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AULA 1 FUNÇÕES NEUROPSICOLÓGICAS COGNITIVAS – COGNIÇÃO E APRENDIZAGEM Profª Michele Müller 2 TEMA 1 – O DIFERENCIAL DO CÉREBRO HUMANO O surgimento de novas tecnologias de neuroimagem nos permitiu, nas últimas décadas, entender melhor os processos cerebrais envolvidos em qualquer atividade. Assim, o desenvolvimento cognitivo hoje é compreendido para além de especulações teóricas, pois boa parte dos processos de maturação do cérebro podem ser verificados. Isso nos permite adotar práticas educacionais baseadas na realidade de como o cérebro se desenvolve, respeitando cada fase e todos os elementos envolvidos nesse processo. No decorrer deste curso, vamos apresentar questões fundamentais sobre como nossas capacidades cognitivas são moldadas e aprimoradas, no nascimento e no decorrer da vida. Você verá que crianças pequenas apresentam capacidades muito mais sofisticadas do que se acreditava durante muito tempo. E que, também contrariando o pensamento que até recentemente predominava nas ciências cognitivas, o desenvolvimento do cérebro não se limita ao período de infância. Apresentaremos a forma como aquilo que conhecemos como cognição se inter-relaciona com fatores biológicos, sociais, ambientais, emocionais e físicos. Para isso, iremos abordar algumas das principais teorias de desenvolvimento infantil, mas sob uma perspectiva neurocientífica, procurando justificar tais teorias com o que já sabemos sobre as transformações do cérebro. 1.1 O que nos faz humanos Para entender melhor como diferentes operações mentais são envolvidas na realização de determinadas tarefas, vamos abordar a neuropsicologia cognitiva de um ponto de vista amplo e, em alguns momentos, dentro de uma linha evolucionista. Começamos falando da forma como o cérebro humano evoluiu de forma a nos possibilitar o domínio de capacidades complexas – o nosso diferencial em relação às outras espécies. Isso irá permitir a compreensão do cenário mais amplo da cognição, ou seja, do modo como competências cognitivas estão entrelaçadas com outros aspectos que permitiram a evolução da nossa espécie (em especial a convivência em grupos). Assim, nesta aula, você aprenderá as principais diferenças entre o cérebro de humanos e outras espécies; as funções do córtex pré-frontal e uma breve introdução sobre a cognição humana. 3 Antes de a neurociência ganhar ferramentas revolucionárias de neuroimagem – o que nos permitiu estudar o cérebro humano com mais precisão –, as pesquisas neurocientíficas eram focadas especialmente no desenvolvimento neurológico dos animais. Eram muito esclarecedoras, mas deixavam espaço para várias teorias acerca das habilidades que são a especialidade da espécie humana, como a linguagem, a criação e o uso de ferramentas, que dependem de estratégias complexas de resolução de problemas e planejamento, e também da aprendizagem social. Essas habilidades mentais superiores envolvem uma parte do cérebro encontrada em primatas, conhecida como lobo frontal. Até recentemente, acreditava-se que a complexidade da cognição humana estava relacionada ao volume maior dessa região em relação ao resto do cérebro. Hoje sabe-se que as diferenças entre os homens e as outras espécies de mamíferos não estão necessariamente relacionadas ao tamanho do cérebro ou mesmo do lobo frontal, como um todo. Pesquisadores, como Semendelferi e Damásio (2002), concluíram que alguns circuitos específicos do córtex podem ser maiores. Esses circuitos podem ser mais interconectados, ou seja, apresentarem um número maior de sinapses entre células da própria região frontal, e desta com outras áreas do cérebro. A parte do cérebro responsável por atividades que caracterizam a cognição humana, como flexibilidade cognitiva, planejamento, uso da linguagem, pensamento abstrato, controle do impulso e comportamento social, situa-se em na porção anterior do lobo frontal, a que está mais perto da testa. É a que chamamos de córtex pré-frontal. Pesquisas que compararam a área do córtex pré-frontal, conhecida como lateral ou granular (também chamada de área 10), de humanos e chimpanzés, constataram que nossa espécie apresenta, nessa região específica, aumento de tamanho e de conectividade, uma vez que possuímos um volume muito maior de massa branca no córtex pré-frontal. E a massa branca é formada por fibras nervosas que facilitam a conexão entre as células do sistema nervoso. Essa região específica nos dá a capacidade de pensar antes de agir, ou seja, de tomar decisões que não sejam apenas movidas por um sistema automático e, muitas vezes, inconsciente. É responsável pelo controle dos impulsos, que chamamos de controle inibitório, e que nos permite tanto seguir 4 como questionar regras, o que é necessário para o convívio social – e que, conforme veremos mais tarde, é fundamental para a aprendizagem. A cognição humana desenvolve-se por meio de estruturas biológicas, combinadas com as experiências promovidas pelo ambiente. Ela nos é garantida por uma base genética que, de acordo com psicólogos evolucionistas, passou pelos mesmos processos evolutivos de outros sistemas, como órgãos e tecidos. Assim como o sistema imunológico, a cognição garante o sucesso da sobrevivência de nossa espécie. Além de habilidades como a memória, o controle motor e o processamento visual, muitos acreditam que a aquisição da linguagem também é fruto de um processo evolutivo, enquanto outros defendem que se trata de uma característica descontinuada, ou seja, única da espécie, e, portanto, inexiste a divisão dessa herança com outras espécies na linha evolutiva. Importante ressaltar que nossos diferenciais cognitivos são fruto das necessidades impostas por um mundo muito diferente daquele em que hoje vivemos. Quando falamos da cognição humana, falamos de capacidades que evoluíram ao longo de nossa história para que pudéssemos sobreviver em um ambiente de colheita e caça. Por isso, nossa cognição, mesmo sendo aplicada a problemas contemporâneos, ainda funciona dentro dos moldes de ancestrais que precisavam se defender, saber quem é de fora da tribo, prever o perigo com base em fatores como a frequência em que ele ocorre, construir ferramentas, identificar faces, seduzir, proteger e colaborar com o grupo. Muitos problemas que precisamos enfrentar hoje são relativamente novos; assim, os velhos esquemas mentais podem nos levar a erros estatísticos, falácias ou dificuldades cognitivas. Um bom exemplo disso é a leitura. Apesar de hoje em dia dedicarmos grande parte do nosso tempo à leitura das mais diversas mídias, a capacidade de ler é bastante recente na história humana. Tivemos que adaptar outros recursos cognitivos para essa atividade, que requer uma transformação profunda em diversas regiões do cérebro. Durante a maior parte da trajetória de nossa espécie, as diferenças recentemente observadas no cérebro de pessoas com dislexia garantiam vantagem na realização de diversas funções. Da mesma forma, pessoas com dificuldade em sustentar a atenção em tarefas monótonas por muito tempo e, ao mesmo tempo, atentas às sutis mudanças de estímulos do ambiente, no mundo atual são diagnosticadas com transtorno – e, no entanto, poderiam encontrar grande vantagem sobre outros 5 membros do grupo em determinadas missões no decorrer de quase toda a nossa história. TEMA 2 – MIELINIZAÇÃO E MATURIDADE Nesta aula, iremos abordar o desenvolvimento do cérebro do bebê e alguns dos principais termos neurocientíficos relacionados a esse processo, como sinaptogênese, mielinização e arborização dendrítica. Em comparação a qualquer outra espécie,os bebês humanos nascem bastante prematuros. Lembre-se do filme Bambi, e da cena em que, logo após nascer, encontra poucas dificuldades para andar. É exatamente isso que acontece. Os filhotes de animais nascem quase prontos e levam apenas dias ou meses para executarem tarefas semelhantes às de seus pais. O cérebro de um bebê recém-nascido tem apenas 23% do tamanho do cérebro de um adulto. Aos três anos, o cérebro atinge 90% do seu peso na fase adulta. A expansão do órgão se estende até a adolescência. Essa prematuridade dos humanos é o que garante a nossa grande capacidade de adaptação. Outros animais nascem com comportamentos pré-programados para que possam sobreviver em um determinado ambiente de forma previsível. Já a espécie humana é altamente adaptável e imprevisível. Temos nossas capacidades cognitivas moldadas de acordo com os estímulos que recebemos, o ambiente em vivemos e as pessoas que nos cercam. Para tanto, viemos ao mundo ainda despreparados, mas extremamente flexíveis. O desenvolvimento do nosso cérebro, além de lento comparado ao de outras espécies, prolonga-se por toda a vida, pois recebemos novas informações o tempo todo, e precisamos processá-las, memorizá-las e adaptar a nossa visão de mundo a elas. Os ganhos cognitivos dependem de alguns processos neurológicos que ocorrem nos primeiros anos de vida, quando o cérebro passa por profundas transformações. Primeiramente, acontece um evento que chamamos de ramificação (ou arborização) dendrítica, que irá permitir a comunicação entre os neurônios. Como você já aprendeu, a base do funcionamento cerebral está na comunicação entre neurônios, o que chamamos de sinapse. A aprendizagem depende de um processo de formação de sinapses, que chamamos de sinaptogênese. Ao longo do primeiro ano de vida, o cérebro chega a formar cerca de 40 mil sinapses por segundo. Grande parte dessas conexões 6 ocorrem nas áreas que processam e se relacionam ao comportamento visual e motor. O desenvolvimento do cérebro infantil também depende de um terceiro processo, que conhecemos por mielinização. A camada de mielina que cobre os axônios, aquela fibra mais comprida do neurônio, permite o aumento da velocidade de propagação do sinal elétrico, que acontece do corpo da célula até a sua extremidade, onde ocorrem as sinapses. Assim, a mielinização determina quando o cérebro está maduro para processar determinados estímulos. A partir do momento em que a camada de mielina permite a comunicação veloz entre as células, em determinadas áreas do cérebro, a criança está pronta para desenvolver as habilidades relacionadas a tais regiões. A mielinização forma o que conhecemos como substância branca, que é responsável, juntamente com as conexões sinápticas, pelo grande aumento de volume no cérebro da criança nos primeiros de vida. Todos esses processos de organização e reorganização do cérebro ocorrem de acordo com as experiências que o ambiente propicia. Quando isoladas do ambiente, como acontece com crianças que foram privadas de contato social, o cérebro não se desenvolve normalmente. Nessa fase, o cérebro é extremamente plástico, ou seja, ele se transforma facilmente de acordo com os estímulos que recebe. O cérebro continua plástico e adaptável a novas necessidades e mudanças, sendo capaz de desenvolver habilidades sofisticadas ao longo de toda a vida. No entanto, existem alguns períodos críticos em que devem ser aprendidas certas competências. Vários estudos de caso mostram que, se uma criança não for exposta à linguagem ainda na infância, ela dificilmente aprenderá mais que palavras isoladas. Isso demostra que, embora sejamos dotados de esquemas mentais que favorecem o uso da linguagem, ela se desenvolve somente por meio de interações – como veremos mais tarde – e durante o período crítico. Vamos fixar os conceitos: • Arborização dendrítica: processo biológico que permite a formação de sinapses com base na ramificação dos dendritos. • Sinaptogênese: processo que envolve a formação, a manutenção e o refinamento de sinapses entre os neurônios. 7 • Mielinização: processo de formação da camada de mielina (formada de lipídios e proteína), que envolve os axônios, garantindo a velocidade do impulso nervoso. TEMA 3 – PIAGET SOB A PERSPECTIVA NEUROCIENTÍFICA Os processos que acabamos de descrever formam uma base neurológica para a teoria do Piaget, autor que define diferentes estágios de desenvolvimento infantil. Por isso, nesta aula, iremos traçar uma relação entre os ensinamentos do psicólogo suíço e as evidências neurocientíficas sobre o desenvolvimento da cognição humana. Assim, entre os principais assuntos e conceitos que iremos abordar estão: estágios de desenvolvimento segundo Piaget, processo de mielinização de acordo com os estágios de desenvolvimento e poda sináptica. Mesmo antes de entendermos como o ganho cognitivo pode ser descrito em termos neurológicos, ele afirmava que a aprendizagem depende de uma maturidade que se desenvolve ao longo de diferentes fases da infância, por meio da combinação de sistemas biológicos predeterminados e da exploração do ambiente. Essa exploração permite à criança que assimile novos conceitos e então ajuste seu esquema mental para encaixar esse novo conhecimento, em um processo que Piaget chama de assimilação, acompanhado de acomodação. A mielinização, a ramificação dendrítica e sinaptogênese permitem a conectividade e a integração dos sistemas visual e motor da criança no primeiro estágio do desenvolvimento, que Piaget definiu como sensório-motor. Nesta fase, que se estende por cerca de dois anos, à medida que interage com o ambiente e tem seu cérebro rapidamente transformado, a criança aprende, entre outras habilidades que formam a base da cognição, a coordenar seus próprios movimentos. No final desse período, a maturação de áreas do cérebro responsáveis por tarefas mais sofisticadas, como neocórtex, tálamo e cerebelo, permite que a criança comece a planejar suas ações e a fazer uso de simbologias em brincadeiras e simulações. Quando entra no segundo estágio de Piaget, chamado de pré-operatório, o cérebro da criança está passando por uma espécie de refinamento das conexões, com o fortalecimento de algumas e a perda de outras. É o que chamamos de poda sináptica, um processo semelhante à edição de um texto confuso: o que é importante é refinado, o que é somente barulho é eliminado. 8 Muito do desenvolvimento cognitivo nessa fase está relacionado a essa poda sináptica. Figura 1 – Formação sináptica Fonte: Eagleman, 2017. O processo de mielinização permite o amadurecimento emocional e sua relação com o aspecto cognitivo. Existem estudos que mostram que a mielinização de determinadas áreas do cérebro ocorre de forma mais intensa nas mulheres até os 29 anos, o que explicaria por que muitos meninos parecem levar mais tempo a amadurecer em alguns aspectos. Outro ponto interessante que hoje sabemos é que a mielinização não termina por completo depois dos 30 anos. Estudos da Harvard Medical School mostraram que esse processo ainda pode ser percebido depois da sexta década de vida em pelo menos uma região do cérebro. 3.1 Etapas do amadurecimento Hoje a neurociência comprova que, conforme defendia Piaget, o amadurecimento neurológico ocorre em etapas, de forma progressiva, bem como a aprendizagem, e passa pelas seguintes fases: • Sensório-motora: o mundo começa a ser decodificado por meio dos sentidos e das habilidades motoras; do nascimento até dois anos. • Pré-operatória: inicia-se o uso de símbolos e da linguagem, entre dois e sete anos. 9• Operatório-concreta: são assimilados e aplicados conceitos mais complexos, de acordo com a lógica, entre sete e onze anos. • Operatório-formal: é possível raciocínio abstrato, planejamento, construção de hipóteses e teorias. A partir da adolescência. Um corpo consistente de estudos hoje mostra que, apesar de compatível com o amadurecimento progressivo de determinadas regiões do cérebro, a teoria de Piaget pode ter subestimado, em parte, a capacidade de crianças. Por isso, é importante partir da ideia de que as idades estabelecidas em cada fase são aproximadas, e que, portanto, as capacidades podem ser dominadas em momentos diferentes, conforme cada criança. TEMA 4 – PERCEPÇÕES E APRENDIZAGEM Conforme vimos nas aulas anteriores, a aprendizagem envolve uma série de fatores interdependentes – já abordamos os biológicos, como os processos neurológicos de amadurecimento de determinadas áreas cerebrais e da interação com o ambiente. Também existe certa dependência com interações sociais, recursos cognitivos como atenção e memória, fatores emocionais e também a percepção sensorial – nosso próximo assunto. Nesta aula, você entenderá como são formadas as sensações e as percepções. Toda a aprendizagem ocorre por meio do sistema sensório-motor, conforme já havia concluído Piaget. No início da vida, aprendemos a enxergar e ganhamos controle sobre os movimentos e as percepções de espaço, profundidade e outras percepções básicas que nos permitem interagir com o mundo. Todas essas funções dependem da exploração do ambiente por meio do uso intenso do tato e de outros sentidos. Os órgãos dos sentidos funcionam como tradutores das inúmeras fontes de informação que nos cercam. O cérebro, dentro de uma caixa escura e sem contrato direto com o mundo, precisa criar sentido para esses impulsos eletroquímicos que chegam até ele por meio dos órgãos. Para isso, identifica padrões, compara estímulos e faz predições o tempo todo. Antes de continuar você sabe qual a diferença entre sensação e percepção? • Sensação: a experiência básica de detecção de um estímulo (como luz, som, moléculas de odor, temperatura) e a transmissão da informação para 10 o cérebro. Não envolve a interpretação da experiência. • Percepção: é o processamento da informação sensorial, ou seja, sua interpretação e organização de modo que faça sentido. É, portanto, a experiência consciente do mundo físico e seus estímulos. A sensação precede a percepção. Percepções são desenvolvidas por meio da interação com o ambiente. Por exemplo, no momento em que você olha o semáforo aceso, o estímulo é enviado dos olhos ao cérebro por sinais elétricos e químicos. Você enxerga a luz verde – essa é a sensação. Então você processa a informação, que significa: siga. A percepção, portanto, é construída por meio de um processo cognitivo, que envolve estruturas corticais. Você precisou aprender o que um símbolo significa, associando esse símbolo a outras informações para que, então, pudesse processar o estímulo automaticamente – como continuar a dirigir quando vê a luz verde sem a necessidade de pensar sobre o seu significado ou ler uma palavra automaticamente sem precisar decodificar cada letra. O processo cognitivo, que envolve o córtex, é considerado top-down. A percepção dos estímulos que processamos é influenciada pela expectativa, criada com base em experiências anteriores. Ou seja, muito daquilo que vemos ou sentimos é resultado é resultado daquilo que esperamos ver ou sentir. As ilusões de óptica representam muito bem isso. Veja, na figura abaixo, uma ilusão de ótica criada pelo psicólogo Akiyoshi Kitaoka. A sensação de que a figura está em movimento é construída pelo cérebro. O paladar é outro bom exemplo: ele é profundamente influenciado pela expectativa que temos e por isso pode ser facilmente enganado. Se alguém lhe oferecer um creme de abacate avermelhado, sem lhe dizer o que é, dificilmente você conseguirá saber o que está comendo. Figura 2 – Ilusão de ótica 11 Fonte: Lotan/shutterstok Bebês já nascem com olfato, audição, paladar e tato capazes de processar uma grande variedade de estímulos. À medida que o cérebro se desenvolve, vão ganhando capacidades mais sofisticadas. O desenvolvimento do córtex auditivo nos primeiros meses de vida, por exemplo, lhes permite aprender a identificar os sons e localizá-los no espaço. 4.1 Visão e aprendizagem A visão, por ser muito mais complexa e envolver cerca de um terço do cérebro, se desenvolve mais lentamente. Nos primeiros meses, os bebês não conseguem distinguir formas, padrões e cores com clareza, o que conhecemos por acuidade visual. Ao pegarem nos objetos ao seu redor, não estão apenas matando uma curiosidade do tato, mas desenvolvendo uma capacidade muito mais complexa, que requer noção de profundidade e espaço – a visão. Outras habilidades relacionadas ao processamento visual, como a discriminação visual, a atenção visual, a memória visual e a habilidade de fixação, vão sendo trabalhadas por meio de uma série de estímulos e são fundamentais para o desenvolvimento de competências cognitivas complexas, como a leitura. Dificuldades no processamento visual podem ocorrer em crianças que enxergam aparentemente bem, e que, portanto, não precisam usar óculos. Assim como acontece com o processamento auditivo, podem estar relacionadas a problemas de aprendizagem, como desatenção e dificuldades na leitura. 12 Como qualquer aprendizagem, aprender a enxergar não depende apenas do amadurecimento do córtex visual. É preciso interagir com o mundo. Assim como ocorre com algumas outras competências, como a linguagem, existe um período crítico para a aprendizagem. Se não receber estímulos nesse período, é muito mais difícil adquirir essa capacidade. Casos de pessoas que, depois de décadas sem enxergar, passaram por procedimentos que lhe devolveram a visão, exemplificam muito bem a complexidade do sistema visual. Seus olhos podem estar curados, mas seu cérebro não aprendeu a dar sentido aos estímulos visuais. Essas pessoas geralmente levam muitos anos para conseguir diferenciar e identificar imagens e reconhecer formas. 13 TEMA 5 – A SINCRONIZAÇÃO DOS SENTIDOS Nossos sentidos processam de forma simultânea uma grande quantidade de informação. Você já parou para pensar que, para que as informações vindas do lado de fora do cérebro tenham algum significado, elas precisam chegar à consciência de forma sincronizada? Vamos ver, nesta aula, como o nosso cérebro faz essa integração. Com base nos sentidos, o cérebro cria a realidade. E toda aprendizagem é construída tendo como base mapas neurais construídos por meio das experiências que envolvem o sistema sensorial. Todo e qualquer conhecimento novo é associado às nossas experiências sensório-motoras. Por isso, separar o físico do intelectual é uma ilusão. O corpo, por meio dos sentidos e do movimento, está diretamente envolvido na compreensão de conceitos que aos poucos são incorporados ao processo de aprendizagem. A cada segundo em que estamos acordados, recebemos uma enorme quantidade de estímulos, muitas vezes envolvendo vários sentidos. Uma criança brincando na areia sente a textura e o calor, ouve o colega, enxerga uma infinidade de elementos e ainda pode “provar” o gosto daqueles que estão ao seu alcance. Todas essas informações são processadas em velocidades diferentes. Mas o cérebro faz o possível para sincronizar esses estímulos, de forma semelhante ao que acontece com o som e a imagem de um filme. Você já assistiu a um filme em que o som está levemente em desacordocom a imagem? Se há um mínimo atraso na fala dos personagens, você percebe e sente-se incomodado, não é? Fica mais difícil de prestar atenção e de se envolver na história. Como você já aprendeu, o cérebro tem áreas especializadas no processamento de estímulos enviados por alguns dos sentidos. Quando engajamos em alguma atividade que envolve vários sentidos, cada uma dessas regiões está trabalhando simultaneamente a outras. E cada uma leva um tempo para ser processada. Se assistíssemos a um filme em câmera lenta de uma criança na praia espetando o dedo em uma concha quebrada, por exemplo, perceberíamos com nitidez que, entre o contato do dedo com a concha e o momento em que ela começa a chorar, há um bom espaço de tempo. O estímulo chega no órgão, é processado pelo cérebro, que envia sinais ao sistema motor, que somente então reage. Tudo o que entendemos como agora, na verdade aconteceu há milissegundos. O nosso agora é sempre passado, assim como as 14 estrelas, cuja luz só chega à nossa retina muitas vezes quando elas nem existem mais. Se você considerar que o processamento auditivo, por ser mais simples, é mais veloz que o visual, faria sentido que esse atraso, mesmo que muito pequeno, fosse perceptível quando estamos vendo e ouvindo alguém falar. Mas por que os movimentos labiais parecem estar sempre em perfeita sincronia com o som da fala? O cérebro faz esse trabalho de edição, sincronizando os estímulos ao construir uma história que faça sentido. É uma história que chega à nossa consciência sempre com um pequeno atraso. Portanto, a realidade, tal qual chega à nossa percepção, é como a transmissão de um programa de tevê ao vivo: apesar de parecer instantânea, apresenta um leve anacronismo. É que, para integrar as informações captadas pelos sentidos e dar significado a elas, o cérebro precisa de tempo. Qualquer desorganização que provoque um atraso no processamento da informação, mesmo que se trate de milissegundos de diferença, pode provocar um desajuste na percepção do mundo – o que, segundo alguns cientistas, pode estar por trás de alguns transtornos, como problemas de aprendizagem, distúrbios de linguagem e déficits de atenção. Há estudos (Krauss, 2014; Stadler; Krauss, 2015) que sugerem que a percepção de ritmo de uma criança pequena, que está relacionada com o processamento temporal, ou com seu senso de timing, é um indicativo bastante confiável de suas habilidades de linguagem. O fato de que a dificuldade em acompanhar um ritmo está entre os sintomas comuns da dislexia sugere essa relação. Da forma inversa, o trabalho com ritmo, por meio de atividades de iniciação musical, pode facilitar a construção de habilidades necessárias para a alfabetização. 15 REFERÊNCIAS EAGLEMAN, D. O cérebro: a descoberta de quem somos. Alfragide, Portugal: Lua de Papel, 2017. GAZZANIGA, M. Human: The Science Behind What Makes us Unique. New York: Harper Collins, 2008. GAZZANIGA, M.; HEATHERTON, T.; HALPERN, D. Psychological Science. New York: W.W. Norton, 2016. KRAUSS, N. Music Enrichment Programs Improve the Neural Encoding of Speech in At-Risk Children. Journal of Neuroscience, v. 34, n. 36, p. 11913-11918, Sept. 2014. LEFMAN, T.; COMBS-ORME, T. Early Brain Development for Social Work Practice: Integrating Neuroscience with Piaget’s Theory of Cognitive Development. Journal of Human Behavior in the Social Environment, v. 24, n. 640, 2013. SEMENDEFERI, K.; DAMASIO, H. Humans and great apes share a large frontal cortex. Nat Neurosci, v. 5, n. 3, p. 272-276, 2002. STADLER, J.; KRAUSS, N. The role of rhythm in perceiving speech in noise: a comparison of percussionists, vocalists and non-musicians. Cogn Process, Sept. 2015.