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Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais 85 psicologia e da psicopatologia que permi- tem uma comunicação mais fácil e um me- lhor entendimento dos fatos. Que fique claro: não existem funções psíquicas isoladas e altera- ções psicopatoló- gicas compartimen- talizadas desta ou daquela função. É sempre a pessoa na sua totalidade que adoece. Essa questão é discutida, com muita propriedade, pelo psicopatólogo Eugène Minkowski (1966). Ele questiona se o ob- jeto da psicopatologia seria o estudo de sin- tomas isolados, atomizados e cindidos ou se, de fato, não seria mais adequado um projeto de estudo holístico, globalizante, da pessoa que adoece. Além disso, para Minkowski, a psi- copatologia deve sempre e necessaria- mente estudar o homem na “primitiva so- lidariedade inter-humana”. A psicopa- tologia é, impreterivelmente, uma ciência “a duas vozes”, fundamentada em deter- minado encontro de, pelo menos, dois se- ADVERTÊNCIA: LIMITAÇÕES DE UMA PSICOPATOLOGIA DAS FUNÇÕES PSÍQUICAS Apesar de ser absolutamente necessário o estudo analítico das funções psíquicas iso- ladas e de suas alterações, nunca é demais ressaltar que a separação da vida e da ati- vidade mental em distintas áreas ou fun- ções psíquicas é um procedimento essen- cialmente artificial. Trata-se apenas de uma estratégia de abordagem da vida mental que, por um lado, é bastante útil, mas, por outro, um tanto arriscada, pois pode susci- tar enganos e simplificações inadequadas. É útil porque permite o estudo mais deta- lhado e aprofundado de determinados fa- tos da vida psíquica normal e patológica; e arriscada, porque facilmente se passa a acreditar na autonomia desses fenômenos, como se fossem objetos naturais. Com o passar do tempo, na prática clínica diária, passa-se inadvertidamente a crer que a memória, a sensopercepção, a consciência do Eu, a vontade, a afetividade, etc., são áreas autônomas e naturais, sepa- radas umas das outras e com vida própria. Deixa-se de lembrar o que elas realmente são, isto é, constructos aproximativos da Não existem funções psíquicas isoladas e alterações psicopa- tológicas comparti- mentalizadas desta ou daquela função. É sempre a pessoa na sua totalidade que adoece. 9 As funções psíquicas elementares e suas alterações Paulo Dalgalarrondo86 res humanos. O que conta não são os sinais e os sintomas, mas, sobretudo, o fundo mental e inter-humano do qual eles proce- dem e no qual se realizam, e que, afinal, determinam a sua significação, o seu sen- tido. As funções perturbadas fazem pressen- tir transtornos subjacentes, ligados à perso- nalidade inteira, atingida na sua estrutura e em seu modo de existir. A psicopatologia geral dos manuais que Minkowski (1966) critica seria apenas a descrição mecânica e irrefletida dos sintomas, um exercício classificatório vazio, sem indicar o essenci- al, ou seja, a significação dos fenômenos. Nos transtornos psiquiátricos, não se trata apenas de agrupamentos de sintomas que coexistem com regularidade e revelam, assim, sua origem comum. Os sintomas que os compõem são ligados estruturalmente entre si. A psicopatologia, na medida em que é centrada na pessoa humana, não se desenvolve a não ser partindo de determi- nadas síndromes (psicopatologia sindrô- mica). A psicopatologia sintomática, como estudo dos sintomas isolados, não passa de uma semiologia psiquiátrica rudimentar. As alterações de funções isoladas constituem, em última análise, objeto da neurologia, da neuropsicologia ou da neurofisiologia, e não da psicopatologia. Monedero (1973, p. 21) explicita essa questão utilizando um exemplo claramen- te clínico: As alucinações durante as intoxicações não são iguais às do esquizofrênico, do histérico, ou as que aparecem no extre- mo cansaço. Se, no estudo das alucina- ções, prescindimos das diferenças entre umas e outras, seria inútil todo o nosso trabalho psicopatológico. Por isso, torna- se necessária a contínua referência aos quadros nosográficos, que são estruturas totalizantes, nos quais adquirem sentido os fenômenos particulares. Há, portanto, em psicopatologia, uma relação dialética fundamental entre o conhe- cimento do elementar e o do global, da in- Quadro 9.1 Funções psíquicas no exame do estado mental atual Em preto Funções mais afetadas nos transtornos psico-orgânicos Em branco Funções mais afetadas nos transtornos afetivos, neuróticos e da personalidade Em azul Funções mais afetadas nos transtornos psicóticos Nível de consciência Atenção* Orientação Memória Inteligência Linguagem** Afetividade Vontade Psicomotricidade Personalidade Sensopercepção Pensamento Juízo de realidade Vivência do Eu *Também nos quadros afetivos (mania, principalmente). **Também nas psicoses. Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais 87 serção de estruturas básicas em estruturas totalizantes que redimensionam constante- mente o sentido de tais estruturas básicas. É, finalmente, Eugen Bleuler (1985, p. 16) quem adverte sobre o perigo com- partimentalizador de qualquer psicopa- tologia, afirmando: Em um ato psíquico, apenas pode ocorrer uma separação teórica, não uma separa- ção real, entre as distintas qualidades psí- quicas de que se trata. [...] Na observação e descrição do mun- do das manifestações psíquicas e psi- copatológicas tendemos, de há muito, à fragmentação: descrevemos funções psí- quicas singulares (como a sensação, a percepção, a atenção, a memória, o pen- samento, o juízo...). [...] Se reunirmos estes fragmentos, fica- mos com a impressão de que a vida psí- quica pode ser compreendida como um mosaico, a partir de uma soma de mani- festações isoladas. Esta impressão, não obstante, não corresponde à realidade. [...] Cada função parcial na vida psíquica e cada aspecto da realidade psíquica só existem em vinculação estreita com toda a vida e com a realidade psíquica total. Questões de revisão • Cite as principais limitações de uma psicopatologia das funções psíquicas compartimen- talizadas. • Qual a importância, segundo Monedero (1973), dos quadros nosográficos para dar sentido aos fenômenos particulares (sintomas isolados)?
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