Buscar

Discricionariedade Adm e Judicial ll

Prévia do material em texto

DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA I 175
jurídicas, seja efetuado pela administração, seja pelo Judiciário, é interpretativo e
aplicativo ao mesmo tempo.220
A hermenêutica permite integrar o processo aplicativo dentro do processo in
terpretativo , a aplicatio gadameriana é companheira indissociável de toda a atividade
interpretativa.221 Daí que, com Gadamer, pode-se concluir que "o conhecimento
do sentido de um texto jurídico e sua aplicação a um caso concreto não são atos
separados, mas um processo unitário" .222
Em suma, no instante em que se vislumbra a impossibilidade de qualquer
agir administrativo sem que ocorra concomitantemente a interpretação, perde
qualquer sentido a dicotomia ato vinculado e ato discricionário. Nem mesmo a
afirmação de que em um ato haveria maior vinculação ao princípio da legalidade
estrita do que em outro prevalece, porque no paradigma em que é obrigatória a
resposta administrativa correta ao cidadão, torna-se incipiente falar em maior ou
menor vinculação, porque a Administração está sempre vinculada à juridicidade
(mormente CF + direitos fundamentais). Na verdade, quando a aplicação da lei é
aparentemente mais simples porque o ato administrativo é quase uma tipicidade
legislativa, não se está trabalhando com maior discricionariedade ou vinculati-
vidade. Nesse caso, o que varia é a maior ou menor profundidade da dimensão
hermenêutica, mas não a discricionariedade.223
2.8.2 O mito da interpretação da vontade da lei e vontade do legislador
no pós-positivismo
Diante de um acesso hermenêutico, não se concebe mais a interpretação como
algo a ser descoberto na intenção da lei ou do legislador por meio da aplicação de um
método, como professam as correntes objetivistas (voluntas legis) ou subjetivistas
{voluntas legislatoris) da interpretação jurídica.224 Pelo contrário, a norma é um
220.Riccardo Guastini. Das fontes às normas. São Paulo: Quartier Latin, 2005. p. 217; v.
Friedrich Müller. O novo paradigma do direito. Introdução à teoria e metódica estruturante
do direito. 3. ed. São Paulo: "Ed. RT, 2013. n. 3.5, p. 65.
221.Antônio Osuna Fernández-Largõ. Op, cit., p. 51-52.
222.Hans-Georg Gadamer. Verdade e Método cit., vol. 1, p. 463.
223.Por isso, não concordamos com a distinção entre ato vinculado frato discricionário.
No aspecto em que se vê uma diferença de tipos de ato administrativo, nós vislumbramos
apenas uma maior ou menor complexidade hermenêutica mais que em nada modifica
a natureza ou a qualidade que o ato precisa ter.
Nas palavras do autor: "A diferença explica-se, no fundo, pela maior ou menor vin
culação ao princípio da legalidade estrita, sobretudo porque certa margem de discrição,
consciente ou inconscientemente pretendida pelo legislador, se apresenta inevitável".
Juarez de Freitas. Op. cit., p. 51.
224.No contexto desta "busca metafísica das vontades" (que obviamente encontra proble
mas filosóficos sérios), também o presidente do Supremo Tribunal Alemão, Günter Hisch,
216.Friedrich Müller. Métodos de trabalho de direito constitucional cit., n. II.1, passim.
217.Antônio Osuna Fernández-Largo. La hermenêutica juridical de Hans-Georg Gadamer.
Valladolid: Secretariado de Publicaciones Universidad de Valladolid, 1992. p. 11.
218.Idem, p. 51-52. Sobre a relação entre compreensão e interpretação Heidegger ensina:
"En Ia interpretación ei comprender se apropia comprensoramente de Io comprendido
por él. En Ia interpretación ei comprender no se convierte en otra cosa, sino que llega
a ser él mismo. La interpretación se funda existencialmente en ei comprender, y no es
este ei que llega a ser por médio de aquélla. La interpretación no consiste en tomar co-
nocimiento de Io comprendido, sino en Ia elaboración de Ias posibilidades proyectadas
en ei comprender". Martin Heidegger. El sery ei tiempo. Trad. José Gaos. 2. ed. México:
FCE, 2007. p. 172.
219.Hans-Georg Gadamer. Verdade e método cit., vol. 1, p. 444.
174 I DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA E JUDICIAL
De acordo com o que concluímos no primeiro capítulo, não há um descobrir
da norma, a partir de um significado já contido dentro de seu texto ou na vontade do
legislador, e, sim, um produzir/atribuir sentido à norma diante da problematização,
seja para deslinde de lide, seja para decidir qual a ação administrativa constitu-
cionalmente adequada ou a decisão jurídica apta a solucionar a lide sub examine.
Toda a interpretação é, ao mesmo tempo, aplicação que culmina no ato pro
dutivo da norma, que, por sua vez, não pode corresponder ao texto normativo que
representa seu programa da norma. Daí que compreender não é um processo linear,
e interpretar a legislação vigente, para decidir qual a ação constitucionalmente
mais adequada, também não.
A hermenêutica não é, simplesmente, reduzível a um recuperar a pura intenção
do autor (nem da lei) e, sim, revelar sua verdade (não vontade); assim, interpretar
não é um simples reproduzir, e, sim, de um produzir; não servir, mas perguntar;
não absolutizar o texto, mas revivê-lo. Ou seja, interpretar é ato produtivo de lin
guagem não reprodutivo.
Desse modo, também não é mais possível coadunar com a discricionarieda-
de volitiva. Atualmente, perscrutar pela vontade da lei ou do legislador, não tem
mais o condão de assegurar nenhuma contribuição para a correta compreensão da
Constituição e de sua respectiva concretização.216
É por meio da hermenêutica que, hoje, deve se buscar a concretização da
Constituição, porque é ela quem permite a transição do direito de uma gramatical
interpretação para uma busca da significação histórica do próprio texto.217
No paradigma pós-positivista, o acesso a um determinado texto supera a
visão positivista, passa a ser um processo unitário, não somente a compreensão e
a interpretação, mas também o da aplicação.218 Nesse sentido, Gadamer asseverou
que "o sentido de um texto supera seu autor não ocasionalmente, mas sempre. Por
isso a compreensão não é nunca um comportamento somente reprodutivo, mas
é, por sua vez, sempre produtivo".219 Com a aplicatio, o ato decisório de questões
Daí que surge a necessidade de se diferenciar, através da linguagem, essa especifici
dade do Ser-aí. Heidegger joga, então, com a palavra alemã Geschehen que significa
acontecer. De Geschehen o filósofo deriva Geschichte e Geschichtlichkeit. Com o termo
Geschichte, Heidegger determina a história enquanto acontecer humano, diferente de
Historie que designa ciência dos eventos históricos. Já Geschíchtlichkeít, que se traduz
tradicionalmente por historicidade, se refere ao caráter de acontecência que reveste a
própria existência humana. Isso permitirá ao filósofo mostrar que, a ausência de um
saber histórico não é, de forma alguma, prova contra a historicidade do Ser-aí. Isto é
sim, enquanto modo deficiente desta constituição de ser, uma prova a seu favor, pois,
uma determinada época somente pode carecer de sentido histórico (unhistorisch sein)
na medida em que é historiai (Geschichtlich) • Assim, o universo de fundamentação e
limites das ciências humanas deve ser pensado a partir da historicidade do humano, a
partir de uma apropriação positiva do passado e da plena posse de suas mais próprias
possibilidades e questionamentos. Cf. Ser y Tiempo cit., p. 43-50). Um exercício desse
modo fenomenológico-hermenêutico de se pensar os efeitos da história no direito pode
ser encontrado em Rafael Tomaz de Oliveira. A Constituição e o Estamento: contribuições
à patogênese do controle difuso de constitucionalidade brasileiro. In: Lenio Luiz Streck,
Vicente de Paulo Barretto e Alfredo Santiago Culleton (orgs.). 20 anos de Constituição: os
Direitos humanos entre a norma e a política. São Leopoldo: Oikos Ed., 2009. p. 215-240.
226.Osuna Fernández-Largo. La hermenêutica jurídica de Hans-Georg Gadamer, Valla-dolid: Secretariado de Publicaciones Universidad de Valladolid, 1992, p. 56. Cf. Jerzy
Wróblewski. Constitución y teoria general de Ia interpretación jurídica. Madrid: Civitas,
1985, p. 76. Também neste sentido Lenio Luiz Streck. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise
cit., n. 10, p. 181 etseq.
227.Osuna Fernández-Largo. Op. cit., p. 65. Friedrich Müller ensina que "a concretização
do direito, impossível fora da linguagem, sempre é cocaracterizada por esse horizonte
universal pré-juridico da compreensão. Ao lado dos seus problemas de interpretação,
o texto, também o texto normativamente intencionado da norma jurídica, veicula ao
mesmo tempo uma precedente referência material do intérprete a esses problemas".
Teoria estruturante do direito cit., n. l.V, p. 59.
DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA I 1 77
interpretação do texto, ocorre uma fusão de horizontes, um diálogo hermenêutico
que possibilita a compreensão do texto.226
Nesse contexto, não há interpretação fora da história, logo, não há uma com
preensão originária da norma e, posteriormente, uma aplicação dela, o que existe
é um momento único em que ocorre a interpretação e a aplicação (interpretar já
é aplicar!) suscitado pela condição do intérprete em um processo circular com a
tradição do mesmo texto.227
Por todas essas razões, não concordamos com a possibilidade de se cogitar a
incidência de uma discricionariedade volitiva, uma vez que inexiste interpretação
fora da historicidade, ou seja, não há forma de se alcançar uma interpretação origi
nária de algo a representar a vontade da lei, do legislador ou do administrador. Do
mesmo modo que não há aplicação da lei sem interpretação. Assim sendo, não é
possível preconizar-se que a Administração Pública atue em conformidade com a
professa a tese de que o problema metodológico da interpretação do direito se resume
a uma decisão pelo intérprete sobre aquilo o que se busca como telos interpretativo,
ou seja, a vontade da lei ou a vontade do legislador. Nas palavras do autor: "ei método
de Ia interpretación de Ia le yes Ia brújula de Ia determinación de derecho. La pregunta
fundamental es si ei objetivo de Ia interpretación es lá investigación y ei respeto de Ia
voluntad real dei legislador o si Io es ei sentido normative de Ia ley. Esta dicotomía de
Ias llamadas teorias subjetiva y objetiva marco Ia doctrina filosófico-jurídica y metodo
lógica relevante de los siglos XIX y XX en Europa". Günter Hisch. La jurisdicción en ei
Estado de derecho: entre Ia sujeición a Ia ley y Ia interpretación cuasilegislativa. Anuario
de Derecho Constitucional Latinoamericano. ano 14. p. 127-147. Berlin/Montevideo:
Konrad - Adenauer - Stiftung, 2008.
225. É importante esclarecer que essa historicidade que as teorias hermenêuticas reivindicam
como horizonte no qual o saber das ciências humanas acontece não se confunde com
uma espécie de consciência historiológica, entendida como conhecimento acumulado dos
eventos do passado. Isso se dá porque, em Ser e Tempo, iniciando a analítica existencial
do Ser-aí, Heidegger precisa estabelecer um aceno prévio do modo de ser deste ente.
No 6., onde o filósofo anuncia a tarefa de uma destruição da história da ontologia,
Heidegger afirma que o Ser-aí 'é' seu passado. O Ser-aí é seu passado na forma própria do
seu ser, ser que acontece sempre desde seu futuro. O filósofo mostra algo que pode soar
estranho: ele afirma que o passado do Ser-aí não se situa atrás deste ente, mas sempre e a
cada vez lhe antecipa. Ou seja, as possibilidades do Ser-aí são limitadas por aquilo que de
alguma forma eleja é. Esse "ter que ser o que já é" Heidegger denomina estar jogado no
mundo, ao passo que sua existência, enquanto possibilidade, denomina-se estar lançado.
No seu ter que ser, ou estar jogado no mundo, o Ser-aí se encontra já sempre imerso em
uma tradição, embora disso ele não seja necessariamente consciente. Esse ser histórico
que atravessa o Ser-aí por todos os lados é o que propriamente designa sua historicidade.
Como diz Gadamer: "ele só possui uma tal consciência porque é histórico. Ele é seu
futuro, a partir do qual ele se temporaliza em suas possibilidades. Todavia, o seu futuro
não é o seu projeto livre, mas um projeto jogado. Aquilo que ele pode ser é aquilo que
eleja foi". Hermenêutica em retrospectiva. Petrópolis: Vozes, 2008. vol. 2, p. 143.
produto da interpretação, ela tem o caráter de atribuição de sentido a um texto que
se manifesta na linguagem a partir de um processo de mediação com a Tradição,
que é o espaço de atuação do aplicador do direito.
Justamente em razão de a atividade interpretativa ser sempre histórica, porque
o texto somente é abordável a partir da historicidade do intérprete, não é possível
mantermos a crença em conceitos puramente metafísicos e anistóricos, tais como
a vontade da lei e do legislador que seriam imutáveis ao longo do tempo, sempre
alheios à historicidade.
Portanto, o aplicador do direito não se torna um ser histórico apenas quando se
desdobra sobre o produto da cultura no estudo da disciplina "história", mas, mesmo
quando efetua uma interpretação no nível de um campo, como é o do direito, ali
também operam com ele os efeitos da história. Esse, talvez, seja o mais importante
significado daquilo que Gadamer chama "consciência da história efetuai".225 Na
DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA E JUDICIAL176
da chamada Petititon ofRight, que consistia em importante declaração de direitos, visto
que foi a primeira declaração a restringir os poderes da Coroa Inglesa desde a ascensão
dos Tudor.
A obra e o prestígio de Coke contribuíram fortemente para a consolidação da common
law e para a independência do Judiciário para o poder político. Sua atuação também
lançou diversos fundamentos jurídicos para a tutela dos direitos fundamentais, bem
como influenciou fortemente os protagonistas da revolução norte-americana. Cf.
Francisco J. Andrés. Edward Coke. In: Rafael Domingo (org.). Juristas Universales:
Juristas Modernos. Madrid: Marcial Pons, 2004. vol. 2, p. 292-298.
Para uma análise pormenorizada da vida e da obra de Edward Coke, ver: Humphry W.
Woolrych. The Life ofthe Right Honourable Sir Edward Coke. Lord Chief of Justice ofthe
King's Bench. London: J. & W. T. Clarke Law Booksellers and Publishers, 1826.
231.Comentando o caso Bonham, ver: Fernando Rey Martínez. Una relectura der Dr.
Bonham's Casey de Ia Aportación de Sir Edward Coke a Ia Creación de Ia Judicial Review.
In: Eduardo Ferrer Mac-Gregor e Arturo Zaldivar Leio de Larrea (orgs.). La Ciência dei
Derecho Procesal Constitucional. Estúdios en homenaje a Héctor Fix-Zamudío, México:
Marcial Pons, 2008. p. 847-866.
Nicola Matteucci. Organización dei Podery Libertad cit., n. 4, p. 91 et seq.
Ver ainda: Nicola Matteucci. Breve Storia dei Costituzionalismo. Brescia: Morcelliana,
2010. Cap. 3, p. 58.
232.Para uma exposição da doutrina Jenkins, conferir: Fernando Rey Martínez. Op. cit.,
n. II, p. 852-854.
233.Idem, p. 852.
DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA 1 79
consolidação da técnica da judicial review consagrada no caso Marbury vs Maãison.
Além da judicial review, o caso Bonham também traria os antecedentes históricos,
necessários para a estruturação do preceito judicial da razoabilidade, e, doravan
te, consoante passamos a demonstrar, necessários ao controle do mérito do ato
administrativo.231^
Antes de se examinar o que foi decidido no caso Bonham, faz-se necessário
examinar seu antecedente histórico que é a doutrina Jenkins (Jenkins Doctrine) ,232
Tanto o caso Jenkins, quanto o Bonham, são oriundos de conflitos judiciais envol
vendo o Colégio de Médicos da Inglaterra, instituição criada pelo Lord Canciller
Card Woísey, em 1518, sob o reinado de Henrique VIII.
O Colégio de Médicos era a instituição responsável pela concessão delicença
para a prática da medicina. Em 1540, foi promulgada pelo Parlamento Inglês a lei
(Act ofParliamenf) que concedeu amplos poderes para o Colégio. A partir dela, o
Colégio de Médicos, além de admitir e expulsar sócios, passou a poder apenar com
prisão os infratores que praticassem medicina sem licença, ou fizessem mau uso
dela, mantendo-os presos durante o tempo que considerasse oportuno.233
O Colégio de Médicos era uma instituição que não possuía vínculo com ne
nhuma Universidade e durante o século XVI utilizou de seus generosos poderes,
conferidos pelo Act ofParliament de 1540, para perseguir diversos médicos. Um
228.Fizemos essa relação em obra já publicada, ocasião em que analisamos a decisão
Bonham, ver: Georges Abboud. Jurisdição constitucional e direitos fundamentais cit., n.
5.4.3.1, p. 343 et seq.
229.Para consultar a decisão do caso Bonham ver: John Henry Thomas e John Farquhar
Fraser (org.). The Reports of Sir Edward Coke ín thirteen parties. London: Joseph
Butterworth and Son, 1826., vol. 4, n. 107a-121a, p. 355-383.
Christopher Wolfe destaca que o caso Bonham teve maior influência fora da Inglaterra
do que em seu país de origem. Christopher Wolfe. The rise of modem judicial review:
from constitutional interpretation to judge-made law. Boston: Littlefield Adams Quality
Paperbacks, 1994. n. 4, p. 90-91.
230.Edward Coke, (1552-1634) jurista e político inglês, cuja firma atuação da primazia
da common law e das liberdades fundamentais frente ao absolutismo real, o colocou em
lugar de honra na história jurídica da Grã Bretanha.
Coke nasceu em Mileham, no dia 01.02.1552. Na qualidade de jurista, exerceu diversos
cargos jurídicos merecendo destaque o de attorney general, no qual se destacou perse
guindo os opositores da Coroa.
Em 1603, quando subiu ao trono Jacobo I (1603-1625), Coke foi nome Chiefof Justice
da Court of the Common Pleas (tribunal responsável por solucionar as principais lides
de direito privado do País). Foi na qualidade de Chief of Justice do Common Pleas que
Coke teve atuação destacada sempre defendendo a common law contra abusos do Rei e
do próprio Parlamento. Nessa passagem, foi decidido o Bonham's case.
Devido a sua independe e forte atuação, Jacob I, por sugestão de Bacon, nomeou Coke
Chief of Justice do tribunal do King's Bench que, em teoria, seria o órgão máximo em
termos de autoridade judicial. Novamente, devido a sua independente atuação, Coke
confrontou-se novamente com a Coroa, tendo em 1616 sido acusado de delitos pelo
Conselho Privado do Rei.
Após a morte de Jacob I, Charles I (1625-1649) convocou novo Parlamento. Coke, por
sua vez, retornou ao Parlamento em 1628 desempenhando relevante papel na elaboração
178 DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA E JUDICIAL
legislação e a Constituição sem que ao mesmo tempo realize a interpretação desses
diplomas legislativos.
2.9 Crítica histórico-decisória: o caso Bonham como o precedente
histórico mais importante do controle do mérito do ato administrativo
2.9.7 Aspectos gerais do BonhanVs case
O caso Bonham, em nosso entendimento, é o precedente judicial mais impor
tante da história do direito constitucional ocidental. Ele pode ser apontado como o
precedente formador do preceito da razoabilidade, da judicial review,228 e, conforme
demonstraremos neste item, talvez ele seja o primeiro caso emblemático em que,
efetivamente, houve controle do mérito de um ato administrativo pelo Judiciário.
O caso Bonham (Bonham's case-The College ofPhysicians vs Dr. Thomas
Bonham)229 figura entre os casos mais importantes em que atuou Sir. Edward
Coke.230 Esse caso é considerado o antecedente mais importante para a formação e
236.Idem, n. III, p. 857.
237.Nas exatas palavras de Coke: ."The first reason was, that these two absolute, perfect
and distinct clauses, and as paraflels and therefore the one did not extend to the other;
for the second begins, praeterea voluit et concessilv, & c. and the branch concerning
fine and imprisonment is parcel of the second clause. 2. The first clause prohibiting
the practice of physic, &. Comprefends four certainties: 1. Certainty of the thing pro-
hibited, se, practice of physic. 2. Certainty of the time, se. Practice for one month. 3.
Certainty of penalty, se. 51. 4. Certainty in distribution, se. One moiety to the King, and
the other moiety to the college; and this penalty he who practices physic in London
incurs, although be practices and uses physic well, and profitable for the body of man;
and on this branch the information was exhibited in the Kings Bench. But the clause
to punish delicta in non bene exequendo, &c. on which branch the case the case at
bar stands, is altogether uncertain, for the hurt which may come thereby may be little
or great, lexe vel grave, excessive or small, &c. and therefore the King and the makers
of the act could not, for an offence so uncertain, impose a certaint of the fine, or
time of imprisonment, but leave it to the censors to punish such offences, secundum
A lide travada entre Bonham e o Colégio de Médicos foi instaurada no Tribunal
(Common Pleas) com a presidência de Coke. Nesse processo, Bonham reclamava
cem libras a título de danos particulares, em razão de false imprisonment por parte
do Colégio de Médicos. Ocorre que o texto da Lei de 1540 era claro em estabelecer
possibilidade de o Colégio de médicos apenar a quem exercesse medicina sem li
cença (prática ilícita), ou fizesse seu mau uso (malpraxis). A Lei também outorgava
ao Colégio a possibilidade de realizar prisões.
Por sua vez, Bonham defendia seu ponto de vista com fundamento no espírito
da lei. Afirmava que a Lei tinha a intenção de prevenir práticas médicas incorre
tas que seriam as realizadas por impostores. Todavia, ele era médico formado na
Universidade de Cambridge e, por possuir título universitário, estaria isento da
jurisdição do Colégio de Médicos.
Paralelamente ao julgamento no Tribunal do common law, o caso foi decidido
pelo Tribunal do King's Bench, no dia 03.02.1609. Bonham foi condenado por prática
ilícita de medicina e condenado a pagar sessenta libras. Por não ter essa quantia,
foi decretada sua prisão.
Após um ano, o caso foi decidido a favor de Thomas Bonham pelo Tribunal
(Common Pleas). A votação foi por maioria: três votos favoráveis e dois contra.236
A tese favorável a Bonham prevaleceu em virtude da sofisticada decisão
proferida por Edward Coke. A decisão de Coke começa com premissa de que a
autoridade concedida pelo rei ao Colégio de Médicos concedia dois poderes dife
rentes com fundamento em duas cláusulas distintas. A primeira referia-se à prática
ilícita, que permitia ao Colégio multar quem exercesse a medicina sem sua licença.
A segunda, dizia respeito ao exercício da má (errônea) prática médica que poderia
ser apenada com a prisão.237
181DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA
234.Idem, p. 853.
235.Idem, n. III, p. 854-855.
1 80 DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA E JUDICIAL
desses médicos foi Roger Jenkins, que havia recusado se submeter à autoridade do
Colégio que imediatamente determinou sua prisão. Em seguida, Jenkins impetrou
habeas corpus, a fim de obter sua liberdade provisional para o Tribunal (Common
Pleas). O mérito do habeas corpus foi julgado pelo ChiejJustice Popham, que decidiu
a favor do Colégio de Médicos, afirmando que ele teria competência suficiente para
decretar a prisão dos infratores, asseverando ainda que os tribunais não podem
decidir sobre a liberdade dos infratores, mas tão somente apreciar as formalidades
da decisão do Colégio dos Médicos.234
Essa passagem é emblemática de nossa atual concepção sobre a revisão ju-
risdicional do ao administrativo. No caso Jenkins, o Judiciário, após ser instado,
negou-se a analisar o mérito do ato administrativo (decisão do Colégiode Médi
cos) afirmando que somente poderia perscrutar por suas formalidades. Ou seja,
o mérito da decisão estaria englobado pelos atuais e performáticos critérios de
conveniência e oportunidade, cuja função é blindar o ato administrativo de uma
análise da legalidade/constitucionalidade.
Desse modo, antes de surgir o caso Bonham, o Tribunal (Common Pleas) já
havia corroborado a autoridade regulatória e sancionatória do Colégio de Médicos
de Londres, negando-se a analisar o mérito de seu ato. Tal situação mudará radi
calmente com o caso Bonham.
No ano de 1605, o médico Thomas Bonham, que havia estudado medicina
em Cambridge, submeteu ao Colégio petição solicitando o direito de administrar
medicamentos.
O Colégio de Médicos negou o pedido. Em seguida, Thomas Bonham quan
do convocado, apresentou respostas que foram consideradas impertinentes pelo
Colégio e exerceu a medicina por algum tempo, sem autorização para tanto.
A atitude de Bonham lhe rendeu multas impostas pelo Colégio de Médicos.
Além das multas, após comparecer perante o Presidente do Colégio (Henry Atkins),
Bonham contestou a autoridade do Colégio e afirmou que essa instituição não teria
poder contra os universitários graduados em medicina. Em seguida, Bonham foi
preso por desacato em Newgate.
Após a prisão, em menos de uma semana, o advogado de Bonham conseguiu
obter habeas corpus no Tribunal (Common Pleas), presidido agora pelo Chefe de
Justiça, Edward Coke. Entretanto, a concessão desse habeas corpus contrariava o que
havia sido estabelecido na jenkins doctrine. O Colégio de Médicos, após consultar
comitê seleto de juizes e por estar plenamente confiante no precedente Jenkins,
resolveu levar o assunto para os tribunais do common íaw.235
24E STJ, REsp 804648/DF, 1." T, j. 14.08.2007, rei. Min. Luiz Fux, DJ 03.09.2007.
242.STJ, RMS 15959/MT, 6.a T, j. 07.03.2006, rei. Min. Quáglia Barbosa, DJ 10.04.2006.
243.STJ, MS 10557/DF, 3.a Seção, j. 09.11.2005, rei. Min. Paulo Medina, DJ 06.02.2006.
244- STJ, REsp 647417/DF, l.a T, j. 09.11.2004, rei. Min. José Delgado, DJ 21.02.2005.
DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA 1 83
substituindo o juízo de valor de competência da Administração Pública pelo seu
próprio. Porém, admitiu o controle judicial da legalidade do ato administrativo.241
No mesmo sentido, no RMS15959242 o Tribunal, analisando decisão proferida
em processo administrativo disciplinar, entendeu que, no caso, as garantias do
contraditório e da ampla defesa haviam sido estritamente observadas pela comissão
processante, que conferiu ao administrador pelo acesso aos autos ao acusado, bem
como todos os recursos e meios necessários à sua defesa. Entendeu, ainda, que ao
Poder Judiciário compete apenas o controle da legalidade do ato administrativo,
ficando impossibilitado de adentrar no exame do mérito do ato, sob pena de invadir
competência alheia e usurpar a função administrativa, conferida precipuamente
ao Executivo. Por isso, negou-se provimento ao recurso.
Ainda sobre a questão, no julgado 10557,243 o STJ entendeu, diante de mandado
de segurança impetrado contra ato denegatório de anistia política, que a via eleita
pelo interessado é inadequada. Considerou que o controle de mérito da decisão
administrativa, segundo o qual o ato de demissão do impetrante não teve cunho de
perseguição política, não pode ser realizado pela via estreita do mandado de segu
rança, que exige a comprovação, de plano, do direito postulado pelo impetrante.
Assim, apesar de admitir, aparentemente, que se possa controlar judicialmente o
mérito do ato administrativo, o Tribunal denegou a ordem, com fundamento na
inadequação da via eleita.
Já no REsp 647417, o STJ, apesar de admitir reformar a decisão sancionatória
dada em processo administrativo, fez questão de ressaltar que a reforma não inva
dia o mérito, pois limitava-se tão somente a assegurar o princípio da legalidade e
o cumprimento do edital.
No referido caso,244 o STJ considerou correta decisão judicial que anulou cláusula
editalícia, mesmo não estando ela eivada de vício. O Tribunal entendeu que a Admi
nistração Pública desrespeitou a norma do edital e, com isto, infringiu o princípio
da legalidade a que está sujeita. Por isso, o controle judicial do ato não é invasivo
de competência alheia. O Tribunal também afastou a tese de que houve invasão do
mérito do ato administrativo pelo acórdão recorrido, uma vez que o administrativo
dispõe de poder discricionariedade para fazer uso correto dela, não para aplicar
punições ilegítimas. No caso, o ato administrativo acatado havia aplicado punição
ilegítima, e o acórdão recorrido apenas fez prevalecer o edital. O Tribunal entendeu
^ue a discricionariedade possui limites, que, se desrespeitados, transformam o ato
discricionário em ato arbitrário, ensejando, assim, a proteção judicial.
quantilatem delicti, which is in included in these words, per fines, amerciamenta, im-
prisonamenta corporum suorum, et per alias vias rationabiles et congruas". John Henry
Thomas e John Farquhar Fraser (orgs.). Op. cit., vol. 4, n. 117b, p. 374-375.
Fernando Rey Martinez. Op. cit., n. III, p. 858.
238.Idem, p. 859.
239.Idem, ibidem.
240.STJ, MS 17515/DF, l.a Seção, j. 29.02.2012, rei. Min. Teori Albino Zavascki, Dje
03.04.2012.
182 DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA E JUDICIAL
Para Coke, não era lícito ao Colégio apenar com prisão quem praticasse a me
dicina sem a licença do colégio, mas, de maneira adequada. Contudo, essa conduta
somente poderia ser multada. Coke afirmava que existiria grande diferença entre
praticar a medicina sem licença e a praticá-la de maneira incorreta.
Fernando Rey Martinez, ao interpretar a decisão de Coke, afirma que ela
teria realizado uma distinção entre infração administrativa (exercer medicina
sem licença) e infração penal (exercer medicina de forma incorreta). A segunda
infração, tendo em vista a gravidade do dano que poderia provocar, seria a única
que poderia acarretar pena de prisão.238
Nesse sentido, além da importância para a construção da judicial review,
Coke teria antecipado princípios fundamentais do direito sancionador no Estado
de Direito, e.g., o direito penal figurar como a última ratio para o Estado agir e a
obrigatoriedade de se examinar a proporcionalidade (razoabilidade) das penas.239
Na realidade, Coke adentrou no mérito do ato administrativo do Colégio de
Médicos e reformou a decisão aplicada, que, não obstante estar em conformidade
com a legislação vigente, apresentava-se desarrazoada do ponto de vista jurídico.
2.9.2 Diferença qualitativa do Bonham's case em relação aos julgados dos
Tribunais brasileiros hodiernos
Para se atestar a relevância da decisão do caso Bonham, decidido em 1610,
colacionamos algumas decisões recentes do STJ sobre vexata quaestio.
No MS 17515/DF,240 que versa sobre processo administrativo disciplinar, o
Tribunal deliberou, em conformidade com a orientação jurisprudencial consolidado
do Tribunal, que o controle jurisdicional dos processos administrativos limite-se à
regularidade do procedimento, à luz dos princípios do contraditório, da ampla de
fesa e do devido processo legal, sem análise do mérito administrativo, que incumbe
somente ao administrador. Por isso, entre outras razões que não dizem respeito ao
problema da discricionariedade, negou-se a segurança.
Em outra oportunidade, em questão envolvendo o poder disciplinar das
autoridades de trânsito, o Tribunal entendeu que, de acordo com o entendimento
"cediço", não incumbe ao Judiciário adentrar no mérito do ato administrativo,
248. Coke destaca que a lei seria contrária à common law, por conseqüência, deve ser
controlada. Verbis: "And it appears in our books, that in many cases, the common law
Will (d) controul acts of parliament, and sometimes adjudge them tobe utterly void:
for when an act of parliament is against common right and reason, or repugnant, or
impossible to be performed, the common law Will controul it, and adjudge such act to
be void". John Henry Thoríias eJohnFarquhar Fraser (orgs.). Op. cit., vol. 4, n. 118a,
p. 375.
Fernando Rey Martínez. Op. cit., n. IV, p. 861.
•^9. Para exame em que se afirma aTmportância de Coke para limitar o poder da Admi
nistração, ver: Miguel Beltrán de Felipe. Discrecionalidad administralive y constitución.
Madrid: Tecnos, 1995. p. 49-51.
-'^- Essa é a leitura que fazemos do caso Bonham. Nicola Matteucci também visualiza
nesse caso a origem da judicial review que se formou nos Estados Unidos. Cf. Nicola
Matteucci. Organización dei Podery Libertad cit., n. 4, p. 91 et seq.
Em posição intermediária, ver Fernando Rey Martínez. Op. cit., n. IV, p. 865.
1- Nicola Matteucci. Breve Storia dei Costituzionalismo cit., Cap. 3, p. 59.
^• Nicola Matteucci. Organización dei Podery Libertad cit., n. 4, p. 91.
^er. John Henry Thomas eJohnFarquhar Fraser (orgs.). Op. cit., vol. 4, n. 118a, p. 375.
absurda (repugnant), porque iria contra o preceito já consolidado no common law
(Je que ninguém pode ser simultaneamente juiz e parte no mesmo processo.248249
Tal assertiva viciaria o mérito do ato administrativo embasado nessa lei.
2.9.3 O paradigma Bonham para a judicial review do mérito
administrativo
Assim, Coke, ainda que de maneira marginal (âictum), admite a correção e a
limitação da legislação vigente com fundamento em preceitos jurídicos consagrados
historicamente pelo common law.250
No mesmo diapasão, Nicola Mateucci destaca que a interpretação exata do
caso Bonham pode ser controvertida, contudo, é inegável que tanto para a Inglaterra
quanto para os Estados Unidos, o Bonham's case constitui o início do desenvolvi
mento da máxima que admite a revisão da lei pelo Poder Judiciário, qual seja, o
próprio controle de constitucionalidade das leis.251
Na referida decisão, Coke destacou que o common law regula e controla os atos
do Parlamento, e, em certas ocasiões, julga-os todos nulos e sem eficácia, uma vez
que, quando um ato do Parlamento é contrário ao direito e à razão comum, o common
law o controlará e o julgará nulo e sem eficácia. Coke destaca a existência de um
direito superior à lei do Parlamento e que estaria contido na própria historicidade,
dado que uma lei tem validade formal quando deriva do Parlamento. Contudo,
esta somente adquire validade substancial, quando é racional, e o controle de seu
conteúdo corresponde aos juizes do common law.252
185DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA
245.RMS 21259/SP, 5.a T., j. 18.11.2008, rei. Min. Felix Fischer, DJe 02.02.2009.
No mesmo sentido do entendimento quanto à discricionariedade em processos adm1'
nistrativos disciplinares: RMS 19.741/MT; MS 12.927/DF; MS 12.983/DE
246.A definição de repugnant, em dicionário consagrado, é a seguinte: "adj. InconsiS'
tent or irreconcilable with; contrary or contradictory to the courfs interpretation Ws
repugnant to the express wording of the statute". Bryan A. Garner (org.). Blacfe's ^^
Dictionary. 7. ed. St. Paul: west Group, 1999. verbete: repugnant, p. 1306.
247.Fernando Rey Martínez. Op. cit., n. iy p. 860.
Em todos os casos acima listados, constata-se que a jurisprudência do STJ
é refratária ao "^ame do mérito do ato administrativo que imponha sanção ou
apene alguém.
Em caso isolado,245 o STJ afastou a existência de discricionariedade qjdminis-
trativa (juízo de conveniência e oportunidade) no ato que impõe sanção disciplinar,
razão pela qual o controle judicial, em casos dessa natureza, é amplo, e não se limita
a aspectos formais, mas também a questões tipicamente de mérito do ato. No caso,
porém, a pena aplicada (demissão do recorrente) não foi desproporcional, porque
precedida de regular procedimento administrativo disciplina em que restaram com
provadas irregularidades de natureza grave. Por isso, negou-se provimento ao recurso.
Portanto, é possível depreender que a jurisprudência do STJ está mais alinhada
com a doutrina jenfeins do que com o que ficou decidido posteriormente no caso
Bonham.
É nesse diapasão que se vislumbra o quão paradigmático é o caso Bonham.
Há mais de quatro séculos, o Judiciário inglês, em virtude da atuação precursora
de Edward Coke, admitiu revisar o mérito do ato administrativo sancionador,
superando entendimento anterior, porque a pena imposta pelo ato administrativo
apresentava-se desarrazoada, por conseqüência, violaria a historicidade do próprio
common law.
O controle do mérito do ato administrativo pode ser melhor visualizado
quando examinamos a argumentação constitucional subjacente ao voto de Coke.
A questão constitucional, ínsita ao Bonham's case, não constitui o núcleo dessa
decisão, caracterizando-se como obiter áictum. Coke realiza sua argumentação
afirmando que a cláusula que permitia ao Colégio apenar a prática de medicina
sem licença, consistiria em cláusula contraditória e absurda (repugnant) ,246 uma
vez que permitiria que o Colégio de Médicos fosse, ao mesmo tempo, juiz e parte
no processo.247
Desse modo, a lei que permitia ao Colégio de Médicos, a um só tempo, sancio
nar o exercício de medicina sem licença por meio de procedimento no qual ele seria
ao mesmo tempo parte (acusadora e beneficiária de eventual sanção) e juiz seria
contraditória. Na realidade, a teratologia jurídica era tamanha que foi considera
DISCRICIONAR1EDADE ADMINISTRATIVA E JUDICIAL184
5. A decisão pode ser vista no sítio eletrônico: [http://www.justis.cotn/data-coverage/
iclr-s4821028.aspx].
O precedente mais paradigmático sobre teste de razoabilidade é o Associated
provincialpicturehouses, limitedv. Wednesbury corporation.255
Trata-se de ação em que a companhia cinematográfica interessada questionou
o mérito de decisão da Associação que era autoridade licenciada para conceder
alvarás para realização de performances artísticas aos domingos, conforme o s.l,
sub-s 1, do Sunday Entertainments Act, de 1932.
Isto porque a licença foi concedida sob a condição de que nenhuma criança
com idade abaixo de 15 anos seria admitida a qualquer entretenimento, ainda que
estivesse acompanhado por adultos. Nestas condições, os interessados propuseram
a ação para declarar que as condições eram excessivas e desarrazoadas.
Assim, a Corte julgou que, ao se examinar se uma autoridade, ainda que pos
suidora de grande poder, agiu desarrazoadamente, o Tribunal só pode investigar o
ato da autoridade no sentido de verificar se tal ato levou em consideração qualquer
matéria que não deveria ter avaliado, ou que desconsiderou matérias que deveria
ter avaliado. A Corte não poderia interferir no mérito da Administração como
uma autoridade de apelação para rever as decisões administrativas, mas deve agir
apenas como autoridade judicial para rever se o ato administrativo foi contrário
à lei, agindo em excesso de poder. Ou seja, se a autoridade agiu fora da esfera de
poder concedido pelo Parlamento.
O que é interessante notar é a fundamentação utilizada na decisão Wednesbury,
de forma similar ao Bonham's case, novamente o ato administrativo é controlado
por contrariar o preceitos normativos importantes (higher law) do common law.
Em suma, a decisão aproxima-se de efetivo controle de constitucionalidade do ato
administrativo, a linha argumentativa posta alinha-se ao mecanismo de controle
utilizado no caso Bonham que é a forma de se realizar controle de constituciona
lidade em ordenamento que inexiste Constituição escrita.
2.9.4 Perspectiva do exame do mérito administrativo na doutrina pátria
A doutrina nacional, do mesmo modo que a jurisprudência, ainda é em grande
parte refratário ao exame do mérito do ato administrativo. Miguel Seabra Fagundesentende que o mérito do ato relaciona-se a apreciações que somente podem ser
avaliadas pelo próprio administrador, sendo defeso ao juiz analisá-lo. Porque se o
"fizesse exorbitaria, ultrapassando o campo da apreciação jurídica (legalidade ou
legitimidade), que lhe é reservado como órgão específico de preservação da ordem
legal para incursionar no terreno da gestão política (discricionariedade), próprio
dos órgãos executivos. Substituir-se-ia ao administrador, quando o seu papel não é
187DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA
253.Beltrán de Felipe. Op. cit., p. 63 et seq.
254.Idem, p. 79 et seq.
186 DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA E JUDICIAL
O racional referido por Coke pode ser entendido como o estar de acordo
com a historicidade. Co|^ efeito, ao Judiciário caberia exercer o controle dos
demais atos de poder público que fossem violadores dos direitos fundamentais
historicamente assegurados aos cidadãos, ainda que parte desses atos estivesse
em consonância com a legislação vigente, mas em confronto com a historicidade
(common law).
Frise-se que, no caso Bonham, ao contrário do Marbury vs Madison, o ato
controlado não tinha caráter legislativo. O que efetivamente se controlou no
caso Bonham foi uma decisão administrativa do Colégio de Médicos, oriunda de
processo disciplinar. Da mesma maneira que a atividade do Parlamento impõe
limites ao poder real, a supremacia dele não pode ser interpretada como absoluta
soberania. Assim, o Judiciário, principalmente, por meio da judicial review, tem
a função primordial de limitar os dois outros poderes, buscando resguardar os
direitos fundamentais dos cidadãos.
Em virtude de toda a inovação e particularidades que circunscrevem o caso
Bonham é que o elencamos como o precedente paradigma para se teorizar o con
trole do mérito do ato administrativo.
Por meio do referido caso, a partir do voto de Edward Coke, modificou-se
o anterior entendimento (doutrina Jenkins) que negava ao Judiciário a possibili
dade de efetuar o controle do mérito do ato administrativo. A doutrina superada
afirmava que ao Judiciário somente era permitido avaliar a correção dos aspectos
formais do ato, sem nunca adentrar a análise do mérito desse mesmo ato, ín casu,
a penalidade aplicada.
No caso Bonham, a lei permitia ao Colégio de Médicos aplicar a lei imposta
ao médico. Contudo, Coke considerou que o ato administrativo oriundo dessa lei,
ainda que formalmente correto, em sua materialidade violava a razoabilidade e a
historicidade ínsita ao common law.
Em termos simples, Coke, em 1610, proferiu decisão cujo conteúdo é, inclu
sive, mais inovador do que a própria jurisprudência vigente dos nossos tribunais
sobre a matéria.
Tal decisão criou linha jurisprudencial no common Law, que tinha cariz muito
mais pragmático do que a desenvolvida no civil law. No direito inglês, desenvolveu-
-se uma espécie de teste de razoabilidade para se realizar o controle do mérito do
ato administrativo.253 Tal teoria, apesar de sofrer em diversos pontos a crítica de se
definir o que efetivamente é ou não discricionário, assegurou o controle do mérito
do ato administrativo quando reprovado no teste de razoabilidade.254
Miguel Seabra Fagundes. O controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário cit.,
P. 88-89.
uma questão jurídica, em última instância, pode ter a legalidade/constituciona
lidade do seu mérito examinada pelo Judiciário. O fato de ser ato administrativo
não pode criar uma prévia blindagem para a avaliação judicial do ato proveniente
da Administração.
No atual contexto constitucional, não se pode admitir que ojudiciário negue-
-se a julgar o mérito de uma lide em que é atacado o ato administrativo, porque
ao Judiciário seria defeso examinar o mérito do ato. Referida tese foi superada no
caso Bonham, quando se fez um overruling da doutrina Jenkins, há pelo menos
quatro séculos.
No Brasil, perante o que dispõe a Constituição Federal, em que são consa
grados direitos fundamentais e toda uma principiologia que rege a atividade da
administração pública, não se pode negar ao Judiciário o exame do mérito do ato
administrativo para avaliar se há ilegalidade ou inconstitucionalidade. Do contrário,
chegar-se-ia à teratológica conclusão de que a inconstitucionalidade/ilegalidade
somente se manifestaria na forma do ato, nunca podendo atingir seu conteúdo.
No tópico subsequente, passamos a explanar que, hodiernamente, a Consti
tuição constitui o fundamento normativo de todo o agir administrativo.
2.10 Crítica constitucional: do princípio da legalidade ao princípio
da constitucionalidade. Da necessária superação do conceito de
interesse público
2.10.1 A releitura do princípio da legalidade
No Estado Constitucional, o princípio da legalidade sofre releitura, de modo
que a Atividade da Administração Pública passa a estar vinculada ao texto cons
titucional.
Na realidade, a vinculação direta à legalidade é tema freqüente na doutrina
administra tivista.
De acordo com Seabra Fagundes, a atividade administrativa está sempre con
dicionada, pela lei, à obtenção de determinadas conseqüências, e o administrador,
ao exercê-la, não pode ensejar conseqüências diversas das pretendidas pelo legis
lador. Os atos administrativos devem procurar atingir as conseqüências que a lei
teve em vista quando autorizou ou determinou sua prática, sob pena de nulidade.
Se houver burla da intenção legal, ou seja, se a autoridade contrariou o espírito da
l^i, ainda que o resultado obtido seja lícito e moral, haverá desvio de finalidade,
Porque o ato foi expedido com finalidade diversa da pretendida pela lei.259
189DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA
256.Miguel Seabra Fagundes. O controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário cit-,
p. 181-182.
Ver ainda: Miguel Seabra Fagundes. Conceito de mérito do ato administrativo. Revista
de Direito Administrativo, n. 23.
257.Celso Antônio Bandeira de Mello. Discricionariedade administrativa e controle juriS'
dictional cit., p. 41-42.
258.Idem, p. 42-43.
tomar-lhe a posição no mecanismo jurídico-constitucional do regime, senão apenas
contê-lo nos estritos limites da ordem jurídica (controle preventivo) ou compeli-lo
a que os retome, se acaso transpostos (controle a posteriorí)",256
No mesmo sentido, Bandeira de Mello, não obstante salientar que a Admi
nistração deve adotar a melhor scjução, aürma que por ser impossível saber qual
a verdadeira vontade da lei e finalidade da norma, consequentemente, qual seria
a melhor solução, não deve o Judiciário invadir o mérito do ato administrativo.257
Nas exatas palavras do autor: "Uma vez que a inteligência humana é hnita - e,
portanto, não pode desvendar tudo - também não pode identificar sempre, em todo e
qualquer caso, a providência idônea para atender com exatidão absoluta a finalidade
almejada pela regra aplicanda, dado que pelo menos dois pontos de vista divergentes
seriam igualmente admissíveis. Disto resulta a impossibilidade de eliminar o subje-
tivismo quanto à superioridade de alguns deles em relação aos outros".258
Esses fragmentos permitem esclarecer que nossa doutrina, em grande parte
dela, é refratária ao exame do mérito do ato administrativo, algo que reflete na
jurisprudência dos Tribunais Superiores, que é avessa à análise do mérito do ato,
consoante todos os julgados que elencamos acima.
No caso Bonham, reitere-se em 1610, Edward Coke corrigiu o mérito do ato
administrativo, sob o argumento de que ele seria contrário ao common law, o que
eqüivaleria, num sistema de Constituição escrita, a afirmar que o mérito do ato era
inconstitucional, não obstante haver lei o autorizando.
A tese subjacente no caso Bonham que merece destaque, refere-se à ampla
possibilidade de o Judiciário examinar a legalidade/constitucionalidade do méritodo ato administrativo. Não se trata de admitir que o Judiciário troque o critério
de conveniência e oportunidade do ato administrativo pelo do julgador. Afinal,
discordamos da possibilidade de se motivar ato administrativo em critério de
oportunidade e conveniência, tal qual asseveramos ao criticar a discricionariedade
performática.
Também não se trata de admitir a análise do mérito do ato administrativo
em privilégio de um protagonismo judicial, isso porque, da mesma forma que.não
há discricionariedade para a Administração, com maior razão, ela inexiste para o
Judiciário. O que de fato preconizamos é que todo ato administrativo que decida
DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA E JUDICIAL188
264.Hans Wolff; Otto Bachof e Rolf Strober. Direito administrativo cit., p. 434. (Grifos do
original)
265.Paulo Otero. Op. cit., 17, n. 17.1.1, p. 735.
266.Ver Rui Medeiros. Op. cit., 8., n. 3, p. 189.
267.Sobre essa questão, merece destaque o seguinte comentário:
"O Tribunal Constitucional Federal alemão decidiu, já em 06.05.1958, que o adminis
trador e legislador têm de fazer o que é necessário (Wesentlichkeitstheorie - Teoria da
essencialidade), afirmando que a reserva legal tradicional (praticar apenas atos auto
rizados por lei) é ultrapassada e que se deve prestigiar a doutrina da essencialidade".
Nelson Nery Júnior e Rosa Maria Andrade Nery. Constituição Federal comentada cit.,
coment. 13 CF 37, p. 462.
núcleo essencial, nem mesmo pelo legislador constituinte, caracterizam aquilo
que denominados de cláusulas pétreas. Não obstante a existência do preceito
da primazia da lei, ocorre que a legalidade meramente formal não é suficiente. A
Administração deve ser conforme à Constituição. Por conseguinte, a Administração
deve salvaguardar especialmente a igualdade jurídica e respeitar a liberdade e a
propriedade, no Brasil, a concretização do que está disposto no caput do art. 37.264
Portanto, no Estado Constitucional, configurou-se uma substituição da reserva
vertical da lei por uma reserva vertical da própria Constituição. Essa substituição
permitiu que a Constituição passasse a ser o fundamento direto do agir administra
tivo, tendo reflexo imediato em duas áreas de incidência: (i) a Constituição torna-se
norma direta e imediatamente habilitadora da competência administrativa; (ii) a
constituição passa a ser critério imediato da decisão administrativa.265
Em nosso Texto Constitucional, o princípio da legalidade está previsto no
art. 37 da CF, nos seguintes termos: "A administração pública direta e indireta de
qualquer dos Poderes da União, dos Estados e do Distrito Federal e dos Municípios
obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade
e eficiência".
Atualmente, a vinculação da atividade administrativa à legalidade deve ser
visualizada como vinculação ao próprio direito, por conseguinte, ao texto consti
tucional. A vinculação da Administração não é mais apenas em relação à legalidade,
mas, sim, a um bloco de legalidade dentro do qual possui especial destaque o texto
constitucional.266
No que concerne a uma releitura do princípio da legalidade, Nelson Nery
Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery destacam que a teoria da essencialidade
(Wesentlichkeitstheorie) superou a tipicidade dos atos administrativos que remetia
à legalidade em sentido estrito.267
Com fundamento em mesma premissa, Eduardo Garcia de Enterría e Ramón
Fernández asseveram que a vinculação da Administração Pública ao Direito
191DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA
260.Juan Carlos Cassagne. Op. cit., p. 120.
261.Para uma releitura desse princípio, ver Paulo Otero. Legalidade e administração pú
blica. O sentido da vinculação administrativa à juridicidade. Coimbra: Almedina, 2003,
com especial destaque para os 17, 18 e 19, p. 733-1077.
262.Hans Wolff; Otto Bachof e Rolf Strober. Direito administrativo cit., p. 433-434.
263.Rainer Wahl. Los últimos cincuenta anos de Derecho administrativo alemán Los últimos
cincuenta anos de Derecho administrativo alemán. Madrid: Marcial Pons, 2013. p. 60-61.
Sobre o tema, Juan Carlos Cassagne ensina que, na seara administrativa, o
princípio da legalidade pode ser entendido em vários sentidos. De início, toda
atuação da administração pública deve se fundar em lei material (lei formal, regu
lamento administrativo, ordenações etc.) e este é o sentido que cabe atribuir ao art.
19 da Constituição Nacional (argentina), que joga como uma garantia em favor das
pessoas. Ao próprio tempo, o princípio da l^galidade opera como uma restrição ao
exercício do poder público e exige lei formal ou lei formal-material para aquelas
atuações que interfiram na liberdade jurídica dos particulares.260
No atual estágio constitucional, impõe um novo paradigma vinculatório à
legalidade. Essa nova vinculação, conforme ensina Paulo Otero, ocorre em virtude
de substituição da lei pela Constituição como fundamento direto e imediato do
agir administrativo sobre determinadas matérias.261
Sobre o tema, a doutrina alemã preceitua, no Estado Constitucional, todo
o exercício legal do poder deve respeitar a lei jurídica e o princípio da justiça. A
exigência dajuriáicidade material tanto é válida para a Administração como para os
tribunais, para o Governo e para o legislador. A exigência da juridicidade material
também é parte integrante do direito comunitário, com base no qual o TUE desen
volveu numerosos princípios de Estado de direito, que deverão ser observados na
prática e na execução de atos comunitários.262
A doutrina tedesca enfatiza a profunda mudança ocorrida no direito público
após a segunda guerra. Nesse novo modelo que se formou, a lei já não é algo que
não pode ser interpretado ou o ponto de partida indubitável de toda atuação ad
ministrativa. Isso porque a própria lei deixou de ser incontestável passando a ter
sua constitucionalidade verificada. Portanto, o direito administrativo passa a ser
marcado pelos parâmetros constitucionais criados, por conseqüência, a Adminis
tração Pública passa a estar vinculada à normatividade constitucional, com especial
destaque para os direitos fundamentais.263
De acordo com a Lei Fundamental de Bonn, existe apenas uma presunção
ilidível de conformidade com o direito de todas as normas abstratas ou concretas.
Portanto, o art. 1 III GG vincula o legislador, o Governo, a Administração e os
tribunais aos princípios jurídicos, os direitos fundamentais que, nos termos dos
arts. 79, III e 19, II GG, do ponto de vista legal, não podem ser tocados no seu
DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA E JUDICIAL190
Idem, p. 209-210.
O citado autor destaca o problema da Constituição como parâmetro de vali
dade dos atos administrativos. Afirma que a jurisprudência não é unânime quanto
ao ponto, não se tendo chegado ainda a uma conclusão firme sobre se as normas
constitucionais imediatamente exeqüíveis devem ou não servir de parâmetro de
validade dos atos administrativos, incluídas no chamado "bloco de legalidade
administrativa". Segundo o autor, a principal dificuldade está em lidar com o
concurso de normas aplicáveis como parâmetros de validade do ato administra
tivo: por vezes, as normas constitucionais concorrem com as normas legais. Há
decisões defendendo que as normas constitucionais sejam diretamente aplicáveis
ao contencioso constitucional dos atos administrativos apenas se não houver lei
tutelando a mesma situação. O autor ainda diz que a dificuldade de se considerarem
as normas constitucionais parâmetros autônomos de validade está na duplicação e
concretização de seu conteúdo nas leis. Em tais casos, os tribunais administrativos
fazem referência à norma constitucional, mas acabam aplicando a lei. Para o autor,
essa confusão só é satisfatoriamente desfeita quando se cogita a qualificação do
vício(inconstitucionalidade ou ilegalidade) que inquina o ato administrativo.271
2.70.2 A superação do conceito interesse público na jurisprudência alemã
A possibilidade de se confrontar os atos administrativos com a legalidade/
constitucionalidade, além do antiquíssimo precedente do caso Bonham, deve-se à
evolução da jurisprudência do Tribunal Constitucional Alemão na avaliação sobre
a implantação de usinas nucleares. A decisão mais famosa é a referente à usina de
Kalkar. Contudo, para melhor compreensão acerca da decisão, faz-se necessário
traçarmos um breve escorço evolutivo sobre essa jurisprudência.
2.70.2.7 BVerfGE 53, 30 (Mülheim-Kãrlich)
Em janeiro de 1975, foi dada a "primeira autorização parcial" para a usina
nuclear Mülheim-Kãrlich, depois de transcorrido o devido processo administrativo,
incluindo a necessária participação da sociedade civil, que permitiu a construção
de algumas unidades da usina. Ó funcionamento da Usina ainda ficou sujeito a
uma autorização posterior final.
Houve autorizações parciais posteriores condicionadas a modificações neces
sárias para aumento de segurança da Usina. O sétimo comunicado de liberação,
^^ junho de 1976, cuja imediata execução fora autorizada, foi impugnado pela
reclamante, que morava a cerca de sete quilômetros de distância do local da Usina.
^eu pedido de restabelecimento do efeito suspensivo de sua ação contra o sétimo
cmunicado de liberação foi indeferido pelo Superior Tribunal Administrativo.
193DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA
268.Eduardo Garcia de Enterría e Tomás-Ramón Fernández. Curso de Derecho Adminis
trativo cit., 1.1, p. 497-499.
Em sentido próximo, Gustavo Binenbojm destaca que: "A legalidade, embora ainda
muito importante, passa a constituir apenas um princípio do sistema de princípios e
regras constitucionais. Passa-se, assim, a falar em um principio da juridicidade admi
nistrativa para designar a conformidade da atuação da Administração Pública ao direito
como um tudo, e não apenas à lei". Gustavo Binenbojm. Temas de direito administrativo
e constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 12.
269.A decisão tem a seguinte redação: "A Res. 7/2005 se dota, ainda, de caráter normativo
primário, dado que arranca diretamente do 4. do art. 103-B da Carta-cidadã e tem
como finalidade debulhar os próprios conteúdos lógicos dos princípios constitucionais
de centrada regência de toda a atividade administrativa do Estado, especialmente o da
impessoalidade, o da eficiência, o da igualdade e o da moralidade. O ato normativo que
se faz de objeto desta ação declaratória densifica apropriadamente os quatro citados
princípios do art. 37 da Constituição Federal, razão por que não há antinomia de con
teúdos na comparação dos comandos que se veiculam pelos dois modelos normativos: o
constitucional e o infraconstitucional. Logo, o Conselho Nacional de Justiça fez adequado
uso da competência que lhe conferiu a Carta de Outubro, após a Emenda 45/2004"-
STF, Pleno, ADC(MC)-12, j. 16.2.2006, m.v, rei. Min. Carlos Britto, DJU 01.09.2006,
p. 15. Comentando esse julgado v. Gustavo Binenbojm. Op. cit., p. 14-16.
270.Dinamene de Freitas. O acto administrativo inconstitucional: delimitação do conceito i
subsídio para um contencioso constitucional dos actos administrativos. Coimbra: Coimbra
Ed., 2010. passim.
192 DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA E JUDICIAL
faz com que não exista nenhum espaço livre para a administração agir com um
poder ajurídico. Desse modo, o direito não cria para a Administração um espaço
em que dentro dela ela pode agir com total liberdade, pelo contrário, o Direito,
principalmente os dispositivos constitucionais, condiciona e determina de forma
positiva a ação administrativa, que será inválida se estiver em desconformidade
com o Direito.268^^^
Sobre a questão, o STF, em acórdão paradigmático, já decidiu que a Admi
nistração Pública poderia realizar sua atuação com fundamento direto na Cons
tituição. Assim, na medida cautelar em na ação declaratória 12, o STF decidiu
pela constitucionalidade de regulamento autônomo (Res. 7/2005) proferido pelo
Conselho Nacional de Justiça, por meio do qual ficou proibido o nepotismo no
âmbito do Judiciário. A referida resolução foi elaborada com fundamento direto
no art. 103-B, 4., da CE269
Apesar de haver certo consenso doutrinário sobre a incidência normativa da
Constituição, na prática, em raríssimas hipóteses, o ato administrativo tem sido
contrastado à luz da Constituição Federal.
Em trabalho dedicado ao tema, Dinamene de Freitas270 dispõe a dificuldade
de se tratar, em termos práticos, a avaliação da discricionariedade mediante para
digmas constitucionais.
além de estarem predispostas a outras práticas violentas. Depois do aviso oficial
dos organizadores, a secretaria estadual reiterou a medida proibitiva.
Alguns dos organizadores impugnaram, na Justiça Administrativa, a medida
administrativa geral, requerendo o efeito suspensivo da proibição. Esse pedido
foi indeferido, finalmente, pelo Superior Tribunal Administrativo de Lüneburg.
O Tribunal fundamentou na intempestividade do aviso prévio da reunião à au
toridade competente e da análise desfavorável indicando que atos de violência
eram esperados.
Foram ajuizadas Reclamações Constitucionais contra a imediata execução da
medida administrativa geral e contra as decisões do Superior Tribunal Administrati
vo, que alegavam violação do art. 81 GG, sendo julgadas parcialmente procedentes.
O BVerfG reviu a decisão, afirmando que a Administração Pública não pode,
discricionariamente, retalhar direitos fundamentais, sem critérios legais para tanto.
A mera alegação de que a manifestação não teria "fins pacíficos" - visando adequar
à hipótese de vedação dada por lei infraconstitucional que regulamenta o direito
de reunião - não pode servir para restringir direitos fundamentais dos cidadãos,
pois não seria uma interpretação conforme a Constituição. Necessário seria que a
ameaça fosse iminente ou pautada em evidências - e não mera suposição.
Interessante ressaltar a análise da jurisprudência recente do BVerfG, para
quem os direitos fundamentais influenciam não apenas a conformação do direito
material, mas determinam, também, ao mesmo tempo, os critérios para a configu
ração organizacional e processual que torna efetiva a proteção do direito funda
mental, bem como para uma aplicação das existentes prescrições processuais que
seja compatível com direitos fundamentais, (cf. as indicações de BVerfGE 53, 30
65 s. e 72 s.]; na seqüência também: BVerfGE 56, 216 [236] e 65, 76 [94]; 63,131
[143]; 65,1 [44,49]).
Também avaliou que não se pode considerar o potencial comportamento não
pacífico de indivíduos como requisito para não possibilitar a realização de Direi
tos Fundamentais de uma coletividade. Antes, a Administração Pública tem que
^star preparada para abordar tais indivíduos e impedi-los de tumultuar a reunião
constitucionalmente assegurada da coletividade.
2.10.2.3 BVerfGE 49, 89 (Kalkar I [08.08.1978])
Em 1972, o Ministério competente concedeu a licença de instalação parcial
oo assim denominado regenerador rápido em Kalkar. Um vizinho questionou a
concessão na competente Justiça Administrativa. O Superior Tribunal Adminis
trativo de Nordrhein-Westfalen suspendeu o processo e apresentou ao TCF o 7
e II AtomG (Lei sobre o Uso Pacífico da Energia Nuclear) para o seu devido exa-
1116 de constitucionalidade, segundo permissivo constitucional do art. 100 I GG.
^ entendimento do Superior Tribunal Administrativo, o dispositivo se chocava
195DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA
Os fundamentos dados pelo Superior Tribunal Administrativo era o de que
a reclamante não poderia derivar sua legitimidade processual e seu interesse
processual de agir (Klagebefugnis) do fato de que oalvará modificado só poderia
produzir efeitos depois de nova publicação e interpretação dos documentos em
outro comunicado de autorização. Assim, as condições processuais do pedido não
estariam, pois, presentes, porque, como terceiro atingido pela autorização prevista
nos dispositivos legais sobre a energia nuclear, elasó poderia questionar a violação
de dispositivos de direito material. Todavia, a violação de direito material não estaria
clara, segundo o Superior Tribunal Administrativo.
Portanto, o Superior Tribunal Administrativo entendeu que os direitos da
reclamante dignos de proteção constitucional só seriam atingidos com o funcio
namento da Usina, mas não propriamente com sua construção.
O TCF julgou a Reclamação Constitucional ajuizada contra esta decisão ad
mitida, contrariando em parte a concepção do superior tribunal administrativo,
mas, no mérito, julgou-a improcedente por não verificar uma violação do art. 2II
GG pela autorização da construção.
Afirmou não ser possível ao Judiciário apreciar as motivações econômicas e
políticas do Executivo para a autorização de instalação de reator nuclear para fins
pacíficos, uma vez que previsto na Constituição.
A decisão reconheceu, assim, a competência exclusiva do Legislador para
análise da decisão fundamental em prol ou contra o uso da energia nuclear para fins
pacíficos, devendo manifestar sua análise pelo competente instrumento legislativo,
de modo que a análise de constitucionalidade cabível ao Judiciário limitar-se-ia à
questão de se a regulamentação normativa que fundamentou as decisões impug
nadas é constitucional e, principalmente, se esta regulamentação foi aplicada de
modo prescrito constitucionalmente.
2.10.2.2 BVerfCE39,315 (Brokdorf)
Trata-se de reclamação constitucional em face da decisão administrativa do
Executivo (decisão dada por repartição de política, confirmada pelo Superior
Tribunal Administrativo daquela província) que proibiu manifestação pública
contrária à instalação de usina nuclear.
No início de 1981, diversas ONGs convocaram a população a protestar contra
a construção da Usina Nuclear de Brokdorf. Ocorre que, antes mesmo do anúncio
da manifestação, a secretaria estadual competente proibiu a realização da reunião
por medida administrativa geral sobre um território de aproximadamente 21Okm2.
ordenando a imediata execução da medida. A medida foi fundamentada a partir
de reconhecimentos policiais, segundo os quais entre os esperados 50.000 mani
festantes se encontrariam um número considerável de pessoas dispostas a realizar
atos de violência, vez que queriam ocupar violentamente e danificar a construção.
DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA E JUDICIAL194
4 Para exame aprofundado da referida decisão, ver: Rainer Wahl. Op. cit., p. 38-39.
73- Dinamene de Freitas. Op. cit., p. 221-222.
^74- Idem, p. 222.
7s- Idem, ibidem.
6- Rui Medeiros. Op. cit., 8., n. 1 p. 168.
DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA 197
Em 1954, o Tribunal Constitucional Alemão proferiu decisão paradigmática
para a correta compreensão da relação entre Estado e cidadão.
O Tribunal Constitucional Federal, no seu acórdão de 20.07.1954 (BVerfGE
4,7,15 f), deixando em aberto se, no âmbito do conceito do livre desenvolvimento
da personalidade de liberdade humana deve ser entendida no sentido mais amplo,
ou se o art. 2 I GG está limitada à manutenção de um nível mínimo de liberdade,
entendeu que não pode o Poder Público agir, ainda que perseguindo interesse
público, sem considerar o homem como sendo pessoa espiritual e moral. A Lei
Fundamental assegura ao cidadão, com o "livre desenvolvimento da personalida
de", não só o desdobramento dentro dessa área núcleo da personalidade, como
também constitui a essência do homem como uma pessoa espiritual e moral.272
2.10.3 O princípio do constitucionalismo como superação do princípio da
legalidade
No mesmo sentido, Dinamene de Freitas afirma que se a violação é perpetrada
pelo ato administrativo à Constituição, está em causa o princípio da constituciona-
lidade referido à Administração Pública. Nesse caso, seguindo o mesmo raciocínio,
o regime do desvalor do ato administrativo inconstitucional será aquele que a
própria Constituição estabelecer em face dessa violação.273
Há, por assim dizer, uma "reserva de Constituição [nas] questões relativas à
sua garantia, à tutela da sua integridade enquanto texto normativo".274
Dessa forma, assumindo que a Constituição é o fundamento último de vali
dade dos atos jurídico-públicos (art. 3., n. 3) e que a Administração Pública está
subordinada à Constituição (art. 226., n. 2), o autor sustenta que serão inválidos,
por determinação constitucional, todos os atos jurídico-públicos desconformes
com normas constitucionais, aí incluídos os atos administrativos.275
Em nosso entendimento, torna-se incontestável vincular todo o agir admi
nistrativo à Constituição. Essa vinculação direta da atividade administrativa ao
texto constitucional é proveniente do que designamos de princípio da constitucio-
nalidade que, por sua vez, determina a vinculação de todos os poderes públicos,
tncluindo o poder administrativo à Constituição.276
Nesse sentido, já é possível vislumbrar precedentes do STF em que o ato
administrativo é controlado em função de sua desconformidade com o texto
constitucional.
196 DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA E JUDICIAL
contra os princípios democráticos da divisão de poderes e do Estado de direito, na
medida em que permitia a licença também para esse tipo de reator nuclear, sem
uma decisão expressa do legislador e sem critérios legais mais precisos para tanto.
O TCF decidiu que a norma impugnada é compatível com a Grundgesetz.
O fundamento da decisão foi, em suma, a consideração de que a decisão
normativo-axiológica, a favor ou contra a permissão legal do uso pacífico da energia
nuclear no território de soberania da República Federal da Alemanha, é uma decisão
fundamental e essencial no sentido da reserva de lei. Tomá-la compete somente ao
legislador, especialmente se consideramos os seus largos efeitos sobre os cidadãos,
mormente nos campos de sua liberdade e igualdade, sobre as relações sociais gerais.
Se o Legislador tomou uma decisão - ou seja, criou uma lei que aprova o uso
de energia atômica para fins pacíficos e regulamentou tal uso -, cujo fundamento
está sendo questionado devido a novos desenvolvimentos ainda não previsíveis à
época da promulgação da lei, o Legislador pode ser compelido pela Constituição a
rever sua decisão original, no sentido de procurar saber se aquela deve ser mantida
também sob as novas circunstâncias. Todavia, tal análise não caberia ao Judiciário,
sob o risco de usurpar o poder constitucionalmente previsto ao Legislativo.
Manifesta-se, ainda, o Tribunal Constitucional, que não é possível exigir do
Legislador que crie uma regulamentação que exclua todos os potenciais riscos a
direitos fundamentais de qualquer matéria que esteja decidindo. Exigir do legis
lador, com vistas ao seu dever de proteção, uma regulamentação tal que possivel
mente caberia melhor ao Executivo por poder analisar condições técnicas e suas
operações, significaria desconhecer os limites da faculdade cognoscitiva humana
e, no mais, baniria definitivamente toda autorização estatal para uso da técnica.
Assim, entendeu o Tribunal Constitucional que, para a conformação da ordem
social, a coletividade deve satisfazer-se com prognósticos baseados na razão prática.
Incertezas além dos limites da razão prática são inevitáveis, devendo, nesse caso,
ser suportados como ônus socialmente adequados por todos os cidadãos.
Na decisão de Kalkar, apesar de não ter sido reformada a decisão adminis
trativa, o TCF admitiu que o ato administrativo fosse contrastado com o texto
constitucional.Desse modo, a partir de mera análise de decisões paradigmáticas do Tribunal
Constitucional Alemão, é possível depreender a preocupação em se delimitar
normativamente dois pontos: (i) a posição do indivíduo e sua limitação em fac^
do Poder Público e (ii) em que medida a Constituição e sua principiologia cons
titui parâmetro normativo para sindicar ato administrativo inclusive o seu mérito
consubstanciado em interesse público.
Essa orientação é fruto do desenvolvimento doutrinário alemão que sempre se
preocupou com a teorização de direito subjetivo do indivíduo contra o Estado, a fim
de impedir que o cidadão fique à disposição da potestatividade do Poder Public0-
279.STJ, AgRg no REsp 1280729/RJ, 2.a T., j. 10.04.2012, rei. Min. Humberto Martins
DJ 19.02.2012.
280.STJ, REsp 690811/RS, 1." T, j. 28.06.2005, rei. Min. José Delgado, DJ 19.12.2005.
No mesmo sentido: REsp 690819/RS.
28L STJ, REsp 778648/PE, 2.a T, j. 06.11.2008, rei. Min. Mauro Campbell Marques, DJe
01.12.2008.
para examinar a conveniência dos descontos ou da majoração, logo, não possui
competência discricionária.
Desse modo, o voto condutor do entendimento prevalecente foi do Min. Luiz
Fux. O Min. Dias Toffoli, relator, divergiu e votou pela denegação do mandado de
segurança, sustentando que, se a majoração do desconto estava prevista em lei,
essa previsão era suficiente para a Administração proceder à majoração, indepen
dentemente de prévio procedimento administrativo.
Na mesma linha, o STJ, em parcos julgados, admite o controle da forma e da
substância do ato em face da legalidade vigente. No julgamento do AgRg no REsp
1280729/RJ,279 o STJ admitiu que os atos discricionários da Administração Pública
estejam sujeitos ao controle pelo Judiciário quanto à legalidade formal e substancial,
cabendo-lhe, inclusive, observar que os motivos embasadores dos atos administrati
vos que vinculam a Administração. No caso, se o ato administrativo de avaliação de
desempenho apresenta incongruência entre os parâmetros e os critérios estabeleci
dos e seus motivos determinantes (= motivos elencados pelo administrador para a
prática do ato administrativo), a atuação jurisdicional acaba por não invadir a seara
do mérito administrativo, porque se limita a anular o ato ilegal. O Tribunal entendeu
que a ilegalidade ou a inconstitucionalidade do ato administrativo pode e deve ser
apreciada pelo Judiciário, de sorte a evitar que a discricionariedade transfigure-se em
arbitrariedade, conduta ilegítima e suscetível de controle de legalidade.
No julgamento do REsp 690811/RS,280 o STF, ao final da fundamentação do
acórdão, invoca a Lei 9.784/1999, que foi promulgava visando introduzir no orde
namento jurídico brasileiro o instituto da "mora administrativa" como forma de
reprimir o arbítrio administrativo, pois, apesar de a discricionariedade de que se
reveste o ato de autorização de rádio comunitária (discutido no caso), não se pode
admitir que o cidadão fique sujeito a uma espera abusiva, e que deve, portanto,
estar sujeita ao controle do Judiciário, visto que a este incumbe a preservação dos
direitos. Entre outras razões, por esse motivo, conheceu-se e deu-se provimento
parcial ao recurso.
Em outra oportunidade,281 conquanto não seja fundamento da principal questão
do acórdão, o STJ reconhece que, atualmente, parte da doutrina e da jurisprudência
tem entendido que o Judiciário pode controlar o mérito do ato administrativo (con
veniência e oportunidade) sempre que, no uso da competência discricionária, mesmo
199DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA
277.STF, MS 29350/PB, Pleno, j. 20.06.2012, rei. Min. Luiz Fux, DJ 01.08.2012.
278.STF, MS 27851/DF, 1." T, j. 27.09.2011, rei. p/ acórdão, Min. Luiz Fux, DJ 23.U.201L
1 98 DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA E JUDICIAL
No MS 29350/PB,277 de relataria do Min. Luiz Fux, o STF entendeu que a
precedência da remoção de servidores públicos sobre a investidura de candidatos
de cadastro de reserva é obrigatória à luz do regime jurídico atualmente vigente,
e, em decorrência do princípio da proteção da confiança, corolário da segurança
jurídica. Entendeu ainda que a discricionariedade da Administração Pública pa
raibana encerra o poder de decidir quanto à alocação de seus quadros funcionais
dentro dos limites da legalidade e dos princípios constitucionais, podendo incorrer
em ilegalidade. Apesar das mudanças havidas na legislação estadual pertinente às
remoções, a sistemática de movimentação dos servidores foi preservada. Logo,
as expectativas legítimas dos servidores, fundadas na legislação de 2003 (data da
primeira lei alteradora), devem ser respeitadas pela Administração, sob o risco de
violação do princípio da proteção da confiança e da segurança jurídica. Dessa forma,
o Tribunal denegou a ordem, com o intuito de assegurar aos servidores antigos a
remoção, antes da nomeação dos servidores novos.
O relator, Min. Luiz Fux, anota corretamente em um obiter âictum que a
abertura de novas vagas depende da criação de novos cargos ou da vacância dos
cargos já existentes, "e a alocação dessas vagas disponíveis nas diversas regiões se
dará no interesse da Administração do Tribunal de Justiça do Estado da Paraí
ba". Logo, a discricionariedade, aqui, estará na alocação das vagas no território
do Estado (questão não suscitada no mandado de segurança), não na remoção
prévia dos servidores em exercício (este, sim, objeto do mandado de segurança
denegado).
Em outro julgado,278 não obstante a legalidade formal do ato da administração,
instaurou-se e prevaleceu a divergência que determinou a modificação do mérito
do ato administrativo por meio do julgamento do mandamus pelo STF.
O mandado de segurança foi impetrado por associação de magistrados da
Justiça do Trabalho, objetivando reduzir o desconto nos subsídios, visando à re
composição de valores percebidos indevidamente. A l.a Turma do STF concedeu
a ordem, por maioria, entendendo que o desconto ou sua majoração dependem da
observância de prévio contraditório e ampla defesa. Não basta estarem previstos
em lei o desconto ou a possibilidade de sua majoração, para que seja editado ato
unilateral efetivando-as. É preciso, antes, que a Administração instaure processo
administrativo no qual seja respeitado o contraditório e a ampla defesa. Essas
garantias constitucionais afastam a discricionariedade administrativa. Ademais,
reputou-se que o exame, antes feito pelo Tribunal de Contas da União, sobre a
matéria, versou apenas sobre a legalidade dos descontos e de sua majoração, não
sobre a conveniência deles. O STF entendeu que o TCU não tem competência
284.Afirmando a supremacia do interesse público sobre o privado v. Celso Antônio Bandeira
de Mello. Curso de direito administrativo. 26. ed. São Paulo: Malheiros, 2009. Cap. II, n.
I, p. 96 et seq. Ver também: Maria Sylvia Zanella Di Pietro. Direito administrativo. 21.
ed. São Paulo Atlas, 2008..n. 3.3.2, p. 63-66.
Para enfoque contestando asüposta supremacia do interesse público sobre o privado,
conferir a obra coletiva organizada por Daniel Sarmento (org.). interesses públicos versus
interesses privados: desconstruindo o princípio da supremacia do interesse público. Rio de
Janeiro: Lumen Júris, 2005. /
Para crítica complexa e fundada na natureza constitucional dos direitos fundamentais,
ver Nelson Nery Júnior. Público vs. Privado? A natureza constitucional dos direitos e
garantias fundamentais. In: Ives Gandra Martins e Francisco Rezek (orgs.). Constituição
Federal: avanços, contribuições e modificações no processo democrático brasileiro. São Paulo:
Ed. RT, 2008.
285.Mario Losano. Op. cit., vol. 2, p. 210.
^86.Peter Hãberle. La Garantia dei Contenido Esencial de los Derechos Fundamentales.
Madrid: Dykinson, 2003. n. 1, p. 25; Nelson Nery Jr. Público vs. Privado?

Continue navegando