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Subsídios para Modelagem de Sistemas Estuarinos 231 Capítulo 3 Extrato do Livro: Publicado em Novembro de 1997 CAPÍTULO 3 SUBSÍDIOS PARA MODELAGEM DE SISTEMAS ESTUARINOS por Paulo Cesar Colonna Rosman1 1 Professor Adjunto do Departamento de Recursos Hídricos & Meio Ambiente e da Área de Engenharia Costeira e Oceanográfica/PEnO-COPPE – Universidade Federal do Rio de Janeiro. < pccr@peno.coppe.ufrj.br > 232 Paulo Cesar Colonna Rosman Conteúdo 3.1. Introdução e objetivos .................................................. 235 3.2. O processo de modelagem em sistemas estuarinos ....... 235 3.2.1. Tipos de modelos de interesse. ............................ 236 3.3. Modelo matemático geral ............................................. 238 3.3.1. Princípios fundamentais do modelo matemático .. 238 3.3.1.1. Menor Escala de interesse ................................ 238 3.3.1.2. Movimentos e transportes resolvíveis e não resolvíveis - Advecção e Difusão ....................... 239 3.3.1.3. Condição de Fluido Incompressível – Equação Constituinte e de Estado e Equação da Continuidade ................................................... 240 3.3.1.4. Aproximações para a Equação Constituinte e de Estado .............................................................. 243 3.3.2. Transporte de contaminantes – Princípio da conservação da massa .......................................... 245 3.3.3. Movimento da água – modelagem do escoamento ......................................................... 249 3.3.3.1. Variação da quantidade de movimento: d (ui )/dt ................................................................... 249 3.3.3.2. Soma das forças atuantes: FI ........................... 251 3.3.3.3. O problema de fechamento ............................. 253 3.3.3.4. Aproximação de Boussinesq ............................. 255 3.3.4. Resumo do modelo matemático geral na escala das partículas ............................................................. 256 3.3.5. Condições de validade: números de Pèclet e de Reynolds .............................................................. 258 3.3.6. Modelo geral para o escoamento e o transporte de grande escala ....................................................... 261 3.3.7. Resumo do modelo matemático geral, para o escoamento de grande escala .............................. 263 3.3.8. Sobre as condições de validade para as grandes escalas ................................................................. 270 3.4. Modelos matemáticos de sistemas estuarinos................ 271 3.4.1. Corpos d’água rasos e aproximação hidrostática .. 272 Subsídios para Modelagem de Sistemas Estuarinos 233 Capítulo 3 3.4.2. Equações do movimento em águas rasas ..............274 3.4.2.1. Condições de contorno cinemáticas na superfície livre e no fundo ................................................ 276 3.4.2.2. Condições de contorno dinâmicas na superfície livre e no fundo ................................................ 277 3.4.2.3. Equação da continuidade promediada na vertical com fluxos verticais ........................................... 278 3.4.3. Tipos de estuários e modelos pertinentes .............280 3.4.4. Modelos tridimensionais (3Dg e 3D) ....................281 3.4.4.1. Modelos hidrodinâmicos 3Dg e 3D .................. 281 3.4.4.2. Modelos 3D para transporte de escalares passivos............................................................. 282 3.4.5. Modelos bidimensionais na horizontal (2DH) .......283 3.4.5.1. Modelo hidrodinâmico 2DH ............................ 283 3.4.5.2. Modelo 2DH para transporte de escalares passivos............................................................. 290 3.4.6. Modelos bidimensionais em perfil vertical (2DV) ..291 3.4.6.1. Modelo hidrodinâmico 2DV ............................. 292 3.4.6.2. Modelo 2DV para transporte de escalares passivos............................................................. 294 3.4.7. Modelos unidimensionais (1D) .............................294 3.4.7.1. Modelo hidrodinâmico 1D ............................... 295 3.4.7.2. Modelo 1D para transporte de escalares passivos............................................................. 298 3.5. Modelo Lagrangeano para transporte de escalares passivos .........................................................................298 3.6. Estratégia geral para desenvolvimento de modelos numéricos .....................................................................303 3.6.1. Modelo numérico desacoplado para circulação hidrodinâmica 3Dg e 2DH em sistemas estuarinos .............................................................304 3.6.1.1. Objetivo e estratégia de cálculo ........................ 304 3.6.1.1.1. Módulo 2DH para obtenção de (x, y, t ) 305 3.6.1.1.2. Módulo 3D para obtenção do campo de velocidades .............................................308 3.6.1.2. Sobre os modelos 2DV e 1D ............................. 310 234 Paulo Cesar Colonna Rosman 3.6.1.3. Sobre métodos de discretizações espaciais ....... 310 3.7. Exemplos de aplicações de modelos numéricos ............ 311 3.7.1. Modelo 3D para circulação hidrodinâmica e transporte de contaminantes na Baía de Guanabara, RJ ......................................................................... 311 3.7.1.1. Condições de Contorno ................................... 312 3.7.1.2. Sobre o modelo numérico ................................ 313 3.7.1.3. Aplicação do modelo hidrodinâmico à Baía da Guanabara ....................................................... 314 3.7.1.3.1. Batimetria utilizada .................................. 314 3.7.1.3.2. Condições de maré modeladas ................ 316 3.7.1.3.3. Condições de vento modeladas ............... 318 3.7.1.4. Resultados Ilustrativos ....................................... 318 3.7.2. Modelo 2DH para estudo de cheias em Joinville devido a marés na Baía de Babitonga, SC ............ 322 3.7.2.1. Resultados Ilustrativos ....................................... 324 3.7.3. Modelagem da pluma do Emissário Submarino de Esgotos de Ipanema (ESEI), RJ .............................. 327 3.7.3.1. O domínio modelado ....................................... 327 3.7.3.1.1. Batimetria ................................................ 327 3.7.3.1.2. Dados de maré ........................................ 330 3.7.3.1.3. Dados de vento ........................................ 330 3.7.3.1.4. Características dos contaminantes simulados no ESEI ................................................... 331 3.7.3.2. Resultados ilustrativos ....................................... 331 3.7.4. Modelos 1D e pontual para estudo de estabilização da barra do sistema lagunar de Saquarema, RJ ..... 338 3.7.4.1. Resultados obtidos com o modelo 1D .............. 338 3.7.4.1.1. Situação atual: níveis d’água no sistema lagunar com a barra aberta ..................... 340 3.7.4.1.2. Situação proposta: níveis d’água no sistema lagunar com a barra estabilizada ............. 342 3.7.5. Resultados obtidos com o modelo pontual .......... 346 3.8. Referências e Bibliografia .............................................. 349 Subsídios para Modelagem de Sistemas Estuarinos 235 Capítulo 3 3.1. Introdução e objetivos Neste capítulo o objetivo específico é o desenvolvimento da modelagem matemática do movimento, ou transporte, de substâncias e propriedades no meio fluido, em sistemas estuarinos. Aspectos relevantes de modela- gem numérica são tambémdiscutidos. Modelagem é um processo de traduções em diferentes etapas, no qual o sucesso de uma etapa nunca supera o da etapa anterior. Em cada etapa, a realidade traduzida nunca é mais verdadeira que a realidade da etapa anterior. Considerando um fenômeno qualquer na natureza, a pri- meira e mais fundamental modelagem é a conceptual. Se ouvimos uma melodia complexa apenas uma vez é pouco prová- vel que consigamos “modelá-la” mentalmente. Entretanto, com a repetida observação do fenômeno, ou escuta da melodia, acabamos por compre- endê-lo, e prontamente desenvolve-se um modelo conceptual em nossas mentes. Dizemos então que entendemos o fenômeno, ou conhecemos a melodia. Partindo desta compreensão ou conhecimento pode-se traduzir o fenômeno, em diferentes modelagens. Por exemplo, um leigo em teoria musical com uma melodia na cabeça, pode traduzi-la em modelos analó- gicos através de canto ou assobio. Entretanto, alguém versado na lingua- gem musical pode traduzir o modelo conceptual da melodia para uma par- titura, obtendo assim um modelo escrito. Por sua vez, alguém que não co- nhece a melodia, mas conhece os princípios da teoria musical e sabe ler a partitura, pode “modelar a melodia” em um instrumento capaz de tocar as notas da partitura escrita. A ideia é clara, o processo de modelagem não é muito diferente quer se trate de músicas, sistemas estuarinos, ou de outros sistemas quaisquer. 3.2. O processo de modelagem em sistemas estuarinos Em se tratando de sistemas estuarinos o processo de modelagem apresenta as seguintes etapas: a) Modelagem conceptual: é formar na mente a concepção do fenômeno observado, conhecer suas causas e efeitos, compreender as interações dos agentes intervenientes na sua ocorrência. (Muito semelhante a ter e “ouvir” a música na cabeça.) b) Modelagem matemática: são traduções do modelo conceptual do fe- nômeno escritas em linguagem matemática. Os diferentes modelos ma- temáticos são diferentes arranjos, incluindo um número maior ou me- 236 Paulo Cesar Colonna Rosman nor de causas e efeitos, e de agentes intervenientes em diferentes for- mas. Para tanto há regras e princípios formais a serem seguidos. (Muito parecido com escrever a partitura de uma música, em diferentes arran- jos.) c) Modelagem numérica: são traduções dos modelos matemáticos adap- tados para diferentes métodos de cálculo. (Não é muito diferente de sequenciar as notas de uma música para serem tocadas em um instru- mento específico.) d) Modelagem computacional: é a tradução de um modelo numérico para uma linguagem computacional que possa ser compilada e execu- tada em um computador por um operador experiente. (Semelhante à tradução/compilação que o músico faz mentalmente quando lê uma partitura e a executa no instrumento pertinente.) 3.2.1. Tipos de modelos de interesse. Quando se diz “modelagem do movimento ou do transporte de substâncias e propriedades no meio fluido estuarino”, a primeira questão é a definição das substâncias e propriedades de interesse. Estas são muitas, mas sem dú- vida a principal é a que denominamos “água”. A “água” de corpos d’água naturais é uma mistura de muitas subs- tâncias, na qual a concentração2 de H2O é vastamente predominante. A qualidade desta “água” é definida pela concentração de outras substâncias e propriedades além de H2O e sua massa. Portanto, conhecer o movimento da massa de H2O e da massa de outras substâncias, ou outras propriedades relevantes, é fundamental em estudos ambientais e em projetos de enge- nharia em corpos d’água. Em sistemas estuarinos, algumas das principais substâncias e propriedades de interesse são: Massa, volume e quantidade de movimento da “água”. Massa e concentração de sal (NaCl). Massa, concentração e volume de sedimentos. Massa e concentração de contaminantes diversos, e.g., hidrocar- bonetos, agrotóxicos, demandas química e bioquímica de oxigê- nio, oxigênio dissolvido, componentes dos ciclos do nitrogênio e do fósforo, coliformes, metais pesados, etc. Quantidade de calor. 2 Entenda-se por “concentração” de uma dada substância a razão entre a massa da subs- tância e o volume da mistura. Como em um estuário na mistura fluida que vulgarmente denominamos “água”, a massa de H2O é responsável por quase 100% do volume (e da massa) da mistura, a concentração de H2O é vastamente predominante. Subsídios para Modelagem de Sistemas Estuarinos 237 Capítulo 3 Quantidade de energia cinética. Quantidade de movimento da “água”. Usualmente dá-se o nome de modelagem hidrodinâmica à determi- nação da quantidade de movimento da água3, resultando na definição dos padrões de correntes. Chama-se de modelagem do transporte de escalares à determinação da concentração de substâncias, ou outras propriedades es- calares, por exemplo quantidade de calor ou temperatura. O termo mode- lagem de qualidade da água é adotado quando os escalares de interesse são parâmetros que qualificam a água. A lista a seguir exemplifica alguns tipos de modelo que são de interesse em sistemas estuarinos. Modelos hidrodinâmicos em fluido homogêneo: são modelos para de- terminação do padrão de correntes em corpos d’ água com superfície livre, tais como águas costeiras, baías, sistemas estuarinos, rios, lagos reservatórios, etc. Tais modelos variam grandemente em complexidade indo desde modelos unidimensionais (1D) até modelos tridimensionais (3D), passando por modelos bidimensionais em planta ou promediados verticalmente (2DH), bidimensionais em perfil ou promediados late- ralmente (2DV). Modelos hidrodinâmicos em fluidos não homogêneos: são semelhan- tes aos descritos acima mas por incluírem gradientes de densidade são acoplados a modelos de transporte advectivo-difusivo dos escalares constituintes da equação de estado, usualmente sal e calor. Modelos de qualidade de água: são modelos que descrevem o trans- porte advectivo-difusivo e possíveis reações cinéticas de grandezas es- calares utilizadas como parâmetros qualificadores da água, e.g., tem- peratura, salinidade, concentração de um contaminante, contagem de coliformes, etc. Usualmente tais modelos são resolvidos desacoplados dos modelos hidrodinâmicos, entretanto a circulação hidrodinâmica re- presenta um conjunto de dados de entrada fundamental. Tais modelos também têm dimensionalidade variada em função do corpo d’água de interesse, indo desde modelos 1D até 3D como exemplificado acima. Modelos de processos sedimentológicos e evolução morfológica: são modelos para cálculo da erosão, transporte e deposição de sedimentos em corpos d’água. Têm como entrada básica os resultados de modelos hidrodinâmicos, mas podem ser interdependentes. As metodologias 3 Neste capítulo, ao se mencionar “água”, deve-se entender não apenas H2O, mas a mis- tura natural. 238 Paulo Cesar Colonna Rosman empregadas variam em função do tipo de sedimentos, coesivos ou não, forma do corpo d’água, escalas temporais e espaciais de interesse. A seguir apresenta-se os fundamentos teóricos para um modelo ma- temático geral para corpos d’água, a partir do qual se obtêm as equações para os modelos exemplificados acima. 3.3. Modelo matemático geral Apresenta-se neste item uma breve revisão de mecânica dos fluidos, com vistas à modelagem matemática e numérica de corpos d’água naturais, e especialmente de sistemas estuarinos. Há importantes diferenças entre a mecânica dos fluidos clássica e a, digamos, mecânica dos fluidos ambien- tal, que se apresenta a seguir. Como o objetivo do modelo matemático é determinar o movimento da água natural e o transportede substância pelo escoamento resultante, utiliza-se princípios de conservação da quantidade de movimento e da massa. Os princípios são aplicados a parcelas de água e substâncias no corpo d’água que dependem da escala de interesse, conforme se define a seguir. 3.3.1. Princípios fundamentais do modelo matemático Esta seção apresenta princípios fundamentais para entendimento dos mo- delos matemáticos a serem desenvolvidos. 3.3.1.1. Menor Escala de interesse Alguns princípios fundamentais devem ficar patentes. Em primeiro lugar, sabe-se que toda substância é composta por moléculas discretas, entre- tanto, na nossa menor escala de interesse, qualquer “substância” será sem- pre contínua. Assim, a menor parcela de substância à qual podemos refe- renciar é uma “partícula”, e qualquer propriedade, (e.g. massa, velocidade, temperatura, salinidade, etc.) ou princípio de conservação se aplica no mí- nimo a uma partícula. Na modelagem conceptual a matéria é contínua, e os princípios a serem empregados são os da mecânica do meio contínuo4. Uma partícula de “água” é definida por sua massa e seu volume, que pode ser de qualquer forma. Imaginando que a partícula tenha dimensões x, y e z, sua massa, m, é o produto de sua massa específica, , por seu volume, xyz: 4 Se fôssemos considerar moléculas de substâncias, acabaríamos tendo que partir de princípios de mecânica quântica. Subsídios para Modelagem de Sistemas Estuarinos 239 Capítulo 3 m x y z (3.1) O fato de se definir a escala do contínuo como a escala mínima para o volume de uma partícula5, não implica no interesse estar neste mínimo. De fato, na prática as escalas de interesse são muito maiores, pois o que se busca é o conhecimento do movimento de um conjunto de partículas em escoamento, e no transporte que tal escoamento faz, levando as diversas substâncias e propriedades das partículas para diferentes lugares de um corpo d’água. 3.3.1.2. Movimentos e transportes resolvíveis e não resolvíveis - Advecção e Difusão Os movimentos e transportes resolvíveis são aqueles que podem ser obser- vados e medidos na escala de interesse. É fácil mostrar que para ser resol- vível o fenômeno tem que ter dimensões pelo menos duas vezes maiores que as menores escalas de interesse, (teorema de Nyquist). A limitação das escalas de interesse impõe paradoxos, pois inexoravelmente haverá movi- mentos e transportes em escalas menores, e portanto, não resolvíveis. To- dos os fenômenos em escalas não resolvíveis tem que ser modelados de algum modo através de variáveis nas escalas resolvíveis. Considere por exemplo um recipiente com partículas de água pura em repouso. Em seguida, suponha que da forma mais controlada possível seja colocado um pouco de água com corante. O paradoxo resultante é co- nhecido: embora a “água” esteja parada, e portanto não exista movimento algum na escala de interesse, observa-se que o corante é transportado len- tamente e acaba por se misturar pelo recipiente todo. Na realidade as par- tículas contínuas que definem a mínima escala de interesse no caso, tem velocidade resolvível nula. Mas, existe um “escoamento molecular” asso- ciado a escalas sub-partículas ou moleculares, que transporta o corante. Considere outra vez o mesmo recipiente com água pura, mas supo- nha que há uma grade oscilando em seu interior cerca de dez vezes por segundo. Em uma escala temporal de interesse mínima de um segundo, a velocidade resolvível do escoamento no recipiente será nula. De fato, na escala de interesse a velocidade resolvível seria o valor médio das veloci- dades instantâneas ao longo de pelo menos dois segundos, o qual tenderia a ser zero devido ao caráter oscilatório do movimento da grade. Portanto, 5 A escala do contínuo, obriga que uma partícula tenha um volume mínimo que seja maior que o cubo do máximo deslocamento livre entre as moléculas das substâncias, que cons- tituem a partícula. 240 Paulo Cesar Colonna Rosman tem-se estabelecido no recipiente, um escoamento resolvível com veloci- dade nula. O paradoxo agora fica mais forte pois, apesar de, na escala de interesse, o fluido estar em repouso, é evidente que se agora fosse colocado no recipiente um pouco de água com corante, este se misturaria rapida- mente. Como no caso anterior, apesar da velocidade resolvível ser nula, há movimento e transporte em escalas inferiores às resolvíveis, pois há uma turbulência devida à agitação da grade. Existe portanto um escoamento turbulento, não resolvível, que transporta o corante. Todo movimento ou transporte resolvível é denominado advec- tivo6. E, todo movimento ou transporte não resolvível é denominado difusivo7. O transporte advectivo está sempre associado ao campo de ve- locidades resolvível na escala de interesse. O transporte difusivo sempre leva um adjetivo indicativo da maior escala não resolvível. Por exemplo, no primeiro caso do recipiente com corante antes mencionado, tem-se di- fusão molecular, ou transporte difusivo molecular, e zero advecção, ou transporte advectivo. No segundo caso tem-se difusão turbulenta, ou trans- porte difusivo turbulento, também com advecção nula. Como dito, todo movimento ou transporte não resolvível tem que ser modelado em termos de grandezas resolvíveis. Quando se está na escala instantânea pontual das partículas, essa modelagem advém da física expe- rimental, gerando “leis da física”. Por exemplo, a difusão molecular de massa é explicada pela Lei de Fick, a difusão molecular de quantidade de movimento leva às tensões viscosas. 3.3.1.3. Condição de Fluido Incompressível – Equação Constituinte e de Estado e Equação da Continuidade A princípio, a massa específica de uma partícula de “água” pode mudar tanto por variações nos constituintes de sua massa quanto em seu volume xyz. Para um dado volume, pode variar com a concentração de algu- mas grandezas escalares, e.g. salinidade. Por sua vez, o volume de uma partícula de água, com uma dada constituição, pode mudar por variações na pressão ou na temperatura. Entretanto, constata-se que nos escoamentos naturais as variações de volume por variação de pressão são desprezíveis. 6 O termo “convectivo” também é por vezes empregado com o mesmo significado, entre- tanto é mais usual em movimentos verticais decorrentes de gradientes de temperatura. 7 Nesta definição supõe-se um escoamento tridimensional (3D). Em modelos de escoa- mentos com menos dimensões (2D ou 1D) obtêm valores médios em uma dada dimensão. Na dimensão promediada, a escala de interesse é infinita, e ao escoamento não resolvível pela perda da dimensão, dá-se o nome de dispersão, vide itens sobre modelos 2DH, 2DV e 1D. Subsídios para Modelagem de Sistemas Estuarinos 241 Capítulo 3 Pode-se dizer que em escoamentos naturais a água se comporta como se fosse um fluido incompressível. Na prática, ao invés de se dizer corretamente “escoamento da água como se fosse fluido incompressível”, virou um jargão chamar de “escoa- mento incompressível” ao escoamento de partículas de água cuja massa específica não seja função da pressão. Isto é, escoamento de partículas de água com massa específica definida como função apenas da temperatura e das concentrações de algumas substâncias. Esta última frase traduz-se ma- tematicamente em duas equações extremamente importantes. A primeira é a que define a massa específica da “água”; explicitando que nos escoamentos de interesse a massa específica não depende da pres- são, P, através da chamada “Equação Constituinte e deEstado” que, para o caso, pode ser convenientemente escrita como: 1 2, , , ,...., nP T C C C (3.2) onde T representa a temperatura da partícula e C1 a Cn as concentrações das “n” substâncias constituintes de sua massa. O P riscado indica que a pressão está sendo desconsiderada e que o fluido é suposto incompressível. O fato da pressão ser descartada no cálculo de precisa ser imposto, como uma condição para definir as classes de escoamento nas quais é vá- lida a equação (3.2). Daí, a segunda equação, denominada Equação da Continuidade ou imposição da condição de incompressibilidade. Tal equação exprime que o volume, xyz, de um conjunto de partículas de um fluido em escoamento é deformado, mas sempre continua o mesmo8, pois o fluido é incompressível. Em termos matemáticos pode-se escrever que a variação do volume xyz no tempo é nula: 0 d x y z dt (3.3) Entretanto esta forma da equação da continuidade não é adequada, pois não é fácil medir o volume de um grupo de partículas em escoamento. É mais fácil medir a velocidade com que as partículas estão escoando, ou 8 Repare que a continuidade do volume, ou condição de incompressibilidade, é uma con- dição estritamente geométrica, e não uma consequência da conservação de massa. De fato, em corpos d’água naturais, nomeadamente em estuários, a massa específica da “água” não é constante mas o escoamento é incompressível. Entretanto, é comum apre- sentar-se a incompressibilidade como consequência da conservação de massa. O inverso é o correto, isto é, se um fluido for homogêneo e seu escoamento incompressível, como consequência, sua massa específica é constante. 242 Paulo Cesar Colonna Rosman a velocidade do escoamento. Assim, expandindo-se a derivada na equação (3.3) e dividindo-se pelo volume xyz obtêm-se: 1 ( ) 1 ( ) 1 ( ) 0 d x d y d z x dt y dt z dt Lembrando que a derivada de uma diferença é igual à diferença das deri- vadas, convenientemente, se pode reescrever a equação como: 0 0 dx dy dz u v w x dt y dt z dt x y z Levando ao limite em que x, y e z tendem a zero, resulta na conhecida forma da Equação da Continuidade: 0 u v w x y z (3.4) onde u, v e w são as componentes da velocidade do escoamento respecti- vamente nas direções x, y e z. A equação (3.4) é a condição de incompres- sibilidade a ser satisfeita pelo fluido em escoamento para validade da equa- ção (3.2). Em termos matemáticos a condição de incompressibilidade equi- vale a dizer que o divergente do campo de velocidades do escoamento é nulo. Em outras palavras, as partículas de um volume fluido em escoa- mento não estão convergindo nem divergindo, o volume permanece cons- tante, independente da forma que assuma ao escoar9. A imposição da condição de escoamento incompressível é sempre uma ótima aproximação da realidade, quando a razão entre a velocidade do escoamento e a velocidade de propagação do som no meio10 for muito menor que 1,0. Esta razão é denominada número de Mach, e é obviamente sempre satisfeita em escoamentos em corpos d’água naturais, visto que a velocidade de propagação do som na água é cerca de 1500 m/s. De fato, muito raramente o número de Mach em escoamento naturais é maior que 0,005, o que equivaleria a correntes com velocidades de 7,5 m/s! 9 Em oceano profundo, o escoamento também é localmente incompressível, mas a densi- dade da água é maior devido à pressão. 10 Na verdade trata-se da velocidade de propagação da onda de pressão no meio, pois o som é uma onda de pressão. Subsídios para Modelagem de Sistemas Estuarinos 243 Capítulo 3 3.3.1.4. Aproximações para a Equação Constituinte e de Estado A forma geral da equação constituinte e de estado da água apresentada na equação (3.2), inclui inúmeras grandezas escalares, como a temperatura da água e as múltiplas concentrações de seus constituintes. Entretanto, dentre tais grandezas, apenas três são relevantes no cálculo da massa específica da água: a salinidade, a temperatura e a concentração de sedimentos em suspensão. Assim convém reescrever na equação (3.2) destacando tais grandezas: 1 2, , , , , ,....,ss nP S T C C C C (3.5) As diversas grandezas constituintes de podem ser classificadas quanto ao comportamento e quanto à reatividade com o meio: Quanto ao comportamento: o Ativo: quando os gradientes da grandeza geram forças rele- vantes para o movimento das águas11. o Passivo: quando os gradientes da grandeza não geram for- ças relevantes para o movimento das águas. Quanto à reatividade com o meio: o Reativa ou não conservativa: quando a substância sofre re- ações cinéticas de produção ou consumo12. o Não reativa ou conservativa: quando a substância não sofre reações cinéticas de produção ou consumo. Repare que, quanto ao comportamento, uma mesma grandeza pode ter comportamento ativo em uns casos e passivo em outros. Por exemplo, a salinidade tem comportamento ativo em estuários estratificados e pas- sivo, ou quase-passivo, em estuários verticalmente homogêneos. Nos sistemas estuarinos, bem como na maioria dos corpos d’água naturais, é conveniente modelar a “água” como um sistema binário, com- posto pela água propriamente dita e por outra substância genérica. Isso não quer dizer que não se possa tratar simultaneamente do transporte de várias substâncias, decorrente do escoamento da água natural. A única implica- ção é que o transporte advectivo e difusivo de cada substância pode ser tratado independentemente em conjunto com a água apenas, como se fosse um sistema binário. A aproximação de sistema binário será sempre válida quando a concentração das substâncias for muito pequena em relação à concentração de H2O. 11 Em geral forças de empuxo devido a gradientes de densidade, v. seção 3.4.1. 12 Veja seção 3.3.2. 244 Paulo Cesar Colonna Rosman Na hipótese de sistema binário, a massa específica de uma partícula de “água” natural dada pela equação (3.2) pode ser escrita pela fórmula de Eckart, com boa aproximação: 2 2 1 ( , ) 1000 0.698 sendo: 5890 38 0.375 3 1779.5 11.25 0.0745 (3.8 0.01 ) A S T B A A T T S B T T T S (3.6) onde T é o valor da temperatura da “água” em graus Celsius, S é o valor da salinidade em unidades práticas de salinidade (valor em ‰, g/l ou kg/m3). Para o caso em que a concentração de sedimentos finos em sus- pensão é importante, a fórmula de Eckart torna-se: ( , ) ( , , ) ( , )ss s s S T S T C C S T (3.7) onde Cs é a concentração de sedimentos em suspensão, sendo s a massa específica do sedimento. Em modelagem de sistemas estuarinos é comum se considerar a massa específica da água natural como função apenas da salinidade; por outro lado na modelagem de águas costeiras pode ser importante conside- rar tanto a temperatura quanto a concentração de sal. Já no caso de lagos e reservatórios de água doce, usualmente apenas a temperatura é relevante. Em algumas situações a concentração de sedimentos em suspensão pode ser importante na determinação da massa específica da água natural, por exemplo, no sistema estuarino do rio Amazonas. No caso usual de modelagem de sistemas estuarinos, para uma dada temperatura de referência suposta constante durante o período de modela- gem, se define a massa específica considerando apenas a variaçãoda sali- nidade, é fácil verificar que a fórmula de Eckart, equação (3.6), pode ser aproximada por uma reta: S (3.8) onde e são constantes definidas a partir da temperatura de referência. A Figura 3.1 mostra exemplos para temperaturas de 10o, 20o e 30o Celsius, ficando evidente a validade da aproximação (3.8). Subsídios para Modelagem de Sistemas Estuarinos 245 Capítulo 3 Figura 3.1. Gráficos da variação da massa específica da água de sistemas estuarinos com a salinidade, para diferentes temperaturas 13 . Os símbolos resultam da equação (3.6) completa, e as equações das retas resultam de regressão linear, cf. equação (3.8). A grande maioria das substância presentes na água natural não é re- levante na definição de sua massa especifica. Quando a concentração de uma grandeza é relevante para o cálculo de , esta poderá ter comporta- mento ativo, caso contrário terá comportamento passivo. De modo a calcular a massa específica como expresso nas equações (3.6), (3.7) ou (3.8), é fundamental modelar como as grandezas escalares constituintes da “água” são transportadas pelo escoamento. 3.3.2. Transporte de contaminantes – Princípio da conservação da massa O transporte de contaminantes presentes na constituição da massa de uma partícula de água de um sistema estuarino, ou de qualquer corpo d’água natural, pode ser determinado a partir do balanço de massa para um sistema aberto, que se baseia no princípio da conservação. 13 Note que variações típicas de salinidade chegam a mudar o valor de em mais de duas dezenas, enquanto que variações usuais de temperatura mudam unidades. Por sua vez, variações comuns de Cs alteram apenas as casas decimais de . T=10oC: = 0.7789S + 999.74 T=20oC: = 0.7609S + 998.31 T=30oC: = 0.7516S + 995.81 990 995 1000 1005 1010 1015 1020 1025 1030 0 5 10 15 20 25 30 35 40 (m a s s a e s p e c íf ic a e m k g /m 3 ) S(valor da salinidade em ‰, g/l ou kg/m3) 246 Paulo Cesar Colonna Rosman Para modelagem conceptual do princípio da conservação, suponha um volume de controle, no qual se possa medir os fluxos de entrada e de saída da massa de contaminante. Considere também que se pode medir, as possíveis reações que porventura ocorram produzindo ou consumindo massa do contaminante, enquanto este está dentro do volume de controle. O modelo conceptual do princípio da conservação de massa pode então ser escrito como: “A variação por unidade de tempo da massa de contaminante, den- tro do volume de controle, é igual ao fluxo de entrada menos o fluxo de saída, mais a massa resultante das reações de produção ou consumo no interior do volume na unidade de tempo14.” Para o modelo matemático de tal princípio suponha que o volume de controle seja um cubo com dimensões x, y e z. Em um dado instante a massa de contaminante no interior do volume de controle será o produto da concentração de contaminante C pelo volume xyz. A Figura 3.2 exemplifica os fluxos de entrada e saída na direção x através das faces de área yz do volume de controle. A componente da velocidade com que o contaminante é transportado na direção x é uc. Note que o fluxo de saída foi obtido a partir do fluxo de entrada, por expansão em série de Taylor ao longo de x. Na expansão, apenas os dois primeiros termos são relevantes, pois o volume de controle é suficientemente pequeno para que a variação do fluxo ao longo de x seja quase linear15. Figura 3.2. Esquema do balanço de massa de contaminante na direção x. Para as direções y e z, o esquema é semelhante, considerando respectivamente os fluxos vcC xz e wcC xy e expansões em série de Taylor ao longo de y e z. 14 Tais reações são usualmente denominadas “reações cinéticas”, e podem envolver fe- nômenos químicos, biológicos e físicos. 15 Esta é uma restrição a ser respeitada para validade do modelo matemático. Muitos problemas de modelos numéricos advém do desrespeito a esta restrição. x y z zyCuc zyx Cu xCu cc )( Subsídios para Modelagem de Sistemas Estuarinos 247 Capítulo 3 Com os elementos indicados acima, pode-se escrever a tradução ma- temática do modelo conceptual do princípio de conservação de massa como: somatório das reações de variação da massa produçãfluxo de entrada menos fluxo de saída por unidade de tempo nas direções , , . c c c c x y z C x y z u C v C w C x y z R x y z t x y z o ou consumo de contaminante Como o volume de controle não é função do tempo, a expressão pode ser simplificada resultando em: c c c c C u C v C w C R t x y z Usando notação indicial convencional16, pode-se reescrever a equa- ção de modo mais compacto: ci c i C u C R t x (3.9) Na equação (3.9), a velocidade de transporte do contaminante, com componentes uc, vc e wc, não é resolvível. De fato, não se consegue medir a exata velocidade com que um contaminante é transportado no meio flu- ido, vide item 3.3.1.2. O que é resolvível, e mensurável, é a velocidade do escoamento, ou velocidade hidrodinâmica, com componentes u, v e w. Para resolver tal impasse um artifício é utilizado, de modo a separar o fluxo de contaminante em uma parte resolvível e outra não resolvível: fluxo nãofluxo resolvívelresolvível ci i i c i i ci i c i i C u C u C u C R t x C u C u u C R t x x (3.10) 16 Na notação indicial considera-se (x, y, z)(x1, x2, x3) e (u, v, w)(u1, u2, u3). A regra fundamental é que em todo termo em que um índice está repetido, fica subentendido o somatório nos valores do índice. Por exemplo, em notação indicial a equação da conti- nuidade (3.4) seria reescrita como 0.i iu x 248 Paulo Cesar Colonna Rosman Como exposto no item 3.3.1.2, a parcela resolvível é denominada fluxo advectivo, e a não resolvível fluxo difusivo. No presente caso, a es- cala de interesse é a das partículas, e a escala inferior não resolvível é a molecular, assim, tem-se um fluxo difusivo molecular ou transporte por difusão molecular. O fluxo difusivo propriamente não é resolvível, porém o efeito resultante de tal fluxo pode ser contabilizado enquanto existir di- ferenças de concentração no meio, através da conhecida Lei de Fick da difusão molecular, cujo modelo conceptual pode ser expresso como: “O fluxo difusivo resultante de um contaminante é proporcional ao gradiente das concentrações, e ocorre no sentido contrário ao do gradiente”. Em termos matemáticos, este modelo conceptual se traduz em: cj j ij c c ij j C C C C u u C D D x y z x (3.11) onde Dc é o coeficiente de difusão molecular, ou difusividade molecular, do contaminante no meio, e ij foi introduzido para possibilitar a notação indicial. ij é chamado delta de Kroenecker, vale 1 quando i = j, caso con- trário vale zero. Introduzindo a Lei de Fick na equação (3.10), pode-se escrever o princípio de conservação de massa por unidade de volume como: reações de variação consumo ou balanço do balanço do fluxo difusivolocal no produção fluxo advectivotempo i c ij c i i j C u C C D R t x x x (3.12) Finalmente, expandindo a derivado do termo advectivo e usando a condi- ção de escoamento incompressível, equação (3.4), chega-se a: reações de variação comsumo oubalanço do balanço dolocal no produçãofluxo fluxo difusivotempo advectivo i c ij c i i j C C C u D R t x x x (3.13) A equação (3.13), é também conhecida como equação de transporte advectivo difusivo com reações cinéticas. Quando o contaminante é pas- sivo, o campo de velocidades ui é independente de C, e a equação (3.13) é Subsídios para Modelagem de Sistemas Estuarinos 249 Capítulo 3 linear, se as reações forem lineares. Neste caso o estudo do transporte do contaminante é um problema desacoplado da modelagem hidrodinâmica. Entretanto, quando o contaminante é ativo, ou seja, ui depende de C, a equação (3.13) é não linear, e faz parte da modelagem hidrodinâmica. 3.3.3. Movimento da água – modelagem do escoamento Na escala da mecânica do contínuo, qualquer movimento resolvível de uma partícula é regido pelo princípio da conservação da quantidade de mo- vimento (2a Lei de Newton), cujo modelo conceptual é: “A variação temporal da quantidade de movimento de uma partícula é igual à resultante das forças atuantes”. O modelo matemático de tal princípio pode ser escrito como: ( ) ( ) ; 1,2,3i i ii d mu d u F F i dt dt x y z (3.14) onde m é a massa da partícula (vide equação 3.1), ui e Fi são as compo- nentes na direção xi, respectivamente da velocidade e da soma das forças atuantes na partícula. 3.3.3.1. Variação da quantidade de movimento: d (ui )/dt Na observação ou medição do movimento de partículas de um fluido em escoamento é praticamente impossível seguir a trajetória de uma dada par- tícula, como se faz quando se observa o movimento de um objeto sólido. Quando se segue a trajetória de um dado objeto em movimento, indepen- dente da posição do observador, o movimento observado é o mesmo. No caso do movimento de partículas de um fluido, é muito mais conveniente se observar o escoamento das partículas passando pelo local de observa- ção, do que tentar seguir a trajetória de uma partícula específica. Eviden- temente, em contraste com o caso anterior, dependendo do local de obser- vação o escoamento, ou o movimento, observado será diferente. Dá-se o nome de descrição Lagrangeana àquela em que se descreve o movimento observando a trajetória da partícula que se move. E, dá-se o nome de descrição Euleriana àquela em que se observa o movimento atra- vés do escoamento das partículas que passam pelo ponto de observação. No caso Lagrangeano o movimento é independente da posição do obser- vador, mas no caso Euleriano, o movimento depende da posição do obser- vador. 250 Paulo Cesar Colonna Rosman Esta discussão sobre o tipo de descrição do movimento é fundamen- tal para determinação da derivada temporal da equação (3.14). Como a descrição usual para movimentos de partículas fluidas é a Euleriana, qual- quer variável depende da posição, que varia no tempo, e do tempo propri- amente dito. Por exemplo, ao se medir a velocidade da corrente em um dado ponto de um corpo d’água, está se medindo a velocidade de partículas que estão passando por ali, cuja posição muda com o tempo. Simultanea- mente, no local de medição a velocidade da corrente pode estar mudando, porque partículas que chegam ao ponto podem ter velocidade diferente das que estão saindo. Em termos matemáticos pode-se escrever para uma va- riável qualquer, V, em uma descrição Euleriana: , ( ), ( ), ( )V V t x t y t z t (3.15) indicando que o valor da variável é função do tempo, t, e da sua posição que varia no tempo, x(t), y(t), z(t). Então, para se calcular a derivada tem- poral de qualquer variável em uma descrição Euleriana há que empregar a regra da cadeia. Por exemplo, para a variável da equação (3.15), ter-se-ia: 1 variação variação advectiva local u v w dV dt V dx V dy V dz V dt dt t dt x dt y dt z dV V V V V u v w dt t x y z onde usando notação indicial obtêm-se: j j dV V V u dt t x (3.16) Como indicado acima, em uma descrição Euleriana, a variação tem- poral total de uma variável qualquer, terá sempre duas partes. Uma varia- ção local associada à mudança de valor verificada no local de observação, e outra associada ao fato das partículas em escoamento estarem se mo- vendo com velocidade que, no local, tem componentes (u, v, w). Como esta segunda parte da variação está associada ao campo de velocidades ou movimentos resolvíveis, leva o nome de variação advectiva. Aplicando (3.16) em (3.14) obtêm-se: Subsídios para Modelagem de Sistemas Estuarinos 251 Capítulo 3 ( ) ( ) ( )i i i j j d u u u u dt t x (3.17) que representa a descrição Euleriana da variação da quantidade de movi- mento de uma partícula. 3.3.3.2. Soma das forças atuantes: FI As forças que atuam em uma partícula podem ser de duas classes. A pri- meira agrega as forças originadas pelo contato direto da partícula com o meio circundante, por exemplo, contato com partículas vizinhas, ação do vento na superfície livre, ação do fundo, etc. A segunda classe agrupa as forças de campo, que atuam sem contato direto, por exemplo a força “peso”. A Figura 3.3 mostra o tradicional esboço das forças de contato na direção x atuantes na partícula. As forças são representadas pelas tensões multiplicadas pelas respectivas áreas do plano de atuação17. Verifica-se que há dois tipos de tensões: as normais de tração e/ou compressão, repre- sentadas por xx, e as tensões de atrito tangenciais às faces, no caso yx e zx. Todas as tensões dependentes de movimentos, i.e. tensões dinâmicas, são representadas pela letra . Por conta disso, as tensões normais são di- vididas em duas partes, uma existente mesmo em situação estática e outra só existente em situação dinâmica. No caso da direção x pode-se escrever xx = p – xx, onde p é a pressão hidrostática18. Analisando a Figura 3.3, nota-se que, em similaridade ao caso da conservação de massa, ilustrado na Figura 3.2, as forças atuantes nas faces direita, posterior e superior, foram obtidas por expansão em série de Tay- lor, a partir dos valores nas faces esquerda, frontal e inferior, respectiva- mente. 17 Para relembrar a nomenclatura usual; o primeiro índice refere-se ao plano de atuação e o segundo à direção da tensão, e.g.: yx indica tensão atuando no plano perpendicular ao eixo y, na direção x. 18 Note que p é uma grandeza escalar, como é demonstrado em vários livros de mecânica dos fluidos. 252 Paulo Cesar Colonna Rosman Figura 3.3. Esquema das forças atuantes na direção x. As forças de contato são representadas pelo produto de tensões com áreas do plano de atuação e as forças de campo por axxyz. Os tipos de seta evidenciam diferentes tipos de força. As forças nas demais direções são semelhantes. Também neste caso, as escalas espaciais da partícula tem que ser suficientemente pequenas de modo que a variação das tensões ao longo de x, y e z, sejam quase lineares19. Desta forma, na expansão em série de Taylor apenas os dois primeiros termos são relevantes. Fazendo a soma das forças atuantes na direção x obtêm-se: forças de camporesultante das forças de contato yxx xx zx x F p a x y z x x y z (3.18)Estendendo o mesmo procedimento para as demais direções, é sim- ples verificar que, usando notação indicial, pode-se escrever para qualquer das três direções: forças de campo resultante das forças de contato iji i i j F p a x y z x x (3.19) 19 Esta é uma restrição a ser respeitada para validade do modelo matemático. zyx x xx xx yxz z zx zx zyxx yxzx zxyx zxy y yx yx x z y xxxx p axxyz Subsídios para Modelagem de Sistemas Estuarinos 253 Capítulo 3 onde empregou-se a igualdade20 ij =ji. Para corpos d’água naturais as forças de campo consideradas são: na direção vertical z, o peso da partícula decorrente da atração gravita- cional da Terra, onde 3 za a g (3.20) sendo g a aceleração da gravidade. nas direções horizontais x e y a chamada Força de Coriolis. Tal força é uma correção da variação da quantidade de movimento calculada para um sistema de coordenadas na superfície da Terra. Como a Terra está em movimento, há que se contabilizar esta variação adicional de quan- tidade de movimento inerente ao próprio sistema de coordenadas em sua superfície. Pode-se mostrar que as acelerações de campo associa- das são21: 1 2 2 sen 2 sen x y a a v a a u (3.21) sendo a velocidade de rotação da Terra (=2/86400 rd/s), e o ângulo de Latitude. Ressalta-se que é negativo no Hemisfério Sul e positivo no Hemisfério Norte. Definidas as acelerações associadas às forças de campo pode-se re- escrever (3.19) de modo mais conveniente: 3 3 força deforça de campocampo resultante das forças verticalhorizontal de contato (1 ) iji i i i i j F p a g x y z x x (3.22) mas, ressalta-se que a pressão p e as tensões ij são novas incógnitas. 3.3.3.3. O problema de fechamento Igualando as equações (3.17) e (3.22), respectivamente os lados esquerdo e direito de (3.14), pode-se reescrever a segunda lei de Newton como: 20 A igualdade ij =ji é sempre verdadeira pois, caso contrário, qualquer partícula teria uma velocidade de rotação tendendo para infinito. Isso é demonstrado em vários livros texto de mecânica dos fluidos. 21 Deduções detalhadas da Força de Coriolis são apresentadas em vários livros texto de oceanografia física. Também há força de Coriolis na direção vertical, mas é totalmente insignificante no caso de escoamento em corpos d’água. 254 Paulo Cesar Colonna Rosman 3 3 ( ) ( ) (1 ) jii i j i i i j i j u u p u a g t x x x (3.23) A expressão acima representa três equações, uma para cada compo- nente da quantidade de movimento, com as seguintes incógnitas: ui componentes da velocidade (3) massa específica (1 ou mais, dependendo da Equação de Estado) p pressão (1) ij componentes do tensor de tensões (pelo menos 6) Na lista apresentada, os números entre parênteses representam a quanti- dade de incógnitas associadas à variável. Há pelo menos 11 incógnitas a serem resolvidas. Para se ter um problema matemático fechado é necessá- rio que o número de incógnitas seja igual ao número de equações. Anali- sando as equações já apresentadas e a lista de variáveis acima, verifica-se que as seguintes associações entre incógnitas e equações podem ser feitas: 1. Para as componentes da velocidade, ui, têm-se a equação (3.23). 2. Para a pressão, p, têm-se a equação da continuidade, ou condição de escoamento incompressível, equação (3.4). 3. No caso da massa específica as possibilidades são as seguintes: Equação de estado (3.6) define massa específica constante, e por- tanto deixa de ser incógnita, e têm-se um problema hidrodinâ- mico mais simples, com fluido homogêneo. Equação de estado (3.6) define massa específica dependente de um ou mais constituintes, (contaminantes ativos). Neste caso, a con- centração de cada constituinte é uma nova incógnita, cuja equação associada é a de transporte advectivo-difusivo para cada consti- tuinte, equação (3.13). Em sistemas estuarinos é usual que a massa específica seja função da salinidade. Pelo exposto verifica-se que há um problema de fechamento, uma vez que não há equações associadas ao tensor ij. As tensões ij estão asso- ciadas a escalas não resolvíveis do movimento, porque resultam da intera- ção entre partículas, e têm que ser modeladas. Considerando um volume de partículas de água em escoamento, a física experimental mostra que tais tensões são proporcionais à taxa temporal de deformação do volume22, o que pode ser escrito como: 22 Este fato e mostrada em vários livros de mecânica dos fluidos, e é válido para escoa- mentos incompressíveis. Subsídios para Modelagem de Sistemas Estuarinos 255 Capítulo 3 e 1, 2, 3; ji i jij j i uu x x (3.24) onde o parâmetro de proporcionalidade é denominado viscosidade dinâ- mica molecular, que é um parâmetro físico químico do fluido. Por conta disto, as tensões ij são conhecidas como tensões viscosas. Além da água, muitos outros fluidos em escoamento incompressível podem ter as tensões ij modeladas por (3.24). Tais fluidos são denominados fluidos Newtonia- nos. Como a expressão (3.24) para ij não acrescenta novas incógnitas, o problema está fechado, e substituindo-a em (3.23) obtêm-se: 3 3 ( ) ( ) (1 ) ji i i j j i j j i i i i uu u p u u t x x x x x a g (3.25) que é conhecida como equação de Navier Stokes. Quando aplicada a cor- pos d’água naturais, a equação (3.25) é simplificada com aproximação ex- posta a seguir. 3.3.3.4. Aproximação de Boussinesq Voltando à equação (3.14), que é o lado esquerdo de (3.25), pode-se ex- pandir a variação temporal da quantidade de movimento em duas partes, uma devido à variação da velocidade e outra à da massa; obtendo-se: ( )i i i d u du d u dt dt dt (3.26) Em corpos d’água naturais, e.g. sistemas estuarinos, apenas a pri- meira parte, devida à variação da velocidade, é relevante. Por exemplo: considere o caso de um estuário onde em um dado ponto observa-se vari- ação típica de velocidade entre –1,0 e +1,0 m/s, e de massa específica entre 1020 e 1018 kg/m3, ambos no intervalo da meia maré enchente à meia maré vazante (cerca de seis horas). É fácil verificar que o módulo da pri- meira parte será cerca de 1000 vezes maior que o da segunda23. 23 Em corpos d’água sujeitos à variação de densidade apenas por efeitos de térmicos, a diferença de magnitude entre as duas partes frequentemente é maior. 256 Paulo Cesar Colonna Rosman Em face do exposto, é comum desprezar-se a segunda parcela em (3.26) adotando-se a conhecida aproximação de Boussinesq24: ( )i id u du dt dt (3.27) Também no contexto desta aproximação é usual se desprezar a variabili- dade de em (3.25), exceto no termo de gravidade. Para tal, substitui-se variável por um valor de referência o constante. Pode-se assim reescrever a equação (3.25) com a aproximação de Boussinesq, obtendo-se: o 3 3 o o 1 (1 ) ij ji i i j i i i j i j j i uu u p uu a g t x x x x x (3.28) onde = / é a viscosidade cinemática do fluido. No caso de sistemas estuarinos é usual adotar-se = 1025 kg/m3, e no caso de corpos de água doce, = 1000 kg/m3. 3.3.4. Resumo do modelo matemático geral na escala das partículas Resume-se a seguir as equações governantes para modelagem da hidrodi- nâmica e do transporte de escalares em corpos d’água, na escala instantâ- nea e pontual de uma partícula. Equação da continuidade ou condição de escoamento incompressível: 24 Note que, em se tratando de corpos d’água naturais, mormente em sistemas estuarinos, é errado alegar que pela conservação de massa d/dt = 0, e que portanto (3.27) seria exato. Este erro aparece em vários livros, mas pode-se mostrar que, à luz do exposto nos itens 3.3.1.3 e 3.3.2 que a aplicação do princípio da conservação de massa para uma partícula de “água” natural leva à seguinte expressão: i c ij c i i j d u C D R dt x x x Portanto, d/dt = 0 só é correto se o escoamento for incompressível, e se o contaminante ativo for conservativo e homogeneamente distribuído no espaço, ou seja, se a “água” na- tural for homogênea. Subsídios para Modelagem de Sistemas Estuarinos 257 Capítulo 3 0 u v w x y z (3.4) Equação da quantidade de movimento: 3 3 o o 1 (1 ) ji i i j i i i j i j j i uu u p u u a g t x x x x x (3.28) sendo: 1 2 2 sen 2 sen x y a a v a a u (3.21) Equação de estado25: ( , ) ( , , ) ( , )ss s s S T S T C C S T (3.7) Equação do transporte advectivo-difusivo de escalares: i c ij c i i j C C C u D R t x x x (3.13) Deve-se lembrar que: se a massa específica for constante, a mode- lagem da hidrodinâmica depende apenas das equações (3.4) e (3.28). Neste caso, uma vez conhecida a circulação hidrodinâmica, pode-se resolver (3.13) para o transporte de um escalar como problema à parte. Por outro lado, se for definido pela equação de estado com, por exemplo, três cons- tituintes, e.g. temperatura salinidade e concentração de sedimentos, a mo- delagem da hidrodinâmica obriga a inclusão de (3.7) e de três equações de transporte como (3.13), uma para cada escalar constituinte. A princípio, o conjunto destas equações, com condições de contorno consistentes e em coordenadas apropriadas, forma um modelo matemático de escoamento e transporte válido para qualquer corpo d’água. Seja ele um copo de cerveja ou um oceano. Entretanto, há fortes restrições quanto às escalas de validade das equações, como se discute a seguir. 25 Apresenta-se a equação mais geral, mas no caso de sistemas estuarinos, o emprego da equação simplificada (3.8) é mais comum. 258 Paulo Cesar Colonna Rosman 3.3.5. Condições de validade: números de Pèclet e de Reynolds Fora as ressalvas para validade das diferentes equações já apresentadas ao longo do texto, dois pontos similares e muito importantes precisam ser aclarados: um concerne à equação de transporte advectivo-difusivo e o ou- tro à equação de quantidade de movimento. Ambas as equações represen- tam princípios de conservação, em cuja dedução utilizou-se expansões em série de Taylor, com fortes restrições quanto às escalas espaciais envolvi- das. E, ambas contêm termos resultantes de modelagem experimental, vi- sando a incluir os efeitos dos fenômenos pertinentes às escalas não resol- víveis. São exatamente nestes pontos que restrições de validade precisam ser consideradas. De modo a melhor evidenciar o paralelismo das restrições nas duas equações, reescreve-se (3.28) na forma de (3.13), de modo que, para a quantidade de movimento por unidade de massa na direção xi, tem-se: 3 3 o o variação reações de consumo ou produçãobalanço dolocal no balanço do fluxo difusivo fluxotempo advectivo 1 (1 ) ji i i j i i i j j j i i uu u u p u a g t x x x x x (3.29) As restrições são determinadas de modo experimental, através de análises de magnitude da razão entre os balanços de fluxo advectivo e di- fusivo em ambas as equações. Considerando escalas características para as diferentes grandezas pode-se escrever as seguintes condições de validade: Para a equação do transporte advectivo-difusivo (3.13): 2 1 i i c c c ij i j C Cu U x U xx C DC DD x xx x (3.30) Onde a razão entre o balanço dos fluxos advectivo e difusivo de massa, Ux/Dc, é conhecida como número de Pèclet, P. Como U é uma proprie- dade inerente ao escoamento e Dc uma propriedade físico-química do con- taminante e do fluido carreante, o único grau de liberdade está em x, que representa a mínima escala espacial resolvível. Experimentalmente, veri- fica-se que a equação (3.13) é válida desde que as mínimas escalas espa- ciais do transporte em questão sejam tais que P < 2. Pode-se interpretar que Subsídios para Modelagem de Sistemas Estuarinos 259 Capítulo 3 a restrição do número de Pèclet indica qual a escala espacial máxima para validade das expansões em série de Taylor empregadas na dedução de (3.13). Para a equação da quantidade de movimento (3.29): 310 1 i j j ji j j i u Uu Ux U xx Uuu x xx x x (3.31) Onde a razão entre o balanço dos fluxos advectivo e difusivo de quantidade de movimento, Ux/, é o número de Reynolds, R. Como U é uma propri- edade inerente ao escoamento e uma propriedade físico-química do flu- ido, o único grau de liberdade também está na mínima escala espacial re- solvível, x. Assim, pode-se dizer que experimentalmente, verifica-se que a equação (3.29) é válida desde que as escalas espaciais do escoamento resolvível em questão sejam tais que R < 103. Também aqui, pode-se in- terpretar que a restrição do número de Reynolds indica qual a escala espa- cial máxima para validade das expansões em série de Taylor empregadas na dedução de (3.29). Na mecânica dos fluidos clássica classifica-se de escoamento lami- nar àquele em que R < 103, e de escoamento turbulento àquele em que R > 2103, sendo o intervalo denominado escoamento de transição. Repare que, historicamente, tal classificação é apenas uma forma de definir aquilo que é resolvível ou não resolvível, na escala de resolução humana. Laminar é o escoamento que se consegue resolver com observação visual, e turbu- lento é aquele escoamento confuso, que visualmente não se consegue dis- tinguir, ou resolver. Entretanto, verifica-se que a classificação de escoa- mento laminar ou turbulento é apenas uma questão de escala de resolução. Com o advento da mecânica dos fluidos computacional, a capacidade de resolução é intrinsecamente imposta pela escala de discretização, sendo então mais apropriado utilizar-se a classificação de escoamento resolvível e não resolvível. De modo a se ter uma ideia do significado prático destas restrições, considere por exemplo o caso da modelagem da circulação hidrodinâmica de um sistema estuarino como a Baía de Guanabara. A viscosidade cine- mática da água é cerca de 10–6m2/s, e as maiores velocidades de correntessão da ordem de 1,0 m/s,. Portanto pela restrição do número de Reynolds ter-se-ia: 260 Paulo Cesar Colonna Rosman 3 3 3 6 1 10 10 10 m 10 U x x x R Repare que valores de velocidade da ordem de 1,0 m/s e escalas espaciais resolvíveis menores que um milímetro, obrigam a utilização de escalas temporais, t, inferiores a um milésimo de segundo. Evidentemente, em termos computacionais têm-se um problema impossível de resolver. Como tais escalas estão intrinsecamente associadas às escalas de discretização do modelo numérico, para simular um ciclo de maré (~44.000 segundos) na Baía de Guanabara, ter-se-ia que resolver um sistema da ordem de 1019 equações, cerca de 44 milhões de vezes! Fazendo análise semelhante para o problema de transporte de escalares via número de Pèclet, chega-se a valores ainda mais absurdos. Como não existe solução geral conhecida para as equações do mo- delo matemático geral, resumidas em 3.3.4, as restrições de validade levam às seguintes conclusões: a aplicação do modelo geral em cálculos sobre a circulação hi- drodinâmica e o transporte de escalares em corpos d’água, só tem aplicação prática possível em casos especiais, nos quais as velo- cidades sejam muito baixas ou as dimensões espaciais do pro- blema muito pequenas. é inviável a utilização prática do modelo matemático geral para corpos d’água naturais, nomeadamente para sistemas estuarinos. fica claro que para se desenvolver um modelo numérico de modo a resolver as equações do modelo matemático geral, há que se encontrar um meio de se aumentar, e muito, as mínimas escalas resolvíveis. Portanto há que se mudar a escala do modelo, para uma “grande escala”. Em aplicações de engenharia ou de ciências do meio ambiente em corpos d’água, é óbvio que não há interesse prático em se determinar exa- tamente tudo o que acontece na hidrodinâmica e no transporte de escalares a cada décimo de milímetro e a cada milésimo de segundo. Em geral as escalas de interesse variam de muitos centímetros a quilômetros, e de se- gundos a meses, dependendo do fenômeno em estudo. Desta forma, quando se quer modelar um fenômeno, parte do processo de modelagem está em definir as mínimas escalas de interesse. Como estas escalas sempre são muito grandes em relação às escalas de validade impostas pelos núme- ros de Reynolds e de Pèclet, pode-se dizer que o objetivo é a modelagem de grande escala. Subsídios para Modelagem de Sistemas Estuarinos 261 Capítulo 3 3.3.6. Modelo geral para o escoamento e o transporte de grande escala O termo “grande escala” significa de fato a menor escala de interesse que se deseja resolver na modelagem de um dado fenômeno. O escoamento e transporte de escalares em corpos d’água são resultado da soma de fenô- menos em uma miríade de escalas. Tais escalas variam continuamente, desde as diminutas, associadas às tensões viscosas e às difusões molecula- res, até as maiores, que são limitadas pela geometria do corpo d’água. Os fenômenos com escalas maiores que as “grandes escalas” serão tão melhor resolvidos em detalhes quanto maior seu comprimento ou período carac- terístico. Já os fenômenos inferiores às grandes escalas, não são resolvíveis e têm que ser modelados. É similar ao que o artista faz ao pintar uma pai- sagem, o que está em primeiro plano é bem resolvido e detalhado, mas a vegetação do fundo não é resolvível, apenas seus efeitos aparecem no qua- dro através de diferentes tons de verde. Ao se medir uma variável instantânea de um escoamento em corpos d’água naturais, como a velocidade da corrente por exemplo, obtêm-se um resultado como ilustrado pela curva no topo da Figura 3.4. O aspecto con- fuso e irregular da curva tipifica o registro que usualmente se obtêm nos chamados escoamentos turbulentos. Claramente, na escala de resolução dos nossos olhos trata-se de um registro muito irregular. Através de méto- dos matemáticos, como análise de Fourier por exemplo, pode-se decompor o fenômeno registrado em uma soma de parcelas simples. De fato, a curva no topo da Figura 3.4 foi artificialmente construída somando-se as compo- nentes harmônicas simples que aparecem abaixo. Cada componente tem sua identidade definida por seu período ou comprimento de onda, sua am- plitude e sua fase. Na curva irregular da Figura 3.4, as menores escalas resolvíveis correspondem ao período e ao comprimento de onda da menor componente ilustrada. Se passássemos as diversas componentes por um filtro que removesse as de menor escala e deixa-se passar apenas as maio- res, o resultado seria uma curva mais suave, como a indicada também no topo da Figura 3.4. Tal curva corresponderia à parte resolvível se o fenô- meno fosse modelado tendo como grande escala apenas as quatro primei- ras, e maiores, componentes. O efeito das componentes não resolvíveis teria que ser modelado em termos de variáveis nas escalas resolvíveis e incluído no resultado final. 262 Paulo Cesar Colonna Rosman Figura 3.4. Ilustração da decomposição de um sinal complexo em componentes harmônicas simples. A linha fina irregular da parte superior é formada pela soma das senóides regulares que estão abaixo. A linha grossa da parte superior seria a parte resolvível, se apenas as quatro primeiras componentes de grande escala fossem consideradas. O que se deseja então é filtrar as variáveis presentes nas equações do mo- delo matemático geral, de modo que as equações representem bem apenas fenô- menos de grande escala. Posteriormente, ter-se-á que incluir de alguma forma nas equações, o efeito geral dos fenômenos que ocorrem nas escalas não resolvíveis, ou seja, modelar a turbulência. A maneira de se filtrar algo mate- maticamente é através de um processo de média ponderada, dando-se um peso de ponderação grande para as escalas que se quer resolver, e um peso muito pequeno ou nulo para as escalas que se deseja eliminar. Generalizando a média ponderada da aritmética para funções continuas da álgebra, chega-se à integral de convolução. Tal inte- gral corresponde a uma soma de parcelas infinitesimais do produto de uma função filtro, ou peso de ponderação, pela função que se quer filtrar. As- sim, chamando de f à parte resolvível, ou de grande escala, filtrada de uma função f qualquer, pode-se escrever26: ( ) ( ) ( )f f G d (3.32) 26 Conforme apresentado no Capítulo 3 de Métodos Numéricos em Recursos Hídricos (Volume 1), de 1989, pode-se mostrar que todos os métodos tradicionais de definição das chamadas variáveis do escoamento “médio”, e.g., promediação temporal de Reynolds, promediação temporal vicinal ou relaxada, e mesmo a promediação de grupo (ensemble averaging), podem ser escritos como casos particulares desta definição geral. Subsídios para Modelagem de Sistemas Estuarinos 263 Capítulo 3 onde e ´ são argumentos de f e G, por exemplo = (x,y,z,t). A função peso G pode ser qualquer função para a qual a média e a variância existam, e que satisfaça à condição de preservar uma constante, ou seja: ( ) 1G d (3.33) Várias são as possibilidades para seleção de uma função filtro ade- quada, entretanto há muitas vantagens teóricas e práticas na utilização de funções Gaussianas27. Define-se assim uma função filtro Gaussiana tridi- mensional, espaço temporal, como: 22 4 1 6 1 ( ) exp 6 kk k k k x G x (3.34) onde no produtório , o índice k = 1, 2, 3 indica respectivamente as dire-ções x, y, z e, k = 4 indica o tempo, sendo, x4 t. Os parâmetros k são as larguras dos filtros em cada dimensão k, e definem as mínimas escalas re- solvíveis. Em outras palavras, escoamento de grande escala é aquele com escalas maiores que k. Pode-se mostrar através do teorema de Gauss, que para k homogê- neo e permanente, podendo ser anisotrópico, a operação de filtragem é co- mutativa com as derivadas espaciais e temporais. Ou seja, a filtragem da derivada de uma função é igual à derivada da função filtrada. Portanto a aplicação da operação de filtragem às equações governantes resumidas em 3.3.4, torna-se imediata. Aplicando a operação de filtragem definida pela equação (3.32) com a função filtro dada em (3.34), às equações governan- tes, obtêm-se os resultados resumidos a seguir.28 3.3.7. Resumo do modelo matemático geral, para o escoamento de grande escala Desenvolve-se a seguir as equações governantes para modelagem da hi- drodinâmica e do transporte de escalares em corpos d’água, com variáveis resolvíveis de grande escala, filtradas das variáveis originais. 27 Vide discussão sobre tipos de funções filtro no Capítulo 3 de Métodos Numéricos em Recursos Hídricos (Volume 1), de 1989. 28 Para uma discussão em detalhes veja Rosman, 1987. 264 Paulo Cesar Colonna Rosman Equação da continuidade ou condição de escoamento incompressível: 0 u v w x y z (3.35) onde nesta e nas demais equações, a sobrebarra indica a variável resol- vível, que agora é a parte de grande escala filtrada da variável original. Equação da quantidade de movimento: 3 3 o o ( ) 1 (1 ) i j ji i i i i j i j j i u u uu p u a g t x x x x x (3.36) sendo: 1 2 2 sen 2 sen x y a a v a a u (3.37) repare que o termo de aceleração advectiva foi rescrito usando a condição de incompressibilidade para permitir a filtragem. Entretanto, isto deu ori- gem a novas variáveis, já que o produto filtrado das velocidades, ( )i ju u , difere do produto das velocidades filtradas i ju u . De modo a reescrever (3.36) em termos resolvíveis emprega-se um artifício já usado em (3.10), somando e subtraindo a parcela resolvível no segundo termo: o 3 3 o 1 (1 ) i j i j i j ji i j i j j i i i i u u u u u u uu p u t x x x x x a g o fluxos de quantidade de movimento não resolvíveiso 3 3 o 1 (1 ) i j ji i i j i j j i j j i ij i i i u u uu p u u u u u t x x x x x a g Subsídios para Modelagem de Sistemas Estuarinos 265 Capítulo 3 como nos casos anteriores os fluxos de quantidade de movimento não re- solvíveis têm que ser modelados. Tais fluxos correspondem às interações entre conjuntos de partículas, em escalas inferiores às grandes escalas, de- finidas pelo processo de filtragem. Em similaridade às tensões viscosas que denominam as interações nas escalas inter-partículas, pode-se chamar as interações inter-conjunto de partículas, de tensões turbulentas, T ij : o ( ) T ij i j i ju u u u (3.38) chegando-se então a: 3 3 o o o o 1 (1 ) T ij iji i j i i i j i j u u p u a g t x x x (3.39) onde usou-se a condição de escoamento incompressível filtrada (3.35) para reescrever o termo advectivo. Em geral despreza-se o tensor de tensões viscosas uma vez que nas escalas de interesse T ij ij . Repare que o problema de fechamento continua pois o tensor T ij representa no mínimo 6 novas incógnitas, que têm que ser modeladas. Uma ampla discussão sobre modelagem das tensões turbulentas foge ao escopo deste capítulo, boas revisões são indicadas na lista de referências sobre o tema. O que segue são breves comentários a respeito do assunto. A modelagem tradicional de T ij inspira-se na similaridade entre os processos na escala da viscosidade e na escala da turbulência. Assim é usual adotar-se a proposição de similaridade feita por Boussinesq, (cf. equação (3.24): com , 1, 2, 3 o ; T ij ji i jij j i uu x x (3.40)29 onde por similaridade ij é chamada de viscosidade cinemática turbulenta, (eddy viscosity). Contrariamente à viscosidade cinemática molecular, a turbulenta não é uma propriedade físico-química do fluido, mas sim uma 29 O mais certo é acrescentar o termo (-2/3ij ) para obtenção correta da energia cinética turbulenta, entretanto na prática isso é irrelevante pois o termo acaba sendo incorpo- rado à pressão. 266 Paulo Cesar Colonna Rosman variável do escoamento resolvível, e portanto têm que a ser modelada30. Para modelos de ij veja referências, e.g. Rodi (1980) e List (1988). Se ao invés dos métodos tradicionais, for adotado o processo de fil- tragem com filtros Gaussianos, pode-se mostrar que a seguinte expansão de ( )i j i ju u u u é correta31: 2 4 termos de filtragem ( ) 12 jk i i j i j k k k uu u u u u x x (3.41) Comparando este resultado com (3.38) pode-se ver que parte do ten- sor de tensões turbulentas foi explicitado, e o que resta para ser modelado são os termos de mais alta ordem da expansão, 4( )k . Esta é uma das van- tagens de se usar filtros Gaussianos, pois o termo de 4( )k , supostamente é menor e pode ser modelado de modo mais simples. Usando uma mode- lagem para os termos de 4( )k similar à de (3.40), pode-se escrever: 4k 4 2 o termos demodelo para os filtragem termos de com , 1,2,3 e 1,2,3,4 sendo 12 T ij j ji k i ij j i k k i j k x t u uu u x x x x (3.42) onde por similaridade ij pode ser chamada de viscosidade cinemática tur- bulenta filtrada. Com a inclusão dos temos de filtragem em (3.42), que não aparecem quando se usa métodos de filtragem convencionais, e.g. prome- diações temporais ou estatísticas, a modelagem de ij pode ser simplifi- cada, como por exemplo, baseada em comprimento de mistura, ou a usual lei quadrática. Entretanto, se uma modelagem tipo “ - ” for adotada32, as constantes do modelo serão diferentes das usuais. 30 Um comentário informal: isso parece a história de jogar poeira debaixo do tapete, pois pelo que se percebe, de um modelo para incógnitas aparecem outras incógnitas a serem modeladas. A poeira não some mais vai sendo escondida! 31 Vide Rosman (1987). 32 Vide Rodi (1980), List (1988). Subsídios para Modelagem de Sistemas Estuarinos 267 Capítulo 3 Como os termos de filtragem podem acarretar em tensões turbulen- tas não dissipativas localmente33, para validade de (3.42) é necessário que as escalas dos filtros,k, sejam pequenas em comparação com as maiores escalas do escoamento, Lk, i.e., k não deve ser maior que ~20% de Lk. Fisicamente, as maiores escalas dependem da geometria do corpo d’água e da duração do fenômeno a ser modelado. Em um modelo numérico as menores escalas resolvíveis são impostas pela discretização espaço-tem- poral
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