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LETA42 – O Homem e os Deuses
Profa. Clara Crepaldi
Aluno: Cícero Soares
Mário Vegetti, em seu ensaio O Homem e os Deuses, traz uma visão bastante detalhada da forma como a religião era uma experiência cotidiana no imaginário grego antigo. Tratava-se de uma relação de familiaridade, em que a ordem, regularidade e hierarquias simbolizadas nas figuras míticas eram transpostas para a vida social e familiar, explicando-a e garantindo-a.
Como o conceito de religião já traz diversas imagens na cabeça de uma pessoa do nosso século, é interessante verificar que o politeísmo grego nada tinha da opressão social ou psicológica que caracterizaram algumas vertentes dos credos ditos abraâmicos - judaísmo, islamismo e cristianismo. Isso porque uma série de diferenças bem marcadas separam esses universos, a saber, a inexistência de um profeta fundador (Moisés, Maomé, Jesus de Nazaré ou mesmo o Buda); não haver castas de sacerdotais permanentes e profissionais; tampouco inexistir dogmas de fé impostos, cujas inobservâncias fossem vigiadas e punidas. Até mesmo o termo para "fé", da forma como a conhecemos, não teria um paralelo exato na língua grega, mas algo mais próximo do "respeitar", "honrar" as divindades.
Daí mesmo a dificuldade de se definir uma "religião" grega, senão um conjunto de tradições que exprimiam respeito e veneração dos homens pelas divindades por meio de ritos cultuais, principalmente de oferendas sacrificiais. Esta relação, contudo, não parece ter sido exagerada, uma vez que há registros de sátiras a respeito de supersticiosos atormentados por um constante receio do temor divino.
ORIGENS
O autor tenta alinhavar uma explicação a respeito do princípio destes mitos a partir de locais onde houvesse a sensação da presença de forças sobrenaturais (hieròs é uma palavra grega que guarda afinidades etimológicas com a ideia de "forte"), fenômenos misteriosos e temíveis (o raio, a tempestade), daí transfomados progressivamente em santuários, albergando templos dedicados às divindades, túmulos de heróis etc. Esses locais se tornam sagrados, mas esse mesmo conceito de forma difusa é entendido também como toda a ordem da natureza, a alternância das estações, o dia e a noite. Em âmbito individual, também é sagrada a sucessão regular das gerações, o nascimento, a morte. E em terceira instância, a vida social, na permanência das comunidades políticas e dos sistemas de poder.
É importante notar no texto que essas relações sociais não deixam de existir nos ritos propiciatórios, característicos da relação entre homens e deuses, ofertas votivas, invocações e preces. Eram, pelo contrário, momento alto da convivência entre os homens, acompanhados de eventos significativos da civilização grega: banquetes, jogos desportivos, danças e representações teatrais.
Os ritos também podiam ser purificadores, quando os homens invadiam o espaço do sagrado. O parricídio de Édipo ou a escravização da filha de um sacerdote de Apolo poderia trazer "sujidade" a alguém ou a um grupo, miasma em grego, necessitando rituais de purificação (kàtharsis). Mas de uma maneira geral não existia na religiosidade grega a ideia de um miasma "de nascença", causador do sofrimento dos homens, exceto em alguns círculos religiosos específicos posteriores.
Como não existe um profeta intermediário entre os deuses e os homens, a tradição e a narrativa eram os responsáveis pela disseminação dos fatos míticos. Dentro desse universo a Ilíada, de Homero, e a Teogonia, de Hesíodo, têm papel de destaque no ordenamento e seleção de diversos relatos, mas é importante notar que provavelmente houve relatos antecedentes, e que a própria tradição mítica se espraiava por diversos veículos culturais daquela civilização, poesias, cantos, tapeçaria, modelagem, arquitetura, pintura, escultura. A isso ajudava o fato de sua tradição se mostrar por meio de personagens, e não de abstrações.
DEUSES E HERÓIS
Essas personagens são apresentadas como heróis que detêm de forma máxima as qualidades humanas: beleza, inteligência, força, perpetuidade destes dotes (daí a imortalidade). Os heróis via de regra tinham uma semidescendência com os deuses, em suas frequentes uniões com os humanos mortais. Daí também proviriam as famílias aristocráticas gregas! Esse intercâmbio é verossímil devido ao fato de os deuses serem dominados por paixões puramente humanas, como inveja, ciúme, ira e piedade, antropomorfismo que chega a possibilitar aos deuses ferir ou serem feridos pelos mortais.
Este é um traço interessante apontado pelo autor, já que a própria falta de onipotência por parte dos deuses é o que propicia a existência da narrativa, do embate de personagens, em intrigas e situações.
Cada uma dessas personagens estava associada com fenômenos específicos da ordem natural, e tinham funções representativas na vida cotidiana e organização social da comunidade. Seus epítetos frequentes revelam essas funções. Assim Zeus, que conquista o poder após matar o próprio pai, Cronos, é a representação da ordem e do poder patriarcal, o rei dos deuses. A partir da conquista de poder por Zeus é que se dá a separação ordenada entre a terra e o céu, a luz e as trevas, e garante-se a sucessão harmoniosa entre as gerações. (Lembremos que Cronos comia os próprios filhos). A mulher de Zeus, Hera, garantidora do matrimônio e da família, está ligada a própria existência da sociedade humana. Outros deuses são descritos, os principais basicamente em número de doze, muitos deles patronos de cidades específicas na Grécia antiga, como Apolo em Delfos, ou Palas Atena em Atenas. Eles representam diversas qualidades humanas, assim como atividades das polis. A caça, a agricultura, o comércio, a ferragem, a guerra, o amor.
Os rituais e as festividades religiosas eram fator identitário e reafirmavam a coesão na comunidade grega. Os templos ficavam no centro da cidade, e eram abertos a todos os cidadãos. Em princípio qualquer um poderia exercer as atividades de sacerdotes, porque elas eram temporárias, revogáveis, e aconteciam por eleição ou sorteio. Até mesmo cargos políticos nas cidades-estado gregas podiam ser ocupados por sorteio. Os sacrifícios públicos, administrados por estes sacerdotes, consistiam basicamente da queima de carne para os deuses. Esses rituais fazem alusão ao mito do roubo do fogo por Prometeu, e por seu ardil ao reservar a carne do animal aos homens, deixando para os deuses apenas as partes não comestíveis, destinadas a serem queimadas e convertidas em fumo.
Evidentemente a religião passa por mudanças e influências ao longo dos séculos, dando lugar a cultos órficas, com uma crença aliás bastante parecida com o que veio a ser conhecido no período inicial cristão como Gnosticismo. Aparece a concepção forte da ideia de alma por este período, como sendo algo bom, contaminado pelo corpo, a parte ruim e mortal. A vida passa a ser vista como um exercício de sacrifício e renúncia, a fim de obter as benesses de uma vida posterior. Esse tipo de pensamento está presente nos Pitagóricos, e chegaria a ser descrito por Platão.
Com o pensamento racionalista filosófico, esses mitos passam cada vez mais a serem criticados, e lhe são atribuídas explicações ora instrumentais - serviriam para impor o respeito pela lei e pelos valores sociais; ora alegóricas - suas imagens conteriam um núcleo de verdades filosóficas ocultas.
A mais importante é que a crença e cuidado com os deuses era sentida como associada à própria existência da polis, dando a sensação imediata de se pertencer à comunidade o que equivalia a um certificado de bom cidadão.

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