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Criatividade e Inovação em Gastronomia Jair Junior Monteiro Solin DIREÇÃO UNICESUMAR Reitor Wilson de Matos Silva, Vice-Reitor Wilson de Matos Silva Filho, Pró-Reitor de Administração Wilson de Matos Silva Filho, Pró- Reitor de EAD Willian Victor Kendrick de Matos Silva, Presidente da Mantenedora Cláudio Ferdinandi. NEAD - NÚCLEO DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA Diretoria Operacional de Ensino Kátia Coelho, Diretoria de Planejamento de Ensino Fabrício Lazilha, Direção de Operações Chrystiano Mincoff, Direção de Mercado Hilton Pereira, Direção de Polos Próprios James Prestes, Direção de Desenvolvimento Dayane Almeida, Direção de Relacionamento Alessandra Baron, Head de Produção de Conteúdos Rodolfo Encinas de Encarnação Pinelli, Gerência de Produção de Contéudo Gabriel Araújo, Supervisão do Núcleo de Produção de Materiais Nádila de Almeida Toledo, Supervisão de Projetos Especiais Daniel F. Hey, Coordenador de Contéudo Alexandre Gimenes da Cruz, Projeto Gráfico e Editoração Jaime de Marchi Junior e José Jhonny Coelho, Designer Educacional Yasminn Talyta Tavares Zagonel, Revisão Textual Hellyery Agda Gonçalves da Silva, Fotos Shutterstock. NEAD - Núcleo de Educação a Distância Av. Guedner, 1610, Bloco 4 - Jardim Aclimação - Cep 87050- 900 Maringá - Paraná | unicesumar.edu.br | 0800 600 6360 “Promover a educação de qualidade nas diferentes áreas do conhecimento, forman- do profissionais cidadãos que contribuam para o desenvolvimento de uma sociedade justa e solidária” Missão C397 CENTRO UNIVERSITÁRIO DE MARINGÁ. Núcleo de Educação a Distância; SOLIN, Jair Junior Monteiro Criatividade e Inovação em Gastronomia. Jair Junior Monteiro Solin Maringá-Pr.: UniCesumar, 2016. 140 p. “Graduação em Gastronomia - EaD”. 1. Gastronomia 2. Criatividade. 3. Inovação. EaD. I. Título. CDD - 22ª Ed. 641 CIP - NBR 12899 - AACR/2 3 Viver e trabalhar em uma sociedade global é um grande desafio para todos os cidadãos. A busca por tecnologia, informação, conhecimento de qualida- de, novas habilidades para liderança e solução de problemas com eficiência tornou-se uma questão de sobrevivência no mundo do trabalho. Cada um de nós tem uma grande responsabilida- de: as escolhas que fizermos por nós e pelos nossos fará grande diferença no futuro. Com essa visão, o Centro Universitário Cesumar assume o compromisso de democratizar o conheci- mento por meio de alta tecnologia e contribuir para o futuro dos brasileiros. No cumprimento de sua missão – “promover a educação de qualidade nas diferentes áreas do conhe- cimento, formando profissionais cidadãos que con- tribuam para o desenvolvimento de uma sociedade justa e solidária” –, o Centro Universitário Cesumar busca a integração do ensino-pesquisa-extensão com as demandas institucionais e sociais; a realização de uma prática acadêmica que contribua para o desen- volvimento da consciência social e política e, por fim, a democratização do conhecimento acadêmico com a articulação e a integração com a sociedade. Diante disso, o Centro Universitário Cesumar almeja ser reconhecida como uma instituição uni- versitária de referência regional e nacional pela qua- lidade e compromisso do corpo docente; aquisição de competências institucionais para o desenvolvimento de linhas de pesquisa; consolidação da extensão uni- versitária; qualidade da oferta dos ensinos presencial e a distância; bem-estar e satisfação da comunidade interna; qualidade da gestão acadêmica e adminis- trativa; compromisso social de inclusão; processos de cooperação e parceria com o mundo do trabalho, como também pelo compromisso e relacionamento permanente com os egressos, incentivando a educa- ção continuada. pa la vr a do re it or Reitor Wilson de Matos Silva Prezado(a) Acadêmico(a), bem-vindo(a) à Comunidade do Conhecimento. Essa é a característica principal pela qual a UNICESUMAR tem sido conhecida pelos nossos alunos, professores e pela nossa sociedade. Porém, é importante destacar aqui que não estamos falando mais daquele conhecimento estático, repetitivo, local e elitizado, mas de um conhecimento dinâmico, renovável em minutos, atemporal, global, demo- cratizado, transformado pelas tecnologias digitais e virtuais. De fato, as tecnologias de informação e comuni- cação têm nos aproximado cada vez mais de pessoas, lugares, informações, da educação por meio da conec- tividade via internet, do acesso wireless em diferentes lugares e da mobilidade dos celulares. As redes sociais, os sites, blogs e os tablets acelera- ram a informação e a produção do conhecimento, que não reconhece mais fuso horário e atravessa oceanos em segundos. A apropriação dessa nova forma de conhecer transformou-se hoje em um dos principais fatores de agregação de valor, de superação das desigualdades, propagação de trabalho qualificado e de bem-estar. Logo, como agente social, convido você a saber cada vez mais, a conhecer, entender, selecionar e usar a tecnologia que temos e que está disponível. Da mesma forma que a imprensa de Gutenberg modificou toda uma cultura e forma de conhecer, as tecnologias atuais e suas novas ferramentas, equipa- mentos e aplicações estão mudando a nossa cultura e transformando a todos nós. Priorizar o conhecimento hoje, por meio da Educação a Distância (EAD), significa possibilitar o contato com ambientes cativantes, ricos em infor- mações e interatividade. É um processo desafiador, que ao mesmo tempo abrirá as portas para melhores oportunidades. Como já disse Sócrates, “a vida sem desafios não vale a pena ser vivida”. É isso que a EAD da Unicesumar se propõe a fazer. bo as -v in da s Pró-Reitor de EaD Willian V. K. de Matos Silva 5 bo as -v in da s Seja bem-vindo(a), caro(a) acadêmico(a)! Você está iniciando um processo de transformação, pois quando investimos em nossa formação, seja ela pessoal ou pro- fissional, nos transformamos e, consequentemente, transformamos também a sociedade na qual estamos inseridos. De que forma o fazemos? Criando opor- tunidades e/ou estabelecendo mudanças capazes de alcançar um nível de desenvolvimento compatível com os desafios que surgem no mundo contemporâneo. O Centro Universitário Cesumar mediante o Núcleo de Educação a Distância, o(a) acompanhará durante todo este processo, pois conforme Freire (1996): “Os homens se educam juntos, na transfor- mação do mundo”. Os materiais produzidos oferecem linguagem dialógica e encontram-se integrados à proposta pe- dagógica, contribuindo no processo educacional, complementando sua formação profissional, desen- volvendo competências e habilidades, e aplicando conceitos teóricos em situação de realidade, de ma- neira a inseri-lo no mercado de trabalho. Ou seja, estes materiais têm como principal objetivo “provocar uma aproximação entre você e o conteúdo”, desta forma possibilita o desenvolvimento da autonomia em busca dos conhecimentos necessários para a sua formação pessoal e profissional. Portanto, nossa distância nesse processo de cresci- mento e construção do conhecimento deve ser apenas geográfica. Utilize os diversos recursos pedagógicos que o Centro Universitário Cesumar lhe possibilita. Ou seja, acesse regularmente o AVA – Ambiente Virtual de Aprendizagem, interaja nos fóruns e enquetes, as- sista às aulas ao vivo e participe das discussões. Além disso, lembre-se que existe uma equipe de professores e tutores que se encontra disponível para sanar suas dúvidas e auxiliá-lo(a) em seu processo de aprendiza- gem, possibilitando-lhe trilhar com tranquilidade e segurançasua trajetória acadêmica. Diretoria Operacional de Ensino Kátia Solange Coelho Diretoria de Planejamento de Ensino Fabrício Lazilha C r i a t i v i d a d e e I n o v a ç ã o e m G a s t r o n o m i a Ap re se nt aç ão d o Li vr o Professor Especialista Jair Junior Monteiro Solin Olá, seja bem-vindo(a) à disciplina Criatividade e Inovação em Gastronomia. Chamo-me Jair Junior Monteiro Solin e, inicialmente, gostaria de falar um pouco sobre a minha formação acadêmica para que possamos, posteriormente, compreender de maneira geral o intuito desta disciplina e quais serão os principais assuntos a serem estudados. Sou graduado em Gastronomia e possuo especialização em Alta Gastronomia, com ênfase em Técnicas e Qualidades. Na pós-graduação, meus estudos se concentraram nas cozinhas clássicas italiana, francesa e ibérica, com destaque, também, para panificação e confeitaria, bem como o estudo de técnicas mais contemporâneas propostas pela gastronomia molecular. Possuo capacitação em Didática do Ensino Superior e participei de um grupo de pesquisas científicas por três anos, cujo foco foi estreitar a relação entre a gastronomia e a cultura, procurando identificar pratos que traduzissem determinadas realidades locais. Tal projeto conquistou no Mesa Tendências (maior evento gastronômico da América Latina) o prêmio como melhor trabalho na área de História da Gastronomia e ainda rendeu a publicação de dois livros. Atualmente, leciono para cursos de graduação e cursos técnicos as disciplinas de Gastronomia Internacional (cozinha europeia), História da Gastronomia, Antropologia da Alimentação, Garde Manger, Reaproveitamento de Alimentos, Administração de Alimentos e Bebidas, Organização de Eventos, Elaboração do Pré-preparo, Finalização de Pratos e Engenharia de Cardápio. Aqui, trarei para vocês uma visão bastante abrangente da função de um cozinheiro dentro de uma sociedade, abordando suas responsabilidades não apenas práticas, mas também uma série de conceitos que devem ser pensados no momento da criação de um prato. Inicialmente, para que a metodologia da criação seja compreendida de maneira mais dinâmica, vamos conhecer quais foram, em cada período histórico, os movimentos ou 7G A S T R O N O M I A • U N I C E S U M A R chefs mais inovadores para a época, traçando, assim, uma linha cronológica dos principais acontecimentos no mundo da gastronomia, que nos ajudarão a compreender os gostos, as técnicas e as harmonizações comuns no mundo contemporâneo. Em seguida, ao analisarmos o sistema de criação de um dos restaurantes mais inovadores e criativos do mundo da gastronomia, poderemos observar algumas das principais tendências na profissão do gastrólogo. Atualmente, muitos aspirantes a chef de cozinha não compreendem que saber cozinhar bem é uma parte pequena de um número expressivo de exigências básicas para se exercer a profissão com excelência. Ser um bom administrador, talvez, seja o preceito básico para um grande chef. Entretanto, acima de tudo, é preciso entender a nossa profissão da maneira mais profunda possível, isso quer dizer que precisamos conhecer a gastronomia por diversos ângulos: histórico, antropológico, social, físico-químico. Além disso, é preciso entender de turismo, agricultura, pecuária, estética, enfim, um leque extenso de áreas do co- nhecimento necessárias para tornar-se um profissional completo. Neste livro, muitos desses ângulos de estudo serão abordados, afinal ser criativo e inovador dentro de uma cozinha não é uma tarefa fácil, uma vez que não basta como resultado final um prato autoral, saboroso e estético, ele também precisa ser viável dentro da realidade de um restaurante. Isso significa possuir ingredientes sazonais e de fornecedores próximos, que possam ser estocados por um período significativo, que o mise en place possa ser feito com antecedência sem prejudicar a qualidade organoléptica dos ingredientes, que haja um público em potencial para o consumo desse prato, além de diversos outros fatores. Uma vez que, para criar, é necessário conhecer ao máximo os ingredientes que se pretende trabalhar, é imprescindível nos apoiarmos em informações valiosas oferecidas pela gastronomia molecular, tema este da nossa segunda unidade. Por fim, após entender os mecanismos da criação paralelamente à gastronomia molecular, trabalharemos com regras básicas na montagem de pratos, engenharia de cardápio e uma das técnicas mais utilizadas quando se fala em criação gastronômica: a desconstrução de pratos clássicos. Espero poder acrescentar o máximo possível de conhecimento e que, ao final da dis- ciplina, você esteja apto a se tornar um chef criativo e inovador no mercado de trabalho. Bons estudos! SUMÁRIO UNIDADE 1 Conceitualização 15 Evolução Gastronômica: aspectos históricos e antropológicos 27 Características gerais da Gastronomia Contemporânea 41 Alimentação e Estética UNIDADE 2 A Prática da Criação / Inovação 59 Bases da Gastronomia Molecular 79 Métodos de Processos de Criação 89 Criação na Gastronomia Brasileira UNIDADE 3 Viabilizando a Cozinha de Criação 109 Montagem de Pratos 119 Operacionalizando a Cozinha Autoral 129 Cozinha de Desconstrução dica do chef habilidades Legendas de Ícones recapitulando saiba mais fatos e dados minicaso reflita Dica do Chef: dicas rápidas para complementar um conceito, detalhar procedimentos e proporcionar sugestões. Habilidades: elo entre as disciplinas do curso. Mão na massa: indicação de atividade prática. Fatos e Dados: complementação do conteúdo com informações relevantes ou acontecimentos. Minicaso: aplicação prática do conteúdo. Reflita: informações relevantes que proporcionam a reflexão de determinado conteúdo. . Recapitulando: síntese de determinado conteúdo, abordando principais conceitos. Saiba mais: Informações adicionais ao conteúdo. mão na massa Conceitualização JAIR JUNIOR MONTEIRO SOLIN A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade: • Evolução gastronômica: aspectos históricos e antropológicos • Características gerais da gastronomia contemporânea • Alimentação e estética • Compreender os momentos mais criativos e inovadores dentro da his- tória da gastronomia. • Detectar quem são os principais chefs da atualidade com um trabalho mais autoral. • Estreitar a relação entre a gastronomia e a cultura. Plano de Estudo Objetivos de Aprendizagem Introdução Olá, caro(a) aluno(a)! Bem-vindo à nossa primeira unidade. Quando pensamos no que é necessário para criar um prato, as respostas mais óbvias são: bons ingredientes, utensílios e equipamentos, um cozinheiro com capacitação técnica para tal e alguém que aceite se aventurar em uma nova experiência gustativa. Entretanto, não é tão fácil quanto parece. Primeiramente, possuir uma bagagem cultural é fundamental, isso significa estar sempre em dia com as principais literaturas gastronômicas, viajar e treinar, ao máximo, todas as técnicas disponíveis. Alguns chefs, no momento da criação, não apenas estão munidos de todas essas informações, como também optam por projetar os próprios equipamentos, com o intuito de um resultado ainda mais sofisticado e inusitado. É o caso do restaurante espanhol El Celler, dos irmãos Roca, que possui uma cozinha extremamente criativa, onde os profissionais partem do pressuposto de que devem explorar o ingrediente ao máximo e extrair dele a sua essência, para só então pensar qual o método de cocção, quais os cortes e quais as harmonizações possíveis. Porém, antes de tomarmos os irmãos Roca como arquétipo de uma cozinha criativa, precisa- mos voltar um pouco na história e entender como ocorreuo desenvolvimento da gastronomia até chegar ao que conhecemos hoje. Passaremos pelos mais tradicionais chefs franceses e chegaremos ao slow food, movimento que veio para romper com a hegemonia dos fast foods e nos trazer muitas informações sobre como manter uma cozinha sustentável e criativa ao mesmo tempo. É justamente por toda a preocupação social, estética e cultural acerca da alimentação, que muitos restaurantes oferecem preparos que alcançam o status de uma obra de arte, tamanha a sua carga cultural, artística e sensorial. Este, portanto, será o tema do último módulo desta unidade. Bons estudos! 13 C r i a t i v i d a d e e I n o v a ç ã o e m G a s t r o n o m i a 15G A S T R O N O M I A • U N I C E S U M A R Evolução Gastronômica: aspectos históricos e antropológicos Olá aluno(a), antes de entendermos os métodos da cozinha de criação, é interessante que saibamos refletir sobre os principais momentos da gastronomia, compreendendo, então, um determi- nado período histórico. Para isso, será necessário voltarmos um pouco no tempo e analisarmos alguns contextos sociais, políticos e econômicos que influenciaram a atitude de grandes chefs de cozinha. Aqui falamos primordialmente do início do século XIX, momento no qual a França começa a ganhar o status que hoje conhecemos: uma hegemonia no mundo gastronômico por suas contribuições de técnicas e modos de preparo utilizados, com frequência, por chefs contemporâneos. É, inclusive, interessante salientarmos que há uma tendência significativa em aplicar as técnicas franco-italianas com ingredientes tipicamente nacionais. No caso do Brasil, esse conceito tem sido aplicado por renomados profissionais da área, colocando restaurantes do país na rota de inúmeros gourmands estrangeiros. C r i a t i v i d a d e e I n o v a ç ã o e m G a s t r o n o m i a Na Revolução Francesa, inúmeros cozinheiros que trabalhavam nas grandes mansões presi- denciais ficaram sem emprego. Alguns abriram seus próprios restaurantes e este é o caso de Antonine Beuvilliers (1754-1817). Outros se dedicaram a serviços domésticos, como, por exemplo, Antonin Carême (1783-1833), o mais notório chef desse período histórico. Podemos afirmar, inclusive, que a alta gastronomia que conhecemos hoje começou a ser estruturada com Carême. Entre as suas principais inovações está a simplificação das receitas e o incentivo à maior exploração do reino vegetal, exaltando o seu frescor dentro da cozinha. De acordo com Drouard (2009), Carême livrou-se também de muitos hábitos comuns nas cozinhas da época, como temperos excessivos, optando por condi- mentos que, atualmente, fazem parte da nossa rotina gustativa, como, por exemplo, sal, pimen- ta, tomilho, louro e salsinha. O que podemos pensar é: “mas isso não é nada inovador”, entretanto, para os hábitos estabe- lecidos da época, tratava-se de uma revolução. Freixa e Chaves (2012) nos ajudam a entender a importância de Carême por meio dos molhos. Muitas dessas bases que utilizamos hoje foram reunidas e aperfeiçoadas por Carême, que clas- sificou como clássicos quatro tipos de molhos: bechamel, velouté (base do bechamel, entretan- to com a substituição do leite por um caldo de vitela), o alemão (manteiga, farinha, ovo e vina- gre de vinho) e o espanhol (manteiga, farinha, caldo de carne e purê de tomate). É interessante notar que a união desses molhos possui, desde o início, um forte apelo criativo, uma vez que a articulação deles em um único preparo poderia originar dezenas de outros sabores. Percebemos, assim, que a versatilidade e a criatividade são duas qualidades que não se dissociam. Embora iremos tratar da apresentação de pratos ao final deste livro, sobre Carême é im- prescindível tomarmos nota da sua importân- cia na finalização de preparos gastronômicos. Por considerar que o cozinheiro era mais do que alguém que cortava e reunia ingredientes, Carême deu ao profissional o status de artista, cuja a criação e a invenção estavam intrinseca- mente ligadas ao trabalho do chef. Tal cuidado com a apresentação veio da sua forte influência da confeitaria. Carême poderia facilmente ser comparado a um arquiteto, uma vez que criava verdadeiras engenharias de açúcar. 17G A S T R O N O M I A • U N I C E S U M A R [...] a história não é uma espiral ascen- dente de prazeres, pois a criatividade age como renovação e substituição, não como acumulação ilimitada de oportunidades de fruição. As modas passam e aquilo que foi, já não é… Em outras palavras, em cada época histórica há uma estrutura de escolha do que se deve comer, e como comer, para se chegar ao prazer. Por isso, quando olhamos o conjunto da cozinha ocidental percebemos uma linha quase dinástica que liga todos os grandes chefs franceses - linha que está na base da formação de todos os profissionais da cozinha. [...] A dinastia é clara quando seguimos o fio condutor que liga Antonin Carême a Auguste Escoffier (1846-1935) e este aos mais modernos chefs euro- peus. (DÓRIA, 2006, p. 232) As inovações propostas por Escoffier influencia- ram a geração de chefs da segunda metade do século XIX. Foi considerado o “Imperador das Cozinhas do Mundo”, isso porque se propôs a percorrer os melhores restaurantes da Europa, criando, assim, uma carreira internacional (FREIXA; CHAVES, 2012). Escoffier, dentre suas várias contribuições, ajudou na sistema- tização da cozinha profissional, ou seja, como dinamizar os processos de produção visando à perfeição em termos de qualidade. Evitou ao máximo decorações extravagantes e procurou simplificar os pratos, pois o que importava era o sabor do alimento e, como veremos na unidade III, tudo deveria ser comestível na finalização de um preparo. A hierarquia dentro da cozinha, tal e qual po- demos observar atualmente em restaurantes gastronômicos, também foi esquematizada por Escoffier, que articulou as funções em “[...] garde manger (cozinha fria e suprimentos da cozinha), entremettier (legumes, sopas e sobre- mesas), rôtisseur (assados, grelhados e fritos), saucier (molhos e fundos de base) e pâtissier (confeitaria)” (FREIXA, CHAVES, 2012, p. 135). Acompanhando também um período de transição para uma sociedade que começaria a voltar-se para a “filosofia da indústria”, ou seja, da produção em massa, Escoffier procurou ra- cionalizar ao máximo a cozinha por meio da padronização de receitas e métodos de preparo, para que os pratos com alta qualidade pudessem ser também reproduzidos em grandes escalas e em qualquer lugar do mundo, visando, por exem- plo, serviços em redes de hotéis (DÓRIA, 2006). C r i a t i v i d a d e e I n o v a ç ã o e m G a s t r o n o m i a Outro momento importante da história da gas- tronomia aconteceu com o chef Fernand Point, também francês, nascido em 1897. Seguindo a linha de pensamento de Escoffier, sua pro- posta era embasada no uso de ingredientes frescos. Para fazer jus a esse frescor, os pratos deveriam ser preparados o mais próximo do momento do consumo. Podemos observar, em Point, uma característica que hoje também é bastante comum: a valorização das cozinhas regionais. Tal valorização da regionalidade vai despontar de maneira ainda mais moderna na cozinha de Paul Bocuse (1926), um dos precur- sores da nouvelle cuisine. Esse movimento foi de extrema importância para o desenvolvimento da gastronomia como conhecemos hoje. É na nouvelle cuisine que vamos encontrar os precei- tos básicos da cozinha de criação, justamente por ser um manifesto que preconizava uma cozinha inventiva,sem proibições, procurando a exalta- ção da leveza e a repulsão ao virtuosismo. Essa cozinha visa estimular uma “fecundação cru- zada” de sabores e temperos, abrindo caminho para a culinária global e a fusion cuisine de hoje (cozinha de fusão: vários países em um mesmo preparo). Priorizava-se molhos leves e edifican- tes, que possuíssem uma harmonização entre si, bem como a proeminência sobre a cultura de outros países (DROUARD, 2009). Devemos pensar, entretanto, que esse movimento surgiu no ápice da sociedade de consumo, que teve a sua decadência em 1986. As cozinhas sofriam 19G A S T R O N O M I A • U N I C E S U M A R com a mesmice de preparos e de ingredientes e os chefs ansiavam por algo que revertesse essa situação. Depois de Bocuse, nomes como Jean e Pierre Troisgros deram continuidade à filosofia proposta pela nouvelle cuisine, optando pela re- pulsa à padronização excessiva, molhos pesados e gordurosos (bases repetidas) e valorizando as particularidades regionais, a sazonalidade dos ingredientes, a cozinha autoral (e, portanto, a criatividade) e o minimalismo. Ao longo da nossa disciplina, veremos que muitos desses preceitos continuam sendo fundamentais no momento da criação gastronômica, revelando-se, assim, como uma tendência ainda para os próximos anos. Drouard (2009) lista alguns “mandamen- tos” estabelecidos por Henri Gault e Christian Millau em um artigo de 1973. Essas normas sintetizavam o pensamento da nouvelle cuisine em dicas práticas e podem também nos ajudar no momento da criação, dependendo, é claro, da proposta gastronômica: Tempo de cozimento reduzido para peixes, frutos do mar, carnes de caça, vitela e ver- duras. [...] ingredientes frescos e de alta qualidade. [...] os chefs da nouvelle cuisine não fazem objeções a novas técnicas ou materiais culinários.[...] testam métodos de cozimento e aquecimento. [...] evitam especiarias que mascaram. [...] A nouvelle cuisine não ignora a nutrição. Favorece métodos de preparo, como cozinhar no vapor, escaldar, grelhar e assar. A nouvelle cuisine preocupa-se com a estética - o ar- ranjo do prato e a aparência da comida -, mas dentro de limites. [...] Finalmente, a nouvelle cuisini busca ser “inventiva” e criativa. Tal criatividade se manifesta, primeiramente, em acompanhamentos do prato principal, que não precisam ser sempre os mesmos: “não considera um sa- crilégio deixar de combinar carneiro com feijão, lagosta com arroz, linguado com batatas no vapor, vitela com espinafre, filé com fritas; peixe não precisa ser sempre acompanhado por vinho branco, nem foie gras por trufas”. Mas os chefs podem e devem olhar adiante, pois esse é o princí- pio chave da nouvelle cuisine. “Vale tudo”, para o que der e vier (DROUARD, 2009, p. 294-295). Houve quem muito criticou o movimen- to da nouvelle cuisine. Courtine, ou La Reynière, escrevendo no jornal Le Monde em 1986, foi mordaz sobre o que ele chamou de “L’assiete aux leurres” [O prato das ilusões]: “Outros se valem excessivamente deste artifício, inicialmente interessante e bati- zado de nouvelle cuisine, para reduzir as porções e servir uma cenoura (em tiras, é verdade, sem falar em folhas ou em apitos - sic!) ao preço de caviar. Cozinha leve, eles murmuram [...] Pois sim! Quanto mais leve a comida, mais pesada a conta.” Fonte: Drouard (2009, p. 297). C r i a t i v i d a d e e I n o v a ç ã o e m G a s t r o n o m i a Temos então, com a nouvelle cuisine e o seu pensamento na qualidade e no frescor dos ingredientes, a chave para começar a compreender a gastronomia contemporânea. 21G A S T R O N O M I A • U N I C E S U M A R É uma tendência cada vez mais forte que, para garantir esse frescor, chefs tenham maior conta- to com seus fornecedores, favorecendo a agricul- tura e a pecuária familiar, ou seja, os pequenos produtores. Dessa forma, cria-se uma cozinha que não apenas pretende fornecer alimentos preparados com excelência, mas que também movimente a economia local, seja sustentável, “[...] Como qualquer chef que segue o modelo do-campo-a-mesa, eu dava apoio a esses sistemas ao lhe comprar a colheita diária. Ao privilegiar apenas os ingredientes que eu queria cozinhar em vez de defender uma classe inteira de colheitas integrais e cortes de carne ainda desconhecidos, eu havia ignorado o que era necessário para produzir a comida mais saborosa. De modo a permitir que aquelas fazen- das durem, e de modo a ser realmente sustentável, eu precisava aprender a co- zinhar a fazenda inteira. [...] Quanto mais eu pensava a respeito, mais eu me dava conta que cozinhar a fazenda inteira é o que os camponeses ao redor do mundo descobriram há milhares de anos. Eles não escolheram suas preferências dietéticas [...] em vez disso, desenvolveram cozinhas que utilizavam o que o ambiente oferecia”. Fonte: Barber (2015, p. 441). sustente as relações sociais e a cultura ao redor da gastronomia e crie um mecanismo de resis- tência à grande indústria. Um dos movimentos atuais que discute o estreitamento da relação cozinheiro-produtor é o From Farm to Table (“da fazenda ao prato”). São muitas as problemáticas que concer- nem ao universo da gastronomia no Brasil atualmente. Entre elas encontra-se a ques- tão do terroir nacional, não regularizado pelo Estado em detrimento da supervalorização da grande indústria; a ausência de pesquisa científica na descoberta de novos ingredientes intrinsecamente brasileiros e seus processos de cocção; a retardatária patrimonialização dos preparos tradicionais; a ressignificação do ofício do cozinheiro para além das suas habilidades técnicas, em uma compreensão conceitual, histórica, antropológica, ética e fi- losófica rumo à maior consciência da profissão e, por conseguinte, das suas transformações futuras. Por fim, questiona-se, também, a ba- nalização dos serviços gastronômicos sim- plificados apenas ao âmbito instrumental da cozinha, ignorando a conectividade de áreas como agronegócio, química e física, sustenta- bilidade, políticas públicas, além dos diversos axiomas gastronômicos aportados nas ciências não exatas. Se não valorizamos as pequenas produções - que podem oferecer produtos de excelente qualidade - a grande indústria acaba dominando a estrutura do fazer culinário. C r i a t i v i d a d e e I n o v a ç ã o e m G a s t r o n o m i a VOCÊ CONHECE O CONCEITO DE TERROIR? De acordo com McGee (2014) a palavra francesa terroir se refere a todo o ambiente físico de uma determinada produção: o solo com sua estrutura e conteúdo mineral; a água contida no solo; a altitude, a declivida- de e a orientação do terreno; o microclima, o regime da temperatura, luz solar, umidade e precipitação. Em alguns países da Europa, o governo tem todo o cuidado de regular essas “produções especiais”, geralmente pequenas, pois é através delas que são pro- duzidos os melhores ingredientes. Fonte: McGee (2014). Esboça-se, assim, um cáustico inimigo das co- zinhas regionais, criticado com afinco pelo chef espanhol Santi Santamaria: [...] a tendência à homogeneização, à uniformização é um perigo enorme. Quando você abre um pacote de algo industrializado, uniformizado, o que temos é uma pasteurização. Onde está o respeito aos agricultores, aos pesca- dores, aos açougueiros, aos artesãos? Nossa cultura se baseia no artesana- to, no respeito às técnicas ancestrais, à manipulação correspondente e com um sentimento também. Um artesão, quando manipula os ingredientes, sabe perfeitamente o que está fazendo e o quefaz para umas tantas pessoas que tem nome e sobrenome, está pensando nas pessoas que irão desfrutar, na feli- cidade que trará para elas; acho que é justamente por meio da cozinha que se pode transladar a personalidade, o cará- ter e o estilo de uma localidade (DÓRIA, 2006, p. 192). Outro nome essencial para entendermos um pouco mais da linha evolutiva da gastronomia é Alain Ducasse (1956). Ele foi o primeiro chef a ganhar três estrelas Michelin (publicação que existe há mais de um século e que aponta e classifica os melhores restaurantes do mundo) e atualmente comanda 21 restaurantes em 8 países, com 1400 funcionários. Como características principais de Ducasse, podemos observar o rompimento com as técnicas que fazem os ingredientes parecerem melhores e 23G A S T R O N O M I A • U N I C E S U M A R mais bonitos do que são, uma vez que valoriza-se a essência do produto. Ao pensar em um menu, ele também estabelece cada procedimento para o preparo de forma bastante metódica. Em termos de expectativas para o futuro da gastronomia e os possíveis problemas que os jovens chefs devem enfrentar, Ducasse afirma que a saída para a atual culinária fran- cesa está direcionada para a indústria do luxo. “A gastronomia moderna só poderá sobreviver desenvolvendo uma estratégia que combine originalidade, criatividade e vários subprodutos” (DROUARD, 2009, p. 299). Após analisarmos os pensamentos e con- tribuições de alguns dos principais chefs da história da gastronomia, além de movimentos criados por eles, entramos em um outro período importante para o desenvolvimento da cozinha mundial, este, mais recente, intitulado de slow food. Desenvolvido na Itália em 1986, o movi- mento procurava, em sua gênese, reagir com a padronização e a degradação do sabor. De acordo com Freedman (2009, p. 29), “[...] slow food é uma tentativa de resgatar não só um sentimento de localidade e sazonalidade dos alimentos, mas também um método de preparo menos voltado para a massificação e a conveniência”. Fatores como biodiversidade, preservação e reintrodu- ção de espécies e variedades que para a indústria não são úteis, são pontos importantes exaltados no slow food. Atualmente, esses fatores fazem parte da filosofia de muitos restaurantes. Paralelamente à ênfase em ingredientes locais e sazonais, há outra tendência, aparentemente contraditória, voltada para o artifício e a inovação. Manifesta- se, por exemplo, nas várias fusion cui- sines, que combinam ingredientes de diferentes culturas, principalmente pratos europeus preparados com tem- peros e sabores asiáticos ou africanos (molho branco com baunilha, infusões de capim-limão, molho hoisin). O artifício inclui a reversão de expectativas: ingre- dientes conflitantes, misturas de plebeu e elegante, transformações alquímicas de ingredientes. (FREEDMAN, 2009, p. 29) Quando falamos em criação e inovação em gas- tronomia, é de suma importância que o estudante saiba utilizar das melhores informações de cada período ou movimento gastronômico na sua rotina de trabalho ou no planejamento de um cardápio inovador. A própria fusion cuisine, embora possa ter o seu lado crítico (descaracterizar pratos com cargas culturais fortes, podendo desrespeitar suas origens e métodos tradicionais) possui muitos pontos posi- tivos que auxiliam no raciocínio de um cozinheiro que procura desenvolver um trabalho mais autoral. Entre eles está a possibilidade de treinamento da dosagem e harmonização de temperos de continen- tes distintos em um mesmo prato. A junção de duas culturas já seria, portanto, um ponto de partida in- teressante para o planejamento de um menu criati- vo. Também nessa cozinha há uma forte valorização dos vegetais e utilização de cascas e sementes em preparos, evitando o desperdício e criando um apelo sustentável (CARPENTER; SANDISON, 1994). C r i a t i v i d a d e e I n o v a ç ã o e m G a s t r o n o m i a Para finalizar, se quisermos delimitar uma região de produções criativas e inovadoras, a Catalunha, na Espanha, certamente ganha destaque neste mapa de tendências gastronô- micas. Trabalhos que valorizam a intensidade dos sabores e combinações bastante inusita- das, com estilo lúdico, global e eclético fazem parte da realidade desta comunidade hispânica. Surge, portanto, a valorização das manipulações e transformações do alimento, mais do que a matéria-prima em si. Como exemplo, podemos citar o restaurante Comerç 24, em Barcelona, que oferece preparos como um “algodão-doce” temperado com anchova, manjericão e tomate, bem como o El Bulli, projeto de Ferran Adrià que desconstruiu inúmeros pratos, transformando ingredientes em espumas, pós e cremes gelados. Ou seja, uma cozinha extremamente criativa, de vanguarda e conceitual (FREEDMAN, 2009). É, justamente sobre Adrià, que discutiremos no segundo capítulo deste livro, expondo seus métodos de criação de pratos. 25G A S T R O N O M I A • U N I C E S U M A R CHEFS CONTEMPORÂNEOS! Uma dica para entender alguns dos principais expoentes da gastronomia atual é uma série documental intitulada Chefs Table. Atualmente, ela é disponibilizada em streaming e pode ser assistida online. A série é dividida em seis episódios, revelando em cada um deles grandes chefs da atualidade como Massimo Bottura, Dan Barber (um dos precursores do movimento From Farm to Table, que vimos em aula), Francis Mallmann, Niki Nakayama, Ben Shewry e Magnus Nilsson. São exemplos de chefs que controlam a própria produção de insumos (criam o gado que lhe proporcionará um bom leite para preparações culinárias, fazendo seu próprio queijo e que, por fim, fornecerá uma carne de alta qualidade) ou, por exemplo, o caso da produção de ovos picantes e vermelhos de galinhas que tiveram pi- mentas incrementadas em suas dietas (essas aves não sentem o efeito da capsaicina, substância que causa a ardência em humanos). Fonte: o autor C r i a t i v i d a d e e I n o v a ç ã o e m G a s t r o n o m i a 27G A S T R O N O M I A • U N I C E S U M A R Características gerais da Gastronomia Contemporânea É muito comum, quando tentamos entender as características do mundo contemporâneo, ficarmos confusos, justamente pela quan- tidade de informação contida em cada área do conhecimento. O desenvolvimento da tecnologia, o aperfeiçoamento do pensamento humano e das ciências, o caminho tomado pelas artes, a influência negativa e positiva do homem no ecossistema, as redes virtuais de comunicação, obviamente, não poderiam deixar de influenciar também o universo da cozinha. Se tomarmos a análise pelo período das artes, por exemplo, veremos que, em vários momentos, coisas distintas eram consideradas inovadoras e estéticas. Para exempli- ficar, podemos citar o renascimento, o cubismo, o surrealismo, a pop arte. Para Agamben (2009), o contemporâneo não é somente espaço temporal, mas é aquilo que transforma o espaço presen- te. Não é temporalidade, mas o que fazemos nela. Podemos ser contemporâneos na medida em que se compreende que o ser é a junção de passado, presente e futuro. Mas como podemos pensar isso dentro da gastronomia? C r i a t i v i d a d e e I n o v a ç ã o e m G a s t r o n o m i a C omo observamos no módulo ante- rior, tivemos momentos bastante diferentes um do outro dentro da história, cada qual com a sua con- tribuição. Uns aperfeiçoaram as técnicas clás- sicas do passado, outros nos mostraram que “menos é mais” (apontando uma tendência ao minimalismo), assim como também tivemos movimentos de vanguarda e os que buscaramaproximar o homem moderno da cadeia geral de produção. O objetivo foi mostrar que os in- gredientes não nascem das gôndolas do super- mercado, que há inúmeras pessoas envolvidas no processo de produção e que, justamente por isso, é primordial manter o respeito pelo produto final, a matéria-prima. Esse talvez seja um dos conceitos mais discutidos pelos chefs contemporâneos, brasileiros ou estrangeiros. Vivemos atualmente um momento de tran- sição alimentar, em que muitos conceitos ne- cessitam ser revistos. Isso porque, como alerta incessantemente a Organização das Nações Unidas (ONU), caminhamos para uma escas- sez alimentar. Diante de tantos problemas na produção de alimentos e na exploração irracio- nal dos insumos, o cozinheiro contemporâneo ganhou uma nova função dentro da socieda- de: além de todas as características básicas em termos de instrumentação e técnica, ele precisa encontrar a melhor forma de articular os ingredientes disponíveis, possibilitando a 29G A S T R O N O M I A • U N I C E S U M A R racionalização da extração de matéria-prima, visando à sustentabilidade da produção. Tudo isso irá refletir no resultado final do prato, ou seja, não é apenas um alimento, é também cultura. Tal conceito tem sido defendido pelo Instituto ATÁ, criado pelo chef brasileiro Alex Atala, eleito em 2013 um dos 100 mais influen- tes do mundo pela revista TIME. Seu restau- rante, D.O.M., é considerado o 9º melhor do planeta, segundo o prêmio anual “World’s 50 Best Restaurants”. No último módulo do pró- ximo capítulo, trabalharemos exclusivamente com a questão da revalorização dos ingredien- tes brasileiros. O manifesto do Instituto ATÁ nos ajuda a sintetizar, inicialmente, esse conceito de respon- sabilidade social do cozinheiro, tão discutido na gastronomia contemporânea: A relação do homem com o alimento precisa ser revista. Precisamos aproxi- mar o sabor do comer, o comer do cozi- nhar, o cozinhar do produzir, o produzir da natureza; agir em toda a cadeia de valor, com o propósito de fortalecer os territórios a partir da sua biodiversidade, agrodiversidade e sociobiodiversidade, para garantir alimento bom para todos e para o ambiente (INSTITUTO ATÁ, 2015, online). Podemos estreitar ainda mais a nossa dis- cussão, limitando-a as frutas e legumes, por exemplo. De acordo com Beardsworth (2010), ao analisarmos esses dois elementos do reino vegetal, observamos que há um desenvolvi- mento forçado desses produtos para aumentar a produção e, consequentemente, o lucro. Esse desaparecimento da sazonalidade (respeito à época de cada fruta) faz com que os produ- tos pertençam a todas as estações, ou seja, come-se pimentão, berinjela e morango o ano todo, porém, como não estão sendo colhidos em seus melhores momentos, há uma perda de sabor e de localidade significativa. Resumindo, podemos afirmar que a superdisponibilidade diminui o sabor. Essa maneira de forçar a na- tureza a nos oferecer tudo o tempo todo é uma característica que os grandes restaurantes da atualidade estão condenando. É o oposto do que tratamos anteriormente: respeitar o ingre- diente é extraí-lo de maneira sustentável, em seu melhor momento, e utilizá-lo na sua tota- lidade, evitando disperdícios. Justamente por essa preocupação com a sazonalidade, muitos restaurantes trabalham também com menus e cardápios sazonais. A lógica é simples: se eu não posso ter um ingrediente explorado de maneira racional e responsável o ano todo, ob- viamente não poderei oferecer o mesmo prato sempre. Seguir o tempo da natureza, ou seja, alternância das estações força uma renovação da alimentação. Isso, para realidade de um ser- viço gastronômico, está intrinsecamente ligado à criatividade. C r i a t i v i d a d e e I n o v a ç ã o e m G a s t r o n o m i a Não é de se espantar que muitos chefs têm in- cluído em seus preparos alguns tipos de insetos, como a formiga saúva. De fato, consumir uma formiga não irá mudar a precariedade do abas- tecimento de alimentos no mundo, entretanto, tal atitude provoca uma reflexão no comensal. Exploramos, aqui, um segundo elemento implí- cito na gastronomia contemporânea: a comu- nicação e a inter-relação das linguagens dentro da cozinha. Isso quer dizer que um prato pode perfeitamente provocar um diálogo com quem está se alimentando, sem utilizar da palavra. Isso se torna mais claro quando o cozinheiro possui a sua personalidade e, consequentemen- te, o seu conceito bem definidos. Entendemos, dessa forma, que uma cozinha criativa é, primordialmente, uma cozinha com uma iden- tidade bem definida, uma assinatura, um estilo. Justamente por isso a criatividade e a inovação são atitudes delicadas dentro do ambiente de trabalho, pois demandam conhecimento téc- nico, bagagem cultural e sensibilidade. Todos esses fatores necessitam estar evidenciados de forma clara no resultado final do prato: sua apre- sentação, seu conceito e seu sabor. Sobre sabor, Pollan (2014, p. 393) diz que “é a experiência infinitamente mais complexa de uma comida que oferece a inconfundível assinatura do indi- víduo que a fez - o cuidado, o pensamento e a peculiaridade que aquela pessoa colocou na obra que preparou”. Dessa forma, podemos definir a gastronomia contemporânea como uma cozinha 31G A S T R O N O M I A • U N I C E S U M A R flexível, multirracial e multicultural, uma vez que se procura harmonizar sempre a origem (o passado, o clássico, o regional) com a expe- rimentação e a intensa troca de informações possibilitadas pelo mundo globalizado. O restaurante, como nós o conhecemos hoje, representa a tradução de um culto de sensibilidade setentista no sentido do paladar oitocentista: a mudança do valor social de uma época no adorno cul- tural de outra. A substituição do caldo pela prodigalidade foi quase inevitável. (SPANG, 2003, p. 13) Aqui, façamos uma pausa para entender melhor o que essa palavra “conceito” tem a nos dizer no universo da gastronomia. A compreensão desse termo é fundamental para conseguirmos definir a cozinha contemporânea. Basicamente, enten- demos por conceito o ato de contextualizar, ou seja, dar um sentido a determinado prato. Dessa forma, procura-se definir tudo o que há por trás do preparo, se ele faz referências às influências de algum grupo étnico; se ele busca articular ingredientes regionais que estão desaparecendo; se ele faz referências aos modos de preparos tradicionais, porém utilizando de técnicas mais modernas; se busca movimentar a economia local ou ser objeto de resistência à padronização imposta pela indústria e a cultura de massa; as sensações incitadas pelo uso de determinados ingredientes etc. Em síntese, a contemporanei- dade busca uma unidade, visando suplantar barreiras de linguagem para criar uma situação multissensorial, universal, única e inesquecível: além da nutrição, uma experiência. A cozinha tem sido equiparada à lin- guagem: como esta, possui vocábulos (os produtos, os ingredientes), que são organizados segundo regras de gramá- tica (as receitas, que dão sentido aos ingredientes, transformando-os em alimentos), de sintaxe (o cardápio, isto é, a ordem dos pratos) e de retórica (os comportamentos do convívio). A ana- logia não funciona apenas no plano tecno-estrutural, mas também para os valores simbólicos dos quais ambos os C r i a t i v i d a d e e I n o v a ç ã o e m G a s t r o n o m i a sistemas são portadores. Exatamente como a linguagem, a cozinha contém e expressa a cultura de quem pratica, é depositáriadas tradições e das identi- dades de grupo. Constitui, assim, um extraordinário veículo de autorrepre- sentação e de comunicação: não apenas é instrumento de identidade cultural, mas talvez seja o primeiro modo para entrar em contato com culturas diver- sas, já que consumir o alimento alheio parece mais fácil - mesmo que apenas na aparência - do que decodificar-lhe a língua. Bem mais do que a palavra, a comida auxilia na intermediação entre culturas diferentes, abrindo os sistemas culinários a todas as formas de inven- ções, cruzamentos e contaminações. (MONTANARI, 2009, p. 11) Agora que entendemos um pouco mais das características gerais da gastronomia contem- porânea, vamos utilizar de um dos mais revo- lucionários restaurantes da atualidade como arquétipo de uma cozinha criativa e inovadora. Trata-se do El Celler de Can Roca, restaurante cujos trabalhos já duram mais de 25 anos e tem à frente os irmãos Joan, Josep e Jordi Roca. No ano de 2013, a revista inglesa Restaurant considerou El Celler o melhor restaurante do mundo, coisa que os irmãos jamais poderiam imaginar, uma vez que o trabalho iniciou-se de forma bastante humilde e simplória na cidade de Girona, na Catalunha. Três palavras compõe o conceito deste restaurante e serão discutidas ao longo deste módulo: transversalidade, ousadia e liberda- de. “Transforma vinho em doces, literatura em pratos, dá concretude ao perfume, captura a alma, sem perder o senso de humor - presen- te, por exemplo, na sobremesa Gol de Messi” (ROCA, 2014, p. 3). A proposta deste restaurante é, na verda- de, uma síntese de tudo o que estudamos até agora sobre a gastronomia contemporânea, ou seja, os pratos buscam explorar os sentidos, as emoções, dando ao cliente mais do que uma refeição, mas sim uma experiência por meio do paladar. Isso só é possível por meio de uma in- terpretação objetiva dos avanços da tecnologia, informação, ciência e comunicação. Juntamente com os conhecimentos da física e da biologia 33G A S T R O N O M I A • U N I C E S U M A R (estudos que nos aprofundaremos no próximo capítulo), torna-se viável a exploração da ma- téria-prima na sua totalidade, dando origem a pratos inusitados. A nouvelle cuisine, citada no primeiro módulo, é então substituída pela cozinha tecnoemocional (que brinca com todos os sentidos do ser humano, ativando memórias afetivas e coletivas). A cozinha que propomos abre-se em várias vertentes, para mostrar colorido, tempo- ralidade, consciência, ciência, ousadia e agricultura social, além de revelar uma origem geoclimatológica concreta, porém sem deixar de refletir a mestiçagem oriunda de gerações passadas e de lugares longínquos. [...] Ao nosso ver, a cozinha do futuro oscilará entre a tendência produtivista e a elaboracionista, como sempre ocorreu na história da gastronomia. (ROCA, 2014, p. 17) No âmbito da pesquisa dos irmãos Roca, fica evidente o uso de ingredientes ou métodos de preparo que incitem sensações. Eles procuram criar pratos que resgatem memórias da infân- cia, por exemplo, aromas que despertam lem- branças subjetivas. Obviamente, para alcançar resultados tão específicos, testes são executados rotineiramente, acompanhados, claro, de êxitos e fracassos. Esta, provavelmente, seja uma das características mais imprescindíveis para o pro- fissional da cozinha autoral: saber lidar com as experiências e seus possíveis insucessos. C r i a t i v i d a d e e I n o v a ç ã o e m G a s t r o n o m i a Nas tentativas de concepção de uma cozinha inventiva, os chefs perceberam a necessidade de mecanismos que auxiliassem por meio da tecnologia a exploração dos ingredientes. É o caso de aparelhos específicos como o rota- val (um destilador que permite concentrar a essência aromática de ingredientes que tenham uma certa umidade). Com o rotaval, foi possível, por exemplo, criar um prato bas- tante ousado, intitulado “Terra D’Hermès”, composto de sorvete de patchuli, mousse de chocolate ao leite, biscoito de cacau, destilado de terra, ar de chá de jasmim e finalizado com gomos de laranja, folhas de beterraba, folhas de shiso roxo e raspas de casca de grapefruit. Na estética final do prato, a impressão é que o comensal tem a sua frente um canteiro em que brincava quando era criança: o mousse e a bolacha de cacau resultam em uma idêntica textura e aparência de terra, somada à essência extraída por meio do rotaval que emite aromas de campo e ao colorido das folhas de beter- raba e com laranja supreme (ROCA, 2014, p. 292-293). Na cozinha, uma ideia que nos seduz é a de “comer a paisagem”, paisagem que deu caráter e essência a nosso povo e que, de maneira natural, está presente em nossos fogões e em nossas mesas. A cozinha tradicional incorpora a paisagem a partir da história local, das raízes, das transmissões do receituário de geração em geração e dos hábitos alimentares do passado. (ROCA, 2014, p. 183) Sabemos que, dentro da concepção de um prato, não podemos apenas pensar no sabor. O pri- meiro sentido a captar o preparo é a visão e, justamente por isso, no momento da criação, as cores dos ingredientes que irão compor o prato deverão ser selecionadas da maneira mais harmônica e atrativa possível. Para isso, uti- liza-se muito o conceito do cromatismo, que não se restringe só às cores e suas inúmeras possibilidades, “[...] mas também à música, aos semitons, às notas que adquirem uma determi- nada unidade a partir de diferenças mínimas” (ROCA, 2014, p. 230). Dessa forma, explorando todas as matizes dos ingredientes, é possível, 35G A S T R O N O M I A • U N I C E S U M A R no resultado final, oferecer um prato no qual haja coerência entre os tons, tornando-o ainda mais estético. “As cores se convertem em um elemento de escolha culinária a partir de com- binações evocativas. Despertam associações psicológicas em razão da afinidade cromática dos ingredientes” (ROCA, 2014, p. 230). Como exemplos, temos o cromatismo vermelho que provoca excitação, euforia, energia e agressivida- de (nessa categoria entram o hibisco, morango- -silvestre, framboesa etc.); cromatismo branco, que sugere pureza (perfumes ou destilados de cacau, anis); cromatismo laranja, de evocação outonal (laranja, gema, cenoura) e o cromatismo verde, uma versão mais relaxante (ervas frescas em geral). Este último fica bem evidente no preparo “Salada Verde”, composta de sementes de tomate kumato, minipepino, gel de limão (feito com o espessante ágar-ágar), creme de abacate, sorbet de azeitonas verdes, candies de Chartreuse, suco de casca de pepino, finaliza- da com brotos de rúcula e de agrião, folhas de pimpinela e azeite de oliva extra-virgem (ROCA, 2014, p. 232-233). O que podemos observar, tomando como exemplos alguns preparos do restaurante dos irmãos Roca, são as possibilidades infinitas de diálogos de ingredientes dentro de um mesmo prato, ou seja, produtos que dificilmente se har- monizariam in natura, após inúmeros processos culinários, tornam-se gustativamente coerentes e, acima de tudo, atrativos. É uma forma de tentar diminuir os vícios do paladar contem- porâneo em consumir sempre os mesmos sa- bores e texturas, propondo associações antes impensadas. É nesse âmbito em que o salgado pode estar presente na sobremesa e o doce ser o protagonista de um prato principal. Seguimos, aqui, o conceito proposto pela nouvelle cuisine de que tudo é possível. Entretanto, logicamente, para a criação de um prato cujos elementos de composição não se isolem uns dos outros, é necessário,primeiramente, conhecer o ingre- diente química e fisicamente; segundo, domi- nar todas as técnicas de cocção e corte; e, por fim, ter um paladar aguçado para perceber com sensibilidade se a união daqueles elementos deu certo ou não. Mais do que isso: esse prato é comercialmente viável dentro da minha rea- lidade gastronômica? Pessoas do mundo inteiro atravessam ocea- nos para jantar no Celler de Can Roca, aguardam meses em uma longa lista de espera, pagam cen- tenas de euros por um único jantar e, portanto, vão preparadas para uma experiência bastante incomum do que a rotina condicionou o nosso paladar. Cada restaurante tem a sua proposta: pode-se oferecer simplesmente uma comida re- gional ou se trabalhar com sabores nunca antes sentidos, descobertos por meio de uma árdua experimentação. O que é claro, e sinal de sucesso em ambos os empreendimentos gastronômi- cos, é a relação de proximidade com o cliente. Atualmente, os grandes restaurantes preparam C r i a t i v i d a d e e I n o v a ç ã o e m G a s t r o n o m i a menus especialmente para o comensal: sabe seu nome completo e de onde vem, de suas alergias ou intolerâncias alimentares, suas preferências gustativas, sua necessidade ou não de harmo- nizar o menu com vinhos e sua expectativa em relação àquela refeição. A proximidade do chef com o cliente é fundamental para que ele não se sinta mais um número, mas sim, parte de um momento único. A excelência no atendimento independe da proposta gastronômica. Outro fator também significativo no serviço é a tendência à mise-en-scène (encenação ou posicionamento de uma cena). Na prática do restaurante, estamos falando sobre finalizações de pratos na frente do cliente, seja trabalhando a textura de um aligot, maçaricando uma proteína ou concluindo um prato com uma espuma de batata com auxílio de um sifão. Isso torna a re- feição interativa, colocando o cliente como parte de todo o processo culinário, além de oferecer resultados com o máximo de frescor. É, portan- to, uma elaborada sistematização da produção (do plantio de um tubérculo até a finalização do prato) que garantem um resultado relevante em termos de qualidade de gosto, aparência e conceito. A essência intacta do produto. O que é a cozinha senão elaboração? Contudo, o que seria a cozinha se não se fun- damentasse em princípios imutáveis, numa ideia que é central e que consis- te em aproveitar o que temos a nossa volta, ao alcance das mãos, para atingir 37G A S T R O N O M I A • U N I C E S U M A R o processo que transforma a matéria- -prima em artefato criativo, em artifício artesanal? A perfeita combinação entre a evidência - natural, vegetal ou animal, silvestre - e o mecanismo que a trans- forma é a atmosfera ideal que preside a cozinha. (ROCA, 2014, p. 160) Para exercitar a nossa criatividade e entender- mos a complexidade de informações contidas em um único preparo, tomemos como exemplo o prato “Salada de Outono”. O nome simples e básico parece não ter nenhuma ligação com o resultado final, se analisarmos a quantidade de técnicas necessárias para a execução dests receita de entrada. O prato é composto por: • um suco de abóbora espessado com goma xantana e resfriado. • pés de cogumelo boletus cortados em bastões de 3x0,3cm. • sementes de abóbora infladas (fritas a 180°C). • areia de sementes de abóbora (para isso utiliza-se um agente químico chamado maltodextrina, que é um solidificador de gorduras, neste caso, o óleo saborizado da fritura das sementes é transformado em pó). • areia de nozes (utiliza-se a mesma técni- ca citada anteriormente, mas com óleo de nozes). • óleo de boletus (obtido por meio dos co- gumelos confitados por 2 horas a 70°C). • areia de cogumelos (tritura-se o cogumelo trombeta-da-morte seco com o cogumelo boletus também seco até obter um pó, em seguida acrescenta-se a maltodextrina e o óleo de boletus feito anteriormente, até obter uma textura arenosa fina). • chapéu de cogumelos enoki frescos e golden, deixando 1,5 cm de pé; raízes de bolinho (é feita uma massa com farinha, ovo, açúcar, mel, água, azeite, sal, bicar- bonato e refrigerada por 12 horas, em seguida é frita por imersão de maneira irregular, obtendo a forma e a cor de um rizoma, como o gengibre, por exemplo). • pele de tupinambo (refere-se a um tubér- culo parecido também com o gengibre ou a cúrcuma, são cozidos no forno a 170°C, descascados com muito cuidado para manter a pele que, em seguida, é levada a uma desidratadora a 65°C. Depois de secas, são fritas a 180° em óleo de girassol, e, antes de esfriarem, são enroladas em formato de espiral e temperadas). • purê de marmelo (obtido por meio de cocção em forno). • alvéolos de tangerina (retira-se a pele da fruta, deixando os gomos inteiros, em seguida são congelados em uma imer- são de nitrogênio líquido. Com auxílio de um tecido e dando pequenos golpes, os alvéolos da tangerina são separados e reservados no freezer até o momento do serviço). C r i a t i v i d a d e e I n o v a ç ã o e m G a s t r o n o m i a • purê de caqui (o fruto é processado e levado ao fogo com ágar-ágar, um geli- ficante que suporta altas temperaturas, depois é coado e resfriado rapidamen- te em um abatedor de temperatura. Uma vez solidificada a preparação, é triturada com um mixer e reservada em bisnagas). • ar de terra (na verdade, trata-se de uma espuma feita com destilado de terra e lecitina de soja com auxílio de um mixer. A lecitina ajuda a sustentar a estrutura da espuma). • sorbet de caqui; purê de batata doce cozida na brasa. • maçã laminada e embalada a vácuo com calda de açúcar, e • cogumelos chanterelle cortados em quatro. Na finalização, traça-se no centro do prato uma linha de purê de batata-doce, sobre ela são colocados os bastões de pés de boletus, cobrindo com areia, uma após a outra: areia de sementes, de nozes e de cogumelos. Depois, sobre a última areia, são dispostas aleatoria- mente duas sementes de abóboras infladas e os cogumelos frescos e golden. Nos extremos da montagem são colocadas as raízes de boli- nho fritas. No meio da areia são espetadas as peles crocantes de tupinambo, brotos de be- terraba e o cogumelo chantarelle. Em um dos lados da louça é disposta uma pequena que- nelle de purê de marmelo e, do lado oposto, os alvéolos de tangerina. Aleatoriamente são dispostos pontos de purê de caqui e gotas do suco de abóbora. Após aerar o ar de terra, ele é depositado em uma das extremidades do prato, juntamente com a lâmina de maçã enrolada sobre si mesma. Finaliza-se com uma quenelle de sorbet de caqui (ROCA, 2014, p. 194-195). Dentro de qualquer preparo gastronô- mico cuja composição leva vários ele- mentos, sejam eles vegetais, animais ou especiarias, é importante trabalhar esses sabores de forma linear no paladar. Ou seja, se ao levar o preparo à boca todos os ingredientes se anunciarem de uma só vez, as chances do sabor ser indefini- do e “sujo” são muito grandes. O ideal é que, ao comer, os sabores e as nuances gustativas apareçam gradativamente, seguindo uma ordem pré-estabelecida pelo chef no momento do planejamento dos ingredientes - temperos e métodos de cozimento - e pela forma sequencial como o preparo foi apresentado na sua finalização. Fonte: o autor 39G A S T R O N O M I A • U N I C E S U M A R Parece-nos muito difícil visualizar como o re- sultado final de tantas técnicas diferentes pode tornar-sehomogêneo na apresentação do prato - sobre este desafio trataremos na última uni- dade deste livro. Entretanto, o exemplo nos ajuda a observar, de forma mais prática, os des- dobramentos e as possibilidades de se trabalhar um ingrediente além das técnicas tradicionais aprendidas nas habilidades básicas. Observamos também que, embora a receita possua uma ficha técnica longa, não há uma quantidade exorbi- tante de ingredientes. Concluímos este módulo, portanto, definindo mais uma importante carac- terística da cozinha contemporânea: a extração de diversos sabores, texturas, aromas e cores, por meio de um mesmo ingrediente. São as cha- madas “declinações”. Toda cozinha é sofisticação. O primeiro fogo, a primeira cocção foram ações cons- cientes que perturbaram a até então ordem natural das coisas. Um primeiro passo que nos distanciou da necessidade e nos apro- ximou da depuração. De resto, significou uma evolução da técnica que a princípio tratou de superar o imediatismo e que, depois, se dirigiu ao paladar. Não apenas a técnica como ferramenta de progresso, mas também como mecanismo que, em determinado momento, nos revela novas formas de prazer, uma nova maneira de observar o produto. Revolução a serviço do prazer. É por isso que as inovações ma- gistrais de Joan - a “perfume-cocção” e o cozimento a vácuo - não podem ser confina- das à prateleira das invenções cuja utilidade se explica em suas próprias instruções de uso. Elas deverão ser guardadas na estante das que servem para alcançar uma meta já traçada e prevista. As ferramentas são úteis porque antes já respondiam a um plano premeditado. Não são facas que servem para cortar, e sim buris que sulcam uma chama para obter uma gravura que o artista já havia planejado. Estamos falando de vapores, de destilação, de temperaturas, de acontecimentos e pro- dígios que se baseiam numa grande com- plexidade técnica. A inovação, no entanto, não é ter esses elementos ao alcance, e sim haver pensado que serviriam para alcan- çar a materialização de uma ideia (ROCA, 2014, p.298). É justamente por essa complexidade de técni- cas, texturas, sabores, cores e linguagens que, no nosso próximo módulo, trataremos da gas- tronomia contemporânea como uma possível vertente do mundo das artes efêmeras. C r i a t i v i d a d e e I n o v a ç ã o e m G a s t r o n o m i a 41G A S T R O N O M I A • U N I C E S U M A R Alimentação & Estética Antes de iniciarmos a última parte desta unidade, precisamos compreender que a palavra estética, dentro da filosofia, da arte e da gastronomia, não possui o mesmo significado que aplicamos usualmente no dia a dia. De acordo com Aranha e Martins (2013, p. 335), a palavra estética refere-se “[...] à cognição por meio dos sentidos, ou seja, o conhecimento sensível”. Ao analisarmos a eti- mologia da palavra, “estética” vem do grego “aísthesis” e significa “faculdade de sentir”, “compreensão pelos sentidos”, “percepção totalizante” (ibidem). Em linhas gerais, podemos afirmar que a es- tética é a capacidade que algo tem de nos causar alguma reação ou estímulo sensorial que nos aguce a percepção subjetiva e emotiva, em uma combinação da razão com os sentidos. C r i a t i v i d a d e e I n o v a ç ã o e m G a s t r o n o m i a Embora pareça uma informação muito dis- tante do mundo da gastronomia e mais próxima da área filosófica, o conceito de estética é a chave para entendermos o rumo da cozinha contemporânea. Abordamos até agora que um mecanismo comum desde o princípio do desenvolvimento da gastrono- mia moderna é que a alimentação ultrapas- se as barreiras da necessidade biológica e alcance o patamar de “experiência”. Ora, se estética é a capacidade que alguma coisa tem em nos estimular racional e sensorialmen- te, é inevitável que a julguemos parte do pensamento gastronômico contemporâneo. Isto é, nos perguntarmos: O que queremos causar com esse prato? O que ele realmente pode significar para o comensal além de um produto comestível?. “Até mesmo o inventor da palavra ‘esté- tica’, o leibniziano Baumgarter, deixava aberta uma possibilidade para o gosto do paladar. A estética como ‘ciência do co- nhecimento sensível’ referia-se a qualquer um dos sentidos, inclusive àqueles físicos e proximais”. Fonte: Perullo (2013, p. 30). Uma vez que entendemos que o alimento é mais do que seus valores nutricionais, colocamos ele na esfera do prazer, esta seria a primeira apro- ximação da cozinha com a estética. Para melhor entendermos essa afirmação, antes convido você a analisar um minicaso. Os presídios dos Estados Unidos causam revolta desde que adotaram, como puni- ção aos detentos que violam as normas carcerárias, um preparo alimentício intitu- lado nutraloaf (do inglês, pão nutritivo). Sua particularidade fundamental é que todos os ingredientes utilizados neste pão são siste- maticamente escolhidos para que um invali- de o sabor do outro, formulando, assim, uma comida capaz de atender nutricionalmente as exigências metabólicas do ser humano, porém inábil de oferecer qualquer prazer gustativo, uma vez que o sabor é neutro. Entre os ingredientes encontram-se carne e/ou frango moídos, pão de trigo integral, queijo cheddar, cenoura, espinafre, feijão, batata, tomate, leite em pó e uvas passas. Alguns detentos optaram pela greve de fome e outros abriram um processo judicial contra o governo norte-americano, caracterizando como tortura o “método gastronômico de re- educação” adotado pelo sistema carcerário. Fonte: Setti (2014, online). 43G A S T R O N O M I A • U N I C E S U M A R O fato ocorrido no presídio norte-americano é uma forma de ilustrarmos a relação atual do homem com o seu alimento, justificando assim que, para ele, a necessidade de ser bom e belo e não apenas energético é fundamental. A comida está, de fato, atrelada de forma intrínseca à estética. Isso não tem a ver apenas com a beleza, mas os aspectos gerais do preparo que causam uma saciação biológica, mas também sensorial. Isso é uma forma de pensarmos o cerne da profissão do gastrólogo e qual o papel dele em relação ao comensal atualmente. [...] Os chefs modernos devem apresentar o que pensam sobre o comer, e as suas criações devem expressar isso com o máximo de fidelidade possí- vel. Essas “filosofias” – por mais que o termo horrorize os puristas – são modos de se situar diante da natureza (matérias-primas), dos processos de transformação e também das sensações objetivas e subjetivas que pretendem provocar nos clientes (DÓRIA, 2006, p.140-141). C r i a t i v i d a d e e I n o v a ç ã o e m G a s t r o n o m i a S egundo Perullo (2013), esse cuidado em pensar a alimentação como esté- tica não tem relação com um status financeiro, estilo de vida ou definição de uma cozinha elitista e burguesa, tampou- co em acreditar nos “[...] fetichismos alimen- tares ou em pedantismos fundamentalistas, com suas decorrentes manias e obsessões pela gula” (PERULLO, 2013, p. 14). O fundamental é saber que, por meio da experiência alimentar, podemos explorar as relações humanas, afinal, a gastronomia em si se fundamenta na comensa- lidade, ou seja, na socialização ao redor da mesa. Neste jogo de interações, “[...] fazemos o uso da memória, do reconhecimento e a apreciação - que estão ligadas a alguns processos cerebrais” (PERULO, 2013, p.16). Dessa forma, o autor conclui que o paladar pode ser definido como uma interação da mente com o corpo, que se en- trelaçam em um diálogo com o meio ambiente. Essa “filosofia do paladar” fica mais clara quando utilizamoscomo exemplo o vinho e o vasto mundo proposto pelos saberes da enologia. É praticamente impossível listarmos a quanti- dade de rótulos acessíveis no mercado. Mais complicado ainda é discriminarmos a quantidade de aromas, sabores e possíveis adjetivos contidos dentro de uma garrafa e, consequentemente, as inúmeras formas de apreciação possibilitadas pela vivência e cultura de cada indivíduo. A intensidade do sabor e da acidez - pro- priedades não estéticas, posto que são expressões quantitativas e de substâncias mensuráveis - estão estreitamente cone- xas a determinadas propriedades estéti- cas [confronto de perspectivas], como, por exemplo, o equilíbrio, a elegância e o fascínio (PERULO, 2013, p. 85). Essas reações causadas por meio de um gosto ou de um visual considerados estéticos são ainda mais discutidas no ramo das artes, ou seja, a capacidade de uma música, de um quadro ou de uma dança, por exemplo, causar no espectador uma reflexão e uma emoção. O mesmo pode acontecer no mundo da gastronomia, entretan- to, será que podemos equiparar a gastronomia às artes? No ano de 2014, o Instituto Atá encami- nhou à Câmara dos Deputados um projeto que coloca a gastronomia como passível de receber patrocínio por meio da mesma lei que incentiva atividades culturais como música, teatro, artes plásticas, cinema. Isso aconteceria via isenção fiscal por meio da Lei Rouanet. Ou seja, o projeto permite que pessoas e empresas doem ou patrocinem, com dedução no Imposto de Renda, eventos, pesquisas, publicações, criação e manutenção de acervos relativos à gastronomia brasileira (GASTRONOMIA..., 2015, online). 45G A S T R O N O M I A • U N I C E S U M A R Perullo (2013, p. 39) nos coloca uma questão importante para iniciarmos nossa discussão sobre a gastronomia e a arte: “a gastronomia poderia ser a arte do século XXI assim como o cinema foi a arte do século XX?”. Ao abordarmos todas as linhas de pensamento que propõem que o restaurante seja um espaço onde diver- sas linguagens sejam articuladas, notamos que a decoração é mais do que uma ambientação agradável, é um cenário. A música, a iluminação, os aromas do ambiente, e, às vezes, até mesmo projeções audiovisuais, tornam esse espaço um campo de trocas imagéticas, um conceito bem diferente da ideia de restaurante na sua gênese, onde serviam-se apenas simplórios e nutritivos caldos restauradores para viajantes. Por tradição, admite-se que a música e a pintura possam ser uma forma de arte, que o teatro é uma arte, assim como a literatura e o cinema. Por que não a co- zinha? Sua função essencial levou-nos a esquecer que, nas mãos de um grande cozinheiro, ela desperta uma emoção semelhante a de um romance. E se fre- quentemente ela é fonte de satisfação, por que não poderia nos irritar? Ao es- timular, ao mesmo tempo, todos os sen- tidos, a cozinha não deve ser excluída da lista das artes, desde que, por um lado, ela se livre da tradição, que é artesanato e atividade repetitiva, e, por outro, seu intuito seja emocionar. (GAGNAIRE; THIS, 2010, p. 28) Isso tudo se torna plausível quando refletimos o grau de intimidade que envolve o ato de se alimentar: é, acima de tudo, incorporar cultura (FISCHLER, MASSON, 2010). Neste ponto, é notável como a socie- dade atual está disposta a conceder ao cozinheiro o velho status de artista. Não mais aquele artista que se liga ao arte- sanato, isto é, ao conjunto de técnicas transmitidas de forma pessoal através dos tempos, mas ao criador que trans- cende esse terreno cristalino do trabalho manual, situando-se no campo dos que estão “antenados” com as tendências mais profundas da cultura. (DÓRIA, 2009, p. 232) Na literatura gastronômica, encontramos diver- sos críticos e chefs que concordam e discordam dessa ideia do cozinheiro ser uma espécie de artista, cada qual com argumentos bastante contundentes. Porém, certamente não é nosso papel, nessa sequência de estudos, definir se a cozinha entra ou não no âmbito da arte. O que podemos concluir é que, de fato, o que as duas atividades têm em comum é que, tanto o artista quanto o cozinheiro, procuram (ou deveriam procurar) a sua linguagem própria e expressá-la da maneira mais clara possível. Não estamos falando, portanto, dos aspectos mais óbvios, como, por exemplo, uma finalização de prato pictórica e escultural, mas sim do conceito, do C r i a t i v i d a d e e I n o v a ç ã o e m G a s t r o n o m i a estilo, da troca estabelecida entre quem cozi- nha e quem come, tendo, como intermediador dessa relação, a cultura. Torna-se, assim, fun- damental que saibamos desenvolver, dentro da realidade gastronômica, departamentos de pesquisa e desenvolvimento, a fim de promover a investigação: uma busca infindável pelo novo e pelo perfeito. Não é à toa que alguns restau- rantes têm construído cozinhas à parte da área de produção principal, no intuito de praticar a pesquisa e o aperfeiçoamento das propostas gastronômicas. É um longo caminho de estudos, discussões e testes que começaremos a percorrer de maneira mais sistêmica na próxima unidade deste livro. 47G A S T R O N O M I A • U N I C E S U M A R co ns id er aç õe s fi na is D efinir os contornos da gastronomia atual e traçar projeções sobre as tendências a ela inerentes não é uma tarefa fácil. Ao passo que temos a valorização da regionalidade e, portanto, de uma cozinha de origem, observamos a evolução das técnicas e a flexibilização das possibilidades de releitura. Isso significa que temos como desafio profissional entender que o ingrediente é o grande protagonista da cozinha, porém ele não é apenas produto alimentício, mas está inserido em uma rede de significados. Nos mais variados exemplos de restaurantes, seja na Osteria Francescana de Massimo Bottura, na Itália, ou no Maní Manioca de Helena Rizo e Daniel Redondo, no Rio de Janeiro, o que observamos como ponto em comum é que, quanto melhor e mais profun- damente trabalhamos nossas origens, mais universal é a nossa linguagem e, portanto, a um maior público poderemos nos dirigir. Tudo isso acompanhado de uma otimização quase que obsessiva das técnicas vigentes. Dessa forma, embora a gastronomia contemporânea seja definida por uma cozinha inventiva e, às vezes, até mesmo paradoxal, devemos encará-la no seu sentido primário: é, acima de tudo, a cozinha do agora. Uma cozinha que define a sua proposta, detecta as suas possibilidades e adequa suas técnicas da maneira mais pragmática possível, apoiando-se em novas tecnologias. Busca, assim, ser sustentável e criativa ao mesmo tempo, estreitando cada vez mais os vínculos com a biodiversidade e mantendo diálogos constantes na comunidade em que está inserida. Por fim, entendemos que o meio esboça e transforma uma cozinha, assim como uma cozinha também pode transformar seu meio, optando pela utilização de ingre- dientes nativos da sua região, movimentando a economia local e aplicando ao menu um conceito que veio se fundamentando ao longo da história: respeitar o ingrediente é compreender seu papel social, político, ecológico e cultural dentro de uma sociedade. Essa visão holística da cozinha é, certamente, uma das chaves para abrir as portas do futuro da gastronomia. C r i a t i v i d a d e e I n o v a ç ã o e m G a s t r o n o m i a A Fisiologia do Gosto Brillat-Savarin (1755-1826) foi um dos fundadores da gastronomia. Seu livro A Fisiologia do Gosto é considerado, até hoje, uma “certidão de nascimento” para a profissão e, por- tanto, leitura obrigatória de qualquer cozinheiro. Embora