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PSICOLOGIA E SAÚDE JOSÉ LUÍS PAIS RIBEIRO C1 placebo EDITORA JOSÉ LUÍS PAIS RIBEIRO PSICOLOGIA E SAÚDE Titulo: Psicologia e Saúde. 2ª Edição. Outubro de 2010. ISBN: 978-989-8463-04-3. Capa: Ricardo Romão Lisboa: Placebo, Editora LDA. .ÍNDICE PREÂMBULO 1 PRÓLOGO 2 INTRODUÇÃO 5 A Psicologia e Saúde na unidade do corpo e espírito 6 O ser humano enquanto sistema 12 A organização do livro 15 PARTE I – INTRODUÇÃO À PSICOLOGIA E SAÚDE 16 A Psicologia no campo da saúde 16 Perspectiva histórica 16 O interesse da psicologia pela saúde e doenças não mentais 18 Psicologia Clínica, Psicologia da Saúde e Psicologia Clínica da Saúde 18 Psicologias clínicas e da saúde 22 Aspectos novos da psicologia que se pratica no Sistema de Saúde 23 A Psicologia Clínica hoje 25 A saúde e a doença ao longo dos tempos 26 Importância de uma perspectiva ecológica 26 Evolução dos sistemas de saúde 29 História da saúde 31 Evolução do conceito de saúde e doença 31 Período pré-cartesiano 33 Desenvolvimento do modelo biomédico 35 Primeira revolução da saúde 37 A segunda revolução da saúde 40 A terceira revolução da saúde 42 Conceitos principais da segunda revolução da saúde 43 Promoção da saúde 44 Definição de promoção da saúde 45 Promoção da saúde na Europa 46 Estilo de vida – Nascimento e morte do conceito 47 Hipóteses de cenários futuros para a saúde e doença 48 O sistema de saúde no futuro 51 Regresso a uma consciência ecológica da saúde 53 Psicologia da Saúde, saúde e doenças 57 Saúde 57 Doença 61 Estados de doença 63 Relação entre saúde e doença 63 Qualidade de vida 65 Bem-estar subjectivo 66 Saúde, qualidade de vida e bem-estar 67 Qualidade de vida relacionada com a saúde 68 Ligações entre saúde e qualidade de vida 69 PARTE II – ASPECTOS BÁSICOS DA INTERVENÇÃO 71 Comportamento e Psicologia da Saúde 71 História da relação comportamento saúde a doenças 71 O comportamento humano na segunda revolução da saúde 72 Comportamento de prejuízo de saúde como hábito 76 Origem dos hábitos 76 Mudança de hábito 77 Comportamento nas ciências comportamentais 78 Comportamentos/Atitudes 79 Importância de um estilo de vida saudável 80 Comportamento e mortalidade 83 Factores de risco para a saúde 83 Consumo de tabaco 83 Porque fumam as pessoas? 84 Tabagismo e doenças 85 Exercício físico 96 Alimentação 89 Programas de modificação do comportamento 90 Comportamento e necessidades de saúde dos jovens 91 Relações entre comportamentos de saúde 92 Efeitos perversos do aumento da responsabilidade pessoal 93 Os limites da medicina 96 Culpar a vítima 96 Questões políticas geradas pela mudança de conceber o campo da saúde 97 Limites da responsabilidade individual 99 Modelos e teorias 100 Modelos na saúde e doenças 101 Modelo de crenças de saúde 102 Teoria da motivação protectora 105 Teoria da aprendizagem social 106 Teoria da acção racional de Fishbein’s 106 Teoria da acção planeada 107 Teoria do comportamento social de Triandis’ 107 Teoria da acção social 108 Modelo da utilidade de multiatributos 109 Difusão da inovação 110 Modelo transteórico de mudança do comportamento 110 Modelo transteórico 110 Abordagem do processo de acção para a saúde 111 Áreas de intervenção em Psicologia da Saúde 111 Definição de Psicologia da Saúde 112 Divisão tradicional do sistema de saúde 113 Saúde Pública 114 Psicologia da Saúde e Saúde Pública 117 Medicina curativa 120 Funções do psicólogo clínico 120 Áreas de intervenção 121 Promoção da saúde 121 A promoção da saúde na saúde a na doença 123 Promoção da saúde, qualidade de vida e bem-estar 124 Protecção da saúde 126 Prevenção das doenças 128 Grandes projectos de prevenção de doenças 129 Intervenção nas doenças 132 Organização das doenças 133 As doenças crónicas 134 Mal-estar e sofrimento 136 Natureza do sofrimento 137 Os sentimentos acerca da doença 138 Doenças de mau prognóstico 141 O caso Ramon Sampedro 141 Doenças terminais 142 As pessoas querem saber se vão morrer? 143 Reacção psicológica à própria morte 144 Os doentes terminais e os profissionais de saúde 144 Cuidados paliativos e apoio a doentes terminais 144 Psicoterapia com doentes terminais 147 Filosofia do apoio a doentes terminais 147 PARTE III – PSICOLOGIA E DOENÇAS 149 Psicologia da Saúde e índices sanitários 149 Indicadores clássicos do estado da saúde 149 Mortalidade em Portugal 152 Análise comparativa entre países 154 As epidemias em Portugal 156 Epidemiologia 158 Discussão sobre o conceito de epidemiologia 159 Factores de protecção da saúde ou recursos de saúde 161 Factores de risco 161 História dos factores de risco 163 O mito do risco zero 164 Factores de risco e política 165 Limitações da aplicação à saúde da noção de factor de risco 166 Factores de risco, grupos de risco e situações de risco 167 Consequências populacionais das alterações epidemiológicas 170 Consequências populacionais das revoluções da saúde 170 Uma palavra para o meio ambiente 174 Doenças vasculares cerebrais 175 Doença vascular cerebral 175 Acidente vascular cerebral 176 Acidente isquémico transitório 176 Consequências dos acidentes vasculares cerebrais 176 Factores de risco para as doenças vasculares cebebrais 177 Consequências das doenças vasculares cerebrais 177 Intervenção nas doenças vasculares cerebrais 178 Prognóstico nas doenças vasculares cerebrais 179 Consequências sociais 180 Impacto da doença na família 181 Tumores malignos 182 Perspectiva histórica 182 O cancro como doença 112 Factores de risco para o cancro 183 Cura do cancro 185 Cancro em Portugal 185 Tipos de tumor 186 O que há de único no cancro? 187 Variáveis psicossociais associadas ao cancro 188 Consequências psicológicas do cancro 189 Apoio psicológico para doentes com cancro 190 Aspectos a considerar no apoio psicológico 191 Aspectos psicológicos na longevidade à doença 193 Impacto da doença na família 193 Doença cardíaca coronária 194 O sistema circulatório 194 Insuficiência cardíaca 195 Causas precipitantes da insuficiência cardíaca 195 Sintomas de falha do sistema cardíaco 196 A doença cardíaca coronária 196 Factores de risco 197 Tabagismo 198 Obesidade 198 Hipertensão 198 Padrão de comportamento Tipo A 200 Efeitos da alteração do estilo de vida nas DCC 202 Treino de competências de gestão da angina 204 Ajustamento psicossocial às doenças cardíacas 204 Acidentes 205 Doente em contextos médicos 206 Reacção psicológica ao contexto médico 207 Despersonalização 208 Cuidados-de-saúde-centrados-no-doente 209 Informação e comunicação 210 A origem da representação da doença 211 Comunicação médico-doente 212 Colaboração do doente no tratamento 215 O que está em jogo 216 Adesão ao tratamento 218 Teorias de adesão 218 Um modelo desenvolvimental 219 Determinantes psicossociais do empenhamento no tratamento 221 PARTE IV – TEMAS BÁSICOS 223 Stress 223 Apreciação dos stressores 226 Níveis de apreciação dos stressores 227 Diferenças individuais na apreciação e reacção ao stress 230 Tipos de stressores 231 Stress e sistema imunológico 232 Acontecimentos de vida, preocupações e stress 236 Variáveis mediadoras 238 O contexto profissional como fonte de stress 240 Doenças provocadas pelo stress 240 Intervenção psicológica no stress 241 O stress é hereditário? 244 Avaliação em Psicologia da Saúde 245 O psicólogo em contextos de saúde e doença 246 A prática da avaliação psicológica 248 Avaliação psicológica na década de 90 250 O que caracteriza a avaliação psicológica na equipa de saúde 254 A entrevista psicológica 256 Entrevistapsicológica em contextos de saúde 258 Uma novidade fundamental: A avaliação da saúde 258 Técnicas psicométricas ou clinimétricas 259 Avaliação da saúde 261 Avaliação do estado da saúde versus dos resultados de saúde 265 O Medical Outcomes Study 266 Dor 267 Definição de dor 268 Tipos de dor 269 Comportamento de dor 269 Dor orgânica versus psicogénica 270 Teorias sobre a dor 271 Variáveis psicológicas a considerar 271 A avaliação da dor 274 Técnicas de intervenção 275 LÉXICO 279 REFERÊNCIAS 284 1 PREÂMBULO O presente livro constitui uma cópia do que foi publicado na década de 90. Na sua origem estava a tese de doutoramento iniciada na década de 80 e terminada na primeira metade da década de 90. Na época, em Portugal como na Europa, com ligeiro atraso relativamente aos Estados Unidos da América, estavam a publicar-se livros equivalentes (p. ex., J. Ogden de 1996, depois traduzido em Português). Enquanto as versões em edição estrangeira continuaram a publicar-se (o de Ogden publicou este ano a 4ª edição), em Portugal o presente livro não foi reeditado. São livros datados no sentido que focam a psicologia da saúde na sua perspectiva original ampla e globalizante, numa disciplina, a psicologia, que facilmente tende a especializar-se. A reedição do texto de 1998 propõe-se salientar estes dois aspectos: a época em que a psicologia da saúde assumia aquela perspectiva abrangente e a própria perspectiva abrangente que nos parece integradora em vez de fragmentadora. Embora reconhecendo que a especialização, a visão focal, é útil e necessária, não temos dúvidas que é necessário manter uma perspectiva que enquadre e dê sentido a uma psicologia da saúde que sirva de moldura às visões mais parciais, quer as explicativas ou compreensivas, quer à própria investigação. Por outro lado responde a diversas solicitações tanto em Portugal como noutros países de língua Portuguesa, sobre como aceder a este livro. A iniciativa da editora Placebo merece assim todo o nosso apoio e reconhecimento, por facilitar o acesso a um texto que por alguns é reconhecido como um clássico escrito em Português. José Luís Pais Ribeiro 2 PRÓLOGO O livro Psicologia e Saúde que o Professor Pais Ribeiro elaborou destina- se aos alunos da licenciatura em Psicologia, especialidade Psicologia da Saúde. Não é habitual, em Portugal, o professor universitário editar livros destinados aos alunos das disciplinas que lecciona. As razões são múltiplas e variam com a natureza dos cursos. Contudo, trata-se de uma das mais responsáveis actividades dos docentes de qualquer nível de ensino pois se permite que os formandos tenham acesso à opinião escrita do professor que, desse modo, assume pontos de vista e opiniões com frontalidade e sem subterfúgios. Referindo os manuais recentemente elaborados sobre a Psicologia da Saúde, o autor afirma que «este manual constitui uma introdução a esses inúmeros manuais mais ou menos especializados». Contudo, as qualidades científica e pedagógica deste livro vão torná-lo também obrigatório a todos os que pretenderem fazer reflexões e estudos sobre um dos mais actuais campos de conhecimento interdisciplinar, num sector de grande importância social, como é o da Saúde, entendida num sentido lato. Na Introdução, o autor diz-nos de imediato “que se pretende salientar a ultrapassagem da dicotomia corpo espírito inerente à intervenção tradicional que se faz no campo da saúde”. No decorrer do texto, numa perspectiva histórica da evolução do pensamento dominante em cada época, encontram-se os conceitos fundamentais que presidiram às soluções dos problemas relacionados com a doença e com a saúde. A importância da relação dinâmica do homem e dos ambientes em que se desenrola a vida é focada em diversas perspectivas e dela se extrai um conjunto de conceitos fundamentais para a intervenção multiprofissional de quadros clínicos prevalentes nas sociedades modernas. Salienta o regresso a uma consciência ecológica na abordagem da Saúde pela necessidade de dar resposta aos problemas que a medicina biomédica não resolve. Afirma que essa circunstância pretende resolver “uma prática paradoxal: a maioria dos investimentos na saúde, quer económicos quer 3 científicos, são dirigidos para os cuidados médicos apesar de se reconhecer que o que determina a saúde das pessoas são factores que actuam fora do domínio da medicina”. Este paradoxo condiciona uma progressiva aplicação de recursos financeiros na medicina curativa, em todas as sociedades modernas e, contudo, aumenta a insatisfação perante a resposta conseguida. Por isso, o sentido do fluxo, na relação entre os sistemas de saúde e os cidadãos está a ser invertido nos países mais avançados, nos quais a abordagem está a ser centrada na saúde das comunidades, como também se afirma neste livro. A discussão dos conceitos de saúde e doença é apresentada com grande suporte de bibliografia actual e pertinente, permitindo ao leitor uma visão correcta dos planos de observação em que se podem colocar na análise da aplicação desses conceitos. Descreve a valorização dos padrões culturais, dos hábitos e costumes no processo de manter a saúde ou aquisição da doença, o que nos leva à discussão das ciências comportamentais, ao conceito de factor de risco e à responsabilidade individual na preservação da saúde. Necessariamente discute as implicações políticas e sociais destas perspectivas que atribuem papel activo do cidadão na qualidade de vida individual e colectiva. O desenvolvimento de modelos e teorias para “explicar as relações entre o pensamento e comportamento individuais e a saúde e doença”, permitiu delinear processos para aumentar a eficácia de intervenção do psicólogo, abrindo as áreas de intervenção em psicologia da saúde. Estabelece a relação entre Saúde, Qualidade de vida e Bem-estar, numa visão ecológica dos factores intervenientes que relaciona com a promoção da saúde e a prevenção da doença. As implicações destes conceitos na definição de factor de risco, no pensamento epidemiológico e nas consequências das medidas tomadas sobre as variáveis demográficas dão a dimensão das preocupações que se desenham no pensamento do autor. A parte terminal do livro vai focar a relação entre o doente, num contexto médico, nos nossos dias, destacando a progressiva tendência para a cronicidade das soluções conseguidas pelos meios modernos de análise biomédica das patologias. 4 Por esta via, chega-se à análise das situações delicadas que representam o doente terminal e os grandes síndromes como o stress e a dor. Estas situações definem a necessidade de uma acção multidisciplinar em que o psicólogo clínico desempenha um papel fundamental. Saliento o sub-capítulo em que o Prof. Pais Ribeiro aborda a dificuldade de avaliação em psicologia e saúde, pois a especificidade e a multiplicidade das informações que caracterizam cada situação é tão grande que o aleatório representa um dos factores a ponderar na análise dos resultados da intervenção. Penso que este livro tem ainda a qualidade de aparecer num momento decisivo da definição do sentido a dar aos sistemas de saúde em todo o mundo. Assim sendo, será uma das referências necessárias para os que se interessam por essa problemática. Nuno Grande 5 INTRODUÇÃO A Intervenção Psicológica no Campo da Saúde tem sofrido nos últimos 100 anos mudanças notáveis. Se no início a intervenção praticamente não existia, a partir de certa altura começou a participar, primeiro com a sua especialidade, a avaliação, mais tarde intervindo na doença mental e, finalmente, participando globalmente em interacção com todos os profissionais que trabalham nesse Campo. Esta evolução está estreitamenteassociada às mudanças que ocorreram no modo de pensar o Campo da Saúde, assim como às mudanças sociais, políticas e económicas verificadas a partir dos anos 60. Uma das características dessas mudanças na maneira de pensar foi o retorno a uma consciência ecológica. Se a perspectiva ecológica esteve subjacente a quase todas as práticas médicas das civilizações e dos povos antigos, ela foi quebrada com a adopção do modelo científico com predominância da vertente analítica sobre a vertente sintética, esta, por definição, mais sistémica ou ecológica. O título adoptado para este livro, “Psicologia e Saúde” pretende salientar que a Psicologia que se aborda neste livro não se refere à orientação tradicional de uma psicologia que se dedicava ao diagnóstico de doenças mentais, ou que se dedicava ao tratamento ou ao ajustamento no campo da saúde mental. Por outro lado também pretende ultrapassar a Psicologia que ficou expressa no relatório publicado em 1976 pelo grupo que deu início à especialidade de Psicologia da Saúde, como uma especialidade que se aplicava às doenças físicas. Ou seja pretende-se salientar a ultrapassagem da dicotomia corpo espírito inerente à intervenção tradicional que se faz no campo da saúde. Na realidade, desde o início da sua aplicação, na década de 80, a Psicologia da Saúde dedicada à saúde física e a tradicional Psicologia Clínica dedicada à saúde mental, convergiram para, na prática, deixarem de se diferenciar. Expressões como Psicologia Clínica da Saúde pretendem, exactamente, salientar essa aproximação. 6 Por outro lado e no espírito do que ficou conhecido por Segunda Revolução da Saúde, o termo Saúde abrange não apenas as doenças mas principalmente a intervenção a montante, a que se faz com as pessoas que estão saudáveis de modo a reduzir a probabilidade de virem a adoecer. Incluem-se nesta área a Promoção e a Protecção da Saúde e a Prevenção das doenças. O presente livro é destinado aos estudantes universitários que nos seus currículos têm disciplinas que abordam a interface entre Psicologia e Saúde e a psicólogos ou outros profissionais do Campo da Saúde que se interessam pelo comportamento humano aplicado à saúde e às doenças. Ele tem intenções didácticas e faz, desde uma abordagem genérica à origem e evolução dos conceitos, até temas genéricos mais específicos e escolhidos como importantes. A expansão que este domínio conheceu nos últimos anos levou à publicação de inúmeros manuais de aplicação, a praticamente todos os domínios e níveis na saúde e nas doenças. Este manual constitui uma introdução a esses inúmeros manuais mais ou menos especializados. A Psicologia e Saúde na unidade do corpo e espírito Como acontecimento não normativo (Baltes, Reese, & Lipsit, 1980), a Saúde é um factor decisivo no desenvolvimento humano, um domínio fundamental na vida das pessoas ao longo de todo o ciclo de vida. Acompanha o desenvolvimento humano da concepção à morte. Para Bronfenbrenner e Crouter (1983), “o desenvolvimento humano envolve a mudança, durante o ciclo de vida, dos padrões de comportamento ou de percepção, resultantes da interacção, entre as características biológicas do indivíduo em desenvolvimento e as do meio ambiente onde vive” (p. 359). Ao considerar a Saúde do ponto de vista do desenvolvimento humano, dois processos assumem uma posição importante: os processos de desequilíbrio e os processos homeoréticos ou heterostáticos. Os primeiros referem-se à estimulação que o organismo deve receber, os segundos às reacções adaptativas. A psicologia do desenvolvimento tem conceptualizado o modo como as mudanças ocorrem no ser humano e, simultaneamente, o modo como se podem influenciar essas mudanças. Por exemplo, Piaget é um dos autores que assume uma perspectiva sistémica do desenvolvimento humano. Ao referir-se ao desenvolvimento mental considera que ele depende dos 7 seguintes factores: maturação, experiência física, experiência lógico- matemática, experiência e transmissão social e equilibração. Este último factor é o que dá uma perspectiva sistémica à teoria. Com efeito, a equilibração, é o mecanismo que regula a interacção dos restantes factores e que garante que eles se desenvolvam de forma equilibrada. Uma nova aquisição, por exemplo, a maturação do sistema nervoso facilita, ou precede, a aquisição de experiência física que, por sua vez, se repercute em experiência lógico matemática mais complexa e assim sucessivamente, ocorrendo, então, desenvolvimento pelo estabelecimento de equilíbrios em patamares cada vez mais complexos. O desenvolvimento não ocorre porque um dos factores se desenvolve isoladamente, mas sim porque todos os factores se desenvolvem equilibradamente. O desenvolvimento que se manifesta como equilíbrio temporário, em patamares cada vez mais complexos, diz-se homeorético (ao invés de homeostático). Homeoresis é uma palavra de origem latina, composta por homéo que significa constante, ou o mesmo e rhéo, que significa fluxo, ou corrente contínua. Assim, ao invés da homeostasia que defende a ideia de um estado constante, a ideia de homeoresia defende a de uma mudança constante, de um fluxo constante. Num ponto de vista dinâmico, implícito na ideia de desenvolvimento, deve- se considerar que o organismo humano está em entropia ou em desordem e que, através das propriedades que são próprias dos sistemas vivos, tende a organizar-se e a reconstruir-se, para novamente entrar em desordem. Este processo é inerente à vida e tem-se mantido ao longo dos últimos biliões de anos. A evolução humana, como a dos organismos em geral, resulta de interacção do indivíduo com o meio ambiente e, devido às propriedades de sistema aberto dos organismos vivos – auto-organização e auto-construção – há um processo constante de estabelecimento de equilíbrio entre os diversos componentes do sistema. Como já foi referido, o processo de estabelecimento de equilíbrio não é um processo homeostático. A manutenção de um estado estável – a homeostasia – é evidente e essencial, em determinados sistemas biológicos mais simples, tais como o nível do ph ou da temperatura corporais. Vários autores têm, no entanto, achado o conceito de homeostasia insuficiente para explicar o equilíbrio dinâmico inerente ao comportamento e desenvolvimento de sistemas mais complexos. Em vez do conceito de homeostasia proposto por Cannon (1936), Waddington (1968) propõe o 8 conceito de homeoresia e Selye (1974) o de heterostasia1. Ambos os conceitos significam a restauração de equilíbrio, já não num mesmo nível, ou num nível absoluto, mas sim em níveis cada vez mais complexos, ou mais adequados à nova situação: são conceitos desenvolvimentais por excelência e ecológicos, ao invés de estáticos. Homeoresia implica aumento de complexidade. O conceito de homeoresia foi apresentado por Waddington para designar sequências de desenvolvimento. Uma reacção homeorética tenderia a puxar para a via apropriada de desenvolvimento, qualquer organismo que, devido a uma qualquer influência externa, se tivesse desviado dela; o desenvolvimento processava-se através de uma sequência de creodos que funcionavam como marcadores do caminho a percorrer (Waddington, 1968). Nesta perspectiva embriológica o desenvolvimento percorreria uma sequência prédeterminada, num calendário preciso. A noção de creodo salienta a importância da trajectória do desenvolvimento, em vez do estado final e a homeoresia salienta a constância de uma trajectória, um fluxo, em vez de um estado (Waddington, 1968). O desenvolvimento pode ser conceptualizado de modo quantitativo ou qualitativo. Numa perspectiva quantitativa considera-se que, até certa altura, as mudanças tendem a ser incrementais, resultando em aumento da capacidade funcional para, a partirde certo momento, esta tender a diminuir. Numa perspectiva qualitativa reconhece-se que há mudança na qualidade da produção mas não na quantidade: o sistema, ou o indivíduo, tende a produzir de maneira diferente e não mais ou menos. A sociedade em geral, foi dominada por modelos quantitativos até há bem pouco tempo. Subjacente a esses modelos estava a ideia que o crescimento era infindável, quer se referisse ao crescimento económico das sociedades, ao populacional, à produção industrial, quer se referisse à prática desportiva: seria sempre possível correr cada vez mais rápido, saltar cada vez mais alto, ou lançar mais longe. A emergência da consciência ecológica tende a fazer substituir os modelos quantitativos por modelos qualitativos. 1 Entre os autores que defendem a perspectiva sistémica não há concordância quanto ao significado dos conceitos que utilizam. Por exemplo, enquanto Nicholas e Gobble (1990) utilizam o termo heterostesia para se referirem a desregulação conducente a doença, como sinónimo de declínio, Selye (1974) define-o como o estabelecimento de um novo estado de equilíbrio, alcançado por força de acções que estimulam e aumentam as capacidades, de maneira a elevar o nível de resistência do organismo. 9 Referindo-se ao ser humano, era suposto que o decrescimento fosse o estado natural desde muito cedo, normalmente após a década dos 20-30 anos. Por exemplo, quando se estudava a inteligência humana, considerava-se que esta crescia até cerca dos 25 anos e depois diminuía de forma constante. No entanto, investigações recentes desmistificaram esta perspectiva. Por exemplo, Schaie (1990) numa investigação longitudinal que durou sete anos, no âmbito do Seattle Longitudinal Study, no qual foi avaliado o nível de funcionamento intelectual de indivíduos que no final desse período tinham entre 60 e 81 anos, concluiu que “dependente do grupo etário, entre 60 e 85% de todos os participantes permaneceram estáveis ou aumentaram as suas capacidades específicas” (p. 296). Este tipo de resultados alerta para que o desenvolvimento não termina no primeiro quarto do ciclo de vida, podendo prolongar-se até ao fim da existência. O senso comum tende a aceitar que, se tal desenvolvimento é possível para a dimensão psicológica, não o é para a dimensão física. Ou seja, se alguns processos psicológicos podem aumentar em complexidade durante toda a vida, há tendência para aceitar que a nível físico o que predomina são os processos decrementais: o idosismo (conceito pejorativo) tende a aceitar o processo de envelhecimento como um processo fatal. No entanto, a investigação não vai no mesmo sentido e o padrão verificado para o funcionamento intelectual aplica-se a dimensões não intelectivas. Por exemplo, Spirduso e MacRae (1990) referem que, num estudo do National Center for Health Statistics dos Estados Unidos, em que 38,3 milhões de indivíduos foram avaliados quanto à sua capacidade de trabalho em diferentes situações, verificou-se que, entre os 55 e 74 anos, aumenta a percentagem de indivíduos que têm dificuldades nas diferentes situações, mas que 58% deles não tinha dificuldade em nenhuma delas. De uma maneira geral e referindo-se à dimensão física, a investigação constata que os idosos (grupos entre os 50 e os 79 anos) respondem positivamente à quantidade de estimulação (Cononie, Graves, Pollock, Phillips, Summers, & Hagberg, 1991; Cress, Thomas, Johnson, Kasch, Cassens, Smith, & Agre, 1991; Perri & Templer, 1985; Peterson, Peterson, Raymond, Gilligan, Checovich, & Smith, 1991). Segundo Nicholas e Gobble (1990), o que parece ocorrer com o passar do tempo é uma dificuldade de restabelecimento de equilíbrios e um aumento de processos desregulatórios, característico da senescência. Como conclusão deste tipo de investigação, parece que a estimulação, a prática, mantém os sistemas em níveis óptimos de funcionamento: no caso das investigações referidas, a diferença era notória entre os indivíduos que se mantinham inactivos e os activos. A estimulação, a carga, provoca um desiquilíbrio a que um processo de adaptação responde, restaurando o equilíbrio num nível mais adequado, em resposta aos estímulos. 10 O conceito de Promoção da Saúde tem implícita a ideia que esta pode desenvolver-se ao longo do ciclo de vida e que esta evolução é qualitativa. No ciclo de vida humano (e nos sistemas vivos em geral), há mudanças constantes nas possibilidades e no funcionamento dos diversos componentes dos sistemas de vida: finalmente, estas mudanças manifestam-se de modo muito diferente nos vários sub-sistemas que suportam a vida, de tal modo que nuns casos são incrementais, noutros se mantém e, noutros, são decrementais. A Promoção da Saúde pressupõe a ideia que a saúde é um processo em vez de um estado, processo dependente do jogo de estimulação-reacção constante do organismo. Quererá isto dizer que, se devidamente estimulado, o indivíduo nunca morre? Admitir tal hipótese seria contrariar os princípios ecológicos e sistémicos assumidos. Mesmo supondo que Matusalém existiu e viveu mais de 900 anos, ele acabou por morrer. Os seres humanos colocam questões acerca da imortalidade do espírito que remetem para o foro da fé, da religião, mas não questionam a imortalidade do corpo. Aceitar a morte como inerente ao processo de desenvolvimento é essencial para o próprio bem-estar do indivíduo: tal perspectiva é parte integrante, por exemplo, da teoria de desenvolvimento humano de Erik Erikson (1968). A Promoção da Saúde, conceptualizada como desenvolvimento, não se propõe imortalizar o corpo, não se propõe, sequer, dar mais anos à vida, embora a investigação demonstre claramente que um estilo de vida saudável junta mais anos à vida. O elemento essencial consiste, sim, em dar mais vida aos anos. As mudanças que se podem considerar desenvolvimentais tendem, portanto, a ser mais qualitativas do que quantitativas: elas variam, quer quanto ao momento em que ocorrem, quer quanto à sua natureza. Embora haja tendência para considerar como sinónimos desenvolvimento e incremento, o desenvolvimento, ao invés de ser considerado como mero incremento, deve ser visto como uma situação de equilíbrio, em patamares cada vez mais complexos: desenvolvimento é, essencialmente, aumento de complexidade. O equilíbrio consiste na forma mais económica de interacção entre os diversos sub-sistemas em presença (biológicos, psicológicos, sociais, ambientais, etc.). O desenvolvimento deve ser concebido como a restauração do fluxo de desenvolvimento, da homeoresia entre todos os componentes do sistema de vida, quer os pessoais, quer os ambientais e sociais, ao longo do ciclo de vida. A interacção com o meio ambiente proporciona aos organismos uma quantidade de estimulação que, se adequada, desencadeia processos de adaptação e promove o desenvolvimento. Diversos autores têm salientado esta 11 necessidade de estimulação adequada para que exista desenvolvimento, psicológico ou físico. Na área do desenvolvimento cognitivo, por exemplo, a noção de Zona de Desenvolvimento Próximo (ZDP), de Vigotsky (1978) e da sua escola sócio-histórica ou cultural, defende e demonstra que a estimulação intelectual adequada (dentro de uma zona que denomina ZDP) permite ao indivíduo aumentar a sua capacidade cognitiva. No domínio corporal, Harre (1982) define um processo semelhante: referindo-se à utilização de estímulos (ou cargas) com vista a promover o desenvolvimento, a capacidade física, processo a que chama “sobrecompensação”. Este autor define adaptação como “ajustamento funcional, dos sistemas psicológicos e físicos, a um padrão de realização mais elevado e a condições externas específicas, através da influência de cargas externas” (p. 54). Selye (1974),ao explicar a teoria do stress, apresenta o Síndrome Geral de Adaptação (SGA) como um processo essencial à vida, numa perspectiva muito semelhante à do autor anterior, embora aplicada a contextos diferentes. O SGA é uma resposta não específica (enquanto a referida por Harre é específica) a um estímulo, que inclui três fases: reacção de alarme, fase de resistência e fase de esgotamento. A heterostasia – restabelecimento do equilíbrio num novo patamar – depende do jogo entre estas três fases, da escolha da intensidade dos estímulos ou cargas e é, como o próprio Selye refere, um processo activo do organismo. A ausência de estimulação, tal como a estimulação exagerada provocam dano e conduzem à morte. Utilizaremos frequentemente os termos “sistémico” e “ecológico”. O termo “ecologia” refere-se, grosso modo, às interrelações entre os organismos e o seu meio ambiente. Embora este último seja um termo da moda, em psicologia existe uma área designada por “psicologia ecológica”. A psicologia ecológica, é uma sub-área da psicologia ambiental, que foca, particularmente, a actividade humana que ocorre num período de tempo e num espaço determinados (Stokols, 1978). Os princípios que lhe estão subjacentes são os dos modelos sistémicos. Com raízes na biologia, o paradigma ecológico estendeu-se a todas as disciplinas, fornecendo um quadro de referência que facilita a compreensão da natureza das relações das pessoas com o seu meio físico e sociocultural (Stokols, 1992). Segundo este autor, uma perspectiva ecológica da saúde e da promoção da saúde implica alguns princípios, a saber: a) uma situação conducente à saúde e bem-estar é influenciada por inúmeros factores, físicos (p. ex., geografia, arquitectura e tecnologia), sociais (p. ex., cultura, economia e política), pessoais (p. ex., biologia, psicologia); b) a análise da saúde e da promoção da saúde deverá reflectir a complexidade multidimensional dos ambientes humanos, descritos em 12 termos dos seus componentes físicos e sociais, tanto quanto às suas qualidades objectivas como às suas qualidades percebidas, imediatas ou a longo prazo, cada uma por si e em interacção umas com as outras; c) tal como os ambientes podem ser descritos em vários níveis, também os indivíduos devem ser vistos em vários níveis de agrupamentos, do indivíduo, família, pequeno grupo, organizações, até aos grandes aglomerados populacionais, recorrendo a várias metodologias (e.g., exame médico, questionários, observações comportamentais, registos do ambiente, análises epidemiológicas); d) a perspectiva ecológica incorpora os conceitos derivados da teoria dos sistemas. Uma orientação ecológica implica considerar, simultaneamente: nível de suporte social (ou seja, ligações pessoais próximas), estratégias para lidar com a vida do dia-a-dia (ou seja, grau de racionalidade, flexibilidade, expectativas, planificação, etc.), nível de empenhamento (nível de continuidade, coesão, controlo) e nível de identidade pessoal, na interacção com o contexto cultural, ambiental, histórico e social (Stokols, 1992). O ser humano enquanto sistema Outro grande componente do bloco ecológico é o homem cuja composição e organização se passa a explicar de seguida. Ford (1987, 1990) propõe um modelo sistémico, aplicado à compreensão do homem e das suas relações com o meio, que tem, subjacente, duas proposições básicas: a) o ser humano é um sistema auto-organizado; b) o ser humano é um sistema auto-construído. A estrutura física e, a organização dos sistemas vivos, torna possível quatro conjuntos de funções: a) funções biológicas – crescimento; manutenção; operação e reparação da estrutura biológica; produção de energia. b) funções transaccionais – troca de materiais essenciais para o funcionamento biológico; movimento do corpo e outros processos de troca de energia; recolha e transmissão de informação. c) funções excitatórias – que adaptam a quantidade, frequência, ou intensidade da actividade do sistema para ir ao encontro das exigências do meio. 13 d) funções de governo – organização e coordenação do sistema (i.e., direcção controlo e regulação do comportamento; processamento e armazenamento de informação). Estas funções, que são garantidas por vários sub-sistemas – biológico, transaccional, excitatório e de governo – aplicam-se, também, ao sistema humano e, são todos importantes para a acção individual. Todos estão em interacção contínua uns com os outros e com o meio, de uma forma dinâmica. No sub-sistema biológico, que garante as funções biológicas, identificam- se todas as estruturas constituintes do organismo humano (sistema circulatório, sistema músculo-esquelético, sistema nervoso, sistema digestivo, sistema endócrino, sistema respiratório, entre outros) concebidas, tanto isoladamente como em interacção. Deficiente funcionamento destas estruturas, originam fadiga e baixa no ritmo de acção: determinados contextos são exigentes relativamente à capacidade de movimentação. No mundo moderno, a consciência ecológica emergente, exige uma nova forma de relacionamento do homem com a natureza, apelando para uma maior disponibilidade e mobilidade do sistema biológico. O stress afecta estas estruturas provocando danos que podem conduzir à morte. No sub-sistema de governo, que garante as funções de governo, identificam-se três processos (Ford, 1987): a) processos directivos – organizam e elaboram cognições que representam as consequências desejadas e emitem sinais para o resto do sistema, de modo a coordenar e organizar a actividade que conduza o indivíduo para essas consequências; b) processos reguladores – avaliam em que grau a pessoa atingiu, está em vias de atingir, ou caminha para a consecução de resultados desejados, assim como o grau em que os recursos disponíveis foram, são, ou deverão ser utilizados para atingir certos fins socialmente apropriados, adequados consoante a situação e com eficiência. Este processo pode levar à modificação dos objectivos ou a definir novos objectivos. c) processos de controlo – são responsáveis pela avaliação das representações cognitivas, pela construção das consequências desejadas e pelo estabelecimento de planos adequados para atingir os fins perseguidos e activados pelos processos directivos, tendo em conta as limitações impostas pelos processos reguladores. No sub-sistema transaccional identificam-se três conjuntos responsáveis pela acção, correspondentes aos três tipos de recursos de que os sistemas 14 vivos necessitam para manter o funcionamento corrente e para conseguir novas capacidades funcionais: a) material – que lida com a troca de materiais (i.e., comer, beber, respirar, excretar); b) energia – que lida com o movimento do corpo, com a manipulação do meio e outros processos de troca de energia (i.e., andar, correr, segurar, bater, lançar, levantar, carregar, usar ferramentas); c) informação – que lida com a troca de informação com o meio (i.e., ver, ouvir, tocar, experimentar, cheirar, falar, escrever, gesticular, sorrir). No sub-sistema excitatório, que garante as funções excitatórias identificam- se três processos: a) processos de activação energética – lidam com a variação do nível de vigor e esforço necessários para a acção, em função das circunstâncias exigidas pelo meio e das mudanças decididas nos sistemas directivos. A actividade do dia-a-dia exige variações sensíveis no nível de activação; b) processos atencionais – são responsáveis pela variação nos níveis de consciência e de concentração. Actuam variando as sensações, as percepções e as cognições, fornecendo mais ou menos energia para a realização das tarefas, filtrando o “ruído” e amplificando o “sinal” na direcção adequada. Os processos atencionais estão intimamente ligados ao sub-sistemade governo e por isso têm um papel particularmente importante; c) processos emocionais – são processos especializados que ajudam a regular o comportamento em diferentes condições do meio. Por exemplo, a raiva fornece energia à acção, de tal modo que, se pode lidar mais eficientemente com os obstáculos para atingir os objectivos. A tristeza e a depressão, por outro lado, inibem a actividade de tal modo que pode-se deixar de perseguir os objectivos propostos. A culpa pode servir as mesmas funções para os fins considerados inaceitáveis. Emoções positivas, tais como interesse, satisfação e esperança, promovem comportamentos eficazes, na medida em que, fornecem energia para a procura de novos objectivos ou para manter os actuais. As emoções são, em geral, adaptativas. Concluindo, podem-se conceber quatro sub-sistemas que caracterizam o ser humano: biológico, excitatório, de governo e transaccional. Estes sub- sistemas, interdependentes, garantem um conjunto de funções que resultam em acção, em contextos que podem ser concebidos em diversos níveis. 15 A organização do livro O livro está organizado em quatro partes. A primeira parte introduz a Psicologia e Saúde, fazendo referência ao conceito, à legislação que define o seu campo de acção em Portugal, a interpretação que é feita à interface da Psicologia e Saúde com os contextos tradicionais de saúde. Seguidamente apresenta-se uma perspectiva histórica da saúde e das doenças, para se compreender porque é que no virar do milénio se chegou a esta Psicologia e Saúde. Finalmente abordam-se alguns conceitos básicos. Na segunda parte aborda-se a relação entre comportamento saúde e doenças, os modelos principais que têm sido desenvolvidos para compreender a relação entre Psicologia saúde e doenças e a intervenção que deve ser considerada nos diversos contextos de saúde e de doença. Na terceira parte abordam-se os indicadores sanitários, epidemiologia e factores de risco e de recurso de saúde, assim como as principais causas de mortalidade. Descrevem-se as quatro principais causas de mortalidade os factores de risco que lhes estão subjacentes e pistas para a intervenção de psicólogo. Seguidamente discute-se o papel da adesão dos indivíduos ao tratamento. Na quarta parte abordam-se três temas básicos que são comuns às doenças e à saúde. Apresenta-se, ainda, um léxico com os termos mais importantes e as referências bibliográficas que são referidas ao longo do livro. 16 PARTE I – INTRODUÇÃO À PSICOLOGIA E SAÚDE A psicologia no campo da saúde Na década de 70 ocorreu uma mudança radical no modo dos políticos e dos cientistas pensarem a saúde, dando origem ao que ficou conhecido por Segunda Revolução da Saúde (Michael, 1982; Richmond, 1979). Esta revolução teve duas características essenciais: (a) passou a centrar-se sobre a saúde ao invés de sobre a doença e, (b) reconheceu que, nos países desenvolvidos, o comportamento humano era a principal causa de morbilidade e mortalidade. Foi no contexto desta mudança radical que emergiu a Psicologia da Saúde. A Psicologia da Saúde define-se como “domínio da psicologia que recorre aos conhecimentos provenientes das diversas áreas da psicologia, com vista à promoção e protecção da saúde, à prevenção e tratamento da doença, à identificação da etiologia e diagnóstico relacionados com a saúde, com as doenças e disfunções associadas, à análise e melhoria do sistema sistema de cuidados de saúde e ao aperfeiçoamento da política de saúde (Matarazzo, 1982, p. 4). Nesta definição de Psicologia da Saúde identificam-se quatro objectos ou objectivos diferenciados – promoção, protecção, prevenção e tratamento – e dois domínios distintos – saúde e doenças. Perspectiva histórica Formalmente, a origem da Psicologia da Saúde remonta à década de 70. Em 1973, nos Estados Unidos da América, foi criada no seio da American Psychological Association uma task force on health research, com o intuito de estudar “a natureza e a extensão da contribuição dos psicólogos para a investigação básica e aplicada sobre os aspectos comportamentais nas doenças físicas e na manutenção da saúde” (APA task force on health research, p. 263). Em 1976 publicavam um relatório sobre as relações entre a psicologia e os contextos tradicionais de saúde e doença, propondo orientações doutrinárias para a área em estudo. Este relatório constituiu o embrião da nova área da psicologia que ficou 17 conhecida por Psicologia da Saúde. Em 1978, criou-se a Divisão de Psicologia da Saúde da American Psychological Association (Divisão 38) que, a partir de 1982, fez sair o primeiro número do seu periódico – Journal of Health Psychology. Depois deste inúmeros jornais especializados aparecem, quer publicados pelas divisões nacionais de Psicologia da Saúde quer por editoras. Na Europa surge o Psychology & Health, até mais recentemente o Psychology Health & Medicine, ou ligados a domínios específicos como o Psycho-Oncology. Por esta época, movimento semelhante ocorria na Europa. O Regional Office for Europe da Organização Mundial de Saúde, sediado em Copenhaga, publica em 1984 um documento da autoria da European Federation of Professional Psychologists Association, que esclarece a contribuição da psicologia para a saúde. Em Portugal, um artigo de Pereira (1980) aborda a relação entre comportamento, saúde e doenças e, durante a década, outros artigos são publicados sobre o tema (D’Almeida, 1985; Ribeiro, 1989). No seio da Associação dos Psicólogos Portugueses (APPORT) cria-se uma divisão dedicada à Psicologia da Saúde e publica-se uma colectânea de artigos sobre o tema; a partir de 1992 a Análise Psicológica publica vários números temáticos sobre Psicologia da Saúde; organizam-se reuniões científicas, quer por iniciativa da APPORT, quer das escolas de formação, em 1994 tem lugar o Primeiro Congresso Nacional de Psicologia da Saúde com a participação organizativa de elementos de todas as escolas de psicologia do país. Em 1995 cria-se a Sociedade Portuguesa de Psicologia da Saúde (SPPS), sociedade científica baseada nos organizadores do Primeiro Congresso de Psicologia da Saúde. Em 1997 organiza o 2º Congresso Nacional de Psicologia da Saúde que contou com a presença da presidente da divisão de Psicologia da Saúde da American Psychological Association e com a presidente da The European Health Psychology Society. A SPPS edita e apresenta na abertura do congresso o livro de actas que engloba parte substancial das comunicações apresentadas. O interesse da Psicologia pelos ambientes tradicionais de saúde e doença é paralelo ao desenvolvimento da consciência acerca do papel do comportamento na saúde e nas doenças mais comuns, área de interesse conhecida como Medicina Comportamental. Nesta área surgiram títulos especializados de que é exemplo, o Journal of Behavioral Medicine, cuja publicação se iniciou em 1978 editado pela Academy of Behavioral Medicine dos Estados Unidos da América, enquanto outros periódicos mudam de nome para se adaptarem às novas perspectivas, caso do Journal of Human Stress que passa, em 1988, a chamar-se Behavioral Medicine. 18 O interesse da psicologia pela saúde e doenças não mentais Uma questão interessante a colocar é porquê o aparente interesse súbito da psicologia pelas áreas tradicionais da saúde? Segundo Millon (1982), desde os primórdios da psicologia havia exemplos de colaboração entre os domínios médicos e psicológicos: no final do século XIX são conhecidas as colaborações de Wundt com Kraepelin, nos EUA e de Heymans com Weirsma, na Europa, embora estas colaborações focassem primordialmente as psicopatologias. Já dentro do século XX esboçaram-se relações institucionais entre a Psicologia e a Medicina: em 1911, na reunião anual da American Psychological Association,houve encontros formais entre psicólogos e médicos com o intuito de discutir a participação dos profissionais de psicologia nos contextos tradicionais de saúde e doenças. Apesar destas tentativas, as relações entre os dois domínios mantiveram-se incipientes até ao final da década de 70, concluindo o relatório da APA task force on health research (1976), que os psicólogos americanos não se sentiam atraídos para as áreas das doenças físicas e da saúde. Subitamente, na década de 80 verifica-se uma explosão do interesse dos psicólogos pela área. O que é que aconteceu que provocou tal mudança? Belar, Deardorff e Kelly (1987) enumeram algumas das razões possíveis para este interesse: a) fracasso do modelo biomédico na explicação das doenças e da saúde; b) crescimento da preocupação com a qualidade de vida e com a prevenção da doença; c) mudança da atenção dos profissionais de saúde das doenças infecciosas para as doenças crónicas, com o reconhecimento do papel fundamental do estilo de vida; d) maturidade da investigação nas ciências comportamentais; e) aumento dos custos dos cuidados de saúde e procura de alternativas aos cuidados de saúde tradicionais. Psicologia Clínica, Psicologia da Saúde e Psicologia Clínica da Saúde Etimologicamente o termo “clínico” tem origem no latim clinicus, emprestado do grego Klinicos e significa “o que visita o doente na cama”, por sua vez com origem na palavra klinein que significa “estar deitado”. Segundo Mucchielli e Mucchielli (1969) o termo, com aplicação mais 19 antiga na medicina, significa estar à cabeceira do doente salientando, simultaneamente, um atendimento personalizado e prático. Na psicologia as origens do significado do termo são diferentes. No final do século passado, Witmer apresentou um novo método de investigação e instrução que designou por Psicologia Clínica (Garfield, 1965). O termo clínico sublinhava a função prática do psicólogo em oposição ao que era a prática tradicional de então que era de laboratório. Por esta altura a expressão Psicologia Clínica é também utilizada por Freud numa carta escrita a Fliess. Como explicam Ribeiro e Leal (1996) a preocupação dos pioneiros da Psicologia Clínica visava predominantemente as crianças deficientes. Já dentro do século XX a Psicologia foi-se generalizando a outras disfunções, nomeadamente às dos indivíduos com ferimentos cerebrais. Entre as Primeira e Segunda guerras mundiais, o desenvolvimento de técnicas de avaliação psicológica e a afirmação dos psicólogos como os grandes, aliás os únicos, especialistas nessa função, arrastou os psicólogos para a área de sua maior competência, a avaliação psicológica que, para os menos informados, por vezes se tende a identificar com a função principal do psicólogo. No final da Segunda Guerra Mundial a Psicologia Clínica desenvolve-se no auxílio às vítimas da guerra. Data, aliás de 1947, o primeiro programa significativo de formação nesta área desenhado por Shakow, na época presidente do Committee on Training in Clinical Psychology da American Psychological Association (Garfield, 1965). A Psicologia Clínica começava a afastar-se do que era a sua zona de segurança – a avaliação psicológica – e começava a desenvolver e a implementar modelos de intervenção baseados na ciência psicológica. A Psicologia começava realmente a aplicar o que verdadeiramente se pode chamar o método clínico e o raciocínio clínico. Segundo Isselbacher, Adams, Brawnwald, Petersdorf e Wilson (1980), o método clínico é idêntico ao método científico, começando com dados de observação que sugerem uma série de hipóteses que depois são examinadas à luz de novas observações, algumas das quais são feitas na clínica e outras no laboratório. Finalmente, chega-se a uma conclusão que em ciência se denomina teoria e em medicina diagnóstico operacional. Godman (1991) explica que o raciocínio clínico se inicia numa investigação das queixas através da análise da história e da observação. Num segundo momento recolhe dados a partir de técnicas de diagnóstico apropriadas em termos de utilidade, validade e fidelidade. Depois integra 20 os dados recolhidos nas duas fases anteriores de modo a conhecer adequadamente o estado do sujeito. Em quarto lugar estima os custos e benefícios da necessidade de realizar mais testes ou de iniciar o processo de ajuda. Finalmente as várias opções são discutidas com o sujeito e dá-se início ao plano terapêutico. A Psicologia Clínica instalava-se e ganhava estatuto nos hospitais psiquiátricos onde os psicólogos se estabeleciam com vigor. Shakow (1975) definia Psicologia Clínica como “área de conhecimento e de habilidades que visa ajudar as pessoas com alterações comportamentais ou perturbações mentais a alcançar modos mais satisfatórios de ajustamento pessoal ou de auto-expressão” (p. 2376). Entretanto, a evolução dos sistemas de saúde, o desenvolvimento de medicamentos que controlavam o comportamento dos indivíduos e as críticas ferozes ao modelo de internamento, tornaram obsoletos os hospitais psiquiátricos. Estes tornaram-se serviços de psiquiatria a par de outros serviços em hospitais gerais e os hospitais psiquiátricos começaram a desaparecer. Os profissionais que trabalhavam com a doença mental começaram a ser solicitados para ajudar pessoas com doenças não mentais mas com problemas de adaptação à sua doença, às sequelas da doença, ou outras equivalentes. É nesta época que emerge a Psicologia da Saúde. De então para cá, nos Estados Unidos da América, na Europa e um pouco por todo o mundo, a Psicologia da Saúde tem-se desenvolvido rapidamente e emprestado uma nova e interessante dinâmica não só à Psicologia mas também ao Campo da Saúde em que está implementada ou se tenta implementar. De facto, para lá da perspectiva da Psicologia como “ciência da saúde, que contribui para uma melhor compreensão dos factores envolvidos na saúde e na doença” (McIntyre, 1994b, p. 19), é de destacar a Psicologia como profissão de saúde. Se esta perspectiva é clássica no que concerne especificamente ao psicólogo como técnico de saúde mental não o é, de modo nenhum, para uma saúde que se pretende geral e preze o papel dos próprios indivíduos e das comunidades nos seus estados de saúde e qualidade de vida, bem como de muitas das suas formas de ser e estar doente. Esta é, aliás, uma das grandes novidades que a legislação que define o estatuto e funções do psicólogo clínico traz. Diz este documento que o psicólogo clínico “é o profissional habilitado com o grau de especialista que desenvolve funções científicas e técnicas no campo da saúde”, ou seja, desaparece a palavra mental. Então, se desde a Segunda Guerra Mundial a Psicologia Clínica se dirigia essencialmente às doenças mentais, a emergência da Psicologia da Saúde, visando, no início, essencialmente as doenças físicas, empurrou estes dois 21 grupos para uma aproximação, visto que o que as separava deixava de ter sentido – por um lado a dimensão física e por outro a mental. Neste sentido vemos as posições de Milon e de Fox. O primeiro defendia que a Psicologia Clínica e a Psicologia da Saúde fossem consideradas como apenas uma, dado que, “clinical psychology was misguided in its evolution when it followed a dualistic mind-body model and there by itself to ministering to the ‘mentally’ disordered. Health psychology came into being in great measure as an antidote to the deficits and imbalance this created” (Millon, 1982, p. 9). Fox num texto com um título sugestivo – The need for a reorientation of clinical psychology – defendia que: we devoted 90% of our efforts serving the needs of the 10%-15% of the population that suffers from diagnosable mental illness. (...) If psychology is to become a true health profession it must greatly expand its concernswith general health issues. Psychologists should be concerned not only with helping people to cope with anxiety or emotional disturbances, but also with helping people to cope with such physical health problems as chronic illness, impending surgery, heart attacks, unhealthy life-styles, and so forth. If clinical psychology were defined as the profession devoted to enhancing the effectiveness of human coping skills, the profession then should be concerned with all human functioning and the ability to cope with all types of health conditions (Fox, 1982, p. 1052). Estava-se no início da Psicologia da Saúde. A past presidente da divisão 38 – Health psychology – afirmava em 1987 “obviously, clinical health psychologists engage in the same broad range of functions as more traditional clinical psychologist” (Belar, Deadorf, & Kelly, 1987, p. 8). Ou seja, a partir da década de 70, a intervenção no Sistema de Saúde em geral e no de Cuidados de Saúde em particular e a evolução seguinte, que consistiu em fechar os tradicionais hospitais psiquiátricos e criar Serviços de Saúde Mental a par de todos os outros serviços de cuidados de saúde, empurra e obriga a psicologia a repensar a sua postura neste campo e, principalmente, a rever o seu arsenal de teorias, técnicas usadas e fins. Nasce assim o que alguns denominaram “Psicologia Clínica da Saúde”, definível como a aplicação dos conhecimentos e métodos de todos os campos práticos da Psicologia, na promoção e protecção da saúde física e mental do indivíduo e na prevenção, avaliação e tratamento de todas as formas de perturbação mental e física, nas quais as influências psicológicas podem ser usadas ou podem contribuir para aliviar o mau funcionamento ou distress (Bellar et al., 1987; Millon, 1982). 22 Não se pense no entanto que o que foi dito acima é universalmente aceite. Os valores não mudam assim e, tal, nota-se na terminologia utilizada. Para alguns a Psicologia Clínica continua a ser a que se faz no âmbito da saúde mental enquanto a da Saúde seria a que se pratica com as doenças físicas, ou seja a continuação da adopção do dualismo estrito mente-corpo. A par desta divisão muitas outras existem e variam de significado em países diferentes. Psicologias Clínicas e da Saúde Com as mudanças que ocorreram na concepção de saúde a partir de década de 70, alterou-se concomitantemente o papel da Psicologia no Sistema de Saúde. Estas alterações conduziram a uma proliferação de expressões que pretendiam intitular o profissional de Psicologia que trabalhava no Sistema de Saúde como, por exemplo: Psicologia Clínica do Desenvolvimento que expressa o interesse por uma abordagem desenvolvimental no ciclo de vida (Bibace & Walsh, 1979); Psicologia Clínica da Criança, que qualifica a Psicologia Clínica que se dedica às crianças (Bibace & Walsh, 1979); Psicologia da Reabilitação que qualifica actividades orientadas para a restauração funcional subsequente a traumatismos ou a deficiência física (Millon, 1982), Neuropsicologia Clínica (Belar, Deardorff, & Kelly, 1987) que Kaplan e Saccuzzo (1993) definem como a disciplina científica que foca as incapacidades do sistema nervoso central e o seu tratamento, ou Psicologia da Saúde da Criança (Maddux et al., 1986). Outras expressões tendem a confundir-se com a Psicologia Clínica como é o caso, por exemplo, de Psicologia Médica, que é um termo geral abrangendo o uso de procedimentos e princípios psicológicos no diagnóstico e avaliação da doença física e na avaliação do tratamento (Alcorn, 1991) e que, em Portugal, tende a ser exercida, quase exclusivamente por médicos; Psicossomática, que se interessa pela relação entre variáveis fisiológicas e psicossociais na doença, conceito que se baseia na ligação entre explicações psicanalíticas da personalidade e o desenvolvimento subsequente de certas doenças (Alcorn, 1991; Millon, 1982), etc. Por vezes recorre-se a outras expressões como “psicologia clínica em contextos médicos”, título do livro de Sweet, Rozensky e Tovian (1991). Sherr (1996) propõe figurativamente as várias áreas de intervenção da Psicologia no Campo da Saúde que resultariam do cruzamento de dois eixos em que um representa o tipo de problemas e o outro o tipo de intervenção. Deste cruzamento resultariam quatro celas que expressavam modos de intervenção diferentes: 23 Problemas Psicológicos Médicos Intervenção Psicológica A B Intervenção Médica C D Assim, a cela A abrangeria problemas psicológicos com intervenção psicológica, (seria a área tradicional da Psicologia clínica); a B problemas médicos com intervenção psicológica (área da Psicologia da Saúde); a C problemas psicológicos com intervenção médica (área da psiquiatria) e a D problemas médicos com intervenção médica. Todas as expressões passíveis de qualificar práticas profissionais dos psicólogos no Sistema de Cuidados de Saúde ou no Sistema de Saúde em geral podem ser, genericamente, substituídas por Psicologia Clínica na medida em que abrangem as funções que estão definidas para o profissional de psicologia que exerce a sua prática no Campo da Saúde. Aspectos novos da psicologia que se pratica no sistema de saúde As mudanças ocorridas no Campo da Saúde introduziram aspectos novos na prática do psicólogo que intervém no sistema de cuidados de saúde. De entre estes salientamos: 1) definição de quem é o cliente; 2) alteração na relação psicólogo doente; 3) tempo de intervenção. Definição de quem é o cliente Não se trata realmente de um aspecto novo. Nos hospitais psiquiátricos tradicionais esta questão já existia. No entanto ela existia ao nível dos “psi’s” e era, provavelmente, mais fácil de resolver. Lembramos que etimologicamente a palavra “cliente” qualifica aquele que pede ajuda. Quando alguém se dirige ao gabinete do psicólogo a pedir ajuda na resolução de um problema não há dúvidas acerca de quem é o cliente. 24 Hoje, as equipas onde o psicólogo está incluído, são maiores e mais complexas, informadas por conhecimentos mais diversificados. Quando o doente se dirige ao sistema de Cuidados de Saúde a pedir ajuda, não o faz para aspectos psicológicos. Fá-lo, geralmente, para pedir ajuda para o mal- estar, o sofrimento, provocado por uma qualquer presumível doença física. É no âmbito da relação com o médico, ou outro dos que participam no diagnóstico, que surge a eventual necessidade de apoio psicológico ou psicoterapêutico. Então o médico ou outro, pedem apoio ao psicólogo. Ora, assim, o cliente passa a ser o médico que pediu ajuda para o doente (ou de modo mais alargado o próprio sistema de saúde) e não o doente. No seio da equipa multidisciplinar surgirá a discussão do caso e o psicólogo deverá questionar-se sobre qual a informação que pode partilhar com a equipa sem violar o código de ética. Qual é a informação que poderá ser útil à equipa e, por conseguinte, ajudar o doente? Qual é a informação que nunca deve ser divulgada? Alteração na relação psicólogo-doente Ainda na continuação do referido anteriormente, quando o psicólogo, no seu gabinete perante um cliente que o procura, pode recorrer à expressão metafórica “então o que é que o traz por cá?”, quando lhe é pedido que se dirija à cama “x” porque um doente está particularmente “nervoso” ou ansioso, o normal será que o doente lhe faça aquela pergunta. À primeira vista pareceria que o cliente é o psicólogo. Muitos doentes nem sequer sabem o que é o psicólogo, outros, não sabem que existem naquele serviço, outros pensam que os estão a considerar loucos e muitas outras possibilidades. Portanto, esta psicologia que se faz à cabeceira do doente, ou seja esta “verdadeira” psicologia clínica (no sentido que se faz à cabeceira do doente), este apoio psicológico, implicará, forçosamente, uma abordagem diferente.Por outro lado, como os doentes estão em enfermarias com outros, os que estão nas camas ao lado estão em posição de escutar o apoio do psicólogo ao doente, o que significa que este apoio tem limitações. Tempo de intervenção Finalmente e na sequência dos aspectos anteriores, o apoio que é dado nestes casos é normalmente breve. O doente, na maioria dos casos, abandona o hospital e o tempo que o psicólogo passa com o doente é muito 25 curto, não só o que está à cabeceira do doente como o número de vezes que está como ele. Este modo de relacionamento está longe dos parâmetros que tradicionalmente são considerados na relação de apoio. A Psicologia Clínica hoje O facto de a Psicologia Clínica só passar a estar regulamentada em 1994 foi benéfico na medida em que não foi necessário anular ou acrescentar funções à Psicologia Clínica que se deveria praticar na interface com o sistema de saúde. O que este Decreto-lei estabelece são as funções que modernamente são realizadas pelos psicólogos em contexto ou com objectivos de saúde e que, na realidade consiste nas funções do que se designou por uma Psicologia Clínica da Saúde e que, mais economicamente se passará a chamar Psicologia Clínica. Com o Decreto-lei 241/94 de 22 de Setembro de 1994 (com aditamentos da Portaria nº 1109/95 de 9 de Setembro) surge em Portugal a consagração da prática da Psicologia Clínica no sistema de saúde como profissão que desenvolve “funções científicas e técnicas de avaliação, psicodiagnóstico e tratamento no campo da saúde” (p. 5671). Mais especificamente consagrou-se como funções da Psicologia Clínica no âmbito do sistema de saúde, o estudo psicológico de indivíduos e grupos populacionais, a participação e elaboração de programas de educação para a saúde, o aconselhamento psicológico individual, conjugal, familiar ou de grupo, bem como a intervenção psicológica e psicoterapêutica. Estabeleceu-se ainda que, além destes níveis de intervenção, é função do Psicólogo Clínico no sistema de saúde a elaboração, promoção e coordenação de acções de formação complementar, a participação em acções de formação na área da especialidade e afins, assim como a participação em programas de investigação em aspectos relacionados com a sua área profissional. Este Decreto-lei, embora a um primeiro olhar não faça mais do que estabelecer legalmente aquilo que são de facto as possibilidades e competências específicas dos Psicólogos Clínicos que trabalhem no sistema de saúde, introduz dois princípios fundamentais no modo de conceber a Psicologia Clínica: 1) define que a intervenção do Psicólogo Clínico se realiza no Campo da Saúde, em geral e já não somente no da saúde mental; e, 2) coloca o Psicólogo Clínico na dependência funcional de outros Psicólogos Clínicos e não, como anteriormente na de outros técnicos. 26 Estes dois princípios, que do nosso ponto de vista são decisivos, reflectem, por um lado, desenvolvimentos importantes que ocorreram no sistema de saúde e, por outro, impõem adaptações importantes na prática tradicional do Psicólogo Clínico e na sua formação. Inquéritos realizados nos Estados Unidos da América mostram que os psicólogos que trabalham no sistema de saúde dedicam cerca de 15 a 25% do seu tempo profissional à investigação, cerca de 10% ao diagnóstico, 15% ao ensino, 15% à terapia e 5 a 10% à administração. Estes valores variarão para Portugal mas as funções a exercer não serão muito diferentes. A saúde e a doença ao longo dos tempos Na medida em que a saúde é um recurso pessoal da vida de todos os dias, é normal que as pessoas tenham ideias acerca da saúde e das doenças. Essas ideias têm variado ao longo dos tempos através das diversas culturas e religiões, através de grupos socio-económicos e consoante a instrução das pessoas dentro da mesma cultura. A formação das ideias dos técnicos implica a compreensão destas diferenças e a adopção de um modelo explicativo. A parte que se segue visa contribuir para a formação de ideias acerca do que deverá ser entendido como saúde e doenças. Importância de uma perspectiva ecológica As mudanças ocorridas no planeta Terra nos últimos 15 biliões de anos permitiram ao homem atingir o ponto em que se encontra hoje. Mudanças, muito lentas por vezes, muito rápidas noutras, moldaram a vida na terra tal como é conhecida. Nesta lenta viagem, milhares de espécies desapareceram e milhares de outras surgiram, em resposta adaptativa, ecológica, às mudanças ocorridas. Como defendem Katz e Wallace (1974) o equilíbrio ecológico tem sido um elemento fulcral no desenvolvimento da humanidade. Estes autores explicam que: “num sentido evolucionário alargado, o sistema sociocultural humano tem sido capaz de proteger e isolar o homem de certos efeitos prejudiciais do 27 meio ambiente. Por outras palavras, ao longo do tempo, a população humana adapta-se ao seu ambiente nativo, não apenas através de determinadas características fisiológicas, geneticamente determinadas, mas também através da cultura que, por esse meio mantém um equilíbrio dinâmico com os processos de mudança ambientais” (p. 1050). Quando este equilíbrio era perturbado surgiam as epidemias que dizimavam populações que não estavam preparadas para se defender de microorganismos desconhecidos. Exemplos deste tipo ocorreram aquando dos descobrimentos: com efeito, em 1519 a população nativa do México era estimada em cerca de 30 milhões, tendo caído para 3 milhões em 1568 após a conquista pelos espanhóis. Esta diminuição ocorreu, em grande parte, devido à introdução, pelos conquistadores, de organismos patogénicos desconhecidos naquele meio, neste caso a varíola e o sarampo. Ao mesmo tempo, o contacto com as civilizações do outro lado do Atlântico facilitaram a transformação da bactéria transmissora da sífilis – Treponema Pallidium – de modo a que se tornasse eficiente através da transmissão sexual, o que não ocorria antes. Esta doença, praticamente desconhecida antes das descobertas teve, por sua vez, efeitos devastadores no velho mundo. A revolução industrial, tal como 200 anos antes os descobrimentos, provocaram grandes alterações no modo de vida de grande parte da população do planeta e as mudanças que a acompanharam causaram grandes alterações no meio físico e social e no estilo de vida do homem. A revolução pós-industrial ao reconhecer, pela primeira vez, a necessidade do equilíbrio ecológico para a sobrevivência da humanidade, propõe-se restabelecer equilíbrios que existiam há centenas de anos. Esta tentativa de restabelecimento do equilíbrio ecológico instalada ao nível dos discursos não parece acompanhar a acção. A crise ecológica está instalada: imagens de fome, guerra e infecções nos países do sul, poluição química, espacial, sonora e visual, mecanização da vida diária nos países do norte, ocupam diariamente os media. Não se trata, agora, de defender qualquer espécie em vias de extinção, ou de salvar uma floresta que é pulmão do planeta. Trata-se de uma crise que afecta todo o sistema que constitui o planeta Terra. Neste contexto de crise ecológica, surgiu a necessidade de estudar as repercussões da ecologia para os seres humanos, dando origem ao conceito de “ecologia humana”. Segundo Dubos (1979), ecologia humana abarca mais do que a relação entre o homem e o meio ambiente. A ecologia ensina-nos que todas as forças sociais, físicas e biológicas, actuando sobre o homem, direccionam o seu desenvolvimento e moldam a sua natureza. O corpo e a mente estão em 28 modificação constante e, consequentemente, em formação, devido a estímulos que induzem reacções formativas. Embora actualmente se estudem, fundamentalmente, os efeitos nefastos das alterações ecológicas chegará o dia em que a ecologia humana estará apta a dar maisatenção aos efeitos benéficos e positivos do meio, do que aos efeitos patogénicos. Segundo Dubos, adoptar uma perspectiva ecológica, mais concretamente de ecologia humana, implica a adopção de uma nova atitude intelectual e científica diferente da que é considerada adequada na biologia em geral e noutras ciências biomédicas, porque ela tem de lidar com os efeitos indirectos e a longo prazo, exercidos (no ser humano) pelo ambiente e pelo estilo de vida, mesmo se esses factores não tiverem, aparentemente, influência imediata. Seria fácil ilustrar a importância desses efeitos indirectos e a longo prazo, discutindo, por exemplo, o papel da abundância ou falta de alimentos, das várias formas de poluição química e microbiana, dos efeitos do ruído ou outros estímulos, da densidade e, especialmente, das rápidas mudanças populacionais; em resumo, de todas as forças ambientais que actuam sobre o homem de todas as classes sociais, em todos os locais. Devemos salientar que os efeitos mais importantes do ambiente e do estilo de vida são, frequentemente, difíceis de reconhecer, dado só se manifestarem, indirectamente, após muito tempo (Dubos, 1979). Saúde e doenças são processos e estados que fazem parte da vida e que medeiam entre a concepção e a morte. As doenças são processos em que o equilíbrio ecológico está perturbado, enquanto a saúde é um processo em que o organismo está em equilíbrio e funcional. Este equilíbrio ecológico não pode excluir o meio ambiente ou, dito de outro modo, não parece possível manter-se saudável num planeta doente (King, 1990). A saúde é um elemento fundamental na evolução das espécies vivas. Com efeito, não é suficiente estar vivo: é essencial que haja energia e vigor para actuar, que haja relaxamento e calma para reflectir num estado de vigilância activo, mesmo na ausência de acção, que haja expectativas de futuro, desejo e, finalmente, que haja equilíbrio entre estes diferentes aspectos e entre eles e o ambiente onde tudo ocorre. Para que tudo isto suceda é necessário Saúde. Com afirmava Sigerist em anos longínquos (1941), ser saudável é ser bem equilibrado corporal e mentalmente e bem ajustado ao meio físico e social, é estar em controlo total dos recursos mentais e físicos, é adaptar-se às mudanças do meio (desde que não excedam os limites normais), é contribuir para o bem-estar da sociedade de acordo com a sua capacidade. A saúde é algo positivo, uma atitude jovial, alegre, perante a vida, é aceitação, bem-disposta, das responsabilidades que a vida impõe. 29 Torna-se, no entanto, necessário definir um modelo alternativo ao modelo biomédico que é influenciado pela perspectiva cartesiana, que inclua a compreensão dos processos causais mútuos entre o funcionamento psicológico, comportamental, biológico, bioquímico e social. Dito de outra maneira, é necessário adoptar um modelo conceptual que represente o indivíduo como uma unidade estrutural e funcional em desenvolvimento, como uma organização complexa, em transacção contínua com um meio ambiente (tecnológico, biológico, arquitectural, paisagístico, etc.) em mudança. A psicologia do desenvolvimento já se defrontou com este problema e produziu modelos que podem ser úteis para conceptualizar a Saúde nesta nova perspectiva. Evolução dos sistemas de saúde As técnicas médicas desenvolvidas entre o final do século XIX e meados do século XX, deixaram supor que o caminho para o controlo definitivo das principais doenças tinha sido encontrado. A partir de meados do século XX, altura em que o desenvolvimento de novos medicamentos começou a permitir curar grande parte das doenças infecciosas, dá-se uma alteração radical nas causas de mortalidade e morbilidade. As principais causas de doença deixaram de ser organismos patogénicos que, introduzidos no organismo hospedeiro provocavam doenças, para passarem a ser o comportamento humano. Embora a partir de meados do século se tivessem começado a notar mudanças nos padrões de morbilidade, mortalidade e suas causas, foi na década de 70 que se verificou o impacto público destas mudanças e se definiram estratégias universais para enfrentar o novo desafio. A intervenção sobre este novo agente – o comportamento humano – exige soluções, forçosamente mais complexas, substancialmente diferentes das adoptadas até então e tende a tornar inadequados os modos tradicionais de conceber a saúde e a doença. Simultaneamente impõe aos sistemas de saúde existentes mudanças radicais. Os países desenvolvidos iniciaram uma revolução no campo da saúde. Esta revolução, apelidada por Richmond (1979) de “Segunda Revolução da Saúde”, tem exigido grande esforço e estratégias diferentes para enfrentar os novos desafios. A principal mudança no modo de conceber a saúde consistiu na deslocação do foco das atenções do vector doença, dominante desde o advento da medicina científica, para o vector saúde. Esta mudança 30 ocorreu primeiro entre os cientistas que se debruçavam sobre esta área e depois entre os políticos, conduzindo a uma nova concepção de Saúde Pública, com consequências importantes para os sistemas de saúde tradicionais (Lancet, 1991). O primeiro marco do impacto público das mudanças e da intenção política de introduzir alterações, consistiu na publicação, em 1974, do relatório “A New Perspective on the Health of Canadians” da autoria de Marc Lalonde, então ministro da saúde e do bem-estar do Canadá. Este documento, considerado um livro branco da saúde, constituindo um marco histórico para a nova maneira de conceber a saúde e a doença, justificava do seguinte modo a nova maneira de conceber o Campo da Saúde: “enquanto se faziam progressos nos cuidados de saúde, no nível de vida em geral, na protecção fornecida pela saúde pública e na ciência médica, contra-forças nefastas trabalhavam para destruir esse progresso. Esta forças do contra constituem o lado negro do progresso económico. Elas incluem poluição ambiental, vida citadina, hábitos de indolência, abuso de álcool, tabaco e drogas e padrões alimentares que põem os prazeres dos sentidos acima das necessidades do corpo humano. Para estas ameaças ambientais e comportamentais à saúde, o sistema de cuidados de saúde pode fazer pouco mais do que de rede onde caem as vítimas. Médicos, cirurgiões, enfermeiras e hospitais despendem muito do seu tempo no tratamento de doenças causadas por factores ambientais adversos e riscos comportamentais. É evidente que é necessário implementar melhorias no ambiente, nos riscos auto-impostos e um maior conhecimento da biologia humana, se se pretende que os Canadianos vivam uma vida feliz, plena, longa e livre de doenças” (Lalonde, 1974, p. 5). No mesmo sentido, reflectindo as mesmas preocupações e com as mesmas conclusões, iniciou-se em 1977, nos Estados Unidos da América (EUA), a pedido do governo de então, um estudo sobre o estado da saúde da Nação. Esse estudo, publicado em 1979 com o título “Healthy People: The Surgeon General’s Report on Health Promotion and Disease Prevention”, ficou conhecido por relatório Richmond, nome do autor, então secretário assistente para a saúde e surgeon-general do titular da pasta da saúde. Finalmente, reflectindo esta consciência a nível planetário, em 1978 a Organização Mundial da Saúde adoptou a Declaração de Alma-Ata, onde se definiram um conjunto de objectivos de saúde para a população do planeta e de estratégias para os alcançar – Saúde Para Todos no Ano 2000. Estes três marcos, permitem afirmar que se está numa nova era, quanto ao modo de conceber a saúde e a doença e, quanto ao modo de intervir. 31 Embora as mudanças reais no modo de funcionamento das estruturas de saúde e doença não sejam visíveis, as investigações começaram a reflectir a nova perspectiva. Um destes estudos foi o Estudo Alameda, assim
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