quais as concepções éticas que as pessoas adotam. Nesse sentido, Forst nos ensina que: Normas jurídicas pedem a observância de todos os parceiros do direito enquanto membros de uma determinada comunidade jurídica e são resultado de um processo de legislação realizado no interior de uma comunidade política, ao passo que as normas morais pretendem ter validade universal, isto é, vinculam todos os seres humanos enquanto membros de uma comunidade dos seres humanos (sem valerem no sentido jurídico-positivo). Em contraposição, os valores éticos têm uma outra pretensão da validade: são válidos apenas para os indivíduos que se podem identificar com esses valores, isto é, que podem afirmá-los como parte de suas identidades do ponto de vista de sua história de vida (como histórias no interior de comunidades e determinados contextos).4 3 KANT, Immanuel. Op. cit. pág. 14. 4 FORST, Rainer. Contextos da Justiça. São Paulo: Boitempo Editorial, 2010. pág. 41. Então, as normas jurídicas são provenientes de determinada comunidade através de um processo legislativo reconhecido institucionalmente, como é o processo de criação das leis complementares, ordinárias, delegadas, dentre outros instrumentos. Logicamente que a natureza da universalidade também é uma característica das normas jurídicas. As normas morais apesar de não possuírem validade pelo processo legislativo possuem eficácia, pois seu descumprimento pode gerar sanções não normativas institucionalizadas. Os valores éticos respondem a questões próprias e a valores pessoais de cada um e por isso não possuem o caráter da universalidade que justifiquem obediência por todos da comunidade (jurídica). Ressalte-se aqui, ainda, as palavras de Weber ao indicar que a lei moral aparece em nós, seres humanos, como um imperativo (um ordenamento) porque em nós a razão não tem pleno controle sobre as inclinações.5 Então, mesmo dotado de razão, por várias vezes, o homem não consegue controlar seus impulsões ou inclinações – e isso muitos vezes com intuito de aplicar o mal. É por isso que a moral age sobre nós como um verdadeiro moderador de convivência cotidiana. 3. Ética e moral para concepções de justiça Ética e moral podem ser utilizadas no desenvolvimento das concepções de justiça e para isso algumas considerações podem ser tecidas. Rawls, por exemplo, ao desenvolver sua teoria de justiça como equidade o faz, em especial, com o objetivo de elaborar uma teoria da justiça que represente uma alternativa ao pensamento utilitarista. Ao discorrer sobre a teoria moral utilitarista Rawls nos apresenta algumas características. Exemplifica que “os termos apropriados da cooperação social são definidos por tudo quanto, em determinado contexto, possibilite o tal mais elevado de satisfação dos desejos racionais dos invíduos.”6 A teoria moral utilitarista não se coaduna, portanto, com a teoria contratualista proposta por Rawls. O utilitarismo prega, com a satisfação dos desejos racionais dos indivíduos, o contrário do que a teoria da justiça de equidade de Rawls propõe, especialmente fundada em seus princípios basilares: Primeiro: cada pessoa deve ter um direito igual ao sistema mais extenso de iguais liberdades fundamentais que seja compatível com um sistema similar de liberdadespara as outras pessoas. Segundo: as desigualdades sociais e econômicas devem estar dispostas de tal modo que tanto (a) se possa razoavelmente esperar que se estabeleçam em benefício de todos como (b) estejam vinculas a cargos e posições acessíveis a todos. 7 A moral utilitarista, por exemplo, não aceitaria a aplicação do princípio de diferença, que motiva a distribuição igualitária de oportunidades aqueles que não tiveram acesso às melhores condições de progressão social. Ou seja, todos os que estão em melhor situação devem contribuir para o bem estar dos menos favorecidos. O Programa Bolsa Família no Brasil poderia ser citado aqui como um exemplo de aplicação do princípio da desigualdade proposto por Rawls. Ainda em torno das concepções de justiça, Forst ao propor o debate entre as mencionadas teorias liberal-deontológicas “indiferentes ao contexto” e as teorias comunitaristas “obcecadas pelo contexto” expõe os contextos normativos nos quais as pessoas estão situadas, isto é, como são reconhecidas, quais sejam: nas comunidades de vínculos e obrigações éticas constitutivas; na 5 WEBER, Thadeu. Ética e Filosofia do Direito: autonomia e dignidade da pessoa humana. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013. pág. 55. 6 RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2008 (tradução de Jussara Simões). Pág. 31. 7 RAWLS, John. Op cit. pág. 73. comunidade de direito; na comunidade política e na comunidade moral de todos os seres humanos como pessoas morais com pretensão ao respeito moral.8 Isso demonstra que nos contextos de justiça também importante o estudo do indivíduo se inserido na comunidade ética ou na comunidade moral. Dependo do contexto no qual o individuo está inserido as relações entre “ele” e o “nós” pode se alterar, com reflexo direto nas normas jurídicas. Para o intuito do presente artigo, aborda-se aqui apenas a pessoa ética e a pessoa moral. A pessoa ética, segundo Forst, “são reconhecidas como pessoas singulares em comunidades éticas, com uma biografia individual única” e as comunidades éticas “são comunidades de memória com base numa representação comum do bem que vincula a identidade individual e coletiva num modo de vida, numa linguagem ética densa”9. É correto afirma que princípios éticos, então, têm mais prevalência no campo individual de cada individuo e de como esses mesmos princípios se refletem na sua comunidade que comunga com os mesmos valores. Não possuem cunho universal, pois a ética, como já dito em linhas passadas, avizinha-se muito ao tribunal da própria consciência, através de valores que foram solidificados em cada um. Para se centrar mais nesse ponto, percebe-se que “a universalidade moral significa respeitar cada pessoa como representante da comunidade universal dos seres humanos, como um próximo”10. Aqui, observa-se perfeitamente a natureza da universalidade que permeia a moral, inclusive com reflexos na ordem jurídica. 4. Conclusão 8 FORST, Rainer. Op. cit. pág. 14. 9 FORST, Rainer. Op. cit. pág. 337. Diante do exposto, algumas pequenas considerações podem ser apresentadas em relação às normas morais e aos valores éticos em face do direito como ciência jurídica. Efetivamente, é possível se falar numa fundamentação moral do direito, mas não ética. Por conseguinte, o direito institucionaliza princípios morais (dotados do caráter da universalidade), mas não princípios éticos (assentados na individualidade de cada um). É possível, portanto, defender uma neutralidade ética do direito, mas não uma neutralidade moral, pois o direito não vai buscar na ética seus princípios, eis que ele é eticamente neutro. Assim, os valores éticos não podem justificar normas jurídicas, pois a ética não é universal. Os valores morais, esses sim, podem justificar normas jurídicas, pois para que seja moral tem que ser universalizado. BIBLIOGRAFIA FORST, Rainer. Contextos da Justiça. São Paulo: Boitempo Editorial, 2010. KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Lisboa: Edições 70, 1986 RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2008 (tradução de Jussara Simões). WEBER, Thadeu. Ética e Filosofia do Direito: autonomia e dignidade da pessoa humana. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013 10 FORST, Rainer. Op. cit. pág. 342.