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Ascite: Definição, Exame Físico e Exames Complementares

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I – DEFINIÇÃO
Ascite quer dizer derrame líquido na cavidade peritoneal – não representa uma doença, mas uma manifestação comum a várias doenças.
Não devemos esquecer, entretanto, que (1) existe um transudato fisiológico (até 100 ml), responsável pela lubrificação das membranas peritoneais, e (2) os derrames de sangue ou pus na cavidade peritoneal não representam ascite, mas, respectivamente, hemoperitônio e pioperitônio. A hipertensão portal relacionada à cirrose hepática é a principal causa de ascite no Brasil e no mundo.
II – O EXAME FÍSICO
Quando a ascite é volumosa, o abdome apresenta- se globoso, tanto com o paciente em pé quanto deitado. A cicatriz umbilical pode se aplanar ou até everter (ao contrário da gravidez e do meteorismo, em que isso em geral não ocorre). Se a ascite for devida à hipertensão porta (ver adiante), é comum a presença de circulação colateral evidente no abdome (“cabeça de Medusa”).
Quando a ascite não é muito volumosa e o tônus da musculatura abdominal está reduzido:
(1) no paciente em pé, o abdome pode “cair” sobre o púbis, configurando a forma “em avental”.
(2) no paciente deitado, o abdome se alarga para os flancos, configurando a forma de “batráquio”.
Sinal do Piparote (Morgani): o sinal do piparote deve ser pesquisado no paciente em decúbito dorsal – o médico dá um “peteleco” em um dos flancos do paciente e tenta sentir a propagação da força no outro flanco. Para evitar a propagação de uma onda superficial da parede abdominal que confundiria o diagnóstico, o médico deve colocar a borda cubital da mão na região mediana ou pedir para que o próprio paciente o ajude (figura 1). Cumpre ressaltar que este sinal só é positivo quando a ascite é muito grande, geralmente superior a cinco litros, e ainda pode ser negativo se houver tensão da parede abdominal.
Macicez Móvel de Decúbito: é o melhor método semiológico para detecção de ascite e baseia- se na análise diferencial dos sons da percussão abdominal, quando o paciente se posiciona em várias angulações de decúbito lateral.
Mas como é a técnica? Inicialmente se faz a percussão do paciente em decúbito dorsal, marcando o local do flanco em que o som fica maciço.
Pede-se então que o paciente adote uma angulação de decúbito lateral. Percute-se no local marcado e, se este estiver timpânico agora, configura se a macicez móvel de decúbito. Geralmente detecta ascite a partir de 1,5 litros...
A ascite pode ser graduada em três estágios. I
= só detectada pelo US; II = ascite moderada, detectada pelo exame físico; e III = grande ascite com importante distensão abdominal.
Obs.: É importante chamar a atenção para o fato de que o líquido peritoneal, principalmente nos processos inflamatórios ou neoplásicos do abdome, pode estar contido em cavidades septadas, dificultando a interpretação dos métodos propedêuticos utilizados.
III – EXAMES COMPLEMENTARES
1- Radiografia
As radiografias têm pouco valor para o diagnóstico de ascite. Descreveremos a seguir apenas algumas considerações a título de curiosidade (se preferir, passe direto para o próximo exame: US).
A presença de líquido livre na cavidade peritoneal pode ser demonstrada na região da pequena bacia, nos flancos e na parte média do abdome, entre as alças. Na região da pequena bacia, o líquido livre se localiza nos espaços pararretais, vesicorretal, pélvico e extensão inferior das goteiras paracólicas. Quando o derrame peritoneal, mesmo que pequeno, se insinua nos espaços pélvicos-laterais, obtém-se a configuração em “orelha de cachorro”. Nos flancos, o líquido ocupa os espaços entre as alças intestinais, alargando-
o. O aspecto que se forma é o de um “pente”. Outro sinal é a obliteração do ângulo hepático (segmento inferior da borda lateral direita do fígado). A interposição de líquido entre o fígado e o gradil costal separa estas duas estruturas – tal fenômeno pode ser mais percebido nas radiografias oblíquas. A borda hepática identificada num RX oblíquo posterior direito, com baixa quilovoltagem, permite diagnosticar o afastamento do fígado do gradil costal e é considerado por alguns patognomônico de ascite.
Grandes quantidades de líquido podem dar aspecto homogêneo ao abdome, fazendo desaparecer os contornos dos órgãos abdominais. Em quantidades ainda maiores, há separação do fundo gástrico e cólon transverso do diafragma.
2- Ultrassonografia (US)
A US é o método de escolha para se detectar pequenas coleções líquidas no abdome, que aparecem como imagens anecoides (livres de ecos). A US também diz se o derrame peritoneal está encistado ou faz parte de massas complexas, isto é, ao mesmo tempo sólidas e líquidas (hematomas, abscessos e tumores necrosados).
A US pode ainda, frequentemente, diagnosticar a causa da ascite, demonstrando alterações compatíveis com cirrose, uma massa abdominal ou pélvica, metástases, cistos pancreáticos etc. Por fim, este exame também é importante na realização de punções diagnósticas ou terapêuticas de coleções abdominais.
3- Tomografia Computadorizada (TC)
A TC permite o diagnóstico de ascite com segurança e também diferencia as coleções líquidas livres das massas sólidas ou císticas, uma vez que o líquido ascítico apresenta menor densidade radiológica que as estruturas sólidas adjacentes. As ascites de pequeno volume podem ser detectadas pela tomografia axial computadorizada, na região da ponta do fígado, e na goteira paracólica esquerda e na pelve.
Como é um método caro, a TC não costuma ser usada no diagnóstico de ascite – entretanto, é frequentemente utilizada para o seu diagnóstico etiológico.
4- Paracentese
A paracentese abdominal tem as seguintes finalidades principais:
1- obtenção de material para análise (diagnóstico etiológico da ascite).
2- aliviar o doente dos sintomas compressivos.
A paracentese diagnóstica é exame obrigatóriovno paciente com ascite! É a melhor maneira de se começar a investigação etiológica.
Em pacientes cirróticos com ascite, uma paracentese sempre deve ser realizada numa internação hospitalar (por qualquer motivo) para procurar o diagnóstico da importante sínsíndrome da peritonite bacteriana espontânea, eventualmente diagnosticada em cirróticos ascíticos assintomáticos.
As complicações da paracentese abdominal são muito raras e incluem perfuração intestinal e hemorragia. 
5- Biópsia Peritoneal
Este procedimento é utilizado para o diagnóstico de casos selecionados de ascite. Idealmente, deve ser feito por via laparoscópica, reduzindo riscos e orientando o melhor local para a biópsia. A inspeção do peritônio pode fornecer pistas importantes para o diagnóstico!
IV – EXAME DO LÍQUIDO ASCÍTICO
Fundamental para a elucidação diagnóstica da ascite, o exame do líquido colhido na primeira paracentese deve incluir: (1) aspecto macroscópico;
(2) exames bioquímicos como LDH, proteínas, glicose, amilase, lipídios, marcadores tumorais e outros; (3) citologia convencional e oncótica; (4) bacterioscopia (Gram / Ziehl- -Nielsen) e (5) cultura (bactérias / fungos / BK).
1- Macroscopia
Quanto ao aspecto macroscópico, o líquido ascítico pode ser:
(I) Seroso: mais comum – o líquido é claro e
transparente ou amarelo-citrino e decorre de várias causas. É o aspecto clássico da cirrose
não complicada.
(II) Hemorrágico: aspecto serossanguinolento, róseo ou de cor sanguínea mais viva – pode ser observado nas neoplasias e, mais raramente, na peritonite tuberculosa. É importante não se confundir com hemoperitôneo.
Mas como diferenciar a ascite hemorrágica de um acidente de punção? Pode ser feito associando-se duas informações: (1) normalmente no acidente de punção o líquido ascítico vai clareando durante a drenagem e (2) o sangue presente na ascite hemorrágica não coagula, ao contrário do sangue do acidente de punção.
(III) Turvo: sugestivo de infecção. Pode haver odor fétido.
(IV) Lactescente: constituído por líquido branco-amarelado, de aparência leitosa, distinguindo- se duas variedades: (a) Quiloso – caracterizado pela presença de linfa, resulta da obstrução ou ruptura do canal torácico ou de vasoslinfáticos quilíferos. As causas mais frequentes são as neoplasias e os traumatismos.
(b) Quiliforme – caracterizado pela presença de células endoteliais e leucócitos em estados de degeneração gordurosa (tumores do peritônio), ou de lipídios em abundância (nefrose lipídica). Eventualmente (0,5% dos casos) os pacientes cirróticos podem se apresentar com ascite quilosa.
(V) Bilioso: de coloração esverdeada, observado nos traumatismos das vias biliares (inclusive cirúrgicos).
(VI) Gelatinoso: amarelado e espesso, de viscosidade semelhante à da gelatina – observado nos tumores mucinosos e no pseudomixoma peritonei.
2- Bioquímica
A análise bioquímica do líquido ascítico é de extrema importância para a abordagem inicial de qualquer forma de ascite. Atualmente o exame de maior destaque, por ser um “divisor de águas” para o início das investigações, envolve a dosagem de albumina (no líquido ascítico e ao mesmo tempo no plasma). É o gradiente de albumina soroascite. Detalharemos este exame mais adiante.
Outros parâmetros bioquímicos que podem ser bastante úteis em situações específicas são a proteína total, a glicose e o LDH (para diferenciar a peritonite bacteriana espontânea da peritonite secundária), os triglicerídeos (bastante aumentados nas ascites quilosas), as bilirrubinas (presentes nas ascites biliares), os níveis de ureia (elevados na ascite urinária) e a amilase (presente na ascite pancreática).
3- Citometria
A citometria também é um importante exame no diagnóstico etiológico das ascites – veja:
(a) O encontro de um grande número de hemácias orienta para o diagnóstico de neoplasia e em menor grau, para o de tuberculose. Outras causas possíveis são patologia pancreática e trombose mesentérica. (b) A contagem de leucócitos elevada sugere fortemente a presença de um processo inflamatório do peritônio – a predominância de Polimorfonucleares (PMN) sugere infecção bacteriana aguda, enquanto a presença de mononucleares (linfócitos/monócitos) sugere tuberculose peritoneal, neoplasia e colagenoses.
O diagnóstico da peritonite bacteriana espontânea é dado pela presença de mais de 250 polimorfonucleares (neutrófilos) por mm3. A contagem é feita de forma manual, mas deve ser a mais precisa possível. Um fator de erro ocorre nos derrames hemorrágicos: o sangue tem leucócitos e, portanto, a leucometria do líquido ascítico estará falsamente elevada. Pode- se corrigir a leucometria do líquido ascético subtraindo-se 1 PMN para cada 250 hemácias por mm3 encontradas.
4- Citologia Oncótica
É o principal exame para o diagnóstico da ascite carcinomatosa (cânceres gastrointestinais, câncer de ovário), apresentando alta sensibilidade.
No hepatocarcinoma, a citologia oncótica é quase sempre negativa.
5- Bacteriologia
Os exames bacteriológicos incluem a bacterioscopia e as culturas – deve-se saber que a
bacterioscopia, seja pelo Gram, seja pelo Ziehl- -Nielsen, é de valor limitado (baixa sensibilidade): são positivos em apenas 2% dos pacientes com peritonite tuberculosa, e 10% dos pacientes com peritonite bacteriana espontânea.
Esse percentual aumenta bastante nos casos de perfurações intestinais. As ascites fúngicas são muito raras, e, desta forma, não são geralmente pedidas culturas para fungos. Para confirmar o diagnóstico bacteriológico da peritonite bacteriana espontânea, o material colhido deve ser imediatamente introduzido em um frasco de hemocultura. O ideal é colocar 10 ml num frasco de 100 ml: neste caso, a sensibilidade pode chegar a 80%.
V – ETIOLOGIA DAS ASCITES
1- Hipertensão Porta (HP)
O aumento da pressão no sistema venoso porta- -hepático gera sabidamente ascite. Uma pergunta que devemos responder é: de onde vem o líquido que preenche toda a cavidade abdominal?
De onde surge o líquido ascítico? Você alguma vez já se fez esta pergunta? Veja, é fundamental compreender isso, pois, caso contrário, teremos que decorar (sem entender) diversas situações clínicas que envolvem este tema. É o caso, por exemplo, de algumas formas de HP (como a esquistossomose), que originam níveis pressóricos altíssimos no sistema porta sem resultar em ascite; ou então das condições que, mesmo gerando aumentos apenas discretos da pressão porta, conseguem produzir um quadro clássico de ascite grave e refratária, como acontece na síndrome de Budd-Chiari.
Analise atentamente a figura 2 e observe um detalhe microanatômico muito importante da circulação porta: existem “válvulas de segurança” no meio deste sistema venoso que permitem que haja um “escape” pressórico toda vez que a pressão porta se eleva muito – exatamente como em uma panela de pressão... Os sinusoides hepáticos são esta válvula. Eles são extremamente fenestrados, de forma que qualquer aumento de pressão porta resulta em extravasamento de líquido (linfa hepática) para a cavidade peritoneal.
Conclusão: em condições de HP o fígado literalmente “goteja” linfa para a cavidade peritoneal, formando a ascite.
Nesse exato momento vem uma dúvida: mas e se a obstrução porta estiver localizada em um ponto anterior (em relação ao sentido do fluxo sanguíneo) aos sinusoides hepáticos? Como não há aumento da pressão no interior nos sinusoides, haveria mesmo assim ascite? Pois bem, chegamos ao ponto mais importante sobre conceitos que envolvem hipertensão porta e ascite. Todo quadro de hipertensão porta deve obrigatoriamente ser classificado em:
1- Pré-sinusoidal
2- Pós-sinusoidal
3- Intrassinusoidal
As obstruções pré-sinusoidais dificilmente geram ascite porque não envolvem os sinusoides hepáticos – é o caso da esquistossomose, em que a obstrução ocorre nos espaços-porta.
Como não há “válvulas de escape”, estes pacientes acabam desenvolvendo um quadro clínico marcado por manifestações graves de
HP, como circulação colateral, varizes de esôfago sangrantes e esplenomegalia severa, mas sem ascite. Menos comumente surge ascite naqueles que desenvolvem concomitantemente hipoalbuminemia grave ou mesmo cirrose. As obstruções pós-sinusoidais, como a síndrome de Budd-Chiari, produzem um quadro de hipertensão porta completamente diferente, marcado principalmente pela ascite – aliás, grave e de difícil controle. É menos frequente nestes pacientes encontrarmos varizes de esôfago sangrantes, esplenomegalia grave ou circulação colateral abundante.
Mas veja: 85% dos casos de hipertensão porta são resultantes de cirrose hepática, que na verdade origina ambos os mecanismos patogênicos
(pré e pós-sinusoidal) – assim, muitos classificam o mecanismo da cirrose como “intrassinusoidal”.
Nos cirróticos, em geral, encontramos em conjunto tanto a ascite quanto todos os outros sinais clínicos de HP grave.
ATENÇÃO: Por ser formada por um mecanismo que envolve apenas o aumento da pressão vascular (no sistema porta), o líquido formado, ou seja, a ascite, é do tipo transudativa, pobre em proteínas.

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