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1 A INCAPACIDADE DOS CAPAZES Juliana Mendonça Alvarenga Mestre em Direito Privado pela PUC Minas Oficial de Registro Civil no Estado de Minas Gerais Marcelo de Rezende Campos Marinho Couto Mestre em Direito Privado pela PUC Minas Oficial de Registro de Imóveis no Estado de Minas Gerais 1 INTRODUÇÃO O presente artigo busca analisar situações que o legislador, ao argumento de proteger determinado grupo de indivíduos, cria normas ‘protetivas’ inderrogáveis que levam à restrição do exercício de sua capacidade. O título do artigo é, na verdade, um jogo de palavras com o título do livro A capacidade dos incapazes, de autoria de Maria de Fátima Freire de Sá e Diogo Luna Moureira (SÁ; MOUREIRA, 2011), no qual é feita, com maestria, uma releitura da teoria das incapacidades visando demonstrar que as situações concretas precisam ser analisadas, caso a caso, para se determinar a possibilidade do exercício de direitos pelos ‘incapazes’, conforme o discernimento verificado. Se na obra que inspirou este artigo o enfoque dado é para a ‘vontade’ dos incapazes, no presente artigo pretendeu-se olhar pelo lado dos legalmente capazes que, por força da lei ou de situações do cotidiano, são tolhidos do pleno exercício de sua autonomia privada. Assim, o livro A capacidade dos incapazes mostra que a incapacidade não deve ser vista em sua forma generalizada, pois, na maioria das vezes, o incapaz pode, sim, realizar diversos atos da vida civil. Segundo os autores, deve-se privilegiar, sempre que possível, a autonomia das partes, dentro da sua capacidade. Desta forma, o fato de estar curatelado ou de ser incapaz, não significaria, necessariamente, em uma incapacidade para todos os atos da vida civil, não cabendo qualquer possibilidade de exercer sua autonomia. Conforme explicam os autores Maria de Fátima Freire de Sá e Diogo Luna Moureira, não se está a “defender a supressão da incapacidade absoluta do Direito Privado, mas 2 promover sua releitura, não mais identificando como uma presunção absoluta. Isso significa, ainda que potencialmente, dar voz ao incapaz.” (SÁ; MOUREIRA; 2011, p. 138) O que tentaremos mostrar neste artigo é a incapacidade dos capazes, ou seja, a incapacidade definida em lei unicamente pelo fato de o indivíduo ter atingido determinada idade, que, como se sabe, tem variado ao longo do tempo. Hoje, o indivíduo com mais de setenta anos não pode mais exercer sua autonomia para a escolha de um regime de bens, mas, ao mesmo tempo, a lei não restringiu que este mesmo indivíduo possa fazer testamento, procurações, alienações de bens móveis e imóveis, doações, dentre outros. Talvez em mais alguns anos, esta incapacidade presumida será definida em lei aos setenta e cinco ou oitenta anos. O que se tentará demonstrar é que a restrição imposta em lei é inconstitucional e que a incapacidade não pode ser presumida, devendo ser averiguada por um tabelião, da mesma forma como já ocorre em outros atos nos quais se exige instrumento público. 2 A DESCONSTRUÇÃO DA TEORIA DAS INCAPACIDADES O direito civil clássico diferencia os conceitos de capacidade e personalidade. Enquanto a personalidade diz respeito à pessoa (natural ou jurídica) e sua aptidão para adquirir ou titularizar direitos, a capacidade é a possibilidade de exercício direto destes direitos pelo seu titular. Assim, toda pessoa natural tem personalidade jurídica, desde que nasça com vida, ficando resguardados os direitos do nascituro desde a concepção, nos termos do artigo 2o do Código Civil. Já a aptidão para exercer estes direitos decorre da capacidade jurídica, de modo que os absolutamente e os relativamente incapazes sofrerão uma restrição ao exercício direto dos direitos que titularizam, em razão de uma presunção legal de sua vulnerabilidade. Segundo Luiz Guilherme Loureiro (2012): Importante princípio geral sancionado pelo Código Civil, e confirmado pela doutrina e jurisprudência, é de que a capacidade das pessoas se presume sempre, enquanto sua incapacidade, como se trata de uma exceção, deve ser provada de modo evidente e completo. (LOUREIRO, 2012, p. 42). 3 No entanto, o Direito Civil clássico tinha uma visão extremamente patrimonialista, objetivando a proteção da pessoa através de normas que garantissem que seus bens materiais não fossem transferidos a terceiros, seja por alienação, casamento ou responsabilidade civil, sem a observância de uma série de formalidades, tais como a assistência ou representação para a prática de atos da vida civil, necessidade de alvará judicial para alienação de bens de incapazes, diminuição da responsabilidade por ato ilícito praticado por incapaz, imposição de regime de separação de bens em determinadas circunstâncias, dentre outros. Com a pós-modernidade e o neoconstitucionalismo, houve uma mudança de paradigma no Direito, de modo que o ser humano passou a ocupar o centro do ordenamento jurídico, sendo objetivo deste atender aos anseios das pessoas, não apenas patrimoniais, mas principalmente os existenciais, como a busca pela realização pessoal. O sistema jurídico passou a ser lido à luz da Constituição e os direitos fundamentais tiveram sua eficácia ampliada, já sendo reconhecida a sua aplicação direta, inclusive nas relações horizontais (CUNHA JÚNIOR, 2015, passim). O Direito Civil, historicamente patrimonialista, vem passando por uma releitura, de modo que institutos milenares, tais como o contrato, a propriedade e a família, ganham nova roupagem e funções, em razão das questões existenciais que os envolvem1. A antiga discussão sobre o início da personalidade jurídica se resolvia com a escolha de uma das teorias (natalista, concepcionista e condicional), pois tinha uma conotação estritamente patrimonial. Entretanto, o reconhecimento da existência de direitos de cunho existencial faz com que o enquadramento em uma teoria não resolva, de forma satisfatória, a gama de situações que envolvem a pessoa em gestação2. 1 A título de exemplo, em relação aos contratos, César Fiuza ensina que “é a necessidade ou o desejo que impulsiona a vontade dos contratantes” (FIUZA, 2014, p. 503), e o define como sendo o “ato jurídico lícito, de repercussão pessoal e socioeconômica, que cria, modifica ou extingue relações convencionais dinâmicas, de caráter patrimonial, entre duas ou mais pessoas, que, em regime de cooperação, visam atender desejos ou necessidades individuais ou coletivas, em busca da satisfação pessoal assim promovendo a dignidade humana” (FIUZA, 2010, p. 15, grifo nosso). 2 “As teorias mais restritivas dos direitos do nascituro – natalista e da personalidade condicional – fincam raízes na ordem jurídica superada pela Constituição Federal de 1988 e pelo Código Civil de 2002. O paradigma no qual foram edificadas transitava, essencialmente, dentro da órbita dos direitos patrimoniais. Porém, atualmente isso não mais se sustenta. Reconhecem-se, corriqueiramente, amplos catálogos de direitos não patrimoniais ou de bens imateriais da pessoa – como a honra, o nome, imagem, integridade moral e psíquica, entre outros. [...] Ademais, hoje, mesmo que se adote qualquer das outras duas teorias restritivas, há de se reconhecer a titularidade de direitos da personalidade ao nascituro, dos quais o direito à vida é o mais importante. Garantir ao nascituro expectativas de direitos, ou mesmo direitos condicionados ao nascimento, só faz sentido se lhe for garantido também o direito de nascer, o direito à vida, que é direito pressuposto a todos os demais.” (BRASIL, STJ, RESP 1.415.727/SC). 4 De igual modo, em relaçãoà capacidade, havia um sistema binário de capacidade/incapacidade, no qual a pessoa era enquadrada em uma das categorias (capaz, relativamente incapaz ou absolutamente incapaz), atraindo, para si, todas as consequências normativas desta classificação. A exclusão dos ‘enfermos ou deficientes mentais’ e dos ‘excepcionais’ do rol de incapazes dos artigos 3o e 4o do Código Civil, decorrente da aprovação do ‘Estatuto da Pessoa com Deficiência’, leva a uma reflexão obrigatória quanto à melhor forma de proteção dos vulneráveis, não apenas no aspecto patrimonial, mas também no existencial, levando em conta sua autonomia e discernimento. De outro lado, traz também à tona uma questão relativa às chamadas ‘normas de ordem pública’, consideradas ‘inderrogáveis’ pela vontade das partes, e que limitam a liberdade de escolha e autodeterminação de pessoas capazes, ao argumento de conferir- lhes maior proteção. O maior exemplo que temos é a imposição legal do regime da separação de bens no caso de casamento de pessoa com mais de 70 anos, com as consequências jurídicas decorrentes deste regime3. O Código Civil de 1916 possuía norma semelhante4, impondo a separação de bens quando o homem era maior de 60 anos ou a mulher maior de 50 anos. O Código Civil de 2002 manteve a mesma orientação, fixando a idade de 60 anos para homens e mulheres, com posterior alteração legislativa para 70 anos. Por mais que inúmeros doutrinadores e a jurisprudência reconheça a improcedência da restrição (FARIAS; ROSENVALD, 2014, p. 311), o texto continua válido e em vigor, sendo aplicado, diuturnamente, nos autos de habilitação de casamento, só podendo ser afastado por decisão judicial. 3 DA (IM)POSSIBILIDADE DA ESCOLHA DO REGIME DE BENS PELO MAIOR DE SETENTA ANOS 3 O Código Civil proíbe que pessoas casadas pelo regime da comunhão obrigatória contratem sociedade entre si (art. 977), bem como exclui o cônjuge sobrevivente da sucessão hereditária, em concorrência com os descendentes (art. 1.829, I). 4 Dizia o parágrafo único do artigo 258 do Código Civil de 1916: “É, porém, obrigatório o da separação de bens no casamento: [...] II. Do maior de sessenta e da maior de cinquenta anos.” 5 O Código Civil determina que o regime da separação de bens é obrigatório quando um dos cônjuges foi maior de setenta anos de idade, nos termos do inciso II do artigo 1.641. Esta restrição mostra a intervenção desnecessária do Estado na vida privada das pessoas e no planejamento familiar do casal, ao pressupor uma incapacidade do idoso de gerir sua própria vida e tomar decisões de cunho patrimonial. De acordo com Taisa Maria Macena de Lima e Maria de Fátima Freire de Sá (2015), “[...] o legislador ordinário partiu do pressuposto de que o idoso é, necessariamente, vulnerável, ainda quando não se encontre em quaisquer das situações capituladas nos artigos 3o e 4o do CC/02, que disciplinam o regime das incapacidades.” (LIMA; SÁ, 2015, p. 22). Neste caso, a norma jurídica aparenta proteger o maior de setenta anos, mas o faz de forma tão autoritária e inderrogável, considerando-o incapaz para escolher um regime de bens, que invade sua esfera privada, ofendendo sua autonomia. Nas palavras de César Fiuza (2015): [...] é o princípio da autonomia privada, juntamente com a cláusula geral de tutela da pessoa humana, de onde, de certa forma, derivam a própria autonomia privada e todos os demais direitos fundamentais, que fornecem ao indivíduo, não um indivíduo amorfo, sem face e sem alma, mas o consumidor, o trabalhador, o empresário, o cônjuge ou o companheiro, o pai ou o filho, enfim, a esse indivíduo vivo e consciente a proteção contra a interferência abusiva do Poder Público, da regulação estatal desmesurada, irascível e ilegítima, de toda arbitrariedade do Estado, que, infelizmente, ainda é prática algo que habitual no Brasil, nesse início de século. (FIUZA, 2015, p.46). Da mesma forma, Luiz Guilherme Loureiro (2012) defende que “a idade, por mais avançada que seja, não retira da pessoa o atributo da capacidade: pode ela realizar todos os atos da vida civil, não sendo admissível a presunção legal de que a senilidade prejudica a higidez mental” (LOUREIRO, 2012, p. 42). Curioso é que, recentemente, a Constituição Federal foi modificada através da Emenda Constitucional 88, de 7 de maio de 2015, passando a dispor, em seu artigo 100, que “os Ministros do Supremo Tribunal Federal, dos Tribunais Superiores e do Tribunal de Contas da União aposentar-se-ão, compulsoriamente, aos 75 (setenta e cinco) anos de idade”. 6 De igual modo, a Lei Complementar 152, de 2015, aplicou esta idade de 75 anos para aposentadoria compulsória de titulares de outros cargos públicos da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, membros do Poder Judiciário, Ministério Público, Defensorias e Tribunais e Conselhos de Contas. Assim, como assimilar o fato de um Ministro do Supremo Tribunal Federal, com mais de setenta anos, poder julgar casos que terão repercussão na vida de todos os brasileiros, mas não poder escolher seu próprio regime de bens, caso decida se casar, firmando o pacto antenupcial conforme lhe aprouver? Como entender o fato de que, um dia antes de se completar setenta anos, a pessoa poderá se casar, optando pelo regime da comunhão universal de bens, que engloba a comunicabilidade de bens recebidos por doações e herança, bem como de todos os bens preexistentes, mas, um dia depois, será obrigado a se casar pelo regime da separação de bens? Ao presumir uma incapacidade, ainda que com a intenção protetiva, não se deveria abrir um caminho alternativo que viabilizasse a superação da regra no caso concreto, sem a necessidade de se valer da onerosa e demorada via judicial? Sabe-se que o Direito se vale de critérios objetivos e subjetivos para determinar a capacidade das pessoas, nos artigos 3o e 4o do Código Civil. Contudo, quando opta pelo critério objetivo da idade, fixando a incapacidade absoluta dos menores de 16 anos e a incapacidade relativa dos maiores de 16 e menores de 18 anos, permite que este critério seja superado pela realidade da vida. Assim, a emancipação pelo reconhecimento dos pais ou obtida judicialmente, ou a obtenção de economia própria, decorrente de relação de emprego, estabelecimento civil ou comercial5 são fatores que afastam o critério objetivo. Ensina César Fiuza que: [...] efetivamente, ninguém se deita incapaz e acorda capaz, no dia seguinte, só porque completa 18 anos. É exatamente por isso que se admitem a emancipação e a interdição. Se, por outro lado, o legislador fixa limites de idade, não é, seguramente, nem o foi jamais, no intuito de traçar fronteiras intransponíveis entre um nível e outro. [...] No entanto, eles não são, e nunca foram absolutos. Sempre se admitiu algum flexibilização, haja vista a possibilidade de emancipação. (FIUZA, 2014, p.165). 5 Além das demais hipóteses do artigo 5o do Código Civil. 7 Voltando ao caso dos maiores de 70 anos, a restrição imposta a uma pessoa capaz não oferece um caminho alternativo para a escolha de regime de bens no casamento, revelando-se verdadeira presunção absoluta de incapacidade. A “norma os infantiliza, os idiotiza, o que não condiz com a realidade. Hoje, uma pessoa de 70 anos é, de fato, ainda um jovem. Ademais, o que interessa é se o indivíduo tem consciência ou não do que esteja fazendo, pouco importando se seja velho ou novo.” (FIUZA, 2014, p. 1.184). Em artigo publicado em 1980, sob a égide do CódigoCivil de 1916, João Baptista Villela já criticava a obrigatoriedade do regime da separação de bens para homens maiores de 60 anos e mulheres maiores de 50 anos, pois se a lei presumia que não haveria afetividade em matrimônios de pessoas acima desta idade, mas sim casamentos por interesse, o legislador deveria proibi-lo, e não regulamentá-lo unicamente sob o viés patrimonial (VILLELA, 1980, p. 35-36). Além da previsão legal, de imposição do regime da separação de bens aos maiores de setenta anos, sabe-se que várias comarcas de Minas Gerais contam com recomendações do Ministério Público de que só sejam feitas escrituras de união estável de pessoas acima de setenta anos com um atestado médico que certifique não haver qualquer incapacidade ou falta de discernimento daquele que quer praticar o ato. Entretanto, constatada a capacidade das partes, ao se lavrar a escritura declaratória de reconhecimento de união estável, os cônjuges poderão optar pelo regime que quiserem, não ficando restritos à separação de bens. Assim, aqueles que desejarem estabelecer apenas união estável acabam tendo mais direito de escolha que os que resolvem se casar. Sabe-se que a união estável não precisa de ato formal para existir, sendo desnecessária a lavratura de escritura pública perante o Tabelião. O ato público, contudo, facilita a prova da relação, caso seja necessário. Na ausência da escritura de união estável e/ou de pacto escrito quanto às relações patrimoniais, aplicar-se-á o regime da comunhão parcial6. Entretanto, o legislador presumiu que o maior de setenta anos que queira se casar deve ter seu regime de bens estabelecido em lei, não cabendo ao nubente optar por outro, mas se esqueceu de estabelecer o mesmo regramento àqueles que se unem através da união 6 Conforme artigo 1.725 do Código Civil: “Na união estável, salvo contrato escrito entre os companheiros, aplica-se às relações patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens.” 8 estável, que em praticamente nada se difere de um casamento. Assim, privilegiou e resguardou a autonomia das pessoas ao não impor um determinado regime para uniões estáveis, dando tratamento desigual a institutos semelhantes. O legislador presumiu que qualquer pessoa acima dos setenta anos, que pretenda se casar, é vulnerável, e, para ‘protegê-la’, determinou o regime de separação de bens, sem qualquer possibilidade de escolha, só lhe restando a via judicial. Muito desta proteção vem de ideias retrógadas no sentido de que pessoas mais velhas só se casam e só encontram alguém para dividir sua vida caso este outro alguém esteja interessado em seu patrimônio. É como se uma pessoa acima dos setenta anos não pudesse criar laços de afeto e amor com outra pessoa. Parece que o legislador só imaginou o casamento de pessoas mais velhas, em geral homens, se casando com mulheres novas, que só têm interesse no patrimônio ou em alcançar certo status social. Esqueceu, porém, que na maioria das vezes o casamento ocorre entre pessoas de idades similares, que buscam um companheiro para conversas, viagens e para se ter como companhia em uma fase da vida adulta em que os filhos de ambos já estão criados e casados. Diferentemente dos casamentos realizados entre pessoas muito jovens, aqueles celebrados por pessoas mais velhas não estão focados em paixões que podem se acabar de forma repentina. Ao contrário, estão muito mais relacionados a uma afetividade que provavelmente irá durar mais pelo fato de envolver um amor mais maduro. Assim, entende-se que a restrição imposta pelo legislador é, além de inconstitucional, preconceituosa. Não há como se decretar a incapacidade de alguém capaz para a prática de determinado ato quando a pessoa não apresenta qualquer tipo de falta de discernimento, unicamente baseada em sua idade. Conforme dispõe Stefano Rodotà (2010): Idade, incapacidade, estado de saúde física ou mental não são condições objetivas que podem ficar registradas de uma vez por todas [...] Estas são as condições que têm de ser pesquisadas, identificando casos em que a assistência de um terceiro podem acompanhar a vontade débil para uma decisão em que o protagonista é o sujeito interessado.7 (RODOTÀ, 2010, p. 45, tradução nossa). 7 La edad, la discapacidad, el estado de salud física o mental no son condiciones objetivas que puedan quedar registradas de una vez por todas […] Son condiciones que han de ser sondeadas, identificando 9 Até o ano de 2010, a pessoa acima de sessenta anos não podia decidir sobre o regime de bens, devido à presunção de incapacidade. Recentemente, esta idade foi aumentada em dez anos, através da Lei 12.344, de 9 de dezembro de 2010. Talvez amanhã, teremos este marco aos oitenta anos. Mas como ficam as pessoas que se viram restringidas de adotar o regime de bens que queriam e se depararam, logo depois, com a mudança na legislação na qual não seriam mais enquadradas como incapazes de decidir sobre o regime de bens? Poderiam pedir a retificação do regime ao tabelião ou a alteração somente poderia ser feita judicialmente, demonstrando-se a razão para a modificação, conforme prescreve o artigo 1693, §2º, do Código Civil de 2002? Apesar da restrição com relação à escolha do regime de bens, a lei não previu nenhuma restrição de idade em relação à prática de atos como testamento, alienação de bens móveis ou imóveis, doações, dentre outros. Para testar, basta que a pessoa, independente da idade, seja capaz, podendo praticar o ato de forma particular, pública, ou ainda na modalidade de testamento cerrado. Assim, poderá, em caso de não haver herdeiros necessários, dispor da totalidade de seus bens ou, caso haja, da metade deles. No caso do testamento público, a capacidade e o discernimento são verificados pelo Tabelião, tendo em vista que o testador deverá comparecer perante o mesmo e declarar suas disposições de última vontade. Qual seria a justificativa para o legislador ter restringido a autonomia privada no caso da escolha do regime de bens e não tê-lo feito para as disposições de última vontade, ou nos casos de doação e alienação onerosa? Poder-se-ia defender o legislador no sentido de que este buscou, com a imposição do regime da separação de bens, resguardar seu patrimônio durante a vida do cônjuge, já que o testamento é negócio jurídico que só produz efeitos após a sua morte, não impactando na subsistência e no patrimônio da pessoa, em vida. Entretanto, tal argumento cai por terra quando aos maiores de 70 anos também é permitido, independentemente da idade, fazer quaisquer tipos de transações envolvendo bens móveis ou imóveis, inclusive doações. los casos en que el auxilio de un tercero puede acompañar la voluntad débil hacia una decisión en la que el protagonista sea el sujeto interesado. 10 Olhando por este lado, se o objetivo é proteger o patrimônio da pessoa, o caminho seria restringir atos de disposição gratuita (e não apenas a doação universal), ao invés de intervir na formação de sua família. Com o casamento, o patrimônio permanece na esfera patrimonial do casal, sendo obrigatória a anuência dos cônjuges para a prática de diversos atos jurídicos, tais como alienação de bens imóveis e prestação de fiança e aval. Mesmo no caso do regime da comunhão universal de bens, que seria o ato de disposição mais ampla, um dos cônjugesestaria ‘transferindo’ ao outro metade de seu patrimônio (parte disponível), o que seria, em tese, possível ser feito através de doação ou testamento. Não obstante estas questões envolvendo direito material, o ordenamento jurídico se utiliza da obrigatoriedade de instrumento público para a validade e eficácia de diversos atos e negócios jurídicos. Explica Leonardo Brandelli (2007) que: Não é em vão a exigência de determinadas formas dentro do direito. Têm elas o condão de proteger a manifestação da vontade, correta, livre e sem vícios, e, hodiernamente, têm também a função de proteger o hipossuficiente. O instrumento público-notarial tem cumprido a contento tal missão, tutelando a manifestação da vontade e exercendo a polícia jurídica de correção dos atos praticados, bastando para comprovar tal assertiva observar o ínfimo número de escrituras públicas que dão ensejo a lides que deságuam nos tribunais. (BRANDELLI, 2007, p. 209). Esta intervenção se dá através da lavratura dos atos em Tabelionatos de Notas, através do Tabelião e seus prepostos, que agem de forma independente e isenta, analisando a identidade e capacidade das partes no momento da prática do ato, certificando que as partes têm discernimento e consciência relativamente ao ato que está sendo praticado e seus reflexos. A exigência do pacto antenupcial adotar a forma pública, através da lavratura de escritura escolhendo regime de bens diverso do supletivo (comunhão parcial), faz com que as partes sejam obrigadas a comparecer perante o Tabelião, ocasião em que será analisada a capacidade e discernimento para o ato. Assim, por que o legislador deixou a cargo das serventias extrajudiciais a análise da capacidade para atos como testamento, procurações, alienações de bens imóveis, mas 11 restringiu que fosse feito da mesma forma com relação à escolha do regime de bens pelo maior de 70 anos? Entende-se que, caso o legislador julgue ser necessário proteger uma pessoa a partir de determinada idade, esta proteção não pode ter um caráter rígido ou imutável que lhe retire o direito de exercer sua autonomia. Desta forma, deveria ser dado ao maior de setenta anos a possibilidade de comparecer a um Tabelionato onde seria averiguada a sua capacidade e discernimento para se casar sob regime de bens diverso do supletivo, da mesma forma como é feito em diversos outros atos formalizados perante os tabeliães. Stefano Rodotà (2010), discorrendo no sentido de que cada caso deve ser analisado individualmente, sob pena da autonomia privada ser tolhida de forma geral, assim dispõe: O reconhecimento integral da personalidade e, portanto, a plenitude da vida, rompem este regime e impõe, nas imediações da realidade, caso a caso, o reconhecimento de situações que podem e devem ser dado relevância à vontade quem, caso contrário, seria considerado incapaz. Deve ser contemplada a pessoa em uma longa série de facetas concatenadas, reconhecendo-lhe, algumas vezes, sua capacidade autônoma de escolha e, em outras, acompanhada das diversas formas de auxílio8 (RODOTÀ, 2010, p. 44, tradução nossa). Assim, uma das formas de auxílio, como citado por Rodotà, pode-se dar através do Tabelião. Segundo Leonardo Brandelli (2007), “o notário exerce sua função no âmbito da normalidade jurídica [sendo tal função] posta à disposição de todas as pessoas a fim de proteger os seus direitos subjetivos” (BRANDELLI, 2007, p. 165). A prática de atos nos tabelionatos ocorre de forma célere, corriqueira e sem lide, possibilitando a análise de cada situação, de cada negócio jurídico, de cada manifestação de vontade, valorizando a autonomia e buscando a elaboração de um ato hígido e conforme o Direito. 8 El reconocimiento integral de la personalidad y, por tanto, de la plenitud de la vida, rompen este esquema e imponen, en la inmediatez de lo real, caso por caso, el reconocimiento de situaciones en las que puede y debe darse relevancia a la voluntad de quien, de lo contrario, sería considerado incapaz. Hay que contemplar a la persona en una larga serie de facetas concatenadas, reconociéndole unas veces su autónoma capacidad de elección y otras acompañándola con diversas formas de auxilio. 12 Como já exposto anteriormente, com as alterações introduzidas pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência no Código Civil, a teoria das incapacidades passa a ter uma leitura que impõe a análise do caso concreto, da pessoa real, do discernimento para a prática do ato. Essa postura vale não apenas para os ‘incapazes’ que se tornaram capazes, mas também para todos aqueles que se encontrem em situação de vulnerabilidade. O próprio Estatuto do Idoso (Lei 10.741/2003) reconhece a possível vulnerabilidade de pessoas com mais de 60 anos, sendo recomendável que os atos que envolvam a renúncia ou disposição de direitos sejam praticados perante notários. Diversas situações envolvendo vulneráveis já se realizam perante as serventias notariais, nem sempre por exigência legal, mas em razão da atuação preventiva feita pelo notário. O INSS, por exemplo, exige que os segurados nomeiem, somente através de procuração pública, seus procuradores para fins de movimentação e retirada dos benefícios. Com isso, a autarquia federal tem uma garantia maior quanto ao ato praticado pelo procurador, em geral representando um idoso, especialmente no que diz respeito à capacidade do mandante e livre escolha do mandatário. O mesmo ocorre nos negócios jurídicos e mandatos envolvendo analfabetos, haja vista que a não compreensão dos instrumentos escritos podem ser superadas com a interveniência do notário. Instituições financeiras também costumam exigir procuração lavrada por instrumento público para que o correntista outorgue poderes de movimentação da conta- bancária, evitando, assim, discussões acerca do mandato realizado. Esclarece Leonardo Brandelli (2007) que [...] a qualificação jurídica dos atos feita pelo notário latino possibilita a realização de atos jurídicos perfeitos, de acordo com o ordenamento jurídico, de modo a garantir uma eficaz segurança jurídica a priori. Assim, ou a lide não aparecerá, ou, se aparecer, será muito mais facilmente solucionada em razão da prova qualificada consistente no documento notarial, de modo que, nesse sentido, a função notarial diminui significativamente a litigiosidade civil e, por conseguinte, os custos decorrentes dessa litigiosidade. (BRANDELLI, 2007, p. 70). 13 Portanto, talvez o caminho a ser trilhado, na reconstrução da teoria das incapacidades, passe pela atividade notarial, atuando de forma preventiva e individualizada, possibilitando que situações de vulnerabilidade sejam neutralizadas e que a autonomia privada possa ser exercida sem limitações autoritárias e abstratas por parte do Estado-legislador. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao longo do presente estudo tentou-se demonstrar a descabida interferência do Estado na esfera privada, ao impor o regime da separação de bens a pessoa capaz, pelo fato de ser maior de setenta anos. Tendo em vista que já é requisito de validade do pacto antenupcial a sua celebração por instrumento público, a atuação notarial já seria suficiente para averiguar a capacidade das partes e proteger situações de possível vulnerabilidade de algum dos contraentes. No entanto, se a intenção do legislador é proteger o maior de setenta anos, sem extirpar sua autonomia privada, o melhor caminho seria adotar como regime legal supletivo a separação de bens, quando envolver pessoa em potencial situação de vulnerabilidade,permitindo, contudo, que outro regime pudesse ser escolhido, através de escritura pública de pacto antenupcial. REFERÊNCIAS BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp n. 1415.727/SC. Rel. Min. Luis Felipe Salomão. Diário de Justiça Eletrônico, Brasília, 29 set 2014. BRANDELLI, Leonardo. Teoria geral do direito notarial. São Paulo: Saraiva, 2007. CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de direito constitucional. Salvador: Editora JusPodivm, 2015. FARIAS, Cristiano Chaves; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil. Salvador: Editora JusPodivm, 2014. v. 6. FIUZA, César. Contratos. Belo Horizonte: Del Rey, 2010. FIUZA, César. Direito civil: Curso completo. São Paulo: RT, 2014. 14 FIUZA, César. Dignidade humana, autonomia privada e direitos da personalidade. In: FIUZA, César (Org.). Autonomia privada: Direitos da personalidade. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2015. LIMA, Taisa Maria Macena de; SÁ, Maria de Fátima Freire de. Ensaios sobre a velhice. Belo Horizonte: Arrais Editores, 2015. LOUREIRO, Luiz Guilherme. Registros públicos: Teoria e prática. São Paulo: Método, 2012. RODOTÀ, Stefano. La vida y las reglas. Entre el derecho y el no derecho. Madrid: Editorial Trotta, 2010. SÁ, Maria de Fátima Freire de; MOUREIRA, Diogo Luna. A capacidade dos incapazes: Saúde mental e uma releitura da teoria das incapacidades no direito privado. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2011. SÁ, Maria de Fátima Freire de; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira. Manual de Biodireito. Belo Horizonte: Del Rey, 2015. 3.ed. VILLELA, João Baptista. Liberdade e família. Revista da Faculdade de Direito da UFMG, Belo Horizonte, v. 3, n. 2, p. 9-46, 1980.
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