Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
Curso: Letras Disciplina: Bases da Cultura Ocidental Conteudista: André Alonso AULA 19 – Santo Agostinho: entre Homero e Virgílio META Apresentar um panorama das relações entre cultura greco-romana e cristianismo, em Santo Agostinho, abordando também a questão em A Cidade de Deus. OBJETIVOS Ao final desta aula, você deverá ser capaz de: 1. identificar os principais elementos da cultura clássica presentes na formação de Santo Agostinho e sua relação com o cristianismo; 2. reconhecer a utilização desses elementos em defesa da fé cristã em A Cidade de Deus. INTRODUÇÃO Em nossa aula anterior, começamos a estudar a vida e a obra de Santo Agostinho, cuja influência na cultura ocidental é imensa. Seguimos os passos de sua vida e de sua formação através da leitura de trechos das Confissões. Na aula de hoje, vamos continuar com Santo Agostinho. Estudaremos a presença da cultura clássica em sua formação. Veremos que os livros que utilizava eram os grandes clássicos latinos e mesmo gregos (Homero). Sua formação é voltada para a oratória, o que faz com que se dedique longamente ao estudo da língua e da literatura latinas. Não apenas como aluno, mas também como o professor que se tornará, Santo Agostinho trabalha com conceitos gramaticais e linguísticos que estão vigentes até nossos dias. 1 Veremos também que ele, ao refletir sobre a formação que recebeu, tecerá críticas a certo tipo de literatura e aos espetáculos teatrais. Sua análise mostra-se, uma vez mais, atualíssima. Por fim, trabalharemos um pouco com A Cidade de Deus, obra riquíssima, na qual podemos ver o quanto Agostinho era profundamente romano e conhecedor da cultura clássica, ao mesmo tempo em que, pela sua conversão, integrou em sua vida e obra uma nova cultura, a judaico-cristã. A Cidade de Deus é um excelente exemplo da síntese que ele faz desses dois grandes elementos – o clássico e o judaico-cristão – que são a base de nossa cultura ocidental. BOX MULTIMÍDIA Na Aula 18, mencionamos a Vida de Santo Agostinho, escrita por Possídio. Nela, encontramos um trecho que fala do combate que Agostinho travou contra a heresia donatista. Os donatistas contavam com uma espécie de tropa de choque, os circunceliões, que empregavam toda espécie de violência para intimidar os católicos. Eis o que Possídio nos diz sobre eles (Vida de Santo Agostinho, c.9-10): “Efetivamente, escreveu cartas particulares a certos bispos eminentes dos donatistas e a leigos, e com bons argumentos admoestava-os e exortava-os a se corrigirem do mal, ou ao menos a aceitarem uma discussão. Eles, contudo, desconfiados, nem sequer respondiam, mas irados proferiam palavras furiosas e propagavam em público e em particular que Agostinho era sedutor, enganador, dizendo e proclamando também ser ele um lobo que devia ser morto para defesa do rebanho; e era de se crer fossem perdoados todos os pecados daqueles que conseguissem realizar tal façanha. Não temiam a Deus, nem respeitavam os homens. Agostinho cuidou de que fosse notória a todos a falta de confiança que tinham em sua própria causa. Não ousaram apresentar-se quando convocados a uma reunião com atas civis. Os donatistas tinham em quase todas as suas Igrejas uma inaudita espécie de homens perversos e violentos, que perambulavam, aparentando professar continência. Chamavam-se 'circunceliões'. Eram em grande número e encontravam-se em quase todas as regiões da África. Instruídos por mestres malvados, com uma audácia cheia de soberba e temeridade, nem aos seus poupavam, nem aos estranhos. Contra todo direito, interferiam nas questões dos outros (e quem não lhes obedecia sofria danos gravíssimos e pancadas); armados de diversas maneiras, percorriam furiosos 2 campos e aldeias, não hesitando nem mesmo diante de uma efusão de sangue. Mas, como Agostinho frequentemente anunciasse a palavra de Deus e tivesse paz com os que odiavam a paz, eles o combatiam gratuitamente. E como se evidenciasse estar a verdade em oposição aos ensinamentos dos donatistas, os que queriam e podiam se furtavam mais ou menos abertamente e aderiam, quanto possível, com os seus, à paz e à unidade da Igreja. Por isso, vendo eles diminuírem muito suas assembleias, invejosos do progresso da Igreja, inflamavam- se de intensa cólera, e promoviam intoleráveis e compactas perseguições à unidade da Igreja. Infligiam aos sacerdotes e ministros católicos agressões diurnas e rapinas noturnas de todos os seus bens. Igualmente muitos servos de Deus ficaram debilitados, devido a suas pancadas. Lançaram aos olhos de alguns cal e vinagre e a outros mataram. Por esse motivo, os donatistas que rebatizavam eram odiados até pelos seus.” Também na Aula 18, vimos alguns trechos do filme de Roberto Rossellini sobre Santo Agostinho. Nele, há uma cena em que os famosos circunceliões, guiados por um bispo donatista, Macróbio, apedrejam a porta da casa de Agostinho, enquanto o chamam de “lobo”. O bispo donatista tece ameaças, inclusive de derramar sangue em sua perseguição aos católicos. Vejamos a cena: http://youtu.be/uOXYWag53Fk FIM DO BOX MULTIMÍDIA 1. A CULTURA CLÁSSICA NA FORMAÇÃO DE SANTO AGOSTINHO Sobre a língua materna de Agostinho nada se sabe com absoluta certeza. Não é garantido que ele tivesse como língua materna algum dialeto berbere. No entanto, é na cultura latina que ele cresce. Ele é africano, mas o latim, língua do Império, é aquela que aprende desde cedo. É alfabetizado na escola e “castigado a vara”, ao mostrar-se preguiçoso nos estudos (Conf., I, 9): “Ó Deus, meu Deus, que sofrimentos e desilusões padeci, quando ao menino que eu era propunham que o ideal da vida era obedecer aos mestres para prosperar neste mundo, para granjear, com a arte da palavra, o prestígio dos homens e as falsas riquezas! Fui enviado à escola para aprender as primeiras letras. Para minha infelicidade, não entendi a utilidade desse trabalho; mas, se me mostrava preguiçoso, era castigado a vara. Era um sistema 3 recomendado pelos adultos, e muitas crianças antes de nós, que tiveram essa experiência, haviam aberto o doloroso caminho que agora éramos obrigados a percorrer, multiplicando os trabalhos e dores dos filhos de Adão.” Agostinho, quando criança, estuda também o grego, mas com sofrimento. Não sente prazer em estudar a língua grega, mas ama o latim, ou melhor, a literatura latina. Sua alfabetização e os primeiros estudos de latim foram tão penosos como o estudo do grego. No entanto, ao aprender a ler e escrever, adquiriu um conhecimento muito mais importante do que aquele aprendido nas aulas de literatura (Conf., I, 13): “Ainda hoje não sei explicar bem a causa da minha repugnância pelo estudo do grego, que tentavam inculcar-me desde criança. Pelo contrário, eu gostava muito do latim, mas não aquele que é ensinado nas primeiras classes, e sim do que é ensinado pelos chamados gramáticos. As primeiras noções, em que se aprende a ler, escrever e contar, eram-me tão pesadas e penosas como o estudo do grego. Donde me vinha tal aborrecimento, senão do pecado e da vaidade da vida? Porque eu era 'carne e sopro que se esvai e não volta'. Na realidade, aqueles primeiros estudos, que me permitiam e permitem não só ler qualquer escrito que encontro, mas também escrever o que me apraz, eram mais úteis e mais práticos do que aqueles em que eu, esquecido dos meus próprios erros, era obrigado a gravar na memória as andanças de certo Eneias e a chorar Dido que se suicidara por amor. Enquanto isso, na minha extrema miséria, sem derramar nem uma lágrima sequer, me deixava morrer em meio a essascoisas longe de ti, meu Deus e minha vida. Na verdade, não há nada mais miserável que um infeliz que chora a morte de Dido, causada pelo amor de Eneias, sem se compadecer de si mesmo, nem chorar a própria morte por falta de amor para contigo, ó meu Deus, luz do meu coração, pão da boca interior do meu espírito, poder fecundante da minha inteligência e do meu pensamento. Eu não te amava. Prevaricava longe de ti. E, enquanto prevaricava, de toda parte ressoavam aplausos: 'Muito bem! Coragem!' A amizade a este mundo é de fato adultério, prevaricação e infidelidade a ti, e as palavras 'Muito bem! Coragem' são proferidas para que o homem se envergonhe se não for como os outros. Eu não chorava estas faltas, mas pranteava Dido morta, depois de ter procurado, com a espada, a pior decisão, enquanto eu me apegava aos piores objetos da tua criação, abandonando-te. Eu era terra que tendia para a terra. Se me proibiam a leitura de tais episódios, afligia-me por não poder ler o que me afligia. Oh!, loucura!, eu considerava tais estudos mais honrosos e úteis do que aqueles em que aprendi a ler e a escrever.” O trecho anterior dá-nos algumas informações interessantes sobre o sistema de estudo na época de Agostinho. Havia uma primeira etapa em que a criança era alfabetizada, aprendia a ler, escrever e contar. Em uma etapa posterior, o aluno era levado a aprofundar-se no domínio da língua utilizando textos clássicos como material didático, o que lhe permitia um acesso à literatura, à mitologia etc. A passagem em questão menciona o poema épico maior da literatura latina, a Eneida, de Virgílio, ao fazer alusão à errância de Eneias e ao suicídio de Dido. Outro 4 detalhe curioso é o fato de que os alunos tinham de memorizar trechos da Eneida. O papel da memória ainda é fundamental em uma sociedade que já era, há alguns séculos, letrada. Há também um outro aspecto que não podemos deixar de comentar e sobre o qual vamos nos aprofundar posteriormente. Agostinho aponta uma curiosa contradição que surge em seus estudos literários: ao mesmo tempo em que é levado a chorar a morte de Dido, a envolver-se emocionalmente com o texto, com o poema que estuda e memoriza, ele permanece impassível diante de suas desgraças pessoais. Pranteia a morte de uma personagem fictícia, mas não verte uma lágrima sequer pela morte de sua própria alma, ao desprezar Deus. A contradição é maravilhosamente expressa na frase seguinte: “Se me proibiam a leitura de tais episódios, afligia-me por não poder ler o que me afligia”. A força apaixonante da literatura é expressa pelo desejo de sofrer através da leitura. Retomaremos o assunto mais adiante. Agostinho insiste na maior importância das primeiras letras diante da alta literatura. Esquecer como ler e escrever seria muito mais deletério do que não lembrar-se do que narram os poetas. A matemática, aprendida na forma de uma “cantilena odiosa” é também mencionada: “Um mais um, dois; dois mais dois, quatro”. Vejamos o trecho (Conf., I, 13): “Agora, porém, meu Deus, que a tua verdade clame na minha alma e me diga: Não é assim, não é assim! São mais importantes aqueles primeiros estudos! Mais depressa eu esqueceria hoje as aventuras de Eneias e outras narrativas desse gênero do que escrever e ler. Cortinas pendem na porta das escolas de gramática. Elas servem mais para encobrir os erros que aí se cometem, do que para honrar os seus segredos. Não gritem contra mim, aqueles que eu já não temo, enquanto te revelo as aspirações de minha alma, meu Deus, e encontro paz em condenar meus perversos caminhos, para amar a retidão dos teus! Não se ergam contra mim esses vendedores e compradores de gramáticas, porque, se eu os interrogar se é verdade que Eneias veio a Cartago — como diz o poeta —, os néscios responderão que não sabem e os instruídos negarão a autenticidade do fato. Mas, se eu lhes perguntar com que letras se escreve o nome de Eneias, todos os que estudaram darão a resposta exata, segundo as normas e convenções com que os homens fixaram entre si os sinais do alfabeto. De igual modo, se eu perguntasse o que é mais prejudicial na vida: esquecer a leitura e a escrita ou todas aquelas ficções poéticas, todos sabem qual seria a resposta de quem não houvesse perdido completamente o juízo. Portanto, eu pecava quando criança, ao antepor todos aqueles conhecimentos vãos dos poetas a estes mais úteis, ou antes, quando simplesmente detestava a estes e amava àqueles. Um mais um, dois; dois mais dois, quatro. E era para mim uma cantilena odiosa, enquanto me encantava o vão espetáculo de um cavalo de madeira cheio de guerreiros, o incêndio de Troia e até 'a sombra de Creusa'.” 5 A formação primeira de Agostinho, em sua infância e juventude, é basicamente literária. Ele não se dedica a estudos de filosofia. O caminho que trilha é o da oratória, na qual a palavra exerce uma função primordial. É na literatura que se podem aprender as palavras, a eloquência, a correta e elegante expressão. As palavras, diz ele, “são como vasos eleitos e preciosos” (quasi vasa electa atque pretiosa) (Conf., I, 16): “O fragor de tuas ondas de encontro aos rochedos parece dizer: 'Aqui se aprendem as palavras, aqui se adquire a eloquência indispensável para persuadir os outros e para exprimir o próprio pensamento'.” A educação que Agostinho recebe visa a torná-lo um orador, um retor, um mestre da palavra. Seus estudos seguem um conteúdo estritamente pagão, clássico, greco-romano. Virgílio e Cícero eram autores fundamentais. Salústio e Terêncio também eram estudados. A memória tinha uma importância crucial. O aluno deveria ser capaz de citar de cabeça trechos inteiros dos autores estudados. Em um dos trechos que lemos há pouco, o autor das Confissões fala claramente que “era obrigado a gravar na memória as andanças de certo Eneias”. Um amigo de Agostinho conhecia Virgílio de cor e podia recitá-lo de de trás para frente. Fazia o mesmo com várias orações de Cícero que tinha memorizado (De anima et eius origine, IV, 7, 9): “Um certo amigo meu já dos tempos da adolescência, cujo nome era Simplício, sujeito de memória excepcional e admirável, quando foi interrogado por nós sobre quais eram os penúltimos versos que Virgílio disse em cada um de seus livros, respondeu imediatamente, com rapidez e de memória. Pedimos também que dissesse os versos que os precediam e ele disse. E ficamos convencidos de que ele podia recitar Virgílio de trás para frente. Pedimos que o fizesse em qualquer passagem de nossa escolha e ele o fez. Quisemos que o fizesse também em prosa, em qualquer oração de Cícero que ele tinha memorizado. Ele continuou a recitar de trás para frente o quanto nós quisemos.” Os autores e textos clássicos eram longamente absorvidos durante a formação do estudante. Era fundamental, sobretudo para um orador, que deveria ser capaz de falar de improviso, citar perfeitamente trechos dos grandes pilares da literatura e da civilização latinas. O aluno adquiria, assim, não apenas os melhores modelos da poesia e da prosa latinas, mas os elementos centrais da cultura greco-romano. 6 Dissemos que a formação que Agostinho teve era essencialmente literária. E foi através dessa formação exclusivamente literária que ele descobriu a filosofia, elemento basilar em sua vida, que o levou a buscar a sabedoria e, por fim, a converter-se. Leu um livro de Cícero, o Hortênsio, que fazia parte do programa regular de estudos. O diálogo de Cícero, do qual hoje restam apenas uns poucos fragmentos, era uma exortação à filosofia. O livro era admirado por sua linguagem e eloquência, mas não pelo conteúdo. E é precisamente este que despertao interesse de Agostinho. Ele apaixona-se não pela beleza retórica do texto, mas por seus ensinamentos, pelo convite à busca da sabedoria. É assim, por acaso, que nele desperta a vocação filosófica, que o conduzirá, ao longo dos anos, à conversão e à vocação religiosa (Conf., III, 4): “Era entre tais companheiros que, na idade da inexperiência, eu estudava retórica, esforçando-me por ser o primeiro, com a intenção deplorável e vã de satisfazer à vaidade humana. Seguindo o programa normal do curso, chegou-me às mãos o livro de tal Cícero, cuja linguagem — mas não o coração — é quase unanimemente admirada. O livro é uma exortação à filosofia e chama-se Hortênsio. Devo dizer que ele mudou os meus sentimentos e o modo de me dirigir a ti; ele transformou as minhas aspirações e desejos. Repentinamente pareceram-me desprezíveis todas as vãs esperanças. Eu passei a aspirar com todas as forças à imortalidade que vem da sabedoria. Começava a levantar-me para voltar a ti. Eu contava dezenove anos e meu pai tinha morrido havia dois anos. Não era para apurar a linguagem que eu lia esse livro, motivo pelo qual eu recebia o dinheiro de minha mãe: o que me apaixonava era o seu conteúdo, e não a maneira de dizer.” Os estudos de Agostinho eram baseados em um sistema multissecular, que tomava os clássicos greco-latinos como livro texto. A cultura cristã não estava presente na escola. Mas ele a recebera no seio de sua família. Sua mãe, Santa Mônica, era cristã e lhe transmitira o amor por Cristo, que ficou marcado em sua alma. Assim, ele não conseguia se deixar atrair totalmente por obras que não contivessem o nome do Salvador. E este era, precisamente, o caso do Hortênsio, de Cícero, que o despertara para a busca da sabedoria, mas que não conseguia saciá-lo plenamente, por ignorar a verdadeira Sabedoria, que é Cristo. Ele é, então, levado a ler a Sagrada Escritura, mas, imbuído de orgulho, não pode apreciar a beleza e a verdade do que lia, por achar o modo de expressão literária indigno em comparação com o estilo de Cícero (Conf., III, 5): “Resolvi por isso dedicar-me ao estudo das Sagradas Escrituras, para conhecê-las. E encontrei um livro que não se abre aos soberbos e, que também não se revela às crianças; humilde no começo, mas que nos leva aos pícaros e está envolto em mistério, à medida que se vai à frente. Eu era incapaz de nele penetrar ou de baixar a cabeça à sua entrada. O que 7 senti nessa época, diante das Escrituras, foi bem diferente do que agora afirmo. Tive a impressão de uma obra indigna de ser comparada à majestade de Cícero. Meu orgulho não podia suportar aquela simplicidade de estilo. Por outro lado, a agudeza de minha inteligência não conseguia penetrar-lhe o íntimo. Tal obra foi feita para acompanhar o crescimento dos pequenos, mas eu desdenhava fazer-me pequeno, e, no meu orgulho, sentia- me grande.” Agostinho não recebe uma formação escolar em filosofia. Suas leituras e seu estudo pessoal é que são meio que encontra para aprofundar-se nessa ciência. Ele precisa, ainda, lidar com uma limitação. Não dominando perfeitamente o grego, é obrigado a servir-se das poucas traduções de textos filosóficos que lhe chegam às mãos. De Aristóteles, ele leu, quando tinha cerca de 20 anos, as Categorias. E gabava-se de as ter compreendido com certa facilidade, enquanto outros não conseguiam penetrar-lhe o sentido (Conf., IV, 16): “De que me servia ter lido e compreendido sozinho, aos vinte anos, a obra de Aristóteles, intitulada As dez categorias, que me viera às mãos? Quando meu mestre de retórica, em Cartago, e outras pessoas consideradas eruditas citavam esse nome com ênfase, eu ficava atônito e ansioso, como diante de uma realidade grandiosa e divina. Conversando sobre o assunto com alguns que confessavam tê-las com dificuldade compreendido, mediante explicações de mestres cultíssimos, não só por palavras, mas através de desenhos traçados na areia, nada mais me puderam ensinar, que eu já não tivesse aprendido na simples leitura particular. Parecia-me que o livro era suficientemente claro ao falar das substâncias, tais como o homem, e das propriedades das substâncias, tais como a forma exterior do homem, sua estatura: quanto mede, o parentesco: de quem é irmão, ou então o lugar onde vive, quando nasceu, se está em pé ou sentado, calçados os pés ou armado, agente ou paciente de uma ação, enfim, todas as inúmeras qualidades compreendidas nas nove categorias, das quais dei algum exemplo, e na própria categoria de substância.” Mas sem dúvida, a grande influência que Agostinho sofre vem dos neoplatônicos (que na época eram chamados pura e simplesmente de platônicos), especialmente dos filósofos gregos Plotino, autor das Enéadas, e Porfírio de Tiro, discípulo deste, ambos dos séc. III d. C. Os textos a que teve acesso eram traduções latinas feitas por Mário Vitorino, um orador latino que se convertera ao cristianismo (cf. Conf., VIII, 2). A leitura dos neoplatônicos começa a abrir o caminho de Agostinho para o conhecimento de Deus e da verdade revelada. Ele finalmente se dedica à leitura da Sagrada Escritura (Conf., VII, 20-21): 8 “Depois de ter lido os livros dos platônicos, que me estimularam a procurar a verdade incorpórea, aprendi a descobrir teus atributos invisíveis através das coisas criadas, e compreendi, à custa de derrotas, qual a verdade que eu, imerso nas trevas, não tinha conseguido contemplar. […] Lancei-me avidamente à venerável Escritura inspirada por ti, especialmente à do apóstolo Paulo. […] Começando a leitura, descobri que tudo o que de verdadeiro tinha encontrado nos livros platônicos, aqui é dito com a garantia da tua graça, para que não se ensoberbeça quem consegue ver, como se não tivesse recebido, não só aquilo que vê, mas até a própria faculdade de ver. De fato, que possui o homem que não tenha recebido? Além disso, ele não só é induzido a ver-te, a ti que és sempre o mesmo, mas também a curar-se para poder possuir-te.” 2. AS CIÊNCIAS DA LINGUAGEM EM SANTO AGOSTINHO Santo Agostinho era um orador e professor de retórica. Seus estudos foram orientados nessa direção. Ele trabalhava, portanto, com os diversos elementos da linguagem. Não só os adquiriu através da formação que recebeu, mas os transmitiu a seus alunos. Dele, temos dois textos sobre gramática, um sobre dialética e outro sobre retórica, todos curtos, sobretudo se comparados com os grandes tratados agostinianos. Há também reflexões sobre a linguagem que se espalham por suas obras, como o trecho que lemos das Confissões (na Aula 18) em que nos conta como aprendeu a falar. Em seu De Grammatica, ele menciona as oito partes do discurso (De Gram., I, 2 ): “As partes do discurso são oito: nome, pronome, verbo, advérbio, particípio, conjunção, preposição, interjeição”. A teoria das oito partes do discurso é bastante difundida entre os gramáticos latinos contemporâneos a Santo Agostinho. Donato (séc. IV d. C.), cuja Ars Grammatica será amplamente utilizada durante a Idade Média, adota o mesmo esquema (KEIL, 1864, p. 355): “Quantas são as partes do discurso? Oito. Quais são elas? Nome, pronome, verbo, advérbio, particípio, conjunção, preposição, interjeição.” 9 Dionísio de Trácia, gramático grego do séc. II a. C., já estabelecia as oito partes bem antes dos latinos, com um diferença: ele menciona o artigo no lugar da interjeição. Como o latim não possui artigo, para manter as mesmas oito partes, colocou-se a interjeição (UHLIG, 1883, p. 23): “As partes do discurso são oito: nome, verbo, particípio, artigo, pronome, preposição,advérbio, conjunção.” A mesma divisão em oito partes é encontrada em gramáticas da Renascença e chegará até nós. Na gramática inglesa tradicional, o particípio é substituído pelo adjetivo. Em português, desdobramos o nome em substantivo e adjetivo, substituímos o particípio pelo artigo e acrescentamos o numeral. Assim, temos dez classes de palavras em nossa gramática: substantivo, adjetivo, pronome, verbo, artigo, numeral, advérbio, conjunção, preposição e interjeição. Destas, as seis primeiras são variáveis e as quatro últimas, invariáveis. Em seu tratado De Grammatica, Agostinho abordará cada uma das oito partes do discurso, definindo-as e explicando-lhes o conteúdo. No De Dialectica (A dialética), que, como o De Grammatica, chegou até nós em forma de um esboço, sem uma redação definitiva, Agostinho não apenas define a dialética – a ciência do bem discutir –, mas estuda uma série de conceitos da linguagem que hoje pertenceriam ao domínio da filosofia da linguagem e à linguística. Nos trechos seguintes, veremos que ele discute conceitos de linguística como signo, significante (imagem acústica), significado (conceito), referente (objeto real), 15 séculos (1500 anos!) antes de Saussure e seu Curso de Linguística Geral. “A dialética é a ciência do bem discutir. Nós sempre discutimos com palavras. As palavras, pois, são simples ou compostas. As simples são as que significam uma coisa única, como quando dizemos 'homem', 'cavalo', 'discute', 'corre'. Não se deve admirar que 'discute', embora seja composto de dois elementos, esteja, entretanto, enumerado entre as simples, pois a coisa está clara pela definição. Com efeito, foi dito que é simples aquilo que significa uma coisa única. E assim, isto (='discute') está incluído nessa definição, na qual não está incluído 'falo', quando o dizemos. Com efeito, embora seja uma única palavra, não tem, entretanto, uma significação simples, visto que significa também a pessoa que fala. Por isso, já está submetida à verdade ou à falsidade, pois pode tanto ser negada quanto afirmada. E assim, toda primeira e segunda pessoa de um verbo, ainda que seja enunciada 10 separadamente, será, todavia, contada entre as palavras compostas, porque não tem uma significação simples. Com efeito, quem quer que diga 'ando' faz com que se entenda tanto o ato de caminhar quanto o fato de que é ele mesmo que caminha, e quem quer que diga “andas”, de modo semelhante, significa tanto a ação que é feita quando aquele que a faz. Mas por outro lado, quem diz 'anda' não significa nada além do próprio ato de caminhar. Eis a razão por que a terceira pessoa do verbo sempre se conta entre as simples e não pode ainda ser afirmada ou negada, exceto quando são palavras tais que, pelo hábito de falar, se lhes está unida necessariamente a significação da pessoa, como quando dizemos 'chove' ou 'neva'; ainda que não se acrescente quem chove ou neva, todavia, porque se compreende <o sujeito>, não podem ser contadas entre as simples.” (De Dialectica, 1) “A palavra é o sinal de cada coisa, que pode ser compreendido pelo ouvinte quando pronunciado pelo falante. Coisa é tudo aquilo que é percebido pelos sentidos ou compreendido pela inteligência ou permanece desconhecido. Sinal é aquilo que manifesta a si próprio ao sentido e algo além de si mesmo à mente. Falar é dar um sinal mediante a voz articulada. Chamo de articulada a voz que pode ser contida em letras. […] Toda palavra tem um som. Com efeito, quando está em um escrito, não é uma palavra, mas o sinal de uma palavra; porquanto, quando as letras são vistas pelo leitor, apresenta-se à mente o que sai pela voz. Com efeito, o que mais as letras escritas manifestam aos olhos senão a si mesmas e, além de si mesmas, vozes à mente? E pouco antes dissemos que o sinal é aquilo que manifesta a si próprio ao sentido e algo além de si mesmo à mente. Portanto, o que lemos não são palavras, mas sinais de palavras.”(De Dialectica, 5) E como citamos alguns conceitos de linguística, não poderíamos deixar de mencionar o diálogo De Magistro (O mestre), em que ele conversa com seu filho Adeodato. O problema da linguagem e da fala é abordado desde o início do texto, que abre com uma pergunta de Agostinho – “Para você, o que parecemos querer realizar quando falamos?” – à qual o filho responde: “Na medida, ao menos, do que agora me vem à mente, ou ensinar ou aprender”. No diálogo, são abordados conceitos como signo, palavra, significado etc. Por fim, não devemos esquecer do tratado De Musica (A Música), em seis livros, no qual Agostinho aborda questões relativas à música, com especial atenção para a poesia e conceitos a ela relativos, como metro, pés, quantidade de sílaba, verso, ritmo, etc. Atividade 1 Atende ao objetivo 1 11 1. Escreva um pequeno texto resumindo os principais elementos clássicos presentes na formação de Santo Agostinho. DIAGRAMADOR: DEIXAR 20 LINHAS PARA RESPOSTA RESPOSTA COMENTADA Redija um texto, não elenque simplesmente os elementos na forma de tópicos. Tenha atenção com detalhes como ortografia e o bom encadeamento das orações, para que o texto forme um todo coerente. Você pode começar falando da escola, do processo de alfabetização de Agostinho (ler, escrever, contar). Explore bem o interesse dele pela literatura (Eneida) e o sofrimento que teve com o estudo do grego. Você pode mostrar que essa língua era estudada pelos romanos ainda no séc. IV d. C., o que prova a importância da cultura grega para a formação dos jovens romanos. Insista na formação voltada para a oratória e que a filosofia acabou sendo descoberta casualmente, através da leitura de uma obra de Cícero, o Hortênsio, que era admirada mais pela eloquência do que pelas ideias. Por fim, não deixe de citar a importância de conceitos gramaticais e linguísticos que Agostinho estuda e desenvolve e que são válidos até os dias de hoje nas ciências da linguagem. Um elemento que não deve ser negligenciado são os espetáculos teatrais, mas deles falaremos apenas no próximo tópico. Se você quiser, pode acrescentar esse último item a sua resposta, após ter lido o tópico seguinte. FIM DA RESPOSTA COMENTADA 3. A CRÍTICA DE SANTO AGOSTINHO AO TEATRO E À LITERATURA Encontramos em Santo Agostinho passagens nas quais critica a literatura e o teatro. As críticas vêm de um Agostinho já convertido, cristão, o que poderia nos levar a associá-las ao cristianismo. A questão, no entanto, não é tão simples. Homero foi vitimado por Platão e a comédia grega foi censurada em plena Atenas do séc. V a. C., em um ambiente totalmente pagão. Antes de continuarmos com Agostinho, façamos um pequeno desvio pelo caso grego. 12 3.1. A CENSURA À COMÉDIA Ao lermos as comédias de Aristófanes, vemos que ele tece críticas de diferentes ordens, inclusive política, religiosa e social. Indivíduos, por vezes proeminentes, são ridicularizados e depreciados. Questões atuais da Atenas do séc. V, por vezes bastante delicadas, são tratadas sem piedade e com crueza. É assim que, em plena guerra do Peloponeso, o vemos, em suas comédias, defender a paz e criticar a guerra e os que dela se beneficiam. E surgem as censuras. Ao menos em duas ocasiões, vemos a comédia ateniense ser censurada mediante lei. A primeira ocorrência dá-se em 440 a. C., cerca de uma década antes de Aristófanes começar suas atividades de comediógrafo. Ela é mencionada em um escólio ao v. 67 de Acarnenses, que menciona o arconte Eutimeno. O escoliasta, ao explicar quem era esse arconte, diz que ele foiquem aboliu o decreto que proibira ridicularizar (τὸ ψήφισμα τὸ περὶ τοῦ μὴ κωμῳδεῖν – tò pséphisma tò perì toû mè komoideîn). O verbo κωμῳδεῖν (komoideîn) não significa, no escólio, a composição de comédias, mas o ato de satirizar, em uma comédia, alguém em particular. Verbete escólio e escoliasta – O termo escólio vem do grego σχόλιον (skhólion) e está ligado ao termo σχολή (skholé), no sentido de “escola”. Trata-se de um pequeno comentário, uma observação ou uma nota, escritos na Antiguidade por um comentador ou estudioso e visando a facilitar a compreensão de uma passagem obscura ou problemática de um texto. Os escólios frequentemente trazem informações preciosas, de cunho histórico ou cultural, por vezes com detalhes bem específicos e que são fundamentais para a adequada compreensão de determinados textos antigos. Escoliasta é o nome que se dá ao autor de escólios. Fim do Verbete 13 Uma segunda ocorrência de censura teria sido registrada em 414 a. C. e referência é feita a ela em um escólio ao verso 1297 de Aves. O escoliasta menciona o fato de que Siracósio teria estabelecido um decreto contra ridicularizar alguém nominalmente (ψήφισμα μὴ κωμῳδεῖσθαι ὀνομαστὶ τινά – tò pséphisma mè komoideîsthai onomastí tiná). E qual seria o motivo de tal proibição? Os danos que poderiam ser causados a quem era ridicularizado com acusações de ter cometido certos atos cujas consequências eram graves: “Como vimos, a lei de Atenas contra a calúnia punia falsas declarações de que alguém era um 'espancador do pai', 'espancador da mãe', 'assassino', ou que ele tinha 'abandonado seu escudo' (tèn aspída apobaleîn) em combate” (WALLACE, 2005, p. 366). O indivíduo que tivesse cometido tais atos poderia ser punido com a perda de direitos civis e políticos. A lei contra a calúnia visaria, assim, a impedir que falsos testemunhos pudessem ser usados para causar danos a inocentes. 3.2. PLATÃO E A CRÍTICA AO TEATRO E À POESIA Na Grécia, o gênero dramático – tragédia e comédia – pertence ao âmbito da poesia. Em outras palavras: teatro é poesia. E, para Platão, a poesia é uma espécie de imitação – μίμησις (mímesis, de onde vêm mimetismo, mimético etc.) –, o que significa dizer que ela está bastante afastada da realidade. O mundo das Ideias é o mundo verdadeiro. Nosso mundo sensível é uma cópia desse mundo real e as artes, no geral, produzem obras que são cópias do mundo sensível. Uma obra de arte seria, assim, a cópia de uma cópia. Em seu diálogo A República, Platão trata da justiça e de sua realização no indivíduo e na cidade. Para que a cidade possa ser justa, é preciso que ela seja governada por homens justos. Para tal, eles precisam ser bem formados. A educação exerce, portanto, um papel essencial para o sucesso de uma sociedade (infelizmente, parece que perdemos de vista essa verdade fundamental!). A educação deve ter características bem específicas, de tal modo que possa tornar virtuosos os governantes e os cidadãos. Ela visa, portanto, à virtude e nela nada pode haver que afaste os governantes do caminho da justiça e os torne viciosos. 14 No livro II de A República, Platão discute o tipo de educação a que devem ser submetidos os guardiões (governantes) da cidade. A melhor formação deveria ser baseada na ginástica (γυμναστική), que educa o corpo, e na música (μουσική), que educa a alma. Dentro da categoria “música”, o filósofo inclui os discursos (histórias, poesia etc.). Estes podem ser verdadeiros ou mentirosos. Sobre as histórias narradas pelos grandes poetas, ele diz (Rep., II, 377d): “As (histórias) que Hesíodo e Homero nos deixaram, lhe falei, e outros poetas, pois são eles os autores das fábulas mentirosas que então contavam aos homens e ainda contam”. Em seguida, ele explica por que essas histórias são mentirosas e representam um perigo para os jovens, que são imaturos (Rep., II, 377d-378a): “Quais são, perguntou, e o que nelas te parece censurável? E o que será preciso condenar desde o início com todo o empenho, principalmente quando a mentira não for bem contada. Por exemplo? Quando fazem uma descrição errônea da natureza dos deuses e dos heróis, à maneira do mau pintor, cujo trabalho em nada se parece com o original que se propusera retratar. Realmente, disse; tudo isso merece, de fato, franca repulsa. Mas, como e em que se tornam passíveis de nossa condenação? Para começar, lhe disse, foi ruim inventor quem forjou a mais deslavada mentira, e sobre assunto de grande relevância, no que respeita às atrocidades que Hesíodo atribui a Urano e à vingança que deste tomou Crono. Os atos, também, de Crono e tudo o que lhe infligiu seu filho, ainda que fossem verdadeiros, a meu parecer não deveriam ser contados com tanta leviandade a jovens de pensamento imaturo. Teria sido melhor silenciar; mas, se houvesse mesmo necessidade de mencioná-los, que fosse isso, então, dito em segredo e ao menor número possível de pessoas, depois do sacrifício, não de um porco, mas de alguma vítima grande e difícil de encontrar, para que raros ouvintes viessem a ter conhecimento do episódio. Sem dúvida, disse; trata-se de fábulas perigosas.” A preocupação maior de Platão é que as crianças e os jovens sejam expostos a maus exemplos transmitidos pelos mitos narrados na poesia, pois estão em uma idade em que são por um lado bastante impressionáveis, por outro, muito imaturos para julgar o que é certo ou errado (Rep., II, 378d-e): 15 “Os moços não têm capacidade para decidir sobre a presença ou ausência de ideias ocultas; as impressões recebidas nessa idade são indeléveis e dificilmente erradicáveis. Por isso mesmo, importa, antes de mais nada, que as primeiras criações mitológicas por eles ouvidas sejam compostas com vistas à moralidade.” As artes estão no nível da imitação (mímesis). O poeta é um imitador, assim como o pintor. Este imita a aparência (mundo sensível) e pode, com sua arte enganar ao menos as crianças e as pessoas simples (Rep., X, 598b-c): “Considera agora o seguinte: a que fim se propõe o pintor em cada caso particular: imitar as coisas como são em si mesmas, ou sua aparência, o que se lhe afigura? Trata-se de imitação da aparência ou da realidade? Da aparência. Logo, a arte de imitar está muito afastada da verdade, sendo que por isso mesmo dá a impressão de poder fazer tudo, por só atingir parte mínima de cada coisa, simples simulacro. O pintor, digamos, é capaz de pintar um sapateiro, um carpinteiro ou qualquer outro artesão, sem conhecer absolutamente nada das respectivas profissões. No entanto, se for bom pintor, com o retrato de um carpinteiro, mostrado de longe, conseguirá enganar pelo menos crianças ou pessoas simples e levá-las a imaginar que se trata de um carpinteiro de verdade.” O poeta, com sua narrativa, poderá, obviamente, fazer o mesmo que o pintor, compondo poemas que são apenas imitações da aparência e que não atingem a verdade. Com sua arte, servindo-se de belas palavras, de ritmo e harmonia, ele pode induzir ao erro um ouvinte pouco experimentado. Se retirássemos todo o embelezamento exterior, não restaria nada de extraordinário (Rep., X, 600e-601b): “Sendo assim, firmemos desde logo este ponto: todos os poetas, a começar por Homero, não passam de imitadores de simulacros da virtude e de tudo o mais que constitui objeto de suas composições, sem nunca atingirem a verdade, o que também se dá com o pintor, a que já nos referimos, o qual, sem nada entender da arte de fazer sapatos, é capaz de pintar um sapateiro que lhe pareça bom e a quantos desconheçam essa profissão e só percebam as cores e o desenho. Perfeitamente. Amesma coisa, creio, podemos afirmar do poeta que com palavras e frases reveste as diferentes artes das cores que lhes são próprias, sem entender nada mais além da imitação. Como consequência, os ouvintes, que apreciam os assuntos apenas pelo efeito das palavras, ficam convencidos de que ele fala com muita propriedade, quer o ouçam discorrer com metro, ritmo e harmonia acerca da arte de fazer sapatos, quer sobre a estratégia militar ou o tema que for, tal o natural fascínio que exerce com seus recursos. Porém, se despirmos as criações dos poetas desse colorido musical e as apresentarmos em expressões comuns, bem sabes, tenho certeza, a que ficam reduzidas. Sem dúvida.” 16 E Platão, por fim, propõe que não se aceite o poeta na cidade, pois este, com suas composições, desperta, alimenta e fortalece a parte maldosa da alma (Rep., X, 605a-c): “Temos, assim, o direito de apanhar o poeta e de confrontá-lo com o pintor; parece-se com este pelo insignificante de suas produções no que respeita à reprodução da verdade e também pelo seu trato frequente com a outra parte da alma, a de menor valia. Assiste-nos, por conseguinte, inteira razão de não o recebermos na futura cidade de legislação modelar, visto despertar ele, alimentar e fortalecer a parte maldosa da alma e, com isso, arruinar o elemento racional. Seria exatamente o caso de entregar todo o poder e o próprio burgo nas mãos dos cidadãos perversos, e de matar as pessoas de valor: do mesmo modo dizemos do poeta imitador que ele implanta na alma de cada indivíduo uma constituição, com adular- lhe o elemento irracional e incapaz de distinguir entre o que é maior e o que é menor, e que considera grandes ou pequenas as mesmas coisas, conforme as circunstâncias, apresta simulacros e se encontra infinitamente afastado da verdade. Perfeitamente.” Como pudemos constatar, a crítica e mesmo a censura ao teatro e à literatura é bastante anterior ao que dirá Santo Agostinho e nada tem a ver com a “novidade” do cristianismo. Questões de ordem política, social e filosófica estão na base de tais procedimentos, muito antes de qualquer aspecto religioso que o cristianismo possa ter introduzido no cerne do problema. Passemos agora ao que Agostinho dirá sobre o tema. 3.3. TEATRO E LITERATURA EM SANTO AGOSTINHO Santo Agostinho, quando criança, deleitava-se com a literatura latina. Com a literatura grega – ele menciona especificamente Homero –, a experiência foi traumática, não pela literatura em si, mas pela barreira da língua grega, que lhe era ensinada de modo muito pouco didático. A paixão pelas histórias narradas por Virgílio na Eneida era tal, que ele sofria se por qualquer razão o impediam de lê-las (Conf., I, 13): “Se me proibiam a leitura de tais episódios, afligia-me por não poder ler o que me afligia. […] Um mais um, dois; dois mais dois, quatro. E era para mim uma cantilena odiosa, enquanto me encantava o vão espetáculo de um cavalo de madeira cheio de guerreiros, o incêndio de Troia e até 'a sombra de Creusa'”. 17 Em sua juventude, amava profundamente o teatro (Conf., III, 2): “Extasiavam-me os espetáculos teatrais, que espelhavam copiosamente as minhas misérias e alimentavam a minha fogueira.” Agostinho, portanto, passou sua infância, adolescência e juventude, fruindo do prazer que a literatura clássica e os espetáculos teatrais lhe proporcionavam. Ele admite seu gosto pelos jogos e competições nas quais se buscava o sabor da vitória. Ainda que sua mãe fosse cristã e que tivesse recebido, em sua meninice, os rudimentos dessa fé, sua formação cultural era estritamente pagã e os hábitos que dela derivavam também. O prazer que experimentava no cênico e no lúdico retroalimentava suas paixões. As reflexões que Agostinho desenvolve sobre a literatura e o teatro espelham uma visão muito diversa de sua vivência juvenil. A busca pela verdade o conduzira por caminhos tortuosos, mas o fizera chegar a um porto seguro, do qual contempla sua vida passada com uma visão crítica. Ele pode, então, enxergar as contradições que vivenciou em sua própria carne, ao deleitar-se com certas leituras e espetáculos. Um elemento importante é a constatação de que essas artes criam uma realidade virtual, artificial e falsa, que se torna uma fuga para os homens e os faz agir de modo contraditório e inapropriado (haverá alguma semelhança com nossos “entretenimentos” televisivos?). Agostinho vive a experiência do agitado jogo de emoções desde sua infância, quando era levado a declamar, interpretando e dramatizando, episódios da Eneida. O objetivo claro era suscitar a emoção dos ouvintes. A motivação é frívola: a vanglória. Ele questiona, adulto, a utilidade de tais exercícios da inteligência e da língua (Conf., I, 17): “Permite, ó meu Deus, que fale um pouco também da inteligência, dádiva tua que eu esbanjava em frivolidades. Uma tarefa muito inquietante se apresentava ao meu espírito ante a possibilidade de prestígio ou pelo temor à desonra ou às pancadas: era a tarefa de exprimir a cólera e a dor de Juno por não poder 'afastar da Itália o rei dos Troianos'. Eu bem sabia que Juno jamais pronunciaria tais palavras. Todavia, éramos obrigados a nos desencaminhar e seguir as fantasias poéticas, e a dizermos em prosa o que o poeta cantara em versos. Receberia maiores elogios o aluno que exprimisse com mais força e maior verossimilhança os sentimentos de ira e dor mais adequados ao nível da personagem representada, e que soubesse revestir as frases com as palavras mais apropriadas. De que me servia tudo isso, ó Deus meu, vida verdadeira? Para ter os aplausos às minhas declamações na presença de 18 tantos conterrâneos e colegas meus! Não foi tudo vento e fumaça? Não havia outra maneira de exercitar minha inteligência e minha língua?” Agostinho percebe a contradição presente na educação que recebeu, voltada para aspectos formais da linguagem, ao mesmo tempo em que desprezava questões fundamentais do âmbito moral. Para mostrar o quão absurda e contraditória pode ser a educação que por vezes recebemos, ele nos fala de uma experiência própria. Seus modelos eram homens que estavam preocupados com a elegância com que falavam, ainda que seu agir fosse totalmente reprovável. Ficariam decepcionados se relatassem ações virtuosas cometendo algum erro de linguagem, mas ficariam felizes se contassem seus próprios crimes com uma expressão bela, harmoniosa e rica. Ele nos dá um exemplo que exprime todo o absurdo da situação. Essas pessoas ficariam mais chocadas se alguém pronunciasse a palavra homo incorretamente (sem aspirar o 'h' inicial) do que se esse mesmo alguém odiasse o 'homem concreto'. Eram capazes de amar a palavra 'homem' corretamente pronunciada, ao mesmo tempo em que odiavam o que ela exprimia, ou seja, o ser humano real (Conf., I, 18): “Não é de estranhar que eu me tenha deixado levar pelas coisas vãs para longe de ti, meu Deus, pois eu tinha por modelo somente homens que se sentiam consternados quando reprovados por terem cometido algum solecismo ou barbarismo ao expor boas ações, mas que exultavam com os louvores, quando relatavam seus desmandos pormenorizadamente, 'com riqueza e elegância', em frases corretas e bem construídas. […] Vê, Senhor meu Deus, com paciência — segundo o teu modo de ver — como são diligentes os filhos dos homens em observar as regras convencionais da gramática herdadas daqueles mestres que os antecederam, e como são negligentes em relação ao pacto eterno de eterna salvação, recebido de ti! Desse modo, se um daqueles que conhecem e ensinam as antigas convenções gramaticais, as transgride, pronunciando a palavra homo sem aspirara primeira sílaba, desagrada aos homens, mais do que se ele contrariar os teus mandamentos, odiando ao homem, que é seu semelhante. Como se pudesse existir inimigo pior que o próprio ódio, com o qual uma pessoa se irrita contra si mesma; ou como se alguém com perseguições prejudicasse mais gravemente a outrem do que ao seu próprio coração, cultivando tal inimizade! Certamente essas regras de linguagem não estão mais profundamente gravadas em nós que esta lei da consciência: 'não fazer aos outros o que não queremos que outros nos façam'.” A educação centrada em aspectos meramente formais (um bom domínio da linguagem), mas sem o devido estofo moral, sem as normas que nos permitem viver retamente, é apenas a pavimentação de um caminho desastroso de vícios e de desonestidades. As crianças que hoje 19 são corrigidas, quando cometem um erro de língua ou de matemática, mas que são deixadas impunes ao realizarem todo tipo de torpezas, são apenas o prenúncio de adultos imorais, fraudulentos, indecorosos, impostores (Conf., I, 19): “Eu me encontrava, pobre menino, no limiar dessa escola de moral. Minha educação era dada de tal modo, que temia mais cometer uma impropriedade de linguagem do que acautelar-me da inveja que eu sentiria daqueles que a evitavam, se eu a cometesse. […] Eu desagradava até mesmo àqueles homens, ao enganar com inúmeras mentiras o pedagogo, os mestres e pais, tão grande era o meu amor pelo jogo, a minha paixão pelos espetáculos frívolos e a mania de imitar os atores. Eu furtava da despensa e da mesa de meus pais, ora impelido pela gula, ora para ter com que pagar aos companheiros, que vendiam seus jogos, mas que se divertiam tanto quanto eu. Muitas vezes eu cometia fraudes no jogo para conseguir vitórias, dominado pelo tolo desejo de superioridade sobre os outros. No entanto, não podia suportar que os outros fizessem o mesmo, e reprovava asperamente se os descobrisse, enquanto eu, ao ser descoberto e repreendido, me enfurecia, ao invés de reconhecer-me culpado. Seria essa a inocência das crianças? Não, Senhor! De modo algum, meu Deus! O que fazem agora enganando mestres e tutores, furtando nozes, bolas e pássaros, o mesmo hão de fazer, na idade madura, com os governadores e reis, com as riquezas, com as propriedades, com os escravos.” A literatura pode ser um meio de corrupção das crianças e dos adolescentes. Santo Agostinho tece uma crítica idêntica à de Platão, que mencionou a “descrição errônea da natureza dos deuses e dos heróis”. Homero, ao mostrar os deuses comportando-se de maneira imoral, oferece um péssimo modelo a ser seguido. Não poucos pensarão que, se um deus pode agir de tal modo, então não haverá nada repreensível no que ele faz. E, assim, as maiores torpezas são apresentadas como modelos de virtude e muitos agirão de modo impróprio, levados pelos sentimentos despertados pelas belas palavras do poeta. A beleza da linguagem torna palatável e até mesmo delicioso o pior dos vícios. Ele cita Cícero, o qual dizia que Homero atribuía aos deuses os vícios humanos, mas que seria melhor que manifestasse aos homens as perfeições divinas. No entanto, conclui Agostinho, o que Homero fez foi divinizar homens corruptos, para que suas mazelas fossem tomadas como modelos (Conf., I, 16): “Ai de ti, torrente de hábitos humanos! Quem te resistirá? Até quando hás de correr antes de secar? Até quando arrastarás os filhos de Eva para o mar profundo e temeroso, que somente podem atravessar os que navegam no lenho da cruz? Não foi em teus livros que li sobre Júpiter tonante e adúltero? Dois atos que, de certo, ele não podia praticar simultaneamente. Mas, assim foi representado, para que fôssemos levados a 20 imitar um verdadeiro adultério, iludidos por um trovão imaginário. Mas, certamente, nenhum desses mestres, trajados de capa magistral, se conservaria calmo ao ouvir um colega, nascido do mesmo pó, proclamar: 'Homero imaginava essas ficções e atribuía aos deuses os vícios humanos; eu preferia que nos trouxesse as perfeições divinas'. Mas seria mais exato dizer que Homero, inventando tais coisas, atribuía qualidades divinas a homens viciados, a fim de que os vícios não fossem considerados como tais, e quem os comete pareça imitar, não homens corruptos, mas divindades celestes.” Essa dicotomia entre a realidade virtual criada pela literatura e o mundo real foi vivenciada pelo próprio Agostinho. Como aluno, era levado a chorar Dido, que se suicidara por amor de Eneias, mas era incapaz de derramar uma só lágrima pelas suas próprias desgraças. Ele percebe essa inversão, que se encontra também no teatro, e com ela se espanta. O mundo irreal ou virtual, muitas vezes, é vivido com mais intensidade que o mundo real, damos-lhe mais importância do que nossa própria vida e vivemos esta como se estivéssemos entorpecidos (Conf., I, 13, trecho que lemos no início da aula): “Na realidade, aqueles primeiros estudos, que me permitiam e permitem não só ler qualquer escrito que encontro, mas também escrever o que me apraz, eram mais úteis e mais práticos do que aqueles em que eu, esquecido dos meus próprios erros, era obrigado a gravar na memória as andanças de certo Eneias e a chorar Dido que se suicidara por amor. Enquanto isso, na minha extrema miséria, sem derramar nem uma lágrima sequer, me deixava morrer em meio a essas coisas longe de ti, meu Deus e minha vida. Na verdade, não há nada mais miserável que um infeliz que chora a morte de Dido, causada pelo amor de Eneias, sem se compadecer de si mesmo, nem chorar a própria morte por falta de amor para contigo, ó meu Deus, luz do meu coração, pão da boca interior do meu espírito, poder fecundante da minha inteligência e do meu pensamento. Eu não te amava. Prevaricava longe de ti. E, enquanto prevaricava, de toda parte ressoavam aplausos: Muito bem! Coragem! A amizade a este mundo é de fato adultério, prevaricação e infidelidade a ti, e as palavras 'Muito bem! Coragem' são proferidas para que o homem se envergonhe se não for como os outros. Eu não chorava estas faltas, mas pranteava Dido morta, depois de ter procurado, com a espada, a pior decisão, enquanto eu me apegava aos piores objetos da tua criação, abandonando-te.” Com o teatro, temos a mesma dicotomia e a mesma inversão que encontramos na literatura. O palco é um mundo virtual e é para lá que nós, do mundo real, olhamos e nosso olhar nos projeta dentro dessa outra realidade que se torna mais real e mais importante do que o que efetivamente acontece em nossas vidas. É um jogo agitado de emoções. Buscamos, no teatro, sensações extremas e sofrimentos que não queremos experimentar na vida. E desses sofrimentos tiramos prazer. Quanto mais sofre, mais feliz fica o espectador. E, se não sofre, fica 21 aborrecido e critica os atores e o enredo. Os danos causados ao espectador são grandes. Quanto mais ele se expõe a cenas que reproduzem paixões, injustiças, corrupção, violência, tanto mais insensível se torna diante desses mesmos fatos na vida real. O espectador vai, pouco a pouco, se dessensibilizando e tomando como normais e naturais fatos e atitudes que antes tinha como inaceitáveis. Ele vive uma falsa compaixão, que só o faz sofrer na superfície, e lhe causa um estranho prazer. Ora, quando sentimos compaixão de alguém, somos levados a ajudar e consolar quem sofre. No teatro, o público assiste imóvel a terríveis dramas, sente compaixão, mas nada faz para ajudar os que sofrem no palco. Essa fissura entre compaixão e ação (ajuda) que o público experimenta no teatro, ele a levará para a vida real. Assim, ao se deparar com um verdadeiro sofrimento, não será levadoa agir e a ajudar e consolar quem sofre, mas fará o que sempre fez no teatro. Será um espectador, observando sem agir, ainda que eventualmente possa “sofrer” e sentir uma falsa compaixão (posto que não é acompanhada de uma tentativa de ajuda). A constante exposição ao sofrimento fictício encenado nos teatros vai, paulatinamente, tirando sua sensibilidade diante das desgraças da vida real. Quanto mais alimentamos e satisfazemos o desejo pelo prazer causado mediante a contemplação de desgraças e misérias, tanto mais nos tornamos disto dependentes (Conf., III, 2): “Extasiavam-me os espetáculos teatrais, que espelhavam copiosamente as minhas misérias e alimentavam a minha fogueira. Por que o homem procura no teatro o sofrimento, assistindo a acontecimentos trágicos e tristes, cuja experiência não desejaria sofrer na vida real? No entanto, o espectador busca aí o sofrimento dessas situações que, afinal, para ele constitui o seu prazer. Que é isso senão deplorável loucura? Com efeito, quanto mais alguém se comove com tais cenas, tanto menos imune se encontra das paixões apresentadas. Todavia, enquanto habitualmente chamamos de desgraça o sofrimento em si, a participação na dor alheia se chama compaixão. Mas, afinal, que compaixão é essa das cenas fictícias do teatro? O espectador não é solicitado a prestar auxílio, mas apenas convidado a afligir-se; e tanto mais aplaude o ator, quanto mais é levado a sofrer. E se essas tragédias humanas, remotas ou fictícias, são representadas de modo a não suscitar compaixão, o espectador retira-se aborrecido e cheio de críticas, se, pelo contrário, fazem sofrer, ele se mantém atento e chora de satisfação. […] Se é louvável aquele que por dever de caridade sofre com a miséria alheia, quem é genuinamente misericordioso preferiria que não houvesse motivo para sofrimento. […] Mas eu, miserável, gostava de sofrer e buscava motivos de dor; no sofrimento alheio, imaginário, teatral, os gestos do ator, quanto mais me faziam chorar, mais me agradavam e mais me seduziam. Portanto, não é de admirar que eu, ovelha infeliz, errando longe do teu rebanho e me opondo à tua guarda, fosse atingido por essa tão vergonhosa corrupção. Daí o 22 meu amor pelos sofrimentos, mas não pelos que me atingissem profundamente, pois eu não desejava suportar as dores que amava contemplar; as ficções que eu via e ouvia tocavam-me a superfície da alma. Mas, como acontece quando revolvemos uma ferida com as unhas, esse contato me provocava inflamação ardente, infecção e pus repelente. Tal era a minha vida. Mas, meu Deus, poderia isso chamar-se vida?” O que aqui se diz sobre o teatro é facilmente aplicável ao entretenimento que mais tem feito sucesso entre nós: a televisão. De fato, esta é a versão contemporânea do teatro antigo. Nela encontramos vários espetáculos de tipo cênico: novelas, filmes, seriados. Assim como no tempo de Agostinho, muitos hoje são extremamente dependentes do prazer que tiram da televisão. As novelas, em particular, exercem o mesmo tipo de fascínio e os mesmo resultados. Os espectadores conversam diariamente sobre o que está se passando nelas e vivenciam o jogo cênico como se fosse algo real. Sofrem com os dramas dos personagens, desenvolvem todo tipo de sentimento em relação a eles (simpatia, paixão, ódio, vingança), choram, riem. O envolvimento emocional é grande. A constatação de Agostinho não é menos verdadeira: não desejam experimentar em suas vidas os sofrimentos dos personagens com que tanto se deliciam e a empatia que por eles sentem, não se traduziria, em um caso do mundo real, em compaixão ou solidariedade. Vão perdendo a sensibilidade para com fatos que normalmente julgariam inaceitáveis. Após verem repetidamente esses fatos na televisão, passam a achá-los normais e mesmo um modelo de comportamento. Já não se escandalizam com os casos mais terríveis de violência ou imoralidade. Se olharmos para as últimas décadas, vemos como a televisão moldou a linguagem, a maneira de se vestir (as modas), de se comportar e, o que é mais importante, os valores de nossa sociedade. Qualquer semelhança com a telinha descrita por Orwell em 1984 talvez não seja mera coincidência… O fato é que a análise feita por Santo Agostinho é de temática atualíssima e sua observação perspicaz da psicologia e do agir humanos é atemporal. Atividade 2 Atende ao objetivo 1 1. Escreva um texto no qual: a) você resume as críticas à literatura e ao teatro apresentadas por Platão e Santo Agostinho; 23 b) você diz, apresentando argumentos (e não apenas “sim” ou “não”), se você concorda ou não com tais críticas, se as julga válidas (você pode, inclusive, concordar apenas com parte delas). DIAGRAMADOR: DEIXAR 25 LINHAS PARA RESPOSTA RESPOSTA COMENTADA Dada a natureza da questão, não há uma resposta padrão. No entanto, ao resumir as críticas (item “a”), você não pode deixar de mencionar a questão das falsidades presentes na narrativa dos poetas, da atribuição de vícios à divindade que servem como modelo de comportamento para a juventude, da dessensibilização decorrente da exposição repetida a cenas contendo violência, corrupção etc., da compaixão virtual que se tem pelos personagens e que esvazia a compaixão real que deveríamos ter diante dos mesmos infortúnios presentes na vida. Em relação ao item “b”, você deve apresentar argumentos que sustentem sua posição (pró ou contra) acerca das críticas tecidas por Platão e Santo Agostinho. Uma boa opção seria tornar o assunto atual: aplique essas críticas à televisão, a novelas, seriados, filmes, peças teatrais, carnaval, competições (futebol) etc. Em que medida elas parecem procedentes, quando aplicadas ao nosso mundo atual? FIM RESPOSTA COMENTADA 4. A CIDADE DE DEUS De Ciuitate Dei – A Cidade de Deus – é uma das principais obras de Santo Agostinho. Levou aproximadamente 14 anos para ser escrita (entre os anos 413 e 426). Em 410, os visigodos, sob o comando de Alarico, invadem a cidade de Roma e a saqueiam durante 3 dias. O fato faz com que surjam polêmicas contra os cristãos. O cristianismo é acusado de enfraquecer o espírito viril dos romanos e de ser a causa da desgraça enfrentada por Roma. Em defesa da fé cristã, Agostinho compõe A Cidade de Deus, que está dividida em 22 livros. Nela, além de refutar o paganismo, ele expõe os fundamentos da doutrina cristã. Veremos, na sequência, como a 24 cultura clássica perpassa essa obra e o juízo que seu autor tece acerca de alguns dos seus elementos. No livro I, Agostinho começa mostrando como os templos cristãos serviram de refúgio para os cidadãos de Roma, fossem cristãos ou pagãos, e como foram poupados, em respeito ao nome de Cristo, pelos invasores, que tudo saqueavam e que banhavam de sangue as ruas da cidade, mas que não ousaram saquear as igrejas nem matar os que nelas se refugiavam. E os pagãos que salvaram suas vidas graças ao nome de Cristo, agora o blasfemam e tecem acusações contra sua religião. “Não são esses adversários do nome de Jesus Cristo aqueles mesmos romanos que em nome de Jesus Cristo os bárbaros pouparam? Atestam-no as capelas dos mártires e as basílicas dos apóstolos, que em plena desolação de Roma abriram o seio a quantos, cristãos ou gentios, nele buscavam refúgio. Até o sagrado limiar o furioso inimigo banhava-se em sangue, mas nessa barreira a raiva assassina expirava. Para esses lugares alguns vencedores, tocados de compaixão, levavam aqueles que, mesmo fora de tais recintos, haviam poupado, para subtraí-los a mãos mais ferozes, eles próprios também cruéis e impiedosospouco mais longe, desarmados quando se aproximavam dos lugares em que lhes era interdito o que o direito da guerra permitira alhures. Detinha-se, nos santuários, a ferocidade que faz vítimas, embotava-se a cupidez que quer cativos. Assim escapou à morte a maioria desses caluniadores de nossa era cristã, que atribuem ao Cristo os males que Roma sofreu; o benefício da vida, por eles devido ao nome do Cristo, não é a nosso Cristo, porém, que atribuem, e sim ao destino, quando, se maduramente refletissem, no que suportaram de infortúnios poderiam reconhecer a Providência, que se vale do flagelo da guerra para corrigir e pulverizar a corrupção humana e, atormentando com semelhantes aflições almas justas e meritórias, faz que, depois da prova, passem a melhor destino ou as retém na Terra para outros desígnios. Quanto, porém, à milagrosa proteção de que o nome do Cristo os cercou em toda parte e nos mais divinos e amplos edifícios, designados à multidão como oferecedores de maior espaço ao refúgio e à clemência, clemência nova, até então desconhecida por vencedores, por bárbaros ferozes, não deveriam atribuí-la ao Cristianismo, dar graças a Deus e acorrer-lhe ao nome com sincera fé, para fugirem aos suplícios do fogo eterno? Esse nome vários não o usurparam senão para evitar as angústias da morte presente, porque de todos quantos vês insultarem com cínica desfaçatez os servidores do Cristo muitos não escapariam ao gládio ensaguentado, se não se acobertassem com o falso título de servidores de Jesus Cristo. E agora, com soberba ingratidão, delirantes de impiedade e de coração perverso, correm ao suplício das trevas eternas, insurgindo-se contra esse nome, em que se refugiaram, mentindo, para fruir da luz temporal.” Eis uma novidade inaudita: os vencidos têm suas vidas poupadas por causa de seu Deus. Tal fato nunca se observou em outras guerras, sejam elas anteriores a Roma ou posteriores a sua 25 fundação. A crueldade e a destruição presentes no saque de Roma são o procedimento usual encontrado nas guerras. O fato novo e extraordinário é que a ferocidade dos bárbaros tenha se dobrado ao nome de Cristo e à fé cristã, respeitando as igrejas e os que nelas estavam refugiados. BOX MULTIMÍDIA As cenas que veremos a seguir, tiradas do filme de Rossellini, resumem a problemática de A Cidade de Deus. Após a notícia do saque de Roma ter chegado a Hipona, um pagão conversa com Agostinho e diz que é o cristianismo que levou a Roma a fraqueza que a deixou à mercê dos bárbaros. Agostinho recorre à história para provar que Roma era forte enquanto era virtuosa e que o declínio da virtude romana é anterior ao cristianismo. A corrupção dos costumes é a verdadeira causa da desgraça de Roma. Em outra cena, vemos Agostinho falando das duas cidades, a dos homens, à qual pertence Caim, e a de Deus, à qual pertence Abel. É o que se pode ler em A Cidade de Deus (XV, c. 1): “O primeiro filho dos dois primeiros pais do gênero humano foi Caim, pertencente à cidade dos homens, e o segundo, Abel, participante da Cidade de Deus. […] Diz a Escritura que Caim construiu uma cidade e Abel, como peregrino, nenhuma ergueu. Porque a Cidade dos santos está no céu, embora cá na terra gere cidadãos, em quem peregrina até chegar o tempo de seu reinado. Então, congregará todos os ressuscitados com seus corpos e lhes dará o reino prometido. E nele reinarão eternamente com seu príncipe, o Rei dos séculos.” E estas duas cidades são geradas por dois amores distintos (XIV, c. 28): “Dois amores fundaram, pois, duas cidades, a saber: o amor próprio, levado ao desprezo a Deus, a terrena; o amor a Deus, levado ao desprezo de si próprio, a celestial. Gloria-se a primeira em si mesma e a segunda em Deus, porque aquela busca a glória dos homens e tem esta por máxima glória a Deus, testemunha de sua consciência.” Eis as cenas: http://youtu.be/Fj5_sOUkZf4 FIM DO BOX MULTIMÍDIA 26 A loucura dos romanos é tanta que aqueles que escaparam de Roma acorreram para o teatro, para se deliciar com espetáculos, assim que chegaram a Cartago, sem sequer refletir sobre o que tinham acabado de viver (De civ. Dei, I, c. 32-33): “Que espessas trevas de cegueira! Que horrenda corrupção! Acreditará a posteridade que, livres do desastre de Roma, essas almas doentes, apenas refugiadas em Cartago, vão todos os dias ao teatro, explodir, cada qual mais, em frenético entusiasmo por histriões? Ó espíritos em delírio, que prodígio de erro é esse? Digo mal. Que prodígio de loucura é esse? Todos os povos orientais choram a perda de Roma. Nas maiores cidades dos mais remotos rincões da Terra, há profunda consternação, luto público. E vós? Correis aos teatros, entrais, enchendo-os por completo, e vossa loucura aumenta-lhes a malignidade da influência. Essa peste, esse labéu das almas, essa total subversão de probidade e honra é que Cipião vos receava, quando se opunha aos teatros, quando previa a facilidade que a boa sorte encontraria para corromper-vos e perder-vos, quando não queria libertar-vos do medo a Cartago, pois não acreditava na ventura de cidade em que as muralhas estão de pé e os costumes em ruínas.” Tratando dos desregramentos dos espetáculos teatrais, Agostinho compara os romanos com os gregos. Nós vimos que houve ao menos duas ocasiões, na Atenas do séc. V a. C., em que foram aprovadas leis que coibiam os ataques pessoais e a ridicularização de indivíduos nas comédias. Mas essas leis mostram exatamente que o clima geral do teatro grego era a da mais absoluta liberdade. O comediógrafo podia debochar de quem quer que fosse, inclusive das divindades. Frequentemente encontramos, nas comédias, deuses em situações vexaminosas e humilhantes. As proibições que mencionamos não surtiram qualquer efeito prático. O teatro grego, portanto, não poupava ninguém, nem homens nem deuses. Os romanos, ao contrário, não admitiam que uma pessoa pudesse ser humilhada no teatro ou em poesias. Santo Agostinho cita uma passagem de Cícero que mostra que quem o fizesse poderia ser punido com a morte (De civ. Dei, II, c. 9): “E pouco depois <diz Cícero>: 'Nossas leis das Doze Tábuas, ao contrário, tão avaras da pena capital, decretaram-na para todo cidadão que manchasse a honra alheia por meio de poesias ou representações ultrajantes. É, com efeito, ao julgamento, à censura legítima dos magistrados, não ao capricho dos poetas, que nossa vida deve ser submetida; devemos estar ao abrigo da injúria, se não nos é permitido responder e defender-nos em juízo'.” 27 Ele mostra, em seguida, que os gregos eram mais consequentes que os romanos, pois estes proibiam a ofensas a simples cidadãos, mas deixavam que se ofendessem os deuses, aqueles, ao contrário, permitiam que deuses e homens fossem igualmente vilipendiados. Os romanos, com sua atitude, colocavam-se acima dos próprios deuses, julgando que sua reputação valia mais do que a das divindades (De civ. Dei, II, c. 9): “Seguem-se outras considerações cuja conclusão mostra que os antigos romanos não suportavam de bom grado fosse alguém, enquanto vivo, elogiado ou censurado em cena. Por admitirem tal desregramento, os gregos, como já declarei, não eram menos cínicos, porém mais consequentes, pois viam os deuses aplaudirem o opróbrio com que a cena cobria não somente os homens, mas os próprios deuses, quer se tratasse de mera ficção dos poetas, quer fossem narrativa ou representação verdadeira dos crimes divinos; prouve ao céu que os homens se contentassem em considerá-los simples divertimento, não modelos. Seria demasiado orgulho, com efeito, poupar a reputação dosmaiorais da cidade e dos outros cidadãos, se os deuses não queriam fosse poupada a sua própria reputação. Quanto à escusa habitualmente alegada, a saber, que os crimes atribuídos aos deuses não passam de imaginação e mentira, existe algo mais criminoso, se consultamos a verdadeira piedade, algo mais artificioso, algo mais pérfido, se levamos em conta a malícia dos demônios? De fato, se a difamação de cidadão virtuoso e devotado à pátria é mais indigna ainda porque não lhe calunia apenas os costumes, mas também a verdade, que suplícios poderão bastar, quando injúria tão horrível, tão criminosa, atinge a própria divindade?” Mas, se os gregos faziam tais espetáculos teatrais – continua Agostinho –, é porque seus deuses o queriam, porque por meio deles eram honrados. Platão, por sua vez, viu que tais ficções eram degradantes e nocivas aos cidadãos. Baniu-as, assim, de sua cidade ideal. Quem, portanto, é melhor: o sábio homem que expulsa tais mentiras da cidade ou divindades que as exigem dos cidadãos para serem honradas e aplacadas? O sábio Platão é melhor do que as divindades gregas (De civ. Dei, II, c. 14): “Não é, porventura, ao grego Platão que se deve conceder a palma da equidade, quando, concebendo segundo a razão o Estado ideal, julga necessário dele banir os poetas, como inimigos da verdade, porquanto não poderia tolerar insultos sacrílegos, nem fábulas corruptoras e enganosas? E é Platão, é homem que, proscrevendo os poetas, da cidade bane a mentira, ao passo que os deuses reclamam, como verdadeira honra, os jogos cênicos. Agora, compara o homem com a divindade. O homem não quer nem mesmo que se escrevam tais infâmias e de fazê-lo dissuade, sem persuadir, a leviandade e efeminação gregas; a divindade quer até que as representem, e uma ordem sua arranca à modéstia e gravidade dos romanos tais representações e, além disso, exige que esses jogos lhe sejam dedicados, consagrados, solenemente celebrados em sua honra. Quem, afinal, seria mais honroso divinizar: o sábio que proíbe tantos obscenos delírios ou os demônios encantados com o erro dos homens, a quem Platão não pôde persuadir da verdade?” 28 Agostinho analisa longamente vários acontecimentos e infortúnios da história romana anterior ao cristianismo, para mostrar que seus deuses nunca fizeram nada para evitar sua ruína e que os romanos fizeram guerras injustas contra outros povos para expandir seu poderio. Como os romanos sofreram incontáveis e enormes desgraças antes do advento de Cristo, deveriam censurar suas próprias divindades e não Aquele cujo nome os poupou da fúria dos bárbaros durante o saque. E, sem dúvida, a corrupção dos costumes dos romanos, que colocaram o prazer e as riquezas acima das virtudes, tem um papel importante na queda do Império. Santo Agostinho demonstra um enorme conhecimento da história, da mitologia, da literatura, dos costumes, das instituições e dos valores dos antigos romanos. O texto que desenvolve ao longo de sua Cidade de Deus é prova de que ele era um verdadeiro romano, imbuído do mais autêntico espírito clássico – sua formação em oratória era uma prova disso – ao qual se acrescentou a cultura cristã e tudo aquilo que ela trazia de novidade e maravilha. Vemos, assim, em Agostinho, fundirem-se perfeitamente essas duas grandes tradições da Antiguidade: a civilização greco-romana e a cultura judaico-cristã. O resultado de tal fusão está concretizado na imensa obra de Santo Agostinho, marcada por várias obras-primas da cultura humana, obra essa em que os dois grandes polos da cultura ocidental se harmonizam graças ao gênio e ao talento de seu autor. Atividade Final Atende aos objetivo 1 e 2 Leia o seguinte trecho tirado de A Cidade de Deus (livro II, c. 18) no qual o autor explora vários trechos (em itálico) do historiador romano Salústio (séc. I a. C.): “Dou-me por satisfeito, pois, e quero apenas o testemunho de Salústio. Proferiu em louvor dos romanos as seguintes palavras, que servem de texto ao presente discurso: Entre eles, o honesto e o justo reinavam tanto na consciência como na lei, designando a época em que, livre dos reis, Roma cresceu com rapidez inaudita. Entretanto, no livro primeiro de sua História, no começo do livro, confessa que desde os tempos em que a república passou dos reis aos cônsules, as injustiças dos poderosos provocaram a separação entre Senado e povo e outras lutas intestinas. […] 29 E o historiador acrescenta logo depois: Mas a discórdia, a avareza, a ambição, inevitáveis filhas da prosperidade, desenvolveram-se de modo exorbitante após a destruição de Cartago . Di-lo para dar- nos a entender que também antes costumavam nascer e agigantar-se. Explicando logo o porquê do que disse, escreve: Porque injustiça dos poderosos e, por causa dela, separação entre Senado e povo e outras discórdias domésticas houve desde o princípio e não apenas depois de expulsos os reis. […] Repare bem no que acrescenta a seguir: Depois os patrícios se empenharam em tratar o povo como escravo, dispor da vida e pessoa do plebeu, à maneira dos reis, removê-lo do campo e governar sozinhos, sem para nada contar com os demais. Oprimindo por semelhantes sevícias e, em especial, pela usura, tolerando, entre guerras contínuas, não apenas tributos escorchantes, mas também o serviço militar, o povo, armado, ocupou os montes Sagrado e Aventino; obteve, assim, o direito de eleger tribunos chamados da plebe, e outras garantias. […] O modo como Salústio refere abreviadamente esses tempos e os descreve a gente pode ver em sua História. Nela põe à mostra os inúmeros males que se originam da prosperidade, até chegar às guerras civis. Diz assim: Desde esse tempo, os costumes dos antepassados não iam despenhando-se lentamente, como antes, mas de modo torrentoso. Tanto assim que o luxo e a cobiça corromperam a mocidade e chegaram a dizer, com razão, haverem nascido pessoas que não podiam ter patrimônio, nem tolerar que os demais tivessem. Conta Salústio, a seguir, muitas coisas dos vícios de Sila e outras vergonheiras da república. Vários escritores concordam com ele, embora não se lhe igualem na eloquência. […] Você, contudo, vê, segundo penso, e quem quer que repare nisso perceberá com bastante clareza em que lodaçal de péssimos costumes Roma se atolou antes do advento de nosso Rei celeste. E isso aconteceu não apenas antes de Cristo, já presente na carne, haver começado a ensinar, mas antes mesmo de nascer de Maria. Se tantos e tamanhos males desses tempos, toleráveis a princípio, intoleráveis e horrendos após a destruição de Cartago, não se atrevem a imputar a suas divindades, que nas mentes humanas semeavam com infernal astúcia opiniões de que brotavam tais vícios, por que os presentes males atribuem a Cristo, cuja salutaríssima doutrina proíbe, por uma parte, o culto aos deuses falsos e enganadores e, por outra, detestando e condenando com divina autoridade a vergonhosa e nociva cupidez do homem, deste mundo, que corre, com tantos males, a precipitar-se na ruína, vai insensivelmente subtraindo sua família?” Vimos que Santo Agostinho tinha uma sólida formação baseada na cultura clássica, que em sua Cidade de Deus ele expõe largamente seus conhecimentos dos clássicos e que explora elementos tanto da cultura greco-romana quanto do cristianismo. Em que medida isto se observa no texto que acabamos de ler? DIAGRAMADOR: DEIXAR 15 LINHAS PARA RESPOSTA RESPOSTA COMENTADA 30 Aponte o fato de que Agostinho cita várias passagens de Salústio, um historiador romano do séc. I a. C., o que é uma indicação de que ele tinha um bom conhecimento de autores clássicos. Argumente que ele usa um
Compartilhar