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Vinicius L. Porto Pós-Graduação Constitucional /Administrativo/Tributário Prof. Guilherme Sandoval Góes 1 AULA 1 – Constitucionalização do Direito II 1. Introdução O contexto dogmático atual vive a invasão do direito pela ética, seja pela necessidade de legitimação democrática das decisões judiciais, seja pela necessidade de se atribuir força normativa aos princípios. 2. O Novo Quadro Neoconstitucional Hoje em dia, o objeto do direito neoconstitucional não é somente o texto escrito da norma posta pelo legislador democrático. Também é, principalmente, a norma interpretada pelo juiz/exegeta. A nova metódica sustenta que o direito NÃO se limita à norma escrita, é dizer que o direito atual não deixa de fora a retitude material dessa norma aferida a partir da incidência dos elementos fáticos e axiológicos advindos do caso concreto. Sob a égide do neoconstitucionalismo, a teoria hermenêutica da norma jurídica consolida a tese da não-identidade entre “texto da norma” e “norma propriamente dita”. Trata-se, pois, de uma construção teórica que parte dos elementos fáticos do caso decidendo, ou seja, dos fatos do mundo da vida, que portam juridicidade e que, por conseguinte, penetram no discurso axiológico-indutivo do direito (fatos portadores de juridicidade). 3. O Paradigma Positivista – do Juiz Soldado da Lei – Torna-Se Obsoleto Com efeito, o processo de interpretação do direito realizado pelo poder judiciário na vertente positivista segue a linha inflexível do juiz soldado da lei. Ou seja, a lógica positivista está presa ao vazio ético da norma escrita legislada, não absorvendo nenhum tipo de leitura axiológica do conteúdo dessa norma. É por tudo isso que, a partir da segunda metade do século XX, o positivismo jurídico entra em declínio, despontando, em seu lugar, a concepção da escola pós-positivista do direito. 4. O Juiz Soldado da Lei Deve Dar Lugar ao Juiz Constitucional no Pós-Positivismo Opera-se a passagem do juiz conforme a lei do positivismo para o juiz conforme a Constituição do neoconstitucionalismo. Com rigor, observa-se o afastamento da aplicação mecânica do direito pelo juiz conforme a lei, ou seja, afasta-se a hegemonia exegética do texto da norma exercida por um juiz soldado da lei, preocupado com o cumprimento das leis em vigor e completamente desvinculado da retitude material da norma escrita. No lugar, surge o juiz constitucional, ciente do seu papel dentro de uma sociedade plural, complexa e desigual, cuja atuação jurisdicional deve ficar subordinada, como já amplamente visto, à “consciência epistemológica de uma sociedade democraticamente pluralista”. Vinicius L. Porto Pós-Graduação Constitucional /Administrativo/Tributário Prof. Guilherme Sandoval Góes 2 Destaca-se a importância da teoria da argumentação jurídica na aplicação do direito pelo juiz constitucional, isto é, no âmbito de sua atuação, não existem verdades apodíticas, axiomas irrefutáveis, mas, sim, opções razoáveis capazes de promover a adesão do auditório universal, conceito esse que deve, induvidosamente, coincidir com a omunidade aberta de intérpretes da Constituição de Peter Häberle. 5. A Atuação do Juiz Constitucional A Constituição configura um sistema normativo axiológico, cujas normas são mandamentos cogentes que devem ser obedecidos, seja pelo legislador democrático, seja pelo poder judiciário. É nesse sentido que surge, sim, a necessidade de controle democrático intersubjetivo da margem de discricionariedade de juízes e tribunais na concretização da Constituição. 6. Os Reais Destinatários das Decisões Judiciais As decisões feitas em nome do Estado-pacificador de lides resistidas devem observar os influxos de um verdadeiro Estado Democrático de Direito, devendo, portanto, buscar sua nobreza hermenêutica no seio da comunidade aberta de intérpretes da Constituição (concepção de Peter Häberle) e do convencimento do auditório universal (construção de Chäim Perelman). 7. O Nevoeiro do Direito Em tempos de democracia pós-moderna, no seio de uma sociedade globalizada, complexa, plural, assimétrica e democrática, predomina induvidosamente um contexto jurídico dominado fog of wright (nevoeiro do direito). Em outras palavras, tal nevoeiro ético-normativo é o símbolo de um constitucionalismo compromissório que tenta, a um só tempo, conciliar valores axiológicos da democracia liberal e da social democracia. 7.1 Os desdobramentos das contradições entre leis e princípios: Democracia Liberal Social Democracia a livre iniciativa; a livre concorrência; a propriedade. o direito do consumidor; a proteção dos hipossuficientes; a igualdade material; a função social da propriedade. 8. O Norte Dogmático das Decisões Judicias A ponderação de valores deve ser o norte dogmático das decisões judiciais, cujo alcance normativo deve ser compatível com o sentimento constitucional de justiça. A validade normativa da decisão judicial está associada aos valores éticos projetados como princípios constitucionais. Vinicius L. Porto Pós-Graduação Constitucional /Administrativo/Tributário Prof. Guilherme Sandoval Góes 3 Portanto, é fundamental compreender que “texto da norma” e “norma propriamente dita” são entidades jurídicas distintas. 9. A Diferenciação Entre “Texto Da Norma” e “Norma Propriamente Dita” O texto da norma é o enunciado positivo que corresponde ao processo democrático legislativo (plano abstrato de significação). Tal elemento não se confunde com o outro, o elemento de concretização resultante do processo de interpretação do referido enunciado normativo (plano concreto de significação). Texto da norma enunciado positivo; relacionado ao processo democrático legislativo; plano abstrato de significação. Norma propriamente dita elemento de concretização; resultado do processo de interpretação/ concretização do enunciado normativo; plano concreto de significação; norma-decisão (já interpretada). A norma-decisão do juiz, na qualidade de última fase do ciclo hermenêutico, é a norma concretizada (propriamente dita); é a norma já devidamente interpretada, NÃO se confundindo com o seu texto. A concretização de uma determinada norma constitucional dar-se-á sempre a partir de um caso concreto, cujos elementos fáticos incidirão sobre o texto de uma ou mais normas constitucionais escritas ou não, gerando de fato o direito a ser aplicado, vale dizer a norma propriamente dita. È preciso distinguir o plano preliminar de análise abstrata das normas, comumente chamado de plano ‘prima facie’ de significação, do plano conclusivo de análise concreta das normas, comumente denominado ‘all things considered’ de significação. Norma propriamente dita: em determinado caso concreto (após o devido processo interpretativo) Note-se que as normas em abstrato, no plano prima facie de significação, são normas dotadas de racionalidade linguística impostas pelo legislador democrático, enquanto que as normas propriamente ditas, isto é, as normas-decisões, no plano all things considered Também é importante compreender a nova trilha da teoria hermenêutica da norma jurídica, na qual os termos “texto” e “norma” não são coincidentes. Pode-se dizer também, em outras palavras, que os elementos fáticos e axiológicos do caso decidendo incidiram sobre o “texto da norma” gerando a “norma propriamente dita”, ou seja, essa última nada mais é do que a primeira aplicada num determinado caso concreto depois de um processo interpretativo de ponderação de valores. Vinicius L. Porto Pós-Graduação Constitucional /Administrativo/Tributário Prof. Guilherme Sandoval Góes 4 de significação, são normas dotadas de racionalidadeargumentativa impostas pelo intérprete/juiz após aplicar um determinado critério hermenêutico de ponderação de valores de mesma dignidade constitucional. 10. A Formação da Norma-Decisão Não resta dúvida que já se consolidou na melhor doutrina o entendimento de que a norma-decisão do juiz é a última fase do ciclo hermenêutico, que começa com a incidência dos fatos reais do caso concreto sobre a norma-dado (norma preexistente no ordenamento jurídico) e acaba com a norma-produto (norma-resultado) vinda de um processo de interpretação pautado nos paradigmas de racionalidade discursiva, dianoética. Com rigor, o que pretende-se reafirmar é a mudança de paradigma da interpretação constitucional, que se afasta da racionalidade linguística do texto escrito para se aproximar da racionalidade retórico-argumentativa da norma interpretada/ concretizada, simbolizando verdadeiramente o “giro epistemológico” no âmbito das investigações metodológicas pós-positivas, provocado por sua vez pelo giro pragmático da Filosofia da linguagem, especialmente após a obra de Wittgenstein II. A norma propriamente dita resulta da melhor tese jurídica a defender (empregando a racionalidade retórico-argumentativa), a mesma estará submetida ao controle democrático intersubjetivo da sociedade aberta de intérpretes da Constituição. Isso significa dizer, por outras palavras, que a normatividade que se manifesta nas decisões judiciais não está baseada literalmente apenas no texto da norma, ao revés, a normatividade da decisão a ser elaborada alcança a doutrina, a jurisprudência, estudos monográficos, obras e legislação de Direito Comparado; enfim, a normatividade do direito abarca numerosos textos jurídicos que transcendem o teor literal da norma legislada. 11. A Dimensão da Distância Entre “Norma” e “Texto Da Norma” Muito embora o texto da norma NÃO contenha a normatividade em sua inteireza, o fato é que atua como elemento delimitador das possibilidades de concretização/ interpretação da Constituição. Portanto, o reconhecimento de que há uma diferença entre o texto jurídico e a norma extraída desse texto NÃO implica dizer que a cisão entre eles seja total. 11.1 Fraqueza da Teoria Kelseniana (identidade entre “norma” e “texto da norma”) – Norma Propriamente Dita -> elemento de interpretação/concretização Texto da Norma -> não contém a normatividade em sua inteireza, mas delimita as possibilidades da interpretação da Constituição. É importante frisar bem que a norma-decisão NÃO é um ato volitivo do magistrado, mas, SIM, o resultado da incidência dos elementos fáticos da realidade sobre o ordenamento jurídico positivado pelo legislador democrático. Vinicius L. Porto Pós-Graduação Constitucional /Administrativo/Tributário Prof. Guilherme Sandoval Góes 5 Nesse sentido, entendemos que o texto não “carrega”, de forma retificada, o seu sentido (a sua norma). Trata-se de entender que entre texto e norma não há uma equivalência e tampouco uma total autonomização (cisão). Correta a crítica feita ao positivismo jurídico com relação ao caráter volitivo das decisões judiciais. Lenio Streck alerta, com acuidade científica, que: Entender que não são a mesma coisa texto e norma não é suficiente para suplantar a relação sujeito-objeto e tampouco para superar a (dogmática e metafísica) equiparação entre texto e norma, ainda predominante no sentido comum teórico dos juristas.