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DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA I 175 jurídicas, seja efetuado pela administração, seja pelo Judiciário, é interpretativo e aplicativo ao mesmo tempo.220 A hermenêutica permite integrar o processo aplicativo dentro do processo in terpretativo , a aplicatio gadameriana é companheira indissociável de toda a atividade interpretativa.221 Daí que, com Gadamer, pode-se concluir que "o conhecimento do sentido de um texto jurídico e sua aplicação a um caso concreto não são atos separados, mas um processo unitário" .222 Em suma, no instante em que se vislumbra a impossibilidade de qualquer agir administrativo sem que ocorra concomitantemente a interpretação, perde qualquer sentido a dicotomia ato vinculado e ato discricionário. Nem mesmo a afirmação de que em um ato haveria maior vinculação ao princípio da legalidade estrita do que em outro prevalece, porque no paradigma em que é obrigatória a resposta administrativa correta ao cidadão, torna-se incipiente falar em maior ou menor vinculação, porque a Administração está sempre vinculada à juridicidade (mormente CF + direitos fundamentais). Na verdade, quando a aplicação da lei é aparentemente mais simples porque o ato administrativo é quase uma tipicidade legislativa, não se está trabalhando com maior discricionariedade ou vinculati- vidade. Nesse caso, o que varia é a maior ou menor profundidade da dimensão hermenêutica, mas não a discricionariedade.223 2.8.2 O mito da interpretação da vontade da lei e vontade do legislador no pós-positivismo Diante de um acesso hermenêutico, não se concebe mais a interpretação como algo a ser descoberto na intenção da lei ou do legislador por meio da aplicação de um método, como professam as correntes objetivistas (voluntas legis) ou subjetivistas {voluntas legislatoris) da interpretação jurídica.224 Pelo contrário, a norma é um 220.Riccardo Guastini. Das fontes às normas. São Paulo: Quartier Latin, 2005. p. 217; v. Friedrich Müller. O novo paradigma do direito. Introdução à teoria e metódica estruturante do direito. 3. ed. São Paulo: "Ed. RT, 2013. n. 3.5, p. 65. 221.Antônio Osuna Fernández-Largõ. Op, cit., p. 51-52. 222.Hans-Georg Gadamer. Verdade e Método cit., vol. 1, p. 463. 223.Por isso, não concordamos com a distinção entre ato vinculado frato discricionário. No aspecto em que se vê uma diferença de tipos de ato administrativo, nós vislumbramos apenas uma maior ou menor complexidade hermenêutica mais que em nada modifica a natureza ou a qualidade que o ato precisa ter. Nas palavras do autor: "A diferença explica-se, no fundo, pela maior ou menor vin culação ao princípio da legalidade estrita, sobretudo porque certa margem de discrição, consciente ou inconscientemente pretendida pelo legislador, se apresenta inevitável". Juarez de Freitas. Op. cit., p. 51. 224.No contexto desta "busca metafísica das vontades" (que obviamente encontra proble mas filosóficos sérios), também o presidente do Supremo Tribunal Alemão, Günter Hisch, 216.Friedrich Müller. Métodos de trabalho de direito constitucional cit., n. II.1, passim. 217.Antônio Osuna Fernández-Largo. La hermenêutica juridical de Hans-Georg Gadamer. Valladolid: Secretariado de Publicaciones Universidad de Valladolid, 1992. p. 11. 218.Idem, p. 51-52. Sobre a relação entre compreensão e interpretação Heidegger ensina: "En Ia interpretación ei comprender se apropia comprensoramente de Io comprendido por él. En Ia interpretación ei comprender no se convierte en otra cosa, sino que llega a ser él mismo. La interpretación se funda existencialmente en ei comprender, y no es este ei que llega a ser por médio de aquélla. La interpretación no consiste en tomar co- nocimiento de Io comprendido, sino en Ia elaboración de Ias posibilidades proyectadas en ei comprender". Martin Heidegger. El sery ei tiempo. Trad. José Gaos. 2. ed. México: FCE, 2007. p. 172. 219.Hans-Georg Gadamer. Verdade e método cit., vol. 1, p. 444. 174 I DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA E JUDICIAL De acordo com o que concluímos no primeiro capítulo, não há um descobrir da norma, a partir de um significado já contido dentro de seu texto ou na vontade do legislador, e, sim, um produzir/atribuir sentido à norma diante da problematização, seja para deslinde de lide, seja para decidir qual a ação administrativa constitu- cionalmente adequada ou a decisão jurídica apta a solucionar a lide sub examine. Toda a interpretação é, ao mesmo tempo, aplicação que culmina no ato pro dutivo da norma, que, por sua vez, não pode corresponder ao texto normativo que representa seu programa da norma. Daí que compreender não é um processo linear, e interpretar a legislação vigente, para decidir qual a ação constitucionalmente mais adequada, também não. A hermenêutica não é, simplesmente, reduzível a um recuperar a pura intenção do autor (nem da lei) e, sim, revelar sua verdade (não vontade); assim, interpretar não é um simples reproduzir, e, sim, de um produzir; não servir, mas perguntar; não absolutizar o texto, mas revivê-lo. Ou seja, interpretar é ato produtivo de lin guagem não reprodutivo. Desse modo, também não é mais possível coadunar com a discricionarieda- de volitiva. Atualmente, perscrutar pela vontade da lei ou do legislador, não tem mais o condão de assegurar nenhuma contribuição para a correta compreensão da Constituição e de sua respectiva concretização.216 É por meio da hermenêutica que, hoje, deve se buscar a concretização da Constituição, porque é ela quem permite a transição do direito de uma gramatical interpretação para uma busca da significação histórica do próprio texto.217 No paradigma pós-positivista, o acesso a um determinado texto supera a visão positivista, passa a ser um processo unitário, não somente a compreensão e a interpretação, mas também o da aplicação.218 Nesse sentido, Gadamer asseverou que "o sentido de um texto supera seu autor não ocasionalmente, mas sempre. Por isso a compreensão não é nunca um comportamento somente reprodutivo, mas é, por sua vez, sempre produtivo".219 Com a aplicatio, o ato decisório de questões Daí que surge a necessidade de se diferenciar, através da linguagem, essa especifici dade do Ser-aí. Heidegger joga, então, com a palavra alemã Geschehen que significa acontecer. De Geschehen o filósofo deriva Geschichte e Geschichtlichkeit. Com o termo Geschichte, Heidegger determina a história enquanto acontecer humano, diferente de Historie que designa ciência dos eventos históricos. Já Geschíchtlichkeít, que se traduz tradicionalmente por historicidade, se refere ao caráter de acontecência que reveste a própria existência humana. Isso permitirá ao filósofo mostrar que, a ausência de um saber histórico não é, de forma alguma, prova contra a historicidade do Ser-aí. Isto é sim, enquanto modo deficiente desta constituição de ser, uma prova a seu favor, pois, uma determinada época somente pode carecer de sentido histórico (unhistorisch sein) na medida em que é historiai (Geschichtlich) • Assim, o universo de fundamentação e limites das ciências humanas deve ser pensado a partir da historicidade do humano, a partir de uma apropriação positiva do passado e da plena posse de suas mais próprias possibilidades e questionamentos. Cf. Ser y Tiempo cit., p. 43-50). Um exercício desse modo fenomenológico-hermenêutico de se pensar os efeitos da história no direito pode ser encontrado em Rafael Tomaz de Oliveira. A Constituição e o Estamento: contribuições à patogênese do controle difuso de constitucionalidade brasileiro. In: Lenio Luiz Streck, Vicente de Paulo Barretto e Alfredo Santiago Culleton (orgs.). 20 anos de Constituição: os Direitos humanos entre a norma e a política. São Leopoldo: Oikos Ed., 2009. p. 215-240. 226.Osuna Fernández-Largo. La hermenêutica jurídica de Hans-Georg Gadamer, Valla-dolid: Secretariado de Publicaciones Universidad de Valladolid, 1992, p. 56. Cf. Jerzy Wróblewski. Constitución y teoria general de Ia interpretación jurídica. Madrid: Civitas, 1985, p. 76. Também neste sentido Lenio Luiz Streck. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise cit., n. 10, p. 181 etseq. 227.Osuna Fernández-Largo. Op. cit., p. 65. Friedrich Müller ensina que "a concretização do direito, impossível fora da linguagem, sempre é cocaracterizada por esse horizonte universal pré-juridico da compreensão. Ao lado dos seus problemas de interpretação, o texto, também o texto normativamente intencionado da norma jurídica, veicula ao mesmo tempo uma precedente referência material do intérprete a esses problemas". Teoria estruturante do direito cit., n. l.V, p. 59. DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA I 1 77 interpretação do texto, ocorre uma fusão de horizontes, um diálogo hermenêutico que possibilita a compreensão do texto.226 Nesse contexto, não há interpretação fora da história, logo, não há uma com preensão originária da norma e, posteriormente, uma aplicação dela, o que existe é um momento único em que ocorre a interpretação e a aplicação (interpretar já é aplicar!) suscitado pela condição do intérprete em um processo circular com a tradição do mesmo texto.227 Por todas essas razões, não concordamos com a possibilidade de se cogitar a incidência de uma discricionariedade volitiva, uma vez que inexiste interpretação fora da historicidade, ou seja, não há forma de se alcançar uma interpretação origi nária de algo a representar a vontade da lei, do legislador ou do administrador. Do mesmo modo que não há aplicação da lei sem interpretação. Assim sendo, não é possível preconizar-se que a Administração Pública atue em conformidade com a professa a tese de que o problema metodológico da interpretação do direito se resume a uma decisão pelo intérprete sobre aquilo o que se busca como telos interpretativo, ou seja, a vontade da lei ou a vontade do legislador. Nas palavras do autor: "ei método de Ia interpretación de Ia le yes Ia brújula de Ia determinación de derecho. La pregunta fundamental es si ei objetivo de Ia interpretación es lá investigación y ei respeto de Ia voluntad real dei legislador o si Io es ei sentido normative de Ia ley. Esta dicotomía de Ias llamadas teorias subjetiva y objetiva marco Ia doctrina filosófico-jurídica y metodo lógica relevante de los siglos XIX y XX en Europa". Günter Hisch. La jurisdicción en ei Estado de derecho: entre Ia sujeición a Ia ley y Ia interpretación cuasilegislativa. Anuario de Derecho Constitucional Latinoamericano. ano 14. p. 127-147. Berlin/Montevideo: Konrad - Adenauer - Stiftung, 2008. 225. É importante esclarecer que essa historicidade que as teorias hermenêuticas reivindicam como horizonte no qual o saber das ciências humanas acontece não se confunde com uma espécie de consciência historiológica, entendida como conhecimento acumulado dos eventos do passado. Isso se dá porque, em Ser e Tempo, iniciando a analítica existencial do Ser-aí, Heidegger precisa estabelecer um aceno prévio do modo de ser deste ente. No 6., onde o filósofo anuncia a tarefa de uma destruição da história da ontologia, Heidegger afirma que o Ser-aí 'é' seu passado. O Ser-aí é seu passado na forma própria do seu ser, ser que acontece sempre desde seu futuro. O filósofo mostra algo que pode soar estranho: ele afirma que o passado do Ser-aí não se situa atrás deste ente, mas sempre e a cada vez lhe antecipa. Ou seja, as possibilidades do Ser-aí são limitadas por aquilo que de alguma forma eleja é. Esse "ter que ser o que já é" Heidegger denomina estar jogado no mundo, ao passo que sua existência, enquanto possibilidade, denomina-se estar lançado. No seu ter que ser, ou estar jogado no mundo, o Ser-aí se encontra já sempre imerso em uma tradição, embora disso ele não seja necessariamente consciente. Esse ser histórico que atravessa o Ser-aí por todos os lados é o que propriamente designa sua historicidade. Como diz Gadamer: "ele só possui uma tal consciência porque é histórico. Ele é seu futuro, a partir do qual ele se temporaliza em suas possibilidades. Todavia, o seu futuro não é o seu projeto livre, mas um projeto jogado. Aquilo que ele pode ser é aquilo que eleja foi". Hermenêutica em retrospectiva. Petrópolis: Vozes, 2008. vol. 2, p. 143. produto da interpretação, ela tem o caráter de atribuição de sentido a um texto que se manifesta na linguagem a partir de um processo de mediação com a Tradição, que é o espaço de atuação do aplicador do direito. Justamente em razão de a atividade interpretativa ser sempre histórica, porque o texto somente é abordável a partir da historicidade do intérprete, não é possível mantermos a crença em conceitos puramente metafísicos e anistóricos, tais como a vontade da lei e do legislador que seriam imutáveis ao longo do tempo, sempre alheios à historicidade. Portanto, o aplicador do direito não se torna um ser histórico apenas quando se desdobra sobre o produto da cultura no estudo da disciplina "história", mas, mesmo quando efetua uma interpretação no nível de um campo, como é o do direito, ali também operam com ele os efeitos da história. Esse, talvez, seja o mais importante significado daquilo que Gadamer chama "consciência da história efetuai".225 Na DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA E JUDICIAL176 da chamada Petititon ofRight, que consistia em importante declaração de direitos, visto que foi a primeira declaração a restringir os poderes da Coroa Inglesa desde a ascensão dos Tudor. A obra e o prestígio de Coke contribuíram fortemente para a consolidação da common law e para a independência do Judiciário para o poder político. Sua atuação também lançou diversos fundamentos jurídicos para a tutela dos direitos fundamentais, bem como influenciou fortemente os protagonistas da revolução norte-americana. Cf. Francisco J. Andrés. Edward Coke. In: Rafael Domingo (org.). Juristas Universales: Juristas Modernos. Madrid: Marcial Pons, 2004. vol. 2, p. 292-298. Para uma análise pormenorizada da vida e da obra de Edward Coke, ver: Humphry W. Woolrych. The Life ofthe Right Honourable Sir Edward Coke. Lord Chief of Justice ofthe King's Bench. London: J. & W. T. Clarke Law Booksellers and Publishers, 1826. 231.Comentando o caso Bonham, ver: Fernando Rey Martínez. Una relectura der Dr. Bonham's Casey de Ia Aportación de Sir Edward Coke a Ia Creación de Ia Judicial Review. In: Eduardo Ferrer Mac-Gregor e Arturo Zaldivar Leio de Larrea (orgs.). La Ciência dei Derecho Procesal Constitucional. Estúdios en homenaje a Héctor Fix-Zamudío, México: Marcial Pons, 2008. p. 847-866. Nicola Matteucci. Organización dei Podery Libertad cit., n. 4, p. 91 et seq. Ver ainda: Nicola Matteucci. Breve Storia dei Costituzionalismo. Brescia: Morcelliana, 2010. Cap. 3, p. 58. 232.Para uma exposição da doutrina Jenkins, conferir: Fernando Rey Martínez. Op. cit., n. II, p. 852-854. 233.Idem, p. 852. DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA 1 79 consolidação da técnica da judicial review consagrada no caso Marbury vs Maãison. Além da judicial review, o caso Bonham também traria os antecedentes históricos, necessários para a estruturação do preceito judicial da razoabilidade, e, doravan te, consoante passamos a demonstrar, necessários ao controle do mérito do ato administrativo.231^ Antes de se examinar o que foi decidido no caso Bonham, faz-se necessário examinar seu antecedente histórico que é a doutrina Jenkins (Jenkins Doctrine) ,232 Tanto o caso Jenkins, quanto o Bonham, são oriundos de conflitos judiciais envol vendo o Colégio de Médicos da Inglaterra, instituição criada pelo Lord Canciller Card Woísey, em 1518, sob o reinado de Henrique VIII. O Colégio de Médicos era a instituição responsável pela concessão delicença para a prática da medicina. Em 1540, foi promulgada pelo Parlamento Inglês a lei (Act ofParliamenf) que concedeu amplos poderes para o Colégio. A partir dela, o Colégio de Médicos, além de admitir e expulsar sócios, passou a poder apenar com prisão os infratores que praticassem medicina sem licença, ou fizessem mau uso dela, mantendo-os presos durante o tempo que considerasse oportuno.233 O Colégio de Médicos era uma instituição que não possuía vínculo com ne nhuma Universidade e durante o século XVI utilizou de seus generosos poderes, conferidos pelo Act ofParliament de 1540, para perseguir diversos médicos. Um 228.Fizemos essa relação em obra já publicada, ocasião em que analisamos a decisão Bonham, ver: Georges Abboud. Jurisdição constitucional e direitos fundamentais cit., n. 5.4.3.1, p. 343 et seq. 229.Para consultar a decisão do caso Bonham ver: John Henry Thomas e John Farquhar Fraser (org.). The Reports of Sir Edward Coke ín thirteen parties. London: Joseph Butterworth and Son, 1826., vol. 4, n. 107a-121a, p. 355-383. Christopher Wolfe destaca que o caso Bonham teve maior influência fora da Inglaterra do que em seu país de origem. Christopher Wolfe. The rise of modem judicial review: from constitutional interpretation to judge-made law. Boston: Littlefield Adams Quality Paperbacks, 1994. n. 4, p. 90-91. 230.Edward Coke, (1552-1634) jurista e político inglês, cuja firma atuação da primazia da common law e das liberdades fundamentais frente ao absolutismo real, o colocou em lugar de honra na história jurídica da Grã Bretanha. Coke nasceu em Mileham, no dia 01.02.1552. Na qualidade de jurista, exerceu diversos cargos jurídicos merecendo destaque o de attorney general, no qual se destacou perse guindo os opositores da Coroa. Em 1603, quando subiu ao trono Jacobo I (1603-1625), Coke foi nome Chiefof Justice da Court of the Common Pleas (tribunal responsável por solucionar as principais lides de direito privado do País). Foi na qualidade de Chief of Justice do Common Pleas que Coke teve atuação destacada sempre defendendo a common law contra abusos do Rei e do próprio Parlamento. Nessa passagem, foi decidido o Bonham's case. Devido a sua independe e forte atuação, Jacob I, por sugestão de Bacon, nomeou Coke Chief of Justice do tribunal do King's Bench que, em teoria, seria o órgão máximo em termos de autoridade judicial. Novamente, devido a sua independente atuação, Coke confrontou-se novamente com a Coroa, tendo em 1616 sido acusado de delitos pelo Conselho Privado do Rei. Após a morte de Jacob I, Charles I (1625-1649) convocou novo Parlamento. Coke, por sua vez, retornou ao Parlamento em 1628 desempenhando relevante papel na elaboração 178 DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA E JUDICIAL legislação e a Constituição sem que ao mesmo tempo realize a interpretação desses diplomas legislativos. 2.9 Crítica histórico-decisória: o caso Bonham como o precedente histórico mais importante do controle do mérito do ato administrativo 2.9.7 Aspectos gerais do BonhanVs case O caso Bonham, em nosso entendimento, é o precedente judicial mais impor tante da história do direito constitucional ocidental. Ele pode ser apontado como o precedente formador do preceito da razoabilidade, da judicial review,228 e, conforme demonstraremos neste item, talvez ele seja o primeiro caso emblemático em que, efetivamente, houve controle do mérito de um ato administrativo pelo Judiciário. O caso Bonham (Bonham's case-The College ofPhysicians vs Dr. Thomas Bonham)229 figura entre os casos mais importantes em que atuou Sir. Edward Coke.230 Esse caso é considerado o antecedente mais importante para a formação e 236.Idem, n. III, p. 857. 237.Nas exatas palavras de Coke: ."The first reason was, that these two absolute, perfect and distinct clauses, and as paraflels and therefore the one did not extend to the other; for the second begins, praeterea voluit et concessilv, & c. and the branch concerning fine and imprisonment is parcel of the second clause. 2. The first clause prohibiting the practice of physic, &. Comprefends four certainties: 1. Certainty of the thing pro- hibited, se, practice of physic. 2. Certainty of the time, se. Practice for one month. 3. Certainty of penalty, se. 51. 4. Certainty in distribution, se. One moiety to the King, and the other moiety to the college; and this penalty he who practices physic in London incurs, although be practices and uses physic well, and profitable for the body of man; and on this branch the information was exhibited in the Kings Bench. But the clause to punish delicta in non bene exequendo, &c. on which branch the case the case at bar stands, is altogether uncertain, for the hurt which may come thereby may be little or great, lexe vel grave, excessive or small, &c. and therefore the King and the makers of the act could not, for an offence so uncertain, impose a certaint of the fine, or time of imprisonment, but leave it to the censors to punish such offences, secundum A lide travada entre Bonham e o Colégio de Médicos foi instaurada no Tribunal (Common Pleas) com a presidência de Coke. Nesse processo, Bonham reclamava cem libras a título de danos particulares, em razão de false imprisonment por parte do Colégio de Médicos. Ocorre que o texto da Lei de 1540 era claro em estabelecer possibilidade de o Colégio de médicos apenar a quem exercesse medicina sem li cença (prática ilícita), ou fizesse seu mau uso (malpraxis). A Lei também outorgava ao Colégio a possibilidade de realizar prisões. Por sua vez, Bonham defendia seu ponto de vista com fundamento no espírito da lei. Afirmava que a Lei tinha a intenção de prevenir práticas médicas incorre tas que seriam as realizadas por impostores. Todavia, ele era médico formado na Universidade de Cambridge e, por possuir título universitário, estaria isento da jurisdição do Colégio de Médicos. Paralelamente ao julgamento no Tribunal do common law, o caso foi decidido pelo Tribunal do King's Bench, no dia 03.02.1609. Bonham foi condenado por prática ilícita de medicina e condenado a pagar sessenta libras. Por não ter essa quantia, foi decretada sua prisão. Após um ano, o caso foi decidido a favor de Thomas Bonham pelo Tribunal (Common Pleas). A votação foi por maioria: três votos favoráveis e dois contra.236 A tese favorável a Bonham prevaleceu em virtude da sofisticada decisão proferida por Edward Coke. A decisão de Coke começa com premissa de que a autoridade concedida pelo rei ao Colégio de Médicos concedia dois poderes dife rentes com fundamento em duas cláusulas distintas. A primeira referia-se à prática ilícita, que permitia ao Colégio multar quem exercesse a medicina sem sua licença. A segunda, dizia respeito ao exercício da má (errônea) prática médica que poderia ser apenada com a prisão.237 181DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA 234.Idem, p. 853. 235.Idem, n. III, p. 854-855. 1 80 DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA E JUDICIAL desses médicos foi Roger Jenkins, que havia recusado se submeter à autoridade do Colégio que imediatamente determinou sua prisão. Em seguida, Jenkins impetrou habeas corpus, a fim de obter sua liberdade provisional para o Tribunal (Common Pleas). O mérito do habeas corpus foi julgado pelo ChiejJustice Popham, que decidiu a favor do Colégio de Médicos, afirmando que ele teria competência suficiente para decretar a prisão dos infratores, asseverando ainda que os tribunais não podem decidir sobre a liberdade dos infratores, mas tão somente apreciar as formalidades da decisão do Colégio dos Médicos.234 Essa passagem é emblemática de nossa atual concepção sobre a revisão ju- risdicional do ao administrativo. No caso Jenkins, o Judiciário, após ser instado, negou-se a analisar o mérito do ato administrativo (decisão do Colégiode Médi cos) afirmando que somente poderia perscrutar por suas formalidades. Ou seja, o mérito da decisão estaria englobado pelos atuais e performáticos critérios de conveniência e oportunidade, cuja função é blindar o ato administrativo de uma análise da legalidade/constitucionalidade. Desse modo, antes de surgir o caso Bonham, o Tribunal (Common Pleas) já havia corroborado a autoridade regulatória e sancionatória do Colégio de Médicos de Londres, negando-se a analisar o mérito de seu ato. Tal situação mudará radi calmente com o caso Bonham. No ano de 1605, o médico Thomas Bonham, que havia estudado medicina em Cambridge, submeteu ao Colégio petição solicitando o direito de administrar medicamentos. O Colégio de Médicos negou o pedido. Em seguida, Thomas Bonham quan do convocado, apresentou respostas que foram consideradas impertinentes pelo Colégio e exerceu a medicina por algum tempo, sem autorização para tanto. A atitude de Bonham lhe rendeu multas impostas pelo Colégio de Médicos. Além das multas, após comparecer perante o Presidente do Colégio (Henry Atkins), Bonham contestou a autoridade do Colégio e afirmou que essa instituição não teria poder contra os universitários graduados em medicina. Em seguida, Bonham foi preso por desacato em Newgate. Após a prisão, em menos de uma semana, o advogado de Bonham conseguiu obter habeas corpus no Tribunal (Common Pleas), presidido agora pelo Chefe de Justiça, Edward Coke. Entretanto, a concessão desse habeas corpus contrariava o que havia sido estabelecido na jenkins doctrine. O Colégio de Médicos, após consultar comitê seleto de juizes e por estar plenamente confiante no precedente Jenkins, resolveu levar o assunto para os tribunais do common íaw.235 24E STJ, REsp 804648/DF, 1." T, j. 14.08.2007, rei. Min. Luiz Fux, DJ 03.09.2007. 242.STJ, RMS 15959/MT, 6.a T, j. 07.03.2006, rei. Min. Quáglia Barbosa, DJ 10.04.2006. 243.STJ, MS 10557/DF, 3.a Seção, j. 09.11.2005, rei. Min. Paulo Medina, DJ 06.02.2006. 244- STJ, REsp 647417/DF, l.a T, j. 09.11.2004, rei. Min. José Delgado, DJ 21.02.2005. DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA 1 83 substituindo o juízo de valor de competência da Administração Pública pelo seu próprio. Porém, admitiu o controle judicial da legalidade do ato administrativo.241 No mesmo sentido, no RMS15959242 o Tribunal, analisando decisão proferida em processo administrativo disciplinar, entendeu que, no caso, as garantias do contraditório e da ampla defesa haviam sido estritamente observadas pela comissão processante, que conferiu ao administrador pelo acesso aos autos ao acusado, bem como todos os recursos e meios necessários à sua defesa. Entendeu, ainda, que ao Poder Judiciário compete apenas o controle da legalidade do ato administrativo, ficando impossibilitado de adentrar no exame do mérito do ato, sob pena de invadir competência alheia e usurpar a função administrativa, conferida precipuamente ao Executivo. Por isso, negou-se provimento ao recurso. Ainda sobre a questão, no julgado 10557,243 o STJ entendeu, diante de mandado de segurança impetrado contra ato denegatório de anistia política, que a via eleita pelo interessado é inadequada. Considerou que o controle de mérito da decisão administrativa, segundo o qual o ato de demissão do impetrante não teve cunho de perseguição política, não pode ser realizado pela via estreita do mandado de segu rança, que exige a comprovação, de plano, do direito postulado pelo impetrante. Assim, apesar de admitir, aparentemente, que se possa controlar judicialmente o mérito do ato administrativo, o Tribunal denegou a ordem, com fundamento na inadequação da via eleita. Já no REsp 647417, o STJ, apesar de admitir reformar a decisão sancionatória dada em processo administrativo, fez questão de ressaltar que a reforma não inva dia o mérito, pois limitava-se tão somente a assegurar o princípio da legalidade e o cumprimento do edital. No referido caso,244 o STJ considerou correta decisão judicial que anulou cláusula editalícia, mesmo não estando ela eivada de vício. O Tribunal entendeu que a Admi nistração Pública desrespeitou a norma do edital e, com isto, infringiu o princípio da legalidade a que está sujeita. Por isso, o controle judicial do ato não é invasivo de competência alheia. O Tribunal também afastou a tese de que houve invasão do mérito do ato administrativo pelo acórdão recorrido, uma vez que o administrativo dispõe de poder discricionariedade para fazer uso correto dela, não para aplicar punições ilegítimas. No caso, o ato administrativo acatado havia aplicado punição ilegítima, e o acórdão recorrido apenas fez prevalecer o edital. O Tribunal entendeu ^ue a discricionariedade possui limites, que, se desrespeitados, transformam o ato discricionário em ato arbitrário, ensejando, assim, a proteção judicial. quantilatem delicti, which is in included in these words, per fines, amerciamenta, im- prisonamenta corporum suorum, et per alias vias rationabiles et congruas". John Henry Thomas e John Farquhar Fraser (orgs.). Op. cit., vol. 4, n. 117b, p. 374-375. Fernando Rey Martinez. Op. cit., n. III, p. 858. 238.Idem, p. 859. 239.Idem, ibidem. 240.STJ, MS 17515/DF, l.a Seção, j. 29.02.2012, rei. Min. Teori Albino Zavascki, Dje 03.04.2012. 182 DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA E JUDICIAL Para Coke, não era lícito ao Colégio apenar com prisão quem praticasse a me dicina sem a licença do colégio, mas, de maneira adequada. Contudo, essa conduta somente poderia ser multada. Coke afirmava que existiria grande diferença entre praticar a medicina sem licença e a praticá-la de maneira incorreta. Fernando Rey Martinez, ao interpretar a decisão de Coke, afirma que ela teria realizado uma distinção entre infração administrativa (exercer medicina sem licença) e infração penal (exercer medicina de forma incorreta). A segunda infração, tendo em vista a gravidade do dano que poderia provocar, seria a única que poderia acarretar pena de prisão.238 Nesse sentido, além da importância para a construção da judicial review, Coke teria antecipado princípios fundamentais do direito sancionador no Estado de Direito, e.g., o direito penal figurar como a última ratio para o Estado agir e a obrigatoriedade de se examinar a proporcionalidade (razoabilidade) das penas.239 Na realidade, Coke adentrou no mérito do ato administrativo do Colégio de Médicos e reformou a decisão aplicada, que, não obstante estar em conformidade com a legislação vigente, apresentava-se desarrazoada do ponto de vista jurídico. 2.9.2 Diferença qualitativa do Bonham's case em relação aos julgados dos Tribunais brasileiros hodiernos Para se atestar a relevância da decisão do caso Bonham, decidido em 1610, colacionamos algumas decisões recentes do STJ sobre vexata quaestio. No MS 17515/DF,240 que versa sobre processo administrativo disciplinar, o Tribunal deliberou, em conformidade com a orientação jurisprudencial consolidado do Tribunal, que o controle jurisdicional dos processos administrativos limite-se à regularidade do procedimento, à luz dos princípios do contraditório, da ampla de fesa e do devido processo legal, sem análise do mérito administrativo, que incumbe somente ao administrador. Por isso, entre outras razões que não dizem respeito ao problema da discricionariedade, negou-se a segurança. Em outra oportunidade, em questão envolvendo o poder disciplinar das autoridades de trânsito, o Tribunal entendeu que, de acordo com o entendimento "cediço", não incumbe ao Judiciário adentrar no mérito do ato administrativo, 248. Coke destaca que a lei seria contrária à common law, por conseqüência, deve ser controlada. Verbis: "And it appears in our books, that in many cases, the common law Will (d) controul acts of parliament, and sometimes adjudge them tobe utterly void: for when an act of parliament is against common right and reason, or repugnant, or impossible to be performed, the common law Will controul it, and adjudge such act to be void". John Henry Thoríias eJohnFarquhar Fraser (orgs.). Op. cit., vol. 4, n. 118a, p. 375. Fernando Rey Martínez. Op. cit., n. IV, p. 861. •^9. Para exame em que se afirma aTmportância de Coke para limitar o poder da Admi nistração, ver: Miguel Beltrán de Felipe. Discrecionalidad administralive y constitución. Madrid: Tecnos, 1995. p. 49-51. -'^- Essa é a leitura que fazemos do caso Bonham. Nicola Matteucci também visualiza nesse caso a origem da judicial review que se formou nos Estados Unidos. Cf. Nicola Matteucci. Organización dei Podery Libertad cit., n. 4, p. 91 et seq. Em posição intermediária, ver Fernando Rey Martínez. Op. cit., n. IV, p. 865. 1- Nicola Matteucci. Breve Storia dei Costituzionalismo cit., Cap. 3, p. 59. ^• Nicola Matteucci. Organización dei Podery Libertad cit., n. 4, p. 91. ^er. John Henry Thomas eJohnFarquhar Fraser (orgs.). Op. cit., vol. 4, n. 118a, p. 375. absurda (repugnant), porque iria contra o preceito já consolidado no common law (Je que ninguém pode ser simultaneamente juiz e parte no mesmo processo.248249 Tal assertiva viciaria o mérito do ato administrativo embasado nessa lei. 2.9.3 O paradigma Bonham para a judicial review do mérito administrativo Assim, Coke, ainda que de maneira marginal (âictum), admite a correção e a limitação da legislação vigente com fundamento em preceitos jurídicos consagrados historicamente pelo common law.250 No mesmo diapasão, Nicola Mateucci destaca que a interpretação exata do caso Bonham pode ser controvertida, contudo, é inegável que tanto para a Inglaterra quanto para os Estados Unidos, o Bonham's case constitui o início do desenvolvi mento da máxima que admite a revisão da lei pelo Poder Judiciário, qual seja, o próprio controle de constitucionalidade das leis.251 Na referida decisão, Coke destacou que o common law regula e controla os atos do Parlamento, e, em certas ocasiões, julga-os todos nulos e sem eficácia, uma vez que, quando um ato do Parlamento é contrário ao direito e à razão comum, o common law o controlará e o julgará nulo e sem eficácia. Coke destaca a existência de um direito superior à lei do Parlamento e que estaria contido na própria historicidade, dado que uma lei tem validade formal quando deriva do Parlamento. Contudo, esta somente adquire validade substancial, quando é racional, e o controle de seu conteúdo corresponde aos juizes do common law.252 185DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA 245.RMS 21259/SP, 5.a T., j. 18.11.2008, rei. Min. Felix Fischer, DJe 02.02.2009. No mesmo sentido do entendimento quanto à discricionariedade em processos adm1' nistrativos disciplinares: RMS 19.741/MT; MS 12.927/DF; MS 12.983/DE 246.A definição de repugnant, em dicionário consagrado, é a seguinte: "adj. InconsiS' tent or irreconcilable with; contrary or contradictory to the courfs interpretation Ws repugnant to the express wording of the statute". Bryan A. Garner (org.). Blacfe's ^^ Dictionary. 7. ed. St. Paul: west Group, 1999. verbete: repugnant, p. 1306. 247.Fernando Rey Martínez. Op. cit., n. iy p. 860. Em todos os casos acima listados, constata-se que a jurisprudência do STJ é refratária ao "^ame do mérito do ato administrativo que imponha sanção ou apene alguém. Em caso isolado,245 o STJ afastou a existência de discricionariedade qjdminis- trativa (juízo de conveniência e oportunidade) no ato que impõe sanção disciplinar, razão pela qual o controle judicial, em casos dessa natureza, é amplo, e não se limita a aspectos formais, mas também a questões tipicamente de mérito do ato. No caso, porém, a pena aplicada (demissão do recorrente) não foi desproporcional, porque precedida de regular procedimento administrativo disciplina em que restaram com provadas irregularidades de natureza grave. Por isso, negou-se provimento ao recurso. Portanto, é possível depreender que a jurisprudência do STJ está mais alinhada com a doutrina jenfeins do que com o que ficou decidido posteriormente no caso Bonham. É nesse diapasão que se vislumbra o quão paradigmático é o caso Bonham. Há mais de quatro séculos, o Judiciário inglês, em virtude da atuação precursora de Edward Coke, admitiu revisar o mérito do ato administrativo sancionador, superando entendimento anterior, porque a pena imposta pelo ato administrativo apresentava-se desarrazoada, por conseqüência, violaria a historicidade do próprio common law. O controle do mérito do ato administrativo pode ser melhor visualizado quando examinamos a argumentação constitucional subjacente ao voto de Coke. A questão constitucional, ínsita ao Bonham's case, não constitui o núcleo dessa decisão, caracterizando-se como obiter áictum. Coke realiza sua argumentação afirmando que a cláusula que permitia ao Colégio apenar a prática de medicina sem licença, consistiria em cláusula contraditória e absurda (repugnant) ,246 uma vez que permitiria que o Colégio de Médicos fosse, ao mesmo tempo, juiz e parte no processo.247 Desse modo, a lei que permitia ao Colégio de Médicos, a um só tempo, sancio nar o exercício de medicina sem licença por meio de procedimento no qual ele seria ao mesmo tempo parte (acusadora e beneficiária de eventual sanção) e juiz seria contraditória. Na realidade, a teratologia jurídica era tamanha que foi considera DISCRICIONAR1EDADE ADMINISTRATIVA E JUDICIAL184 5. A decisão pode ser vista no sítio eletrônico: [http://www.justis.cotn/data-coverage/ iclr-s4821028.aspx]. O precedente mais paradigmático sobre teste de razoabilidade é o Associated provincialpicturehouses, limitedv. Wednesbury corporation.255 Trata-se de ação em que a companhia cinematográfica interessada questionou o mérito de decisão da Associação que era autoridade licenciada para conceder alvarás para realização de performances artísticas aos domingos, conforme o s.l, sub-s 1, do Sunday Entertainments Act, de 1932. Isto porque a licença foi concedida sob a condição de que nenhuma criança com idade abaixo de 15 anos seria admitida a qualquer entretenimento, ainda que estivesse acompanhado por adultos. Nestas condições, os interessados propuseram a ação para declarar que as condições eram excessivas e desarrazoadas. Assim, a Corte julgou que, ao se examinar se uma autoridade, ainda que pos suidora de grande poder, agiu desarrazoadamente, o Tribunal só pode investigar o ato da autoridade no sentido de verificar se tal ato levou em consideração qualquer matéria que não deveria ter avaliado, ou que desconsiderou matérias que deveria ter avaliado. A Corte não poderia interferir no mérito da Administração como uma autoridade de apelação para rever as decisões administrativas, mas deve agir apenas como autoridade judicial para rever se o ato administrativo foi contrário à lei, agindo em excesso de poder. Ou seja, se a autoridade agiu fora da esfera de poder concedido pelo Parlamento. O que é interessante notar é a fundamentação utilizada na decisão Wednesbury, de forma similar ao Bonham's case, novamente o ato administrativo é controlado por contrariar o preceitos normativos importantes (higher law) do common law. Em suma, a decisão aproxima-se de efetivo controle de constitucionalidade do ato administrativo, a linha argumentativa posta alinha-se ao mecanismo de controle utilizado no caso Bonham que é a forma de se realizar controle de constituciona lidade em ordenamento que inexiste Constituição escrita. 2.9.4 Perspectiva do exame do mérito administrativo na doutrina pátria A doutrina nacional, do mesmo modo que a jurisprudência, ainda é em grande parte refratário ao exame do mérito do ato administrativo. Miguel Seabra Fagundesentende que o mérito do ato relaciona-se a apreciações que somente podem ser avaliadas pelo próprio administrador, sendo defeso ao juiz analisá-lo. Porque se o "fizesse exorbitaria, ultrapassando o campo da apreciação jurídica (legalidade ou legitimidade), que lhe é reservado como órgão específico de preservação da ordem legal para incursionar no terreno da gestão política (discricionariedade), próprio dos órgãos executivos. Substituir-se-ia ao administrador, quando o seu papel não é 187DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA 253.Beltrán de Felipe. Op. cit., p. 63 et seq. 254.Idem, p. 79 et seq. 186 DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA E JUDICIAL O racional referido por Coke pode ser entendido como o estar de acordo com a historicidade. Co|^ efeito, ao Judiciário caberia exercer o controle dos demais atos de poder público que fossem violadores dos direitos fundamentais historicamente assegurados aos cidadãos, ainda que parte desses atos estivesse em consonância com a legislação vigente, mas em confronto com a historicidade (common law). Frise-se que, no caso Bonham, ao contrário do Marbury vs Madison, o ato controlado não tinha caráter legislativo. O que efetivamente se controlou no caso Bonham foi uma decisão administrativa do Colégio de Médicos, oriunda de processo disciplinar. Da mesma maneira que a atividade do Parlamento impõe limites ao poder real, a supremacia dele não pode ser interpretada como absoluta soberania. Assim, o Judiciário, principalmente, por meio da judicial review, tem a função primordial de limitar os dois outros poderes, buscando resguardar os direitos fundamentais dos cidadãos. Em virtude de toda a inovação e particularidades que circunscrevem o caso Bonham é que o elencamos como o precedente paradigma para se teorizar o con trole do mérito do ato administrativo. Por meio do referido caso, a partir do voto de Edward Coke, modificou-se o anterior entendimento (doutrina Jenkins) que negava ao Judiciário a possibili dade de efetuar o controle do mérito do ato administrativo. A doutrina superada afirmava que ao Judiciário somente era permitido avaliar a correção dos aspectos formais do ato, sem nunca adentrar a análise do mérito desse mesmo ato, ín casu, a penalidade aplicada. No caso Bonham, a lei permitia ao Colégio de Médicos aplicar a lei imposta ao médico. Contudo, Coke considerou que o ato administrativo oriundo dessa lei, ainda que formalmente correto, em sua materialidade violava a razoabilidade e a historicidade ínsita ao common law. Em termos simples, Coke, em 1610, proferiu decisão cujo conteúdo é, inclu sive, mais inovador do que a própria jurisprudência vigente dos nossos tribunais sobre a matéria. Tal decisão criou linha jurisprudencial no common Law, que tinha cariz muito mais pragmático do que a desenvolvida no civil law. No direito inglês, desenvolveu- -se uma espécie de teste de razoabilidade para se realizar o controle do mérito do ato administrativo.253 Tal teoria, apesar de sofrer em diversos pontos a crítica de se definir o que efetivamente é ou não discricionário, assegurou o controle do mérito do ato administrativo quando reprovado no teste de razoabilidade.254 Miguel Seabra Fagundes. O controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário cit., P. 88-89. uma questão jurídica, em última instância, pode ter a legalidade/constituciona lidade do seu mérito examinada pelo Judiciário. O fato de ser ato administrativo não pode criar uma prévia blindagem para a avaliação judicial do ato proveniente da Administração. No atual contexto constitucional, não se pode admitir que ojudiciário negue- -se a julgar o mérito de uma lide em que é atacado o ato administrativo, porque ao Judiciário seria defeso examinar o mérito do ato. Referida tese foi superada no caso Bonham, quando se fez um overruling da doutrina Jenkins, há pelo menos quatro séculos. No Brasil, perante o que dispõe a Constituição Federal, em que são consa grados direitos fundamentais e toda uma principiologia que rege a atividade da administração pública, não se pode negar ao Judiciário o exame do mérito do ato administrativo para avaliar se há ilegalidade ou inconstitucionalidade. Do contrário, chegar-se-ia à teratológica conclusão de que a inconstitucionalidade/ilegalidade somente se manifestaria na forma do ato, nunca podendo atingir seu conteúdo. No tópico subsequente, passamos a explanar que, hodiernamente, a Consti tuição constitui o fundamento normativo de todo o agir administrativo. 2.10 Crítica constitucional: do princípio da legalidade ao princípio da constitucionalidade. Da necessária superação do conceito de interesse público 2.10.1 A releitura do princípio da legalidade No Estado Constitucional, o princípio da legalidade sofre releitura, de modo que a Atividade da Administração Pública passa a estar vinculada ao texto cons titucional. Na realidade, a vinculação direta à legalidade é tema freqüente na doutrina administra tivista. De acordo com Seabra Fagundes, a atividade administrativa está sempre con dicionada, pela lei, à obtenção de determinadas conseqüências, e o administrador, ao exercê-la, não pode ensejar conseqüências diversas das pretendidas pelo legis lador. Os atos administrativos devem procurar atingir as conseqüências que a lei teve em vista quando autorizou ou determinou sua prática, sob pena de nulidade. Se houver burla da intenção legal, ou seja, se a autoridade contrariou o espírito da l^i, ainda que o resultado obtido seja lícito e moral, haverá desvio de finalidade, Porque o ato foi expedido com finalidade diversa da pretendida pela lei.259 189DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA 256.Miguel Seabra Fagundes. O controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário cit-, p. 181-182. Ver ainda: Miguel Seabra Fagundes. Conceito de mérito do ato administrativo. Revista de Direito Administrativo, n. 23. 257.Celso Antônio Bandeira de Mello. Discricionariedade administrativa e controle juriS' dictional cit., p. 41-42. 258.Idem, p. 42-43. tomar-lhe a posição no mecanismo jurídico-constitucional do regime, senão apenas contê-lo nos estritos limites da ordem jurídica (controle preventivo) ou compeli-lo a que os retome, se acaso transpostos (controle a posteriorí)",256 No mesmo sentido, Bandeira de Mello, não obstante salientar que a Admi nistração deve adotar a melhor scjução, aürma que por ser impossível saber qual a verdadeira vontade da lei e finalidade da norma, consequentemente, qual seria a melhor solução, não deve o Judiciário invadir o mérito do ato administrativo.257 Nas exatas palavras do autor: "Uma vez que a inteligência humana é hnita - e, portanto, não pode desvendar tudo - também não pode identificar sempre, em todo e qualquer caso, a providência idônea para atender com exatidão absoluta a finalidade almejada pela regra aplicanda, dado que pelo menos dois pontos de vista divergentes seriam igualmente admissíveis. Disto resulta a impossibilidade de eliminar o subje- tivismo quanto à superioridade de alguns deles em relação aos outros".258 Esses fragmentos permitem esclarecer que nossa doutrina, em grande parte dela, é refratária ao exame do mérito do ato administrativo, algo que reflete na jurisprudência dos Tribunais Superiores, que é avessa à análise do mérito do ato, consoante todos os julgados que elencamos acima. No caso Bonham, reitere-se em 1610, Edward Coke corrigiu o mérito do ato administrativo, sob o argumento de que ele seria contrário ao common law, o que eqüivaleria, num sistema de Constituição escrita, a afirmar que o mérito do ato era inconstitucional, não obstante haver lei o autorizando. A tese subjacente no caso Bonham que merece destaque, refere-se à ampla possibilidade de o Judiciário examinar a legalidade/constitucionalidade do méritodo ato administrativo. Não se trata de admitir que o Judiciário troque o critério de conveniência e oportunidade do ato administrativo pelo do julgador. Afinal, discordamos da possibilidade de se motivar ato administrativo em critério de oportunidade e conveniência, tal qual asseveramos ao criticar a discricionariedade performática. Também não se trata de admitir a análise do mérito do ato administrativo em privilégio de um protagonismo judicial, isso porque, da mesma forma que.não há discricionariedade para a Administração, com maior razão, ela inexiste para o Judiciário. O que de fato preconizamos é que todo ato administrativo que decida DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA E JUDICIAL188 264.Hans Wolff; Otto Bachof e Rolf Strober. Direito administrativo cit., p. 434. (Grifos do original) 265.Paulo Otero. Op. cit., 17, n. 17.1.1, p. 735. 266.Ver Rui Medeiros. Op. cit., 8., n. 3, p. 189. 267.Sobre essa questão, merece destaque o seguinte comentário: "O Tribunal Constitucional Federal alemão decidiu, já em 06.05.1958, que o adminis trador e legislador têm de fazer o que é necessário (Wesentlichkeitstheorie - Teoria da essencialidade), afirmando que a reserva legal tradicional (praticar apenas atos auto rizados por lei) é ultrapassada e que se deve prestigiar a doutrina da essencialidade". Nelson Nery Júnior e Rosa Maria Andrade Nery. Constituição Federal comentada cit., coment. 13 CF 37, p. 462. núcleo essencial, nem mesmo pelo legislador constituinte, caracterizam aquilo que denominados de cláusulas pétreas. Não obstante a existência do preceito da primazia da lei, ocorre que a legalidade meramente formal não é suficiente. A Administração deve ser conforme à Constituição. Por conseguinte, a Administração deve salvaguardar especialmente a igualdade jurídica e respeitar a liberdade e a propriedade, no Brasil, a concretização do que está disposto no caput do art. 37.264 Portanto, no Estado Constitucional, configurou-se uma substituição da reserva vertical da lei por uma reserva vertical da própria Constituição. Essa substituição permitiu que a Constituição passasse a ser o fundamento direto do agir administra tivo, tendo reflexo imediato em duas áreas de incidência: (i) a Constituição torna-se norma direta e imediatamente habilitadora da competência administrativa; (ii) a constituição passa a ser critério imediato da decisão administrativa.265 Em nosso Texto Constitucional, o princípio da legalidade está previsto no art. 37 da CF, nos seguintes termos: "A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados e do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência". Atualmente, a vinculação da atividade administrativa à legalidade deve ser visualizada como vinculação ao próprio direito, por conseguinte, ao texto consti tucional. A vinculação da Administração não é mais apenas em relação à legalidade, mas, sim, a um bloco de legalidade dentro do qual possui especial destaque o texto constitucional.266 No que concerne a uma releitura do princípio da legalidade, Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery destacam que a teoria da essencialidade (Wesentlichkeitstheorie) superou a tipicidade dos atos administrativos que remetia à legalidade em sentido estrito.267 Com fundamento em mesma premissa, Eduardo Garcia de Enterría e Ramón Fernández asseveram que a vinculação da Administração Pública ao Direito 191DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA 260.Juan Carlos Cassagne. Op. cit., p. 120. 261.Para uma releitura desse princípio, ver Paulo Otero. Legalidade e administração pú blica. O sentido da vinculação administrativa à juridicidade. Coimbra: Almedina, 2003, com especial destaque para os 17, 18 e 19, p. 733-1077. 262.Hans Wolff; Otto Bachof e Rolf Strober. Direito administrativo cit., p. 433-434. 263.Rainer Wahl. Los últimos cincuenta anos de Derecho administrativo alemán Los últimos cincuenta anos de Derecho administrativo alemán. Madrid: Marcial Pons, 2013. p. 60-61. Sobre o tema, Juan Carlos Cassagne ensina que, na seara administrativa, o princípio da legalidade pode ser entendido em vários sentidos. De início, toda atuação da administração pública deve se fundar em lei material (lei formal, regu lamento administrativo, ordenações etc.) e este é o sentido que cabe atribuir ao art. 19 da Constituição Nacional (argentina), que joga como uma garantia em favor das pessoas. Ao próprio tempo, o princípio da l^galidade opera como uma restrição ao exercício do poder público e exige lei formal ou lei formal-material para aquelas atuações que interfiram na liberdade jurídica dos particulares.260 No atual estágio constitucional, impõe um novo paradigma vinculatório à legalidade. Essa nova vinculação, conforme ensina Paulo Otero, ocorre em virtude de substituição da lei pela Constituição como fundamento direto e imediato do agir administrativo sobre determinadas matérias.261 Sobre o tema, a doutrina alemã preceitua, no Estado Constitucional, todo o exercício legal do poder deve respeitar a lei jurídica e o princípio da justiça. A exigência dajuriáicidade material tanto é válida para a Administração como para os tribunais, para o Governo e para o legislador. A exigência da juridicidade material também é parte integrante do direito comunitário, com base no qual o TUE desen volveu numerosos princípios de Estado de direito, que deverão ser observados na prática e na execução de atos comunitários.262 A doutrina tedesca enfatiza a profunda mudança ocorrida no direito público após a segunda guerra. Nesse novo modelo que se formou, a lei já não é algo que não pode ser interpretado ou o ponto de partida indubitável de toda atuação ad ministrativa. Isso porque a própria lei deixou de ser incontestável passando a ter sua constitucionalidade verificada. Portanto, o direito administrativo passa a ser marcado pelos parâmetros constitucionais criados, por conseqüência, a Adminis tração Pública passa a estar vinculada à normatividade constitucional, com especial destaque para os direitos fundamentais.263 De acordo com a Lei Fundamental de Bonn, existe apenas uma presunção ilidível de conformidade com o direito de todas as normas abstratas ou concretas. Portanto, o art. 1 III GG vincula o legislador, o Governo, a Administração e os tribunais aos princípios jurídicos, os direitos fundamentais que, nos termos dos arts. 79, III e 19, II GG, do ponto de vista legal, não podem ser tocados no seu DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA E JUDICIAL190 Idem, p. 209-210. O citado autor destaca o problema da Constituição como parâmetro de vali dade dos atos administrativos. Afirma que a jurisprudência não é unânime quanto ao ponto, não se tendo chegado ainda a uma conclusão firme sobre se as normas constitucionais imediatamente exeqüíveis devem ou não servir de parâmetro de validade dos atos administrativos, incluídas no chamado "bloco de legalidade administrativa". Segundo o autor, a principal dificuldade está em lidar com o concurso de normas aplicáveis como parâmetros de validade do ato administra tivo: por vezes, as normas constitucionais concorrem com as normas legais. Há decisões defendendo que as normas constitucionais sejam diretamente aplicáveis ao contencioso constitucional dos atos administrativos apenas se não houver lei tutelando a mesma situação. O autor ainda diz que a dificuldade de se considerarem as normas constitucionais parâmetros autônomos de validade está na duplicação e concretização de seu conteúdo nas leis. Em tais casos, os tribunais administrativos fazem referência à norma constitucional, mas acabam aplicando a lei. Para o autor, essa confusão só é satisfatoriamente desfeita quando se cogita a qualificação do vício(inconstitucionalidade ou ilegalidade) que inquina o ato administrativo.271 2.70.2 A superação do conceito interesse público na jurisprudência alemã A possibilidade de se confrontar os atos administrativos com a legalidade/ constitucionalidade, além do antiquíssimo precedente do caso Bonham, deve-se à evolução da jurisprudência do Tribunal Constitucional Alemão na avaliação sobre a implantação de usinas nucleares. A decisão mais famosa é a referente à usina de Kalkar. Contudo, para melhor compreensão acerca da decisão, faz-se necessário traçarmos um breve escorço evolutivo sobre essa jurisprudência. 2.70.2.7 BVerfGE 53, 30 (Mülheim-Kãrlich) Em janeiro de 1975, foi dada a "primeira autorização parcial" para a usina nuclear Mülheim-Kãrlich, depois de transcorrido o devido processo administrativo, incluindo a necessária participação da sociedade civil, que permitiu a construção de algumas unidades da usina. Ó funcionamento da Usina ainda ficou sujeito a uma autorização posterior final. Houve autorizações parciais posteriores condicionadas a modificações neces sárias para aumento de segurança da Usina. O sétimo comunicado de liberação, ^^ junho de 1976, cuja imediata execução fora autorizada, foi impugnado pela reclamante, que morava a cerca de sete quilômetros de distância do local da Usina. ^eu pedido de restabelecimento do efeito suspensivo de sua ação contra o sétimo cmunicado de liberação foi indeferido pelo Superior Tribunal Administrativo. 193DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA 268.Eduardo Garcia de Enterría e Tomás-Ramón Fernández. Curso de Derecho Adminis trativo cit., 1.1, p. 497-499. Em sentido próximo, Gustavo Binenbojm destaca que: "A legalidade, embora ainda muito importante, passa a constituir apenas um princípio do sistema de princípios e regras constitucionais. Passa-se, assim, a falar em um principio da juridicidade admi nistrativa para designar a conformidade da atuação da Administração Pública ao direito como um tudo, e não apenas à lei". Gustavo Binenbojm. Temas de direito administrativo e constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 12. 269.A decisão tem a seguinte redação: "A Res. 7/2005 se dota, ainda, de caráter normativo primário, dado que arranca diretamente do 4. do art. 103-B da Carta-cidadã e tem como finalidade debulhar os próprios conteúdos lógicos dos princípios constitucionais de centrada regência de toda a atividade administrativa do Estado, especialmente o da impessoalidade, o da eficiência, o da igualdade e o da moralidade. O ato normativo que se faz de objeto desta ação declaratória densifica apropriadamente os quatro citados princípios do art. 37 da Constituição Federal, razão por que não há antinomia de con teúdos na comparação dos comandos que se veiculam pelos dois modelos normativos: o constitucional e o infraconstitucional. Logo, o Conselho Nacional de Justiça fez adequado uso da competência que lhe conferiu a Carta de Outubro, após a Emenda 45/2004"- STF, Pleno, ADC(MC)-12, j. 16.2.2006, m.v, rei. Min. Carlos Britto, DJU 01.09.2006, p. 15. Comentando esse julgado v. Gustavo Binenbojm. Op. cit., p. 14-16. 270.Dinamene de Freitas. O acto administrativo inconstitucional: delimitação do conceito i subsídio para um contencioso constitucional dos actos administrativos. Coimbra: Coimbra Ed., 2010. passim. 192 DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA E JUDICIAL faz com que não exista nenhum espaço livre para a administração agir com um poder ajurídico. Desse modo, o direito não cria para a Administração um espaço em que dentro dela ela pode agir com total liberdade, pelo contrário, o Direito, principalmente os dispositivos constitucionais, condiciona e determina de forma positiva a ação administrativa, que será inválida se estiver em desconformidade com o Direito.268^^^ Sobre a questão, o STF, em acórdão paradigmático, já decidiu que a Admi nistração Pública poderia realizar sua atuação com fundamento direto na Cons tituição. Assim, na medida cautelar em na ação declaratória 12, o STF decidiu pela constitucionalidade de regulamento autônomo (Res. 7/2005) proferido pelo Conselho Nacional de Justiça, por meio do qual ficou proibido o nepotismo no âmbito do Judiciário. A referida resolução foi elaborada com fundamento direto no art. 103-B, 4., da CE269 Apesar de haver certo consenso doutrinário sobre a incidência normativa da Constituição, na prática, em raríssimas hipóteses, o ato administrativo tem sido contrastado à luz da Constituição Federal. Em trabalho dedicado ao tema, Dinamene de Freitas270 dispõe a dificuldade de se tratar, em termos práticos, a avaliação da discricionariedade mediante para digmas constitucionais. além de estarem predispostas a outras práticas violentas. Depois do aviso oficial dos organizadores, a secretaria estadual reiterou a medida proibitiva. Alguns dos organizadores impugnaram, na Justiça Administrativa, a medida administrativa geral, requerendo o efeito suspensivo da proibição. Esse pedido foi indeferido, finalmente, pelo Superior Tribunal Administrativo de Lüneburg. O Tribunal fundamentou na intempestividade do aviso prévio da reunião à au toridade competente e da análise desfavorável indicando que atos de violência eram esperados. Foram ajuizadas Reclamações Constitucionais contra a imediata execução da medida administrativa geral e contra as decisões do Superior Tribunal Administrati vo, que alegavam violação do art. 81 GG, sendo julgadas parcialmente procedentes. O BVerfG reviu a decisão, afirmando que a Administração Pública não pode, discricionariamente, retalhar direitos fundamentais, sem critérios legais para tanto. A mera alegação de que a manifestação não teria "fins pacíficos" - visando adequar à hipótese de vedação dada por lei infraconstitucional que regulamenta o direito de reunião - não pode servir para restringir direitos fundamentais dos cidadãos, pois não seria uma interpretação conforme a Constituição. Necessário seria que a ameaça fosse iminente ou pautada em evidências - e não mera suposição. Interessante ressaltar a análise da jurisprudência recente do BVerfG, para quem os direitos fundamentais influenciam não apenas a conformação do direito material, mas determinam, também, ao mesmo tempo, os critérios para a configu ração organizacional e processual que torna efetiva a proteção do direito funda mental, bem como para uma aplicação das existentes prescrições processuais que seja compatível com direitos fundamentais, (cf. as indicações de BVerfGE 53, 30 65 s. e 72 s.]; na seqüência também: BVerfGE 56, 216 [236] e 65, 76 [94]; 63,131 [143]; 65,1 [44,49]). Também avaliou que não se pode considerar o potencial comportamento não pacífico de indivíduos como requisito para não possibilitar a realização de Direi tos Fundamentais de uma coletividade. Antes, a Administração Pública tem que ^star preparada para abordar tais indivíduos e impedi-los de tumultuar a reunião constitucionalmente assegurada da coletividade. 2.10.2.3 BVerfGE 49, 89 (Kalkar I [08.08.1978]) Em 1972, o Ministério competente concedeu a licença de instalação parcial oo assim denominado regenerador rápido em Kalkar. Um vizinho questionou a concessão na competente Justiça Administrativa. O Superior Tribunal Adminis trativo de Nordrhein-Westfalen suspendeu o processo e apresentou ao TCF o 7 e II AtomG (Lei sobre o Uso Pacífico da Energia Nuclear) para o seu devido exa- 1116 de constitucionalidade, segundo permissivo constitucional do art. 100 I GG. ^ entendimento do Superior Tribunal Administrativo, o dispositivo se chocava 195DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA Os fundamentos dados pelo Superior Tribunal Administrativo era o de que a reclamante não poderia derivar sua legitimidade processual e seu interesse processual de agir (Klagebefugnis) do fato de que oalvará modificado só poderia produzir efeitos depois de nova publicação e interpretação dos documentos em outro comunicado de autorização. Assim, as condições processuais do pedido não estariam, pois, presentes, porque, como terceiro atingido pela autorização prevista nos dispositivos legais sobre a energia nuclear, elasó poderia questionar a violação de dispositivos de direito material. Todavia, a violação de direito material não estaria clara, segundo o Superior Tribunal Administrativo. Portanto, o Superior Tribunal Administrativo entendeu que os direitos da reclamante dignos de proteção constitucional só seriam atingidos com o funcio namento da Usina, mas não propriamente com sua construção. O TCF julgou a Reclamação Constitucional ajuizada contra esta decisão ad mitida, contrariando em parte a concepção do superior tribunal administrativo, mas, no mérito, julgou-a improcedente por não verificar uma violação do art. 2II GG pela autorização da construção. Afirmou não ser possível ao Judiciário apreciar as motivações econômicas e políticas do Executivo para a autorização de instalação de reator nuclear para fins pacíficos, uma vez que previsto na Constituição. A decisão reconheceu, assim, a competência exclusiva do Legislador para análise da decisão fundamental em prol ou contra o uso da energia nuclear para fins pacíficos, devendo manifestar sua análise pelo competente instrumento legislativo, de modo que a análise de constitucionalidade cabível ao Judiciário limitar-se-ia à questão de se a regulamentação normativa que fundamentou as decisões impug nadas é constitucional e, principalmente, se esta regulamentação foi aplicada de modo prescrito constitucionalmente. 2.10.2.2 BVerfCE39,315 (Brokdorf) Trata-se de reclamação constitucional em face da decisão administrativa do Executivo (decisão dada por repartição de política, confirmada pelo Superior Tribunal Administrativo daquela província) que proibiu manifestação pública contrária à instalação de usina nuclear. No início de 1981, diversas ONGs convocaram a população a protestar contra a construção da Usina Nuclear de Brokdorf. Ocorre que, antes mesmo do anúncio da manifestação, a secretaria estadual competente proibiu a realização da reunião por medida administrativa geral sobre um território de aproximadamente 21Okm2. ordenando a imediata execução da medida. A medida foi fundamentada a partir de reconhecimentos policiais, segundo os quais entre os esperados 50.000 mani festantes se encontrariam um número considerável de pessoas dispostas a realizar atos de violência, vez que queriam ocupar violentamente e danificar a construção. DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA E JUDICIAL194 4 Para exame aprofundado da referida decisão, ver: Rainer Wahl. Op. cit., p. 38-39. 73- Dinamene de Freitas. Op. cit., p. 221-222. ^74- Idem, p. 222. 7s- Idem, ibidem. 6- Rui Medeiros. Op. cit., 8., n. 1 p. 168. DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA 197 Em 1954, o Tribunal Constitucional Alemão proferiu decisão paradigmática para a correta compreensão da relação entre Estado e cidadão. O Tribunal Constitucional Federal, no seu acórdão de 20.07.1954 (BVerfGE 4,7,15 f), deixando em aberto se, no âmbito do conceito do livre desenvolvimento da personalidade de liberdade humana deve ser entendida no sentido mais amplo, ou se o art. 2 I GG está limitada à manutenção de um nível mínimo de liberdade, entendeu que não pode o Poder Público agir, ainda que perseguindo interesse público, sem considerar o homem como sendo pessoa espiritual e moral. A Lei Fundamental assegura ao cidadão, com o "livre desenvolvimento da personalida de", não só o desdobramento dentro dessa área núcleo da personalidade, como também constitui a essência do homem como uma pessoa espiritual e moral.272 2.10.3 O princípio do constitucionalismo como superação do princípio da legalidade No mesmo sentido, Dinamene de Freitas afirma que se a violação é perpetrada pelo ato administrativo à Constituição, está em causa o princípio da constituciona- lidade referido à Administração Pública. Nesse caso, seguindo o mesmo raciocínio, o regime do desvalor do ato administrativo inconstitucional será aquele que a própria Constituição estabelecer em face dessa violação.273 Há, por assim dizer, uma "reserva de Constituição [nas] questões relativas à sua garantia, à tutela da sua integridade enquanto texto normativo".274 Dessa forma, assumindo que a Constituição é o fundamento último de vali dade dos atos jurídico-públicos (art. 3., n. 3) e que a Administração Pública está subordinada à Constituição (art. 226., n. 2), o autor sustenta que serão inválidos, por determinação constitucional, todos os atos jurídico-públicos desconformes com normas constitucionais, aí incluídos os atos administrativos.275 Em nosso entendimento, torna-se incontestável vincular todo o agir admi nistrativo à Constituição. Essa vinculação direta da atividade administrativa ao texto constitucional é proveniente do que designamos de princípio da constitucio- nalidade que, por sua vez, determina a vinculação de todos os poderes públicos, tncluindo o poder administrativo à Constituição.276 Nesse sentido, já é possível vislumbrar precedentes do STF em que o ato administrativo é controlado em função de sua desconformidade com o texto constitucional. 196 DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA E JUDICIAL contra os princípios democráticos da divisão de poderes e do Estado de direito, na medida em que permitia a licença também para esse tipo de reator nuclear, sem uma decisão expressa do legislador e sem critérios legais mais precisos para tanto. O TCF decidiu que a norma impugnada é compatível com a Grundgesetz. O fundamento da decisão foi, em suma, a consideração de que a decisão normativo-axiológica, a favor ou contra a permissão legal do uso pacífico da energia nuclear no território de soberania da República Federal da Alemanha, é uma decisão fundamental e essencial no sentido da reserva de lei. Tomá-la compete somente ao legislador, especialmente se consideramos os seus largos efeitos sobre os cidadãos, mormente nos campos de sua liberdade e igualdade, sobre as relações sociais gerais. Se o Legislador tomou uma decisão - ou seja, criou uma lei que aprova o uso de energia atômica para fins pacíficos e regulamentou tal uso -, cujo fundamento está sendo questionado devido a novos desenvolvimentos ainda não previsíveis à época da promulgação da lei, o Legislador pode ser compelido pela Constituição a rever sua decisão original, no sentido de procurar saber se aquela deve ser mantida também sob as novas circunstâncias. Todavia, tal análise não caberia ao Judiciário, sob o risco de usurpar o poder constitucionalmente previsto ao Legislativo. Manifesta-se, ainda, o Tribunal Constitucional, que não é possível exigir do Legislador que crie uma regulamentação que exclua todos os potenciais riscos a direitos fundamentais de qualquer matéria que esteja decidindo. Exigir do legis lador, com vistas ao seu dever de proteção, uma regulamentação tal que possivel mente caberia melhor ao Executivo por poder analisar condições técnicas e suas operações, significaria desconhecer os limites da faculdade cognoscitiva humana e, no mais, baniria definitivamente toda autorização estatal para uso da técnica. Assim, entendeu o Tribunal Constitucional que, para a conformação da ordem social, a coletividade deve satisfazer-se com prognósticos baseados na razão prática. Incertezas além dos limites da razão prática são inevitáveis, devendo, nesse caso, ser suportados como ônus socialmente adequados por todos os cidadãos. Na decisão de Kalkar, apesar de não ter sido reformada a decisão adminis trativa, o TCF admitiu que o ato administrativo fosse contrastado com o texto constitucional.Desse modo, a partir de mera análise de decisões paradigmáticas do Tribunal Constitucional Alemão, é possível depreender a preocupação em se delimitar normativamente dois pontos: (i) a posição do indivíduo e sua limitação em fac^ do Poder Público e (ii) em que medida a Constituição e sua principiologia cons titui parâmetro normativo para sindicar ato administrativo inclusive o seu mérito consubstanciado em interesse público. Essa orientação é fruto do desenvolvimento doutrinário alemão que sempre se preocupou com a teorização de direito subjetivo do indivíduo contra o Estado, a fim de impedir que o cidadão fique à disposição da potestatividade do Poder Public0- 279.STJ, AgRg no REsp 1280729/RJ, 2.a T., j. 10.04.2012, rei. Min. Humberto Martins DJ 19.02.2012. 280.STJ, REsp 690811/RS, 1." T, j. 28.06.2005, rei. Min. José Delgado, DJ 19.12.2005. No mesmo sentido: REsp 690819/RS. 28L STJ, REsp 778648/PE, 2.a T, j. 06.11.2008, rei. Min. Mauro Campbell Marques, DJe 01.12.2008. para examinar a conveniência dos descontos ou da majoração, logo, não possui competência discricionária. Desse modo, o voto condutor do entendimento prevalecente foi do Min. Luiz Fux. O Min. Dias Toffoli, relator, divergiu e votou pela denegação do mandado de segurança, sustentando que, se a majoração do desconto estava prevista em lei, essa previsão era suficiente para a Administração proceder à majoração, indepen dentemente de prévio procedimento administrativo. Na mesma linha, o STJ, em parcos julgados, admite o controle da forma e da substância do ato em face da legalidade vigente. No julgamento do AgRg no REsp 1280729/RJ,279 o STJ admitiu que os atos discricionários da Administração Pública estejam sujeitos ao controle pelo Judiciário quanto à legalidade formal e substancial, cabendo-lhe, inclusive, observar que os motivos embasadores dos atos administrati vos que vinculam a Administração. No caso, se o ato administrativo de avaliação de desempenho apresenta incongruência entre os parâmetros e os critérios estabeleci dos e seus motivos determinantes (= motivos elencados pelo administrador para a prática do ato administrativo), a atuação jurisdicional acaba por não invadir a seara do mérito administrativo, porque se limita a anular o ato ilegal. O Tribunal entendeu que a ilegalidade ou a inconstitucionalidade do ato administrativo pode e deve ser apreciada pelo Judiciário, de sorte a evitar que a discricionariedade transfigure-se em arbitrariedade, conduta ilegítima e suscetível de controle de legalidade. No julgamento do REsp 690811/RS,280 o STF, ao final da fundamentação do acórdão, invoca a Lei 9.784/1999, que foi promulgava visando introduzir no orde namento jurídico brasileiro o instituto da "mora administrativa" como forma de reprimir o arbítrio administrativo, pois, apesar de a discricionariedade de que se reveste o ato de autorização de rádio comunitária (discutido no caso), não se pode admitir que o cidadão fique sujeito a uma espera abusiva, e que deve, portanto, estar sujeita ao controle do Judiciário, visto que a este incumbe a preservação dos direitos. Entre outras razões, por esse motivo, conheceu-se e deu-se provimento parcial ao recurso. Em outra oportunidade,281 conquanto não seja fundamento da principal questão do acórdão, o STJ reconhece que, atualmente, parte da doutrina e da jurisprudência tem entendido que o Judiciário pode controlar o mérito do ato administrativo (con veniência e oportunidade) sempre que, no uso da competência discricionária, mesmo 199DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA 277.STF, MS 29350/PB, Pleno, j. 20.06.2012, rei. Min. Luiz Fux, DJ 01.08.2012. 278.STF, MS 27851/DF, 1." T, j. 27.09.2011, rei. p/ acórdão, Min. Luiz Fux, DJ 23.U.201L 1 98 DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA E JUDICIAL No MS 29350/PB,277 de relataria do Min. Luiz Fux, o STF entendeu que a precedência da remoção de servidores públicos sobre a investidura de candidatos de cadastro de reserva é obrigatória à luz do regime jurídico atualmente vigente, e, em decorrência do princípio da proteção da confiança, corolário da segurança jurídica. Entendeu ainda que a discricionariedade da Administração Pública pa raibana encerra o poder de decidir quanto à alocação de seus quadros funcionais dentro dos limites da legalidade e dos princípios constitucionais, podendo incorrer em ilegalidade. Apesar das mudanças havidas na legislação estadual pertinente às remoções, a sistemática de movimentação dos servidores foi preservada. Logo, as expectativas legítimas dos servidores, fundadas na legislação de 2003 (data da primeira lei alteradora), devem ser respeitadas pela Administração, sob o risco de violação do princípio da proteção da confiança e da segurança jurídica. Dessa forma, o Tribunal denegou a ordem, com o intuito de assegurar aos servidores antigos a remoção, antes da nomeação dos servidores novos. O relator, Min. Luiz Fux, anota corretamente em um obiter âictum que a abertura de novas vagas depende da criação de novos cargos ou da vacância dos cargos já existentes, "e a alocação dessas vagas disponíveis nas diversas regiões se dará no interesse da Administração do Tribunal de Justiça do Estado da Paraí ba". Logo, a discricionariedade, aqui, estará na alocação das vagas no território do Estado (questão não suscitada no mandado de segurança), não na remoção prévia dos servidores em exercício (este, sim, objeto do mandado de segurança denegado). Em outro julgado,278 não obstante a legalidade formal do ato da administração, instaurou-se e prevaleceu a divergência que determinou a modificação do mérito do ato administrativo por meio do julgamento do mandamus pelo STF. O mandado de segurança foi impetrado por associação de magistrados da Justiça do Trabalho, objetivando reduzir o desconto nos subsídios, visando à re composição de valores percebidos indevidamente. A l.a Turma do STF concedeu a ordem, por maioria, entendendo que o desconto ou sua majoração dependem da observância de prévio contraditório e ampla defesa. Não basta estarem previstos em lei o desconto ou a possibilidade de sua majoração, para que seja editado ato unilateral efetivando-as. É preciso, antes, que a Administração instaure processo administrativo no qual seja respeitado o contraditório e a ampla defesa. Essas garantias constitucionais afastam a discricionariedade administrativa. Ademais, reputou-se que o exame, antes feito pelo Tribunal de Contas da União, sobre a matéria, versou apenas sobre a legalidade dos descontos e de sua majoração, não sobre a conveniência deles. O STF entendeu que o TCU não tem competência 284.Afirmando a supremacia do interesse público sobre o privado v. Celso Antônio Bandeira de Mello. Curso de direito administrativo. 26. ed. São Paulo: Malheiros, 2009. Cap. II, n. I, p. 96 et seq. Ver também: Maria Sylvia Zanella Di Pietro. Direito administrativo. 21. ed. São Paulo Atlas, 2008..n. 3.3.2, p. 63-66. Para enfoque contestando asüposta supremacia do interesse público sobre o privado, conferir a obra coletiva organizada por Daniel Sarmento (org.). interesses públicos versus interesses privados: desconstruindo o princípio da supremacia do interesse público. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2005. / Para crítica complexa e fundada na natureza constitucional dos direitos fundamentais, ver Nelson Nery Júnior. Público vs. Privado? A natureza constitucional dos direitos e garantias fundamentais. In: Ives Gandra Martins e Francisco Rezek (orgs.). Constituição Federal: avanços, contribuições e modificações no processo democrático brasileiro. São Paulo: Ed. RT, 2008. 285.Mario Losano. Op. cit., vol. 2, p. 210. ^86.Peter Hãberle. La Garantia dei Contenido Esencial de los Derechos Fundamentales. Madrid: Dykinson, 2003. n. 1, p. 25; Nelson Nery Jr. Público vs. Privado?
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