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Demétrio de Azeredo Soster Fabiana Quatrin Piccinin Santa Cruz do Sul Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas 2017 editora Editora Catarse Ltda Rua Oswaldo Aranha, 444 Bairro Santo Inácio Santa Cruz do Sul/RS CEP 96820-150 www.editoracatarse.com.br facebook.com/editoracatarse S716n Soster, Demétrio de Azeredo Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas [recurso eletrônico] / Demétrio de Azeredo Soster, Fabiana Quatrin Piccinin – Santa Cruz do Sul: Catarse, 2017. 313 p. Texto eletrônico. Modo de acesso: World Wide Web. 1. Narrativa (Retórica) - Teoria. 2. Jornalismo. 3. Comunicação de massa. I. Piccinin, Fabiana Quatrin. II. Título. ISBN: 978-85-69563-22-8 CDD: 808 Bibliotecária responsável: Fabiana Lorenzon Prates - CRB 10/1406 Projeto gráfico e diagramação: Mirian Flesch de Oliveira Revisão: Diana Azeredo Edição: Demétrio de Azeredo Soster editora Copyright dos autores C APRESENTAÇÃO Demétrio de Azeredo Soster e Fabiana Piccinin PREFÁCIO Luiz Gonzaga Motta I - PERSPECTIVAS REFLEXIVAS Narrativas jornalísticas sob a luz da pragmática: uma análise das implicações ideológicas a partir da perspectiva de Motta e Habermas Karolina de Almeida Calado e Heitor Costa Lima da Rocha Informação e função social: perspectivas de discurso e narrativa jornalística Luiz Henrique Zart Jornalismo e narrativa: aspectos do estado da arte das pesquisas no Brasil Mirian Redin de Quadros, Lara Nasi e Juliana Motta Análise pragmática da narrativa: Teoria da narrativa como teoria da ação comunicativa Luiz Gonzaga Motta Imprensa como singular-coletivo na modernidade Eduardo Luiz Correia As temporalidades no jornalismo: do acontecimento às narrativas Marta Regina Maia e Michele da Silva Tavares De fontes a personagens: definidores do real no jornalismo literário Mateus Yuri Passos O narrador na reportagem: uma estratégia do autor Jaqueline Lemos II – VISADAS APLICADAS A narrativa micro-histórica em O olho da rua: as personagens anônimas na prosa de Eliane Brum Francisco Aquinei Timóteo Queirós Jornalismo e o texto da cidade: a narrativa da rua na seção Brasiliana, de CartaCapital Cida Golin e Maria Rita Horn Visualidades da grande reportagem no Brasil Yara Medeiros Hemingway não tuitava nem gugava: a história da obra jornalística do Papa da reportagem Ana Beatriz Magno SUMÁRIO 6 7 12 22 36 47 64 73 86 98 112 123 138 152 III – NARRATIVAS DO EU Biografia Jornalística: inclinações, possibilidades e especulações Rodrigo Bartz Tempo e obsessão nas narrativas dos diários íntimos Victor Lemes Cruzeiro Diálogos transformadores: aproximações entre as narrativas etnográficas, psicológicas e jornalísticas Monica Martinez e Mara Rovida Do estético ao ideológico na análise de narrativas jornalísticas: o caso das histórias de vida Fabiano Ormanze “Em um mundo fragmentado é preciso organizar a memória” Alexandre Zarate Maciel As narrativas de si nas redes socias: o “eu” no facebook Ana Claudia de Almeida Pfaffenseller, Fabiana Piccinin e Nize Maria Campos Pellanda IV – OUTROS OLHARES Narrativas do corpo inteiro: tecnomediações em realidade virtual Eduardo Zilles Borba A narrativa jornalística como mecanismo de “transcriação” Maurício Guilherme Silva Jr. A televisão e a polinarrativa do jornalismo audiovisual Vânia Torres Costa, Alda Cristina Costa e Célia Trindade Amorim Narrativa jornalística acessível por meio do recurso da audiodescrição Daiana Stockey Carpes A midiatização das narrativas de bicicleta Demétrio de Azeredo Soster Quem são os autores 167 175 189 200 212 226 239 255 264 278 289 308 6 O tudo que pode e que é a narrativa Se assumimos a ideia da impossibilidade da vida sem a ela atribuir rigorosamente a tudo sentido, conforme já propôs Nietzsche, e que este sentido se constrói sob a configuração de narrativa, então é certo dizer que a narrativa é a tradução da própria existência. E assim, a “narrativa” cresce semanticamente, alcançando diferentes veredas a partir das quais pode ser olhada. De questão filosófica-existencial a fonte epistemológica. E daí prestando-se a inúmeros e sugestivos caminhos de investigação. Esse livro se apresenta como o retrato desse conjunto de possíveis que é a narrativa. Razão pela qual, via de regra, seus autores se sentem instados a explicar de que “narrar” falam em seus diferentes artigos. Ainda que guardem, por salutar e necessário, o fio condutor de suas pesquisas no que diz respeito justamente à ideia e essência da narratividade. Foi por este liame que a Rede de Narrativas Midiáticas (Renami), criada a 15 de julho de 2015 para reunir pesquisadores do país às voltas com esta temática, insitui-se e vem se consolidando. Pelas preocupações afeitas às ordens e desordens que a narrativa tem o poder de instaurar e pelas suas complexidades disso decorrentes. Investidos da preocupação de entender como a narrativa se arranja em suas relações, tanto advindas dos constrangimentos técnicos quanto sócio-discursivos, seus investigadores a tomam como esse sofisticado espaço dos dizeres e de suas reverberações na sociedade, estruturada e estruturante, pelas e nas narrativas midiáticas. A Renami, portanto, assume o desafiante compromisso de tentar interpretar a contemporaneidade pelas narrativas que o contemporâneo faz de si, sendo constituída de pesquisadores que acabam por ocupar o lugar tanto de sujeitos quanto de objetos dessa dinâmica. Assim, perseguindo esse tudo que pode e que é a narrativa, os trabalhos dessa coletânea, dessa forma, se organizam em três seções descritas: I) Perspectivas Reflexivas: pelo que a narrativa propõe em termos reflexivos e teóricos, pensada nos termos de suas teorias e métodos de análise; II) Narrativas do Eu: a narrativa enquanto agente fundante das identidades e do ser no mundo via exame das micro-narrativas, também chamadas de histórias mínimas, e das narrativas do eu; III) Outros olhares: pelas aplicações do narrar a possibilidades empíricas capazes de evidenciar em sua heterogeneidade, a onipresença da narrativa. Que os textos, que nos chegam de diferentes miradas e intenções para aqui construírem uma certa tessitura sobre a narrativa, sejam capazes de proporcionar novas perspectivas e novas problematizações sobre o narrar. De nossos objetos científicos à experiência narrativa de mundo. Uma boa leitura a todos. Demétrio de Azeredo Soster Fabiana Quatrin Piccinin Inverno de 2017 APRESENTAÇÃO 7 Rumo a uma teoria da narrativa jornalística? Existe uma teoria da narrativa? Como um sub-produto, existe uma teoria da narrativa jornalística? Se existe, qual é a sua singularidade e o seu escopo? Teorias são abstrações compreensivas a respeito de determinados fenômenos do mundo social, formulações abrangentes que permitem compreender comportamentos sociais particulares. Buscam compreender o que está por detrás das aparências de um fenômeno social e o faz tomar a forma na qual ele se revela. Qual é a extensão de uma teoria? O que pode ser incluído e o que deve ser excluído? O que vem primeiro: uma prévia formulação conceitual dedutiva ou a observação empírica indutiva? Já é tempo de fazermos essas indagações preliminares. Elas fornecem as pistas para uma reflexão a respeito da autonomia do campo de estudos da narrativa jornalística. A teoria de um campo se constitui quando adquire consistência em si mesma, quando um corpo de dados e formulações conceituaisé suficientemente denso para justificar a sua existência autônoma. É preciso, pois, formular tais perguntas, filtros que nos revelam a consistência de determinado campo. Quais áreas estabelecem fronteiras com o campo? No caso das narrativas jornalísticas, até onde os estudos e pesquisas mantém uma proximidade com outros campos, até onde a eles se submetem ou deles se autonomiza? Há áreas definitivamente próximas e influentes sobre os estudos da narrativa jornalística, como a crítica literária, a teoria dos atos de fala, a antropologia interpretativa, a historiografia, a ciência política, a psicanálise e outras. Metodologicamente, há fortes influências das teorias interpretativas em geral, a hermenêutica, a fenomenologia, a pragmática, a análise estrutural e a análise do discurso. Tomando estes influxos como fatores inegav elmente influentes, podemos delimitar os estudos da narrativa jornalística como um campo que guardaria já uma relativa autonomia? Além da consistência interna, uma teoria adquire relevância quando é útil porque permite a compreensão de determinado fenômeno empírico, quando é capaz de estabelecer um sentido integral (ainda que provisório) a respeito de tal fenômeno. Algumas teorias costumam ter uma inserção social maior, outras permanecem em nível mais abstrato. A pergunta é: há um corpo conceitual consistente capaz de explicar e influenciar determinado objeto empírico? Sobre este aspecto, é possível dizer que os estudos da narrativa jornalística expandiram seu alcance para além da academia. Ainda que no Brasil o setor profissional continue refratário aos estudos acadêmicos, é inegável que o meio profissional e o ambiente político em geral adotaram recentemente uma terminologia reveladora da influência dos estudos acadêmicos: a narrativa tornou-se um termo de uso frequente e estratégico para setores empresariais, políticos e jornalísticos. Fala-se hoje de narrativa e narrativas com uma freqüência e uma abrangência bem mais amplas que nas décadas anteriores, quando o termo permanecia restrito PREFÁCIO 8 ao campo da literatura e da crítica literária. Nas últimas três ou quatro décadas - mais particularmente a partir dos anos 1990 - a teoria e a analise da narrativa brotaram com força no âmbito acadêmico e se expandiram com uma vitalidade surpreendente nas teses, dissertações e pesquisas de vários campos do conhecimento: a comunicação, a ciência política, a antropologia, a historiografia e a literatura. Dos bancos escolares a nomenclatura e conceitos narrativos se alastraram para âmbitos menos ortodoxos como a política, a teologia e a vida prática. Os cursos de jornalismo, premidos talvez pela determinação da objetividade, relutaram por décadas compreender o seu objeto como uma narrativa. Isso, felizmente, mudou radicalmente nos últimos anos. Nos estudos do jornalismo, a análise da narrativa tornou-se uma disciplina específica para responder às questões particulares. Desenvolveu metodologias próprias e gradualmente se adequou às rápidas mudanças do mundo empírico-profissional, incluindo a internet e as redes sociais. Qualquer que seja o seu suporte, o jornalismo é obviamente uma prática narrativa e seus produtos (a notícia, a reportagem, a crônica, a fotografia, o video, os posts e mensagens das redes sociais, etc.) são relatos ainda que produzam significados parciais, fragmentados e efêmeros. Não apenas porque a reportagem é a configuração dos fatos da realidade, mas principalmente porque o jornalismo é uma nítida prática para domar e organizar o tempo. A narrativa, já disseram tantos, dá conteúdo ao tempo, põe o tempo em perspectiva. É por isso que utilizamos a mesma palavra para contar uma história e contar números. Os fatos se sucedem, se passam uns depois dos outros: para registrá- los e memoriza-los é preciso enumerá-los, contá-los. Mal ou bem, quem mais conta o que se passa ao nosso redor hoje é o jornalismo: ele configura sucessivamente as representações da realidade. No entanto, não é fácil compreender e estudar o jornalismo como uma narrativa. O olhar narrativo traz a subjetividade para um tipo de comunicação pretensamente objetivo. Em princípio, jornalistas não contam estórias, querem reproduzir fielmente os fatos. Dessa maneira, estudar o jornalismo como narrativa torna metodologicamente desafiadora essa nova perspectiva. Como descortinar a ficcionalidade nas hard news, um texto que é essencialmente descritivo, enxuto narrado sempre na terceira pessoa? Como descortinar encadeamentos e continuidades em relatos que são por natureza anárquicos e difusos? Como reordenar temporalmente as sequências e compor enredos possíveis? Até que ponto as personagens da narrativa jornalística guardam semelhanças com as personagens da ficção? No jornalismo, quem narra? A fonte, a empresa, o veículo, a redação, os editores ou repórteres? Quais as relações de poder se estabelecem entre esses atores? Relações de cooperação ou de enfrentamento? Até onde se extende o poder de cada deles?Até onde a figura do autor se preserva? Enquanto um produto cultural, o texto da narrativa jornalística cristaliza as forças em conflito? Ou o emaranhado de sentidos torna impossível detectar o exercício do poder? Os desafios conceituais e epistemológicos são enormes, e enfrentados com seriedade pelos autores dos capítulos deste livro. Parece que os estudos e a pesquisa da narrativa jornalística estão ainda longe de constituir um campo teórico com uma autonomia mínima. O estágio que o campo atravessa apenas rompeu o desconhecimento inicial, deu a largada. Os estudos desenvolvidos até agora guardam ainda a marca do pioneirismo, da sondagem preliminar. Há inúmeras duvidas e questões de cunho ontológico e epistemológico. Os pesquisadores ainda se interrogam o que é exatamente uma narrativa jornalística: 9 qual são mesmo os fatos empíricos que conformam este campo particular? Qual é o seu objeto? O quê a expressão ‘narrativa jornalística’ traduz? Trata-se de relatos que abandonam o paradigma da objetividade e se permitem certa ficcionalização do real, como as grandes reportagens, os livros-reportagem e as biografias nas quais a liberdade permite recompor criativamente ações e personagens? Ou estamos falando das hard news que a cada hora, cada dia ou cada semana compõem sucessivamente certa continuidade a partir de fragmentos de sentido relacionados a um tema único, estabelecendo assim uma nova temporalidade? A leitura atenta dos capítulos deste livro oferecem respostas consistentes, ainda que parciais, a essas questões fundamentais. A divisão acima rascunhada, própria do jornalismo impresso, aplica-se igualmente às narrativas visuais e sonoras e às difusas mensagens das redes sociais? Mal sabemos se podemos fazer opções seguras a respeito dos veículos e gêneros tradicionais e já estamos frente aos desafios da cultura da convergência e das narrativas multimídia, para as quais talvez nenhuma das alternativas acima seja pertinente porque as novas mídias invertem os encadeamentos lineares e produzem o sentido a partir de anárquicos quebra-cabeças. Nas narrativas multimídia, a intriga parece se configurar menos nas mensagens dos variados suportes tecnológicos e mais no terceiro estágio do ciclo mimético, o da recepção que Paul Ricoeur chamou de ponto de chegada. Conexões e encadeamentos ausentes necessitam ser reconfigurados em sequências compreensíveis, assim como as lacunas de sentido precisam ser preenchidas conforme fazem os receptores, revelando temporalidades subentendidas. Alguns autores deste livro encaram de frente esses desafios. Estudos da narrativa jornalística estão ainda tatuando qual paradigma convém ao campo: o paradigma interpretativo ou o construtivista, a teoria crítica ou a teoria da ação, entre outros possíveis. Epistemologicamente, há convergências de divergências. Nesta fasede arranque, tomamos emprestado de outros campos conceitos e procedimentos metodológicos, como era de se esperar. Foram muito úteis os conceitos e procedimentos da análise estrutural, da semântica, da pragmática, da retórica e teorias da argumentação, da análise do discurso, da teoria da recepção estética, da etnografia, da psicanálise e das teorias da linguagem em geral. Por outro lado, há avanços que indicam uma criatividade própria do campo e a busca por uma melhor adequação metodológica ao objeto particular. Para não passar em branco, cito como exemplo o estudo das fontes: inúmeros estudos se interrogam até que ponto elas são narradoras ou personagens dos relatos jornalísticos. Não se trata de uma questão fácil, pois dependendo da perspectiva adotada, as implícitas relações de poder se revelam. A menção às fontes é apenas um exemplo das particularidades do campo, enfrentadas nesta publicação por outros autores. Em resumo, o presente livro é um espelho da arrancada conceitual do campo das narrativas jornalísticas. Compõe um conjunto de artigos que revela a pioneira busca da delimitação de um objeto singular. A diversidade e a complexidade conceitual e epistemológica aparecem aqui em distintas perspectivas, desde a positivista até a construtivista. Desde a ótica da analise do discurso, da pragmática, da etnografia ou do ensaísmo crítico, alguns capítulos buscam descobrir as intencionalidades implícitas ou explícitas, a retórica da argumentação narrativa, como o sentido é ordenado, qual é a identidade e as relações de poder dos atores envolvidos. Outros se dedicam a revelar até que ponto o caráter mercantil dos meios influencia e modifica o 10 conteúdo narrativo. Mais revelador ainda do pioneirismo das reflexões aqui reunidas são os diferentes suportes objetos de estudo: o livro-reportagem, o telejornal, a mídia impressa, as redes sociais, etc., e os diferentes gêneros narrativos: o jornalismo informativo (notícias, reportagens), opinativo (redes sociais) ou interpretativo (biografias, livros-reportagem). Retomemos a questão básica: em diferentes suportes e gêneros, a narrativa jornalística mantém uma fidelidade ao real ou se ficcionaliza? No estágio em que nos encontramos, uma resposta genérica é impossível, precisamos verificar caso a caso. Quando acumularmos suficiente informações, talvez seja possível formular hipóteses consistentes. Por enquanto, é bom manter a curiosidade que alimenta novas indagações: a narrativa jornalística é uma representação fiel dos fatos ou se submete à força da intriga que determina a ficcionalização do real? O leitor atento deste livro poderá observar até que ponto o campo mantém coerência interna e densidade suficiente para explicar o empírico. Os estudos da narrativa jornalística estão longe de constituir um campo particular, e mais distante ainda de alcançarem o status de uma teoria autônoma. Creio, no entanto, que os pioneiros estudos revelam um inequívoco passo rumo a uma disciplina autônoma e promissora. Se ainda não temos a teoria, temos já uma disciplina singular. Boa leitura! Luiz G. Motta Florianópolis, agosto 2017 11 I PERSPECTIVAS REFLEXIVAS 12 Narrativas jornalísticas sob a luz da pragmática: uma análise das implicações ideológicas a partir da perspectiva de Motta e Habermas Karolina de Almeida Calado Heitor Costa Lima da Rocha 1. Questionando conceitos na produção jornalística O estudo da narrativa jornalística pode ser trilhado por diversos caminhos, desde a perspectiva do jornalismo literário até a noção de percursos imersivos individuais realizados pelo leitor em projetos para web. Independente do formato, do estilo ou do gênero, vê-se que a versão escolhida para relatar os fatos é passível de análise por ser capaz de indicar as intencionalidades do narrador, seja para fins comerciais, pessoais ou ideológicos. A pesquisa envolvendo os processos narrativos se torna relevante quando se trata do jornalismo, porque em seu meio perduram ainda conceitos questionáveis como verdade (concebida no paradigma da teoria positivista da correspondência absoluta entre a representação e a própria realidade e não no paradigma construtivista com sua teoria consensual), objetividade (mitificada como acesso à verdade absoluta e não humanizada como o consenso da comunidade de comunicação) e imparcialidade (como neutralidade frente ao confronto de interesses particulares poderosos contra o interesse público e não o compromisso ético e democrático de apresentação da diversidade significativa das fontes e versões existentes na sociedade). Diante das diversas correntes teóricas e metodológicas possíveis para se observar a narrativa, a ótica abordada neste capítulo se dá pela via da pragmática proposta por Motta (2013), associada à teoria dos Atos de Fala de Austin (1999), especialmente a partir da reflexão e contribuição de Habermas (2012) sobre a distorção processada pelos efeitos perlocucionários no processo comunicativo. “Todo discurso é poder, um poder que se exerce na relação entre quem fala e quem escuta. A análise rigorosa e sistemática da comunicação narrativa no contexto de sua configuração pode revelar esse jogo de poder, descortinar a correlação de forças que se exerce nas relações discursivas interpessoais e coletivas” (MOTTA, 2013, p. 19). Interessa-nos, dessa forma, discutir como o conjunto de argumentações do narrador pode gerar entendimentos distintos e provocar determinados efeitos de sentidos no narratário. Entendemos que a formulação de acontecimentos midiáticos são centrais e estratégicos na mobilização da sociedade e, portanto, na mediação da correlação de forças da estrutura de poder – grupos de elite que controlam o aparelho de Estado e as grandes corporações do mercado – com os setores periféricos de intelectuais, artistas, professores, estudantes e movimentos sociais envolvidos no processo de construção social da realidade, no qual são definidos os significados de transcendência social que orientam as pessoas em sua vida cotidiana. Observamos, portanto, que a 13 produção jornalística dos repórteres, além de buscar a atenção da audiência através da emotividade e curiosidade (HERNANDES, 2012), está sempre contribuindo para a reprodução ou transformação da ordem institucional estabelecida. 2. A narrativa jornalística Para compreender a narrativa jornalística contemporânea, é necessário observar como essa narrativa é construída e sob o olhar de quem tal construção é elaborada. Diferentemente da literatura, a narrativa no jornalismo obedece preceitos julgados como fundamentais para o desenvolvimento de um ethos pautado pela verdade dos fatos. Em prol dessa máxima constrói-se, tradicionalmente, discursos de imparcialidade, neutralidade e compromisso com a realidade que compõem a ideologia positivista da Teoria do Espelho. Esses discursos são, evidentemente, intencionais. Em prol de verdades selecionadas busca-se mostrar ao leitor-ouvinte-telespectador uma totalidade dos acontecimentos, como se a mídia fosse uma instituição, por excelência, onipresente e onisciente. Junto a essa forma de se “mostrar” para a sociedade vem uma série de abusos e violências simbólicas: a não criticidade em relação ao papel da mídia, o questionamento sobre a subjetividade de quem narra os fatos, o silenciamento de questões oriundas das demandas sociais, a construção social da realidade e o juízo de valor atribuído a “heróis” e “vilões”. Todos esses aspectos citados trazem grandes prejuízos à sociedade, por ocultar e assim não permitir que mudanças significativas aconteçam, contribuindo para a manutenção do status quo. A análise crítica do texto jornalístico permite que analisemos a versão escolhida pelo narrador para contar fatos e assim observarmos as intencionalidades presentes na narrativa jornalística,já que “narrar é uma técnica de enunciação dramática da realidade, de modo a envolver o ouvinte na estória contada. Narrar não é, portanto, apenas contar ingenuamente uma história, é uma atitude argumentativa” (MOTTA, 2013, p. 74). A partir de uma série de pistas, Luiz Gonzaga Motta aponta possibilidades de vermos peculiaridades intencionais na fala dos interlocutores presentes na narrativa, desde a fala do repórter até a fala de fontes e personagens. Nesse sentido, ele elenca sete movimentos: entender a intriga como síntese do heterogêneo; compreender a lógica do paradigma narrativo; deixar surgirem novos episódios; e permitir ao conflito dramático se revelar; a personagem, metamorfose de pessoa a persona; as estratégias argumentativas; permitir o florescimento das metanarrativas. No jornalismo, a supressão da intencionalidade e o uso da objetividade são conceitos problemáticos, oriundos de ideais positivistas da ciência que, por sua vez, surgiram depois das primeiras experiências jornalísticas. Os jornais, nem um pouco objetivos, surgem com o envio de correspondências que informavam aos reis os eventos locais e, depois, à burguesia sobre o contexto econômico. Entre os dois tipos de manuscritos discutidos anteriormente, apareceram os noticiosos, cartas enviadas para um número limitado de assinantes em múltiplas cópias, principalmente entre 1550 e 1640 — ou seja, uma ou duas gerações antes do surgimento dos jornais. A flexibilidade da forma manuscrita Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas 14 permitia variações nas notícias enviadas a cada assinante, de acordo com seus interesses e necessidades (BRIGSS e BURKE, 2006, p. 53). O jornalismo que desde a sua origem serviu às atividades comercial e política, transformou-se, ao longo dos séculos, em publicista, nos séculos XVII e XVIII; sensacionalista, no século XIX; e testemunhal, no século XX (LAGE, 2006). É relevante ressaltar que, em sua origem, os jornais eram destinados a públicos letrados, “diferentes periódicos dirigiam-se a públicos díspares, inclusive de camponeses (para quem se destinava La Feuille villageoise)” (BRIGSS e BURKE, 2006 p. 104). Além desses, havia também aqueles jornais que funcionavam como agitadores políticos, os quais agiam de modo ideológico (HABERMAS, 1984; BRIGSS e BURKE, 2006). Motta (2006) enfatiza que, quando o jornal se torna mercadológico, a narrativa se modifica, passando a direcionar seu foco ao entretenimento. Esse autor problematiza que a objetividade é um discurso intencional que pretende gerar efeitos de credibilidade aos veículos, tornando-os legítimos para serem porta-vozes da “verdade dos fatos”. 2.1 Narrativa: semelhanças entre o jornalismo e a literatura Com características semelhantes à narrativa literária, a narrativa jornalística possui enredo, narrador e personagem, o que a diferencia daquela é a sua capacidade de contribuir com a construção social da realidade; é o que Motta (2005) chama de narrativa fática, quando relacionada ao jornalismo, e narrativa fictícia, na literatura. Mas, segundo o próprio autor, o jornalismo também desenvolve o aspecto mítico em suas narrativas, a partir do momento em que constrói determinados personagens como heróis ou intenciona direcionar o sentido do acontecimento por um determinado caminho. De forma estratégica, o jornalismo utiliza seus códigos de “veracidade” e “realidade” e inclui algumas personagens como fontes, para conduzir o leitor ao sentido desejado. É importante entender as características da verdade nas teorias da correspondência e consensual, a primeira com o caráter definitivo e absoluto e a segunda com caráter provisório e mutável, sempre sofrendo as adaptações vividas pelas pessoas que compõem a comunidade de comunicação. Quando se diz que a atividade do jornalismo é narrar, isso significa que é possível contar uma história, relatar um fato ou acontecimento, sob diferentes perspectivas. A versão exposta é apenas uma possibilidade dentre tantas outras existentes. Motta (2005) argumenta que o exercício da análise da narrativa jornalística deve enfatizar a versão, e não a história. No mesmo sentido, Bal (1998, p. 13) acrescenta que a narrativa não é a história: “a afirmação de que o texto narrativo é aquele em que se relata uma história, implica que o texto não é a história”. O fato é que o jornalismo ou o grande capital que monopoliza o controle acionário dos veículos de comunicação de massa e as linhas de pesquisa nos centros acadêmicos/universitários, como a MCR nos EUA, construiu alguns discursos sobre a narração jornalística; entre eles, os conceitos de objetividade e veracidade, para camuflar as intencionalidades e agir no âmbito ideológico. “O jornalista é, por natureza, um narrador discreto. Utiliza recursos de linguagem que procuram camuflar seu Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas 15 papel como narrador, apagar a sua mediação. É um narrador que nega até o limite a narração” (MOTTA, 2005, p. 8-9). Luiz Gonzaga Motta acrescenta que nenhuma narrativa é ingênua, cabendo ao analista identificar as intenções do autor, a forma como constrói o enredo, como direciona fontes e como mistifica personagens. As citações frequentes, por exemplo, conferem veracidade. São utilizadas para dar a impressão de que são as pessoas reais que falam, que o jornalista não está intervindo. (...) As citações encobrem muito bem a subjetividade porque o leitor supõe que elas reproduzem literalmente o que a fonte disse e quis destacar. (...) Dissimulam a mediação (MOTTA, 2005, p. 10). Ao longo dos anos, a grande imprensa se utilizou do discurso de veracidade para, ideologicamente, não colocar de forma autêntica os conteúdos pautados pelo público (MOTTA, 2005). Havia agendamento de informações de interesses políticos e empresariais, e editores que exerciam a função de controlar o portão que transforma os acontecimentos em notícia (gatekeeper) (WOLF, 2003). Atualmente, a realidade se tornou mais complexa, já que blogueiros e usuários da internet, em redes sociais, têm pautado temas a serem abordados nas reportagens da grande mídia e/ou obrigar os veículos tradicionais a reenquadrarem sua cobertura. A narrativa é identificada no jornalismo também por características pertinentes ao texto narrativo literário, a exemplo do enquadramento no tempo (crono) e no espaço (topo), o cronotopo. Gancho (2002, p. 23) afirma que o espaço “(…) tem como funções principais situar as ações dos personagens e estabelecer com eles uma interação, quer influenciando suas atitudes, pensamentos ou emoções, quer sofrendo eventuais transformações provocadas pelos personagens”. Sobre o tempo, Sodré e Ferrari (1986) estabelecem dois tipos na narrativa: o tempo da história, orientado por expressões como manhã, tarde ou noite; e o tempo do texto, medido pelo ritmo da reprodução dos fatos, a exemplo de acelerado ou lento, a depender do efeito que se queira obter na narração. “A técnica na dosagem do tempo da narrativa talvez seja o aspecto mais importante para que uma história (ou reportagem) mantenha as características de tensão — e consequentemente o interesse do leitor” (SODRÉ e FERRARI, 1986, p. 95). Motta (2006) indica que para uma narrativa literária envolver seu aspecto fantástico é necessário incluir fatos que se aproximam do real, justamente para provocar o espanto, indicar a aberração. No noticiário, observamos também o fantástico. A título de ilustração, Motta (2006) analisou uma série de notícias que envolvia o estranho, o cômico e o grotesco, a exemplo de matérias como: “‘Lobisomen’ apavora seringal no Acre”, “Vilarejo perde 36 letras”, “Papagaio falastrão delata infidelidade de chinês” e “Cabo é o parteiro dentro da viatura”. Ao encontro dessa perspectiva, o limite entre o factual e fccional é ínfimo. Podemos verum universo marcado pelo real na literatura, bem como, observar marcas do fantástico, do literário, na notícia. Motta (2006) descreve esse tipo de fantástico no jornalismo como “(...) uma manifestação irracional enquanto expressão de algo irreal, estranho ou sobrenatural percebido por nós. Efeitos sem causa aparente, suas manifestações trazem a ideia do misterioso, do inexplicável, daquilo que é estranho ao familiar” (MOTTA, 2006, p. 57). No sentido de aproximação com o universo literário, além dos exemplos citados Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas 16 acima, relacionados ao fantástico, temos também a construção da persona, a partir do momento em que se constrói “personagens-mitos” como herói, anti-herói, antagonistas ou personagens secundárias de acordo com a categorização de Gancho (2002, p. 14), a qual descreve a personagem como “(…) um ser fictício que é responsável pelo desempenho do enredo; em outras palavras, é quem faz a ação. Por mais real que pareça, o personagem é sempre invenção, mesmo quando se constata que determinados personagens são baseados em pessoas reais”. Para Motta (2013), no jornalismo, as personagens podem ser reais, mas se transformam em ficção, a partir do momento em que os repórteres destacam características peculiares em detrimento de outras, criando, assim, uma persona, uma máscara, colaborando com a construção social da realidade. É pertinente notar que na lógica noticiosa da narração dos fatos, diferentes interesses estão postos em jogo, sejam eles de cunho ético, moral, econômico, ideológico ou religioso, mesmo não estando no mesmo patamar de igualdade. O veículo, o narrador e as personagens atuam de forma a defender interesses específicos. Um ponto pertinente a ser analisado é a metanarrativa que se desenvolve com o fundo cultural e social, semelhante à moral da história nas fábulas. Cabendo ao analista observar as características que direcionam a narrativa para a defesa de determinados pontos de vista ideológicos. Outro aspecto a ser levado em consideração na narrativa é a sequência: “toda narrativa consiste em um discurso integrando uma sucessão de acontecimentos de interesse humano na unidade de uma mesma ação. Onde não há sucessão não há narrativa” (BREMOND, 2011, p. 118). Quando narramos, inserimos uma sequência que torna compreensível nossa versão, sem a qual, segundo o estudioso, não existe narrativa. Ainda para Motta (2013, p. 38), “o sujeito narrador dispõe tática e estrategicamente a sucessão dos fatores (encadeamento, sequências, aproximação ou distanciamento do referente, etc) com o objetivo de tecer uma totalidade compreensiva. A enunciação narrativa é uma atitude intencional e argumentativa”. Acrescenta ainda que “narrar é relatar eventos de interesse humano enunciados em um suceder temporal encaminhado a um desfecho. Implica, portanto, narratividade, uma sucessão de estados de transformação responsável pelo sentido. A palavra- chave é sucessão” (MOTTA, 2013, p. 71). 2.1.1 O acontecimento-intriga Em torno de toda narrativa há um fato narrado, denominado de trama, enredo ou intriga. No jornalismo, Motta (2013) denomina-o de acontecimento-intriga, ou seja, a partir de um caso, forma-se uma versão da história com o objetivo de gerar o efeito de real. Luiz Gonzaga Motta (2013) esclarece que, para tornar concreta uma narrativa a partir da notícia, é importante observar alguns quesitos. Em uma reportagem cotidiana, é possível identificar uma maior liberdade do repórter nas produções nomeadas por soft news, as quais possuem, muitas vezes, começo, meio e fim. Mas é possível observar o desenvolvimento da narrativa nas notícias duras ou hard news. Nessas, é preciso fazer o acompanhamento para se elaborar a reconstituição da intriga. O tempo Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas 17 nessas notícias é configurado de uma forma diferenciada, não necessariamente de modo cronológico, com início, meio e fim. Há, muitas vezes, retardamento em algumas informações, sendo, portanto, fundamental deixar surgir um novo episódio. (…) a lógica da narrativa só se revelará nas duras e cruas notícias do dia a dia se observarmos como elas lidam com o tempo e o organizam. O tempo no relato jornalístico é difuso, anárquico e invertido. Por isso, a lógica e a sintaxe narrativas só despontarão se pudermos reconfigurar os relatos como unidades temáticas, intrigas que contenham princípio, meio e final de uma estória (como aliás fazem, de maneira natural, os leitores, ouvintes e telespectadores nos atos de recepção) (MOTTA, 2013, p. 96-97). Quando a narrativa se prolonga, é fundamental que o analista decida a hora de deixar a coleta, ao perceber que há informações suficientes para gerar a reconstituição da versão da história. No acontecimento-intriga há sempre os conflitos dramáticos, caracterizados como: “conflitos sociais e psicológicos de origem econômica, política, ideológica, religiosa, etc. São continuamente apoderados pelo discurso narrativo como um frame demarcador da realidade a ser recortada e contada” (MOTTA, 2013, p. 169). Ele acrescenta que o acontecimento-intriga é “(…) o frame estruturador fundamental de qualquer narrativa porque é ele que dispõe as ações e as personagens na estória. É ele que tece a trama através do relato dos incidentes, peripécias, rupturas, descontinuidades, transgressões ou anormalidade” (MOTTA, 2013, p. 169). Nesse mesmo sentido, Gancho (2002, p. 11) afirma que, para se compreender uma narrativa, não apenas devemos considerar seu começo, meio e fim, mas especialmente entender o conflito, o qual é também o elemento estruturador da narrativa: “conflito é qualquer componente da história (personagem, fatos, ambiente, ideias, emoções) que se opõe a outro, criando uma tensão que organiza os fatos da história e prende a atenção do leitor”. 2.2 Os Atos de Fala na narrativa jornalística As intenções dos falantes são a preocupação central da teoria pragmática. Observar as vozes discursivas que compõem as narrativas jornalísticas é o objetivo de Motta (2005) com a metodologia de análise pragmática da narrativa. Conforme a proposta desse autor, não apenas devemos analisar puramente os componentes de uma narrativa, mas também levar em consideração que na mesma estão refletidas as relações de poder, seja nos atos de fala das personagens que, na maioria das ocasiões, são escolhidas pelos repórteres, seja nas pistas deixadas pelos narradores para entendermos o discurso regente de cada ato de fala. Nessa perspectiva, a Teoria dos Atos de Fala (1990), proposta por Austin (1990) e atualizada por Searle, é pertinente para a análise dos usos dos enunciados nas suas específicas enunciações jornalísticas. Os discursos narrativos se constroem através de estratégias comunicativas (atitudes organizadoras do discurso) e recorrem a operações e a opções (modos) linguísticos e extralinguísticos táticos para realizar certas intenções Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas 18 e objetivos. (…) Quando um narrador qualquer configura um discurso na sua forma narrativa, ele introduz necessariamente uma força ilocutiva e perlocutiva (para utilizar expressões dos filósofos ingleses J. Austin e J. Searle) responsável pelos efeitos que vai gerar no seu destinatário (MOTTA, 2013, p. 82). Austin (1990) defende que alguns enunciados quando proferidos são, já em si, ações. Complementa sua teoria afirmando que a situação de fala pode se constituir em uma ação. O autor exemplifica que, quando um padre pergunta, em uma cerimônia de casamento, se o casal aceita se casar, a palavra “aceito” se torna uma ação que modifica o estado civil dos falantes. Entretanto, a pessoa precisa ter a competência para realizar tal pergunta, ou seja, ser um padre; e os noivos que responderãosim ou não devem estar situados nesse mesmo ritual. O dizer realiza ações, mas o contexto diz muito sobre a força dos enunciados. As construções frasais devem possuir uma performance. Para tanto, o autor descreve três atos que englobam as pretensões dos atores nas situações de fala. A primeira delas é o ato locucionário: que se realiza quando o indivíduo profere uma oração, ou seja, esse ato diz respeito à capacidade do indivíduo de recorrer à língua, à linguística. O ato ilocucionário, segundo ato de fala classificado por Austin (1990), é uma expressão da vontade do ator, é a intenção dele com aquela oração específica. E o ato perlocucionário, por fim, é o que se refere ao resultado obtido pelo enunciador quando consegue fazer com que o ouvinte, a partir da oração pronunciada, aja de acordo com os fins previstos pelo locutor. No trabalho da análise da narrativa, a compreensão sobre a inserção do ato de fala perlocucionário no jornalismo é essencial para identificar discursos ocultos que expressam o poder simbólico e a relação de dominação na mídia, já que “o poder simbólico, é, com efeito, esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhes estão sujeitos ou mesmo que o exercem” (BOURDIEU, 1998, p. 7-8). No entanto, o jornalismo é um campo de disputas simbólicas cujas ideologias em jogo não são simples de descrever. Há forças diversas que travam lutas no cenário midiático. Motta (2005) acrescenta que, nessa trama, há interesses do veículo, do jornalista e do personagem. Todavia, há hierarquias e distinção de poderes entre as partes envolvidas. Geralmente, vence o discurso da classe dominante. É nítido, por exemplo, o conjunto de enunciados visando a disseminar valores neoliberais: ideias do mercado livre, Estado mínimo, meritocracia, diminuição de impostos, entre outros. Já os temas que vão de encontro aos interesses da grande mídia ficam de fora da pauta: ascensão de governos populistas, Bolsa Família, regulamentação da mídia, cotas, etc (GUARESCHI, 2013). O silenciamento por parte da grande mídia traz prejuízos, pois como discursos opostos aos interesses midiáticos não aparecem, é como se eles não existissem para a maioria da população. Observamos, desse modo, diferentes classes sociais dominadas reproduzindo, de modo acrítico, discursos dominantes que justificam a dominação e a opressão: mulheres reproduzindo o machismo; trabalhadores defendendo menos direitos em seu plano de carreira e aposentadorias, a favor da reforma da previdência; etc. Nesse sentido, a partir do estudo dos atos de fala, podemos observar as intenções Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas 19 dos falantes no texto, no caso dos atos ilocucionários, e como o ato perlocucionário se concretiza, no momento em que percebemos as reações das personagens envolvidas no acontecimento-intriga, ou quando percebemos as reações dos leitores, já que nem sempre a intenção ilocucionária é alcançada devido a uma má compreensão do interlocutor. Motta (2013) atribui à palavra final ao leitor (interlocutor), tendo em vista que a compreensão pertence ao mesmo. Da mesma forma, a intenção perlocucionária pretendida pelo locutor pode não ser concretizada no interlocutor, quando esse perceber a manipulação que pretendia ser exercida de forma dissimulada pelo enunciador. Habermas (2002) amplia a discussão ao se interessar pelo tema e pelo ato perlocucionário no processo de comunicação, preocupando-se em distinguir entre as intenções e os efeitos de sentido que podem gerar entendimento daquelas que visam a resultados estratégicos. “Eu caracterizei o compreender e o aceitar das ações de fala como sucessos ilocucionários; todos os fins e efeitos além disso devem ser chamados ‘perlocucionários” (HABERMAS, 1990, p. 72). O ato perlocucionário no sentido midiático está produzindo efeitos contrários àquilo que é legítimo, ético e bom para o coletivo, para o desenvolvimento da ética do discurso. Uma comunicação ética, legítima e democrática está fundamentada na teoria do agir comunicativo (HABERMAS), na qual a finalidade da comunicação deve ser o debate para gerar o consenso, ou seja, a partir da faculdade racional, os indivíduos podem elencar aspectos que se tornarão válidos por meio da argumentação dialógica. Essa teoria valoriza a capacidade mental do interlocutor que é estimulado pelo locutor a desenvolver um entendimento. O ato de fala utilizado, nesse caso, é o ilocucionário. No agir comunicativo, “os atores participantes tentam objetivos mediatos da definição da situação e da escolha dos fins assumindo o papel de falantes e ouvintes, que falam e ouvem através de processos de entendimento” (HABERMAS, 1990, p. 72). Em termos midiáticos, infelizmente, esse tipo de ação comunicativa ainda não é a realidade brasileira. Como Motta (2005) enfatiza, a narrativa jornalística prevê intenções que provocam distorções sistemáticas da realidade. Entre os vários recursos utilizados estão aqueles que dissimulam a narração: dados de organizações que fundamentam a informação, a escolha das fontes, a hierarquia de personagens, o uso de dêiticos, entre outros. O olhar do narrador que detém o poder de informar em detrimento de outros, se torna uma comunicação impositiva, sem levar em consideração valores e anseios das demandas sociais, o que se configura no processo do agir estratégico, conceito de Habermas (1990) para identificar aquele tipo de comunicação que não leva em conta a capacidade cognitiva do interlocutor para interpretar sua fala. Ameaças são exemplos de atos de fala que desempenham uma função instrumental em contextos de agir estratégico, que perderam sua força ilocucionária e que emprestam o seu significado ilocucionário a outros contextos de aplicação, nos quais normalmente as mesmas frases são proferidas numa perspectiva de entendimento. Tais atos, que se tornam independentes de modo perlocucionário, não são realmente atos ilocucionários, pois, não visam a tomada de posição racionalmente motivada de um destinatário (HABERMAS, 1990, p. 76). Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas 20 O filósofo alemão diferencia o agir estratégico do agir comunicativo a partir do modo da ação de fala do locutor e acrescenta uma proposição explicativa que deixa claro sua visão sobre os processos de trocas significativas. Eu me refiro ao “agir comunicativo”, caso em que as ações de vários atores são coordenadas através do “entendimento”, e ao “agir estratégico”, quando essas ações são coordenadas por intermédio da “influenciação”. Esses dois mecanismos e os correspondentes tipos de ação excluem-se reciprocamente na perspectiva dos participantes (HABERMAS, 1990, p. 128). Agindo de forma estratégica, o locutor está lançando mão do ato perlocucionário. “No agir estratégico a constelação do agir e do falar modifica-se. Aqui as forças ilocucionárias de ligação enfraquecem; a linguagem encolhe-se, transformando-se num simples meio de informação” (HABERMAS, 1990, p. 74). Conclusão A análise dos atos de fala na narrativa jornalística possibilita a visualização das intenções das partes envolvidas no processo de narração. Podemos observar se há uma comunicação que se utiliza dos atos ilocucionários para realizar ações válidas para a comunidade de comunicação ou se, nessas narrativas, pelo contrário, tem- se de modo manipulativo o uso de atos perlocucionários que buscam distorcer a realidade para atingir finalidades particulares, agindo assim, estrategicamente. A análise crítica da narrativa permite também a observação acerca do tipo de jornalismo que temos valorizado nos dias atuais. Um jornalismo que preza pelo debate, pela pluralidade de vozes e pelo aprofundamento para gerar o entendimento, ou um jornalismo superficial e unilateral quenega a capacidade de discernimento das pessoas e, assim, omite e contribui para uma distorção sistemática? Consideramos que a teoria pragmática da narrativa, proposta por Motta (2005), é relevante para a análise das diferentes textualidades jornalísticas, trazendo técnicas importantes para identificar tanto intencionalidades que estão na superfície da materialidade textual quanto as que estão no pano de fundo social e cultural, permeado pelas ideologias. Por fim, esperamos que essa reflexão possa contribuir para “o pensar” epistemológico da narrativa contemporânea, ao abordar teorias relevantes sobre o narrar, o comunicar e o falar. Acreditamos ser pertinente o aprofundamento dessa reflexão em trabalhos futuros, especialmente, colocando em xeque a presença do agir estratégico na comunicação jornalística. Referências AUSTIN, John Langshaw. Quando dizer é fazer; Trad. de Danilo Marcondes de Souza Filho. Porto Alegre: Artes Médicas: 1990. 136p. BAL, Mieke. Teoría de la Narrativa: una introduccíon a la narratologia. Madrid: Catedra, 1998. Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas 21 BERGER, P. L.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade. São Paulo: Martins Fontes, 2003. BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Tradução de Fernando Tomaz. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989. BREMOND, Claud. A Lógica dos Possíveis Narrativos. In: BARTHES, Roland; et al. Análise Estrutural da Narrativa. 7. ed. Petrópolis: Vozes, 2011. BRIGGS, A.; BURKE, P. Uma história social da mídia. 2. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. GANCHO, Cândida. Como analisar narrativas. São Paulo: Ática, 2003. GUARESCHI, Pedrinho. O direito humano à comunicação: pela democratização da mídia. Petrópolis: Vozes, 2013. HABERMAS, Jürgen. Pensamento pós-metafísico. 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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas 22 Informação e função social: perspectivas de discurso e narrativa jornalística1 Luiz Henrique Zart A produção e o intercâmbio de informações e conteúdo simbólico são algo comum a todas as sociedades humanas. Desde o princípio, toda a representação do mundo foi transmitida, seja de maneira oral, através dos tipos móveis ou, com o desenvolvimento da tecnologia, por jornais, revistas, rádio, televisão e internet. A produção, o armazenamento e a circulação de informação, portanto, são aspectos centrais da vida social – que adquirem ainda mais importância na contemporaneidade (THOMPSON, 1995). E a imprensa, desde o século XV, é a principal produtora de percepções e de representações do cotidiano e da cultura da sociedade. Produzem, portanto, cultura, que condiciona a visão de mundo do homem. E o jornalismo, neste contexto, ocupa os “espaços vazios” das relações sociais, principalmente ocasionados pelo caráter de mediação que ele exerce. Traçando discursos do cotidiano, é através da comunicação e da imprensa que o homem constrói teias de significação que permitem que conheça a si mesmo, aos outros, enfim, ao mundo à sua volta. Porém, Kovach e Rosenstiel (2003, p. 30) afirmam, de fato: “não importa quanto o jornalismo tenha mudado. Sua finalidade tem permanecido extraordinariamente constante, embora nem sempre bem servida, desde que a noção de imprensa surgiu há mais de trezentos anos”. Quem reforça esta ideia é Clóvis Rossi: Jornalismo, independentemente de qualquer definição acadêmica, é uma fascinante batalha pela conquista das mentes e corações de seus alvos: leitores, telespectadores ou ouvintes. Uma batalha geralmente sutil e que usa uma arma de aparência extremamente inofensiva: a palavra, acrescida, no caso da televisão, de imagens. Mas uma batalha nem por isso menos importante do ponto de vista político e social, o que justifica e explica as imensas verbas canalizadas por governos, partidos, empresários e entidades diversas para o que se convencionou chamar de veículos de comunicação de massa. (ROSSI, 1980, p. 7). Por meio dos materiais produzidos pela mídia, o homem é capaz de perceber o mundo em que vive, mas também de tomar conhecimento, em parte, do que já não está ao alcance dos seus olhos. Nesta conversa, a imprensa é alimentada por elementos abrangentes da realidade e traz fragmentos dela até o público. Este mesmo público absorve os conteúdos e, pelo valor de uso que eles contêm, transforma o social, que é novamente aproveitado pela mídia em uma atividade cíclica infindável. Este processo de produção da informação, principalmente por parte da imprensa na construção de percepções, tem como principal expoente de credibilidade e responsabilidade o jornalismo (VICCHIATTI, 2005). 23 O escamoteio ou a distorção de informações; as pautas motivadas por interesses particulares não revelados; a irresponsabilidade com que se difundem falsas informações ao público; a acomodação dos repórteres a um jornalismo de relatos superficiais; os textos confusos e imprecisos; a facilidade com que a imprensa acolhe, sem apurar, denúncias que favorecem ou prejudicam alguém; a frequente prevalência dos objetivos do marketing sobre as razões jornalísticas [...] são claros sintomas de um desequilíbrio de identidade do jornalismo, enquanto função social. (CHAPARRO, 1994, p. 108). E é no espaço de transformação e serviço ao público que a atividade jornalística adquire relevância: no apoio à democracia, à cidadania, na definição de nossas comunidades e na formação de conhecimentos comuns com base na realidade (KOVACH; ROSENSTIEL, 2003, p. 31), a mídia e os jornalistas que a desenham são produtores de sentido. E um dos pontos-chave acerca da função social do jornalismo está em torno disto: a compreensão do mundo social. Afinal, é tamanha a complexidade e diversidade de assuntos que afetam diretamente a rotina dos cidadãos ou lhe interessam pela curiosidade e/ou necessidade de conhecimento que ele precisa ser ajudado a entendê-los. Ele merece explicações dos jornais. Seria impensável que um leitor qualquer, por mais ilustrado, culto e bem informado que fosse, pudesse acompanhar e entender informações secas sobre medicina e política, energia nuclear e Afeganistão, Educação e Meio Ambiente. Não. Ele necessita de um aprofundamento que o jornal (ou revista) deveria estar em condições de fornecer. (ROSSI, 1980, p. 36). A principal forma de representação das explicações pelos jornais é a notícia. Ela é a unidade básica da informação no jornalismo. E os chamados “fatos jornalísticos”, que interessam às notícias, formam a menor unidade de significação no universo da informação. “O jornalismo tem uma maneira própria de perceber e produzir seus fatos” (GENRO FILHO, 2012, p. 194). Desta forma, os acontecimentos não existem propriamente e integralmente como tais. Há, sim, “um fluxo objetivo na realidade, de onde os fatos são recortados e construídos obedecendo a determinações ao mesmo tempo objetivas e subjetivas” (Ibidem, loc. cit.). Ou “tudo que o público necessita saber” (PENA, 2015, p. 71). A notícia tem umafunção mitológica por explicar o que não pode ser facilmente explicado; e faz com que os fatos não pareçam atrelados à construção do relato: eles estão ali por si só, em grande parte, pelas técnicas de despersonalização do texto jornalístico, que tem suas falas em outras vozes (STEINBERGER, 2005). Uma das primeiras considerações a ser levada em conta é: a notícia é um recorte. Uma representação parcial (literalmente) da realidade. E o aspecto cíclico no qual ela está envolvida também precisa do público. Por isso, a necessidade de informações que as pessoas têm também está atrelada ao potencial gerador de notícia da própria imprensa. Cria a expectativa de uma representabilidade dos fatos que será utilizada por ela como valor de troca e pelo público como valor de uso. O grau de influência que a mídia exerce, por ser permanente, constante, e atuar de várias formas nas relações sociais, deve ser evidenciado (GENRO FILHO, 2012). Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas 24 Essa ânsia pela informação é algo característico do ser humano. Na contem- poraneidade, isto se torna ainda mais forte. É com a comunicação que o homem estabelece significados consigo mesmo e dá sentido às relações em sociedade que, afinal, servirão de matéria-prima para a própria imprensa (KOVACH; ROSENSTIEL, 2003). Neste sentido, é inegável que a informação é necessária à formação pessoal e coletiva. Isto porque “a humanidade específica do homem e sua socialidade estão inextrincavelmente entrelaçadas. O Homo sapiens é sempre, e na mesma medida, homo socius” (BERGER; LUCKMANN, 1985, p. 74-75, grifos do autor). O homem se utiliza dos conteúdos que absorve da mídia para construir e participar das relações sociais comuns a todos os membros da sociedade. As pessoas precisam de informação por causa de um instinto básico do ser humano, que chamamos de Instinto de Percepção. Elas precisam saber o que acontece do outro lado do país e do mundo, precisam estar a par de fatos que vão além de sua própria experiência. O conhecimento do desconhecido lhes dá segurança, permite-lhes planejar e administrar suas próprias vidas. (KOVACH; ROSENSTIEL, 2003, p. 36) Essa necessidade de informação foi um dos fatores que impulsionaram o desenvolvimento da imprensa. No princípio, além de atender à crescente demanda na produção de livros, veio satisfazer a elite intelectual das universidades renascentistas e, principalmente, servir de suporte burocrático para a nascente burguesia comercial e industrial (MELO, 1973 apud GENRO FILHO, 2012). Em sequência, havia a necessidade popular de obtenção de informações, para manter-se em dia com os acontecimentos da época, tanto para o citadino, quanto para bancários e comerciantes burgueses, principais consumidores das primeiras informações – sobre acessibilidade e preços de mercadorias veiculadas pelas folhas de aviso, que dariam origem aos jornais (GENRO FILHO, 2012). Isso traz duas consequências básicas: a procura de mais informações e, pelo fato de que tais informações não podem ser obtidas diretamente pelos indivíduos, surge a possibilidade de uma indústria da informação. Que tais empresas sejam privadas e que as notícias sejam transformadas em mercadorias não é de se estranhar, pois, afinal, tratava-se precisamente do desenvolvimento do modo de produção capitalista. Logo, desde o seu nascimento, o jornalismo teria de estar perpassado pela ideologia burguesa e, do ponto de vista cultural, associado ao que foi chamado mais tarde de “cultura de massa” ou “indústria cultural”. (GENRO FILHO, 2012, p. 31). Em suma, este processo se desenvolveu e adquiriu relevância com a imprensa de massa. Desta forma, destaca-se, a partir da metade do século XIX – também época de desenvolvimento de uma série de importantes teorias da comunicação e do jornalismo, o surgimento da chamada “opinião pública”, que designa um corpo abstrato de interpretações particulares do mundo. A imprensa faz, cria, constrói a opinião pública. Como diz Pierre Bourdieu, “a opinião pública não existe, ela é o reflexo dos meios de comunicação”; Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas 25 se não existisse comunicação de massa, não haveria opinião púbica, e sim pressupostos ou crenças. (MORAES et al., 2013, p. 65). A opinião pública, antes, era pautada pela discussão do interesse público. Hoje, não busca mais esta discussão da mesma forma, porque recorre à mídia, que expressa, em muitos casos, a “manifestação pública de sentimentos”. Principalmente em tempos em que a imprensa tem se comportado como um depósito de preferências, emoções, gostos, aversões e predileções (CHAUÍ, 2006), a função social do jornalismo precisa ser reavaliada. [...] os meios de comunicação tradicionais (jornal, rádio, cinema, televisão) sempre foram propriedade privada de indivíduos e grupos, não podendo deixar de exprimir seus interesses particulares ou privados, ainda que isso sempre tenha imposto problemas e limitações à liberdade de expressão, que fundamenta a ideia de opinião pública. (CHAUÍ, 2006, p. 13). A relação entre a opinião pública e a imprensa se constitui por laços de dependência. Partindo dos princípios fundamentais do jornalismo, diz-se que ele deve servir ao público. Se isto é feito, a opinião pública se orienta, decide o que fazer e raciocina, não pelas coisas propriamente ditas, “mas pelas feições que lhes damos, pelas imagens que os veículos de comunicação lhes atribuem. Como diz Walter Lippman, as imagens em nossa mente, eis a matéria e o conteúdo de nossas opiniões” (BAHIA, 2009, p. 224). Deste conceito, o jornalismo ocupa uma série de esferas da vida social. Está em contato com o poder, com os acontecimentos, com a rotina a que o público terá acesso de maneira parcial. Bucci (2000, p. 33) diz: “Quando o poder age no sentido de subtrair do cidadão a informação que lhe é devida, está corroendo as bases do exercício do jornalismo ético, que é o bom jornalismo, e corrompendo a sociedade”. Então, como lembra Chaparro (2001, p. 99, grifos do autor), o jornalismo não pode ter a ambição vaidosa de assumir papéis e espaços que devem pertencer a outros sujeitos, principalmente os que constroem as divergências e os confrontos. Ao contrário, e a meu ver, deve privilegiar e desenvolver em si mesmo a vocação de captar, entender, interpretar e ajustar ou confrontar os discursos organizados dos grupos sociais, institucionalizados ou não, sejam eles produtores de ações ou vítimas delas. Entra em questão a impossibilidade de ser um mediador sem interferência. No processo de construção da notícia, escolhas são realizadas, desde a pauta aos enfoques e entrevistados: tudo sofre interferência direta do jornalista. A função, portanto, passa a ser entendida como a de tradutor da realidade. Porque ao se distanciar da situação que noticia amparado por conceitos como a submissão às fontes oficiais, institucionais ou oficiosas (presente no quadro observado na teoria dos definidores primários – onde as fontes institucionalizadas servem como uma espécie de “legítima defesa” do jornalista [PENA, 2015, p. 154]), em uma sociedade normalizada contra as patologias que surgem dela “naturalmente”, o jornalismo abdica da oposição ao arbítrio, autoritarismo e opressão, como se destaca no Código de Ética da profissão (FEDERAÇÃO, 2007). Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas 26 Os fenômenos e eventos que povoam o mundo cotidiano precisam ser percebidos como processos incompletos que se articulam e se apresentam, deixando sempre uma margem de significação em aberto, a ser construída, exatamente porque se supõe que, no processo do conhecimento, o real não aparece imediatamente sua face concreta e essencial. A construção do conhecimento se dá na apropriação de suas relações com omundo. É assim que o homem transforma as coisas, tornando o mundo compreensível. E, embora o mundo não se esgote no que é aparentemente dado, mas é sempre uma possibilidade, a noção de mundo real, aqui trabalhada, refere- se à forma pela qual ele está estruturado no presente, como experienciamos e como se apresentam as situações da vida cotidiana. (GADINI, 2009, p. 54). Segundo Genro Filho (2012), a atuação profissional deve ser pautada em um jornalismo crítico, posicionado e dialético, que leve em consideração as particularidades e universalidades da sociedade, sob um ponto de vista histórico, que permite compreender os fenômenos sociais. Na isenção dos dogmas do jornalismo há uma incoerência de discurso. Ora, o jornalismo deve ser “imparcial”, mas deve “interpretar” os fatos e “guiar” seus leitores. Fica evidente que há uma interpretação e um sentido que devem brotar naturalmente dos próprios fatos, com base, portanto, nos preconceitos e concepções dominantes na sociedade, que se manifestam no chamado “bom senso”, expressão individual da ideologia hegemônica. [...] Assim, o julgamento ético, a postura ideológica, a interpretação e a opinião não formam um discurso que se agrega aos fenômenos somente depois da percepção, mas são sua pré-condição, o pressuposto mesmo da sua existência como fato social. Não há um fato e várias opiniões e julgamentos, mas um mesmo fenômeno (manifestação indeterminada quanto ao seu significado) e uma pluralidade de fatos, conforme a opinião e o julgamento. (GENRO FILHO, 2012, p. 38 et seq., grifos do autor). A complexidade do fato jornalístico vem da série de contradições da produção do social. A partir disto, o jornalismo estabelece um processo de significação que envolve duas variáveis: “1) as relações objetivas do evento, o grau de amplitude e radicalidade do acontecimento em relação a uma totalidade social considerada”; depois, “2) as relações e significações que são constituídas no ato de sua produção e comunicação” (GENRO FILHO, p. 65). Ou seja, o jornalismo se apropria de acontecimentos da totalidade social e lhes confere novos significados em meio ao processo interpretativo iniciado pelo jornalista e concluído pelo público. Prevalece a ideia de que os conceitos-padrão da profissão devem servir, no máximo, como horizontes utópicos. Ao jornalista cabe conferir a veracidade das informações e colocá-las em ordem (independente da forma), para que o leitor possa entendê-las (KOVACH; ROSENSTIEL, 2003). Como bem lembra Souza (1996, p. 17), definir a realidade e facilitar sua compreensão deve ser a tarefa de todo jornalista, embora isso não descarte a interpretação do fato e a orientação da opinião pública. Trata-se de uma função que necessariamente mistura conceitos técnicos com valores éticos, em proporção difícil de caracterizar. Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas 27 Devem ser levados em consideração os princípios éticos e técnicos da profissão, que se dispõem de maneira bastante tênue. Bahia (2009, p. 225) lembra que os compromissos e deveres da imprensa devem se pautar pela independência, pela honestidade com o público, e pela rejeição ao uso de má fé na produção de material jornalístico. A tentativa de enganar a audiência, com convicções ideológicas, falsificando ou distorcendo o noticiário pela omissão, cumplicidade ou negligência é inadmissível em questões éticas. Mas, acontece. De qualquer maneira, entre os principais deveres e compromissos da imprensa, situam-se os de independência, apoiada em bases morais e econômicas suficientes para rejeitar a subvenção oficial; de imparcialidade, a partir da prática de dar espaço igual às partes em confronto, de acolher as diferentes versões de um fato e de evitar o alinhamento deliberado ou intencional; de honestidade, no sentido de dar voz às minorias, as notícias e os anúncios sejam transparentes, confiáveis; de exatidão, como complemento da imparcialidade e da objetividade, que resulta da necessidade de difundir a verdade apurada ou de precisar os fatos de tal maneira que cada um deles possa ser conferido pela sua veracidade; de critério, tendo em vista regras fundamentais de decência aplicadas à linguagem, à ilustração, à busca e à publicação das notícias, de modo a imprimir discernimento e valor ao estilo; de responsabilidade, para que o jornalismo não seja apenas a enunciação do pensamento de seus proprietários, para que possa estabelecer padrões duradouros de identidade social, para que alcance na sociedade um conceito de instituição livre das injunções materiais dos seus mantenedores e seja capaz de, acima de quaisquer interesses, refletir o bem comum. (BAHIA, 2009, p. 223). Partindo desta premissa, o jornalismo deveria servir como o ponto de questionamento, reflexão, capaz de provocar mudanças reais e definitivas na vida das pessoas, para que pudessem viver com dignidade. Na pós-modernidade onde impera apenas a liberdade formal, e não a liberdade real, o jornalismo deveria agir “despertando a consciência, motivando atitudes positivas, evitando a superficialidade e a omissão perniciosa, que só fazem aumentar diferenças sociais” (SFREDDO apud VICCHIATTI, 2005, p. 29-30). Deve-se fugir do que comumente se pratica – o jornalismo tecnicista, que procura preencher lacunas, o jornalismo de resultados, porque os profissionais do jornalismo, no exercício de sua profissão, têm, antes de tudo, um compromisso com a sociedade. Compromisso de trabalhar pela verdade, pela justiça, e pela cidadania, pela (in)formação da opinião pública e pelo nivelamento das desigualdades sociais. Suposto isso, voltam seus olhares para as tendências e oportunidades do mercado de trabalho. Tendências essas que habilitam o profissional do jornalismo a exercer condignamente sua profissão. (VICCHIATTI, 2005, p. 53). Isto deve ser destacado, pois no capitalismo selvagem, o sujeito do capital é ele próprio, e não o homem, e por isso alguns pagam pela segurança de suas propriedades, outros pela segurança da própria existência (BOLAÑO, 2000). Assim, surge desta ideia a noção do jornalismo como serviço público de conhecimento, cultura e participação para o sujeito, que significa “1) uma subjetividade livre: um centro de iniciativas, autor e responsável por seus atos; 2) um ser subjugado, submetido a uma autoridade Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas 28 superior, desprovido de liberdade, a não ser a de livremente aceitar a sua submissão” (ALTHUSSER, 1980, p. 104). Neste sentido, também há a concepção de que o jornalismo é o quarto poder (que atuaria como o “fiel da balança”, imune aos outros três constituídos). Aqui, a esfera de poder deve ser vista de outro jeito, além do caráter constitucional. A função mitológica do jornalismo como quarto poder hoje se altera: ainda envolve esta magnitude, mas como um campo, que relaciona indivíduos, instituições e esferas de ação, com forças conflituosas, assim como a atividade jornalística. Ela, dentro deste campo simbólico- midiático, exerce poder, ocupando uma posição privilegiada que altera as condições de convivência entre os outros campos e indivíduos em sociedade (GADINI, 2009). Hoje, a grande imprensa é controlada por meio de um oligopólio, com base no poder econômico, o que faz com que se perca a motivação social do jornalismo. O que deveria servir como um caminho à conscientização se transforma em um motor movido pelos interesses de quem controla os meios de comunicação de massa. A escolha das notícias é o argumento mais contundente para lembrar que não existe a neutralidade nem a imparcialidade informativa. Quando um jornal escolhe para sua capa uma denúncia da Anistia Internacional ou o casamento de um membro de alguma monarquia europeia, por mais aparentemente objetiva que seja a sua apresentação, está tomandouma determinada posição. Por isso, nossa primeira missão deve ser averiguar o mecanismo de seleção das notícias. (SERRANO, 2010, p. 22). A imprensa é, sobretudo, seletiva e reducionista. Isto se evidencia quando entram em questão as práticas baseadas em interesses privados, sem nenhuma preocupação – nem com a informação a ser levada ao público, nem com as pessoas envolvidas na notícia (porque é de pessoas que se faz o jornalismo): em suma, há desumanização. Então, o debate sobre estas condutas dos veículos de comunicação é dificultado, inclusive quando nós, brasileiros, falamos em liberdade de imprensa, desde o princípio do termo. Em inglês, se diferenciam três determinações para tratar deste assunto: Imprensa (press: a máquina de impressão ou a prática dos meios de comunicação de massa); expressão (speech) e impressão (print). Portanto, o conceito de “the press”, a imprensa, em inglês, remete e mistura estes três itens. A liberdade de opinião permite o pensar livre; a de expressão nasce com o indivíduo; a de informação, por receber a comunicação, não ser privado dela; e a liberdade de imprensa, vista de maneira coletiva na soma destes itens (GUARESCHI, 2013; LIMA; 2012). Assim, portanto, é na mistura destas percepções que está a atividade do jornalista, à qual John Hohenberg conceitua de maneira mais séria: Uma profissão agitada, tão mutável quanto as notícias de que vive. Acrescenta, ainda, que a atração universal pelo jornalismo se deve a uma série de ingredientes, entre os quais novidade, surpresa, satisfação, realização, algumas vezes desapontamento e, ocasionalmente, até mesmo choque, diante da variedade incessante na História da humanidade. (FIDELIS, 1986, p. 9, grifos do autor). Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas 29 Neste sentido, Genro Filho (2012, p. 182), classifica a imprensa como “o corpo material do jornalismo, o processo técnico do jornal – que tem sua contrapartida na tecnologia do rádio, da TV, etc.”, que resulta num “produto final, que podem ser manchas de tinta num papel ou as ondas de radiodifusão”. E o jornalismo, como a modalidade de informação “que surge sistematicamente destes meios para suprir certas necessidades histórico-sociais que [...] expressam uma ambivalência entre a particularidade dos interesses burgueses e a universalidade do social em seu desenvolvimento histórico” (GENRO FILHO, 2012, p. 182). O mesmo autor nos permite dizer que, hoje, está em curso a liberdade de empresa, onde a propriedade dos meios de comunicação é uma espécie de capitania hereditária (GUARESCHI, 2013). Isso traz um questionamento: afinal, a mídia se produz através das pessoas ou é o contrário (LIMA, 2012)? O processo de redefinição do espaço midiático brasileiro, que teve início na década de 70, com a globalização, trouxe vários reflexos na forma de pensar a comunicação. Entre outros: a concentração de propriedade; a diversificação das mensagens da mídia; a globalização das indústrias da mídia e sua consequente desregulamentação. Desta maneira, expandindo o alcance e a influência, o jornalismo e a comunicação de massa não são mais um simples registro da realidade. São uma construção dela, na sociedade regida pela modernidade. A partir de uma retórica que demonstra sutil sensibilidade para lidar com símbolos abrangentes, a mídia extravasa emoções que suscitam identificações sociais e psíquicas. Regula-se a relação entre desejo, necessidade e satisfação, removendo-se aquilo que retarde o ímpeto de consumir ou protele a extinção dos impulsos. No culto ao fugaz, querem convencer-nos de que o que perdemos em durabilidade ganhamos em intensidade. “O parâmetro com que se mede o valor da experiência tende a ser sua capacidade de produzir entusiasmo, não a profundidade de suas impressões. (...) Como outras ofertas culturais sedutoras, [a experiência] deve adequar-se “ao máximo impacto e à máxima obsolescência”, limpando o terreno rapidamente para novas e apaixonantes aventuras (Bauman, 2004b: 213). (MORAES et al., 2006, p. 36). Essa velocidade característica do pós-moderno-midiático (STEINBERGER, 2005) é mais um dos empecilhos para pensar por que a mídia pouco fala de si. Pouco se discute. Afinal, não há tempo para isto. Porque a lógica da comunicação na pós- modernidade não permite, comumente, brechas a este debate, nem a nenhuma interpretação. Vive em constante estado de ânsia. Isto serve tanto para proteger interesses dos “proprietários” dos meios de comunicação, quanto para não tocar nos dogmas e práticas que giram em torno da atividade do jornalista. Veículos da grande mídia – aqui, em especial, a brasileira – agem como empresas privadas, quando na verdade só podem atuar com uma concessão pública em um período determinado. Portanto, são meios públicos antes de serem privados. Mas, eles divulgam o conhecimento e a cultura, permitem que se apresentem modelos diversos de participação na democracia? A atuação do jornalista hoje é um pouco diferente do passado. Isto porque ele precisa, assim como toda a comunicação e Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas 30 o jornalismo, se adaptar às novas rotinas de produção. A ditadura do relógio e a pressão dos deadlines2 são só o começo de uma série de atribuições: O jornalista, hoje, trabalha mais: além de preparar a notícia, deve fazer a diagramação, indicar as fotos, desenhos, gráficos, em suma, tudo o que constará da sua matéria. Além disso, houve uma redução drástica de pessoal nas redações. Os repórteres são obrigados a fazer mais de uma matéria ao mesmo tempo. Nesse processo rápido e ágil, o controle de qualidade se torna ainda mais difícil (ABREU, 2002, p. 34 apud LAGO; ROMANCINI, 2007, p. 178, grifos do autor). Mas, a ascensão de padrões informativos como alternativa ao fluxo ininterrupto de acontecimentos veiculados pela mídia pode provar que outras formas de enxergar o jornalismo como um bem comum, de interesse público, é algo a ser resgatado. Com o jornalista como um especialista em generalidades, empurrado um dia a “uma entrevista sobre urbanismo, no dia seguinte para uma reportagem sobre energia nuclear, no terceiro dia para uma entrevista com, digamos, o ministro de Relações Exteriores da Arábia Saudita [...]” (ROSSI, 1980, p. 73-74). O lugar intermediário assumido pela imprensa é pautado por vários dogmas. Entre eles, o da objetividade. Importada dos padrões de imprensa norte-americanos, ela diz que os veículos de comunicação devem se colocar de maneira neutra diante dos acontecimentos, em tese deixando que o leitor tire as próprias conclusões. A objetividade, então, surge porque há uma percepção de que os fatos são subjetivos, ou seja, construídos a partir da mediação de um indivíduo, que tem preconceitos, ideologias, carências, interesses pessoais ou organizacionais e outras idiossincrasias. E como estas não deixarão de existir, vamos tratar de amenizar sua influência no relato dos acontecimentos. Vamos criar uma metodologia de trabalho. (PENA, 2015, p. 50). A objetividade, portanto, deste ponto de vista, é um ideal normativo, vindo para contrapor-se ao jornalismo partidário que antecedeu o conhecido hoje. Ele caracteriza uma ficção fundadora da imprensa, e induz a certas práticas profissionais com o objetivo de legitimar os jornalistas, e protegê-los contra possíveis ameaças à integridade. A partilha da objetividade como uma cultura da atividade jornalística faz com que os profissionais se vejam e sejam vistos de determinada forma: Os jornalistas ocupam uma posição particular no contexto das outras profissões intelectuais, as quais, muitas vezes estão associadas com determinados valores fundamentais: a medicina com a vida e a morte, o direito com a justiça. No caso dos jornalistas, o valor específico mais citado é o compromisso com averdade o qual suscita a referência à objectividade [sic]. (SCHUDSON, 1978 apud CORREIA, 2011, p. 139). Desta percepção de exposição surge a teoria elaborada pela socióloga Gaye Tuchman (1993 apud PENA, 2015, p. 52), que trata a objetividade como uma espécie Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas 31 de ritual estratégico de proteção dos profissionais: A metáfora usada por Tuchman é clássica: “os jornalistas invocam a sua objetividade quase do mesmo modo que um camponês mediterrâneo põe um colar de alhos à volta do pescoço para afastar os espíritos malignos”. Além da apresentação de possibilidades conflituosas, os profissionais da imprensa usam outras três estratégias para formar o próprio “colar de alhos”: o uso judicioso das aspas, a apresentação de provas auxiliares e a própria apresentação da notícia na forma de pirâmide invertida, com a utilização do lide. (PENA, 2015, p. 52). Entretanto, por se tratar de concepções que mesclam o objetivo da técnica ao subjetivo do humano, já é praticamente impossível distinguir se há como ser fiel aos principais pontos orientadores da prática jornalística tradicional, como a impessoalidade, a objetividade e a simplicidade. O repórter, ao contrário do que se pensa, não é uma máquina repetidora do acontecimento puramente retratado; não age com a frieza de uma máquina fotográfica. Pelo contrário, ele participa da sua construção através do relato. A partir de então, intervém fatores de natureza pessoal, social, ideológica, entre tantos outros. Assim, a objetividade só pode ser sustentada enquanto tal se for teoricamente relacionada com os modelos transmissivos da informação, centrados na difusão unilateral de dados codificados por um emissor através de um canal até um receptor que os descodifica e os envia ao destinatário. Ora, sabe-se que o cérebro humano não se limita a reproduzir um saber mas a recriá-lo, a reproduzi-lo e a reinterpretá-lo num processo complexo em que intervêm esquemas de interpretação, informações prévias e em que a própria emoção (DAMÁSIO, 1995), anteriormente reduzida ao papel de ruído no modelo emissor-receptor também intervêm de forma imprescindível [sic]. (MEDITSCH, 2002, p. 12-13 apud CORREIA, 2011, p. 145). Toda esta discussão envolve um espectro abrangente de variáveis que alteram o sentido de inviolabilidade da profissão de jornalista. Fatos são abstratos, naturalmente. E a ocorrência deles faz com que a relevância se explique em mais de um conceito. Correntes de pensamento divergentes explicam o fenômeno: Na perspectiva objectivista, a realidade social surge como um dado a priori que o jornalista deve observar de forma a reconstituir fielmente. Na óptica «construtivista», a «realidade» e a «informação» são entendidas como construções sociais e não como um conjunto de dados preexistentes [sic]. (CORREIA, 2011, p. 143). Os preceitos jornalísticos estão cada vez mais em uma linha tênue, seja no que diz respeito aos confrontos entre práticas editoriais e representação honesta da realidade; seja na percepção do acontecimento tratada pelo editor, pelo repórter e pelos envolvidos; ou na falta de espaço e tempo, que leva o jornalismo a cada dia apelar ao pouco raciocínio, à instabilidade crítica, à seletividade, entre tantas outras determinantes. Para entender o que se passa, é relevante desconstruir alguns conceitos. Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas 32 A crítica à objetividade, entretanto, não indica um abandono do relato com seriedade e comprometimento, transparência, profundidade, exatidão e equidade (CORREIA, 2011). Mais que isso, faz com que se pensem os contextos nos quais a informação é produzida, já que “a objetividade é definida em oposição à subjetividade, o que é um grande erro, pois ela surge não para negá-la, mas sim por reconhecer sua inevitabilidade” (PENA, 2015, p. 50). Neste panorama, o conceito de objetividade do jornalista se firma como ato falho porque, ao orientar que se descreva os fatos como aparecem, seria uma abstenção, como forma de distanciamento do diálogo com a realidade. Um abandono da interpretação em nome do uso apenas do que é evidente. De acordo com Lage (1979 apud GENRO FILHO, 2012), a competência profissional passa, deste modo, a ser medida com base na observação conformada dos acontecimentos do dia a dia. Porém, quando escolhe privilegiar aparências, e reordená-las no texto; ao suprimir algumas ideias e incluir outras, ordenando-as de maneira diferente, e reordenando o fluxo natural da realidade para que possa ser representada, o jornalista “deixa inevitavelmente interferir fatores subjetivos. A interferência da subjetividade, nas escolhas e na ordenação, será tanto maior quanto mais objetivo, ou preso às aparências, o texto pretenda ser” (LAGE, 1979, p. 25 apud GENRO FILHO, 2012). Não há neutralidade quando se escreve, mas o ponto de vista de quem escreve, pois o enunciador tem uma visão de mundo e manifesta-a em seu texto. (...) mostra-se na seleção dos dados relatados e na organização textual. (...) Tudo isso mostra que, mesmo quando o enunciador não toma partido explícito, o enunciado manifesta um ponto de vista, uma visão de mundo. (FIORIN E SAVIOLLI, 1992, p. 416 apud VICCHIATTI, 2005, p. 28). Partindo do mesmo ponto de vista desenvolvido por Lage (2004), deve-se considerar que o universo da atividade jornalística envolve uma série de fatores “ocultos” ao público, como, por exemplo o perfil editorial adotado pelas empresas de comunicação. Outra variável que, geralmente, se traduz em alterações de enfoque e abordagem dos acontecimentos, de acordo com os interesses da empresa (no caso da grande mídia brasileira, da família) que esteja à frente da coordenação do meio de comunicação. Assim, “(...) se mesclam o público e o privado, [em que] os direitos dos cidadãos se confundem com os do dono do jornal [no caso da imprensa escrita]. Os limites entre uns e outros são muito tênues” (CAPELATO, 1988, p. 18). Então, entende-se que: Se fosse possível praticar a objetividade e a neutralidade, a batalha pelas mentes e corações dos leitores ficaria circunscrita à página de editoriais, ou seja, à página que veicula a opinião dos proprietários de uma determinada publicação. Elmer Davies, falecido editor norte-americano, tinha, inclusive, uma sugestão que é definitiva em termos de culto à objetividade. Ele propunha que os jornais publicassem, na primeira página, o seguinte aviso: “Para a verdade sobre o que você lê abaixo, veja a página editorial”. (ROSSI, 1980, p. 10). Na tentativa impossível de espelhar a realidade, o jornalismo atual é mecânico, Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas 33 calculista, automático, frio. Noticia de maneira segmentada e não situa o público na notícia (VICCHIATTI, 2005). A atualidade e a superficialidade destas práticas são consequência do ritmo e da periodicidade que acabam por deixar pelo caminho informações que são importantes para que o público tenha noção aprofundada do fato noticiado. Por isso, o jornalismo tem uma premissa: precisa ser útil. Dar ao público não a sensação de que o cotidiano não é apenas uma sequência empilhada de fatos ocasionais. “A imprensa fracassa, nesse sentido, tratando os assuntos à base de flashes que, instantaneamente, devem fazer com que o povo logo os esqueça e esteja pronto para absorver – e consumir – o que vem a seguir” (VICCHIATTI, 2005, p. 57). Na construção da informação, primeiro, o jornalista seleciona os eventos que serão abordados ao longo da matéria; depois, ordena estes fatos, para, por fim, fazer uma identificação dos que tomaram parte dos eventos (SOUZA, 1996). Sobre isso, Bucci (2000, p. 30) diz que ao jornalismo cabe “perseguir a verdade dos fatos para bem informar o público, que o jornalismo cumpreuma função social antes de ser um negócio, que a objetividade e o equilíbrio são valores que alicerçam a boa reportagem”, a base e o princípio da profissão, ao lado da entrevista. Portanto, a partir do fator estético, deve-se pensar que é possível noticiar sem ser sensacionalista, e sem esquecer que a matéria-prima do jornalista vem do contato com pessoas. O manejo da linguagem, com responsabilidade e ética faz com que se possa recorrer a um relato mais humanizado (VICCHIATTI, 2005; GUARESCHI; BIZ, 2013). E um dos passos em direção a este tipo de abordagem seria tentar tomar um olhar infantil do mundo. Não como indício de insuficiência, incompletude mental ou de pouco desenvolvimento da capacidade crítica. Justamente o contrário. A “virgindade de pensamento” de alguém que viveu pouco, à qual se refere Vicchiatti (2005, p. 34), é uma ferramenta a ser explorada pelo jornalista para “captar elementos originais e ampliadores de seu tema”, que se escondem no metodismo e dureza da visão adulta. O olhar livre, criativo e questionador visto em crianças, no texto não deve ter a ambição ingênua (esta, sim, prejudicial) de encontrar toda a verdade; mas se envolver – de certa forma, mantendo a empatia possível (e, consequentemente, envolver o público) no acontecimento, com recursos narrativos e descritivos que dão à imprensa a prática de ficcionalizar o mundo real em suas representações. O ser humano não expõe, puramente, as coisas – dobra-as, mascara-as, conforme o modo como as vê. Ao trabalhar com o acontecido presente em um passado imediato, aquilo que o jornalismo apresenta não é a realidade, mas sua representação, com toda a subjetividade que um olhar pode carregar. O jornalismo está sempre em um presente, narrando o que é passado, porém, em um passado muito próximo, atual. Faz uma reconstrução desse passado, mas sem jamais conseguir recuperar o real em sua totalidade. Enquanto a literatura pode transfigurar a pessoa real em personagem fictícia, utilizando-se do real possível, o jornalismo busca o real/verdade para compor a narrativa, mas enfrenta a influência de conhecimentos anteriores, de conceitos pré-concebidos, de história de vida, de experiências que antecederam o fato. Dessa forma, seu olhar sofre essa influência que certamente será transmitida na narrativa. A verossimilhança pode ocupar o lugar da verdade como matéria-prima do texto jornalístico. Compõe o texto Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas 34 a vivência do narrador que o elabora. O texto jornalístico é, por isso, um intertexto. (VICCHIATTI, 2005, p. 91-92, grifos do autor). E é por este intertexto que passa a influência do jornalista na construção da realidade representada pela mídia. Na composição da perspectiva do jornalismo como ferramenta que atribui sentido ao cotidiano do público, a função social na qual se funda a informação que é base ao discurso jornalístico é, também, o que norteia a atuação do jornalista, em uma relação contínua (e complexa) com o mundo social. Um servindo de referência ao outro, em uma construção de contextos e narrativas cíclica e interminável. Notas 1 Esta é uma versão adaptada do primeiro capítulo do Trabalho de Conclusão de Curso da graduação em Jornalismo do autor, entitulado “Função social, mediação da comunicação de massa e a construção da realidade: uma análise de edições online de El País Brasil e Jornal do Brasil”, e apresentado ao fim de 2015. 2 O deadline é a linha da morte; o fim da linha. No jornalismo, indica o prazo final para a entrega de qualquer material, além de orientar jornalistas em horários de fechamento de jornais, revistas e outras publicações. Depois do deadline, o material corre o risco de cair, ou seja, não ser mais tão relevante, a ponto de deixar de ser publicado, em qualquer que seja o meio de comunicação. Referências ALTHUSSER, Louis. Ideologia e aparelhos ideológicos do Estado. 3ª ed. Lisboa: Editorial Presença Ltda., 1980. 120 p. BAHIA, Benedito Juarez. Jornal, história e técnica: a história da imprensa brasileira. Volume 1, 5ª ed. São Paulo: Mauad X, 2009. BERGER, P.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. Tradução de Floriano de Souza Fernandes. Petrópolis: Vozes, 1985. 248 p. BOLAÑO, Cesar. Indústria cultural, informação e capitalismo. São Paulo: Hucitec/ Polis, 2000. BUCCI, Eugênio. Sobre ética e imprensa. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. CAPELATO, Maria Helena. Imprensa e história do Brasil. São Paulo: Contexto/USP, 1988, 78p. CHAPARRO, Manuel Carlos. Linguagem dos Conflitos. Coimbra: Minerva, 2001. ______. 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Considerações iniciais Ao relatarmos um determinado acontecimento, uma história de vida, ou mesmo ao sintetizarmos uma obra ficcional, oferecemos a nosso interlocutor uma narrativa: ordenamos os fatos dentro de uma lógica temporal, atribuímos papéis aos sujeitos implicados, recorremos a memórias e molduras simbólicas. Ao narrar, atribuímos coerênciae sentidos a elementos da experiência vivida. Neste capítulo, compreendemos a narrativa como uma abordagem teórica e metodológica para análise dos produtos culturais como fenômenos de mediação e vinculação social. A literatura, a história, a ciência e, hoje, de forma mais acentuada, o jornalismo, são formas narrativas que assumem o papel de mediar, explicar e orientar a experiência do homem no mundo, seus valores e modos de agir. A narratividade do texto jornalístico, sob essa perspectiva, não se localiza no produto final, como uma obra fechada, mas em seu processo de produção, como um modo de articular experiências e sujeitos, dentro de um contexto lógico e temporal. Mais que um mero conjunto de procedimentos técnicos de escrita, o jornalismo é um fenômeno cultural e, como tal, está atrelado às tensões que permeiam a realidade. A narratividade no jornalismo, assim, não se limita à análise das textualidades, mas as considera inseridas em uma historicidade, dotadas de vinculações sociais e como resultado de modos de produção institucionalizados. Tomando essa perspectiva como norteadora, apresentamos neste artigo alguns aspectos do estado da arte das pesquisas que abordam o jornalismo pelo viés da narrativa. O objetivo é refletir acerca da aplicabilidade desta abordagem, identificando potencialidades e desafios. Para tanto, partimos de uma breve discussão teórica inicial e, em seguida, apresentamos os resultados de uma análise empírica de caráter quanti e qualitativo. A partir de um corpus composto por 96 artigos apresentados em três dos principais eventos científicos nacionais da área da Comunicação – Intercom, Compós e SBPJor – no período de 2012 até 2016, realizamos o mapeamento dos principais objetos empíricos, autores de referência e os métodos empregados em reflexões que se voltam à análise de produtos jornalísticos por meio do referencial teórico e metodológico da narrativa. 2. A narrativa como perspectiva teórica e metodológica para o estudo do jornalismo Se as teorizações sobre a narrativa como ato configurador são relativamente recentes, frente aos esforços dos teóricos Estruturalistas e Formalistas, que se 37 dedicavam, em meados do século XX, a investigar a existência de uma estrutura lógica comum a todas as narrativas (MOTTA, 2013), o ato de narrar em si tem sua origem com a própria humanidade. Barthes (2008) já afirmava que não há povo sem narrativa. É por meio das narrativas que o complexo mundo que nos cerca vai sendo decifrado. Desde o princípio da comunicação oral, os seres humanos se utilizam de práticas narrativas para relatar acontecimentos, para registrar a História, inventar estórias2, transmitir conhecimentos e valores. Para Leal (2013), a experiência humana só se torna compreensível pela sua narrativização. Segundo o autor, “uma narrativa [...] não é uma simples modalidade textual. É um modo de apreender o mundo, de dar sentido à vida” (LEAL, 2013, p. 29). Aplicada ao jornalismo, a narrativa não se resume a um modo de fazer, mas, sim, um modo de compreender o próprio jornalismo: um produto simbólico, uma forma de conhecimento, tal qual a história ou a ciência, que busca ordenar e explicar a realidade. Nesse sentido, Carvalho (2012a) defende que, fora da narrativa, os acontecimentos são meras ocorrências singulares e isoladas, rupturas na normalidade da vida que só adquirem sentido ao serem narrados e, assim, organizados de forma coerente, dentro de uma lógica temporal e de um determinado contexto: “Narrar, portanto, é ação de permanente atualização, é a capacidade humana de tornar a atualidade mais do que um momento que logo em seguida se perderá na memória” (CARVALHO, 2012b, p. 173). Cremilda Medina (2003) compartilha desta visão acerca da narrativa, ainda que não se fundamente na obra do filósofo francês Paul Ricoeur, como grande parte dos pesquisadores brasileiros que adotam essa perspectiva. Para ela, a narrativa é uma resposta humana diante do caos, um esforço pelo retorno à estabilidade: “dotado da capacidade de produzir sentidos, ao narrar o mundo, a inteligência humana organiza o caos em um cosmos” (MEDINA, 2003, p. 47). A autora ainda salienta que, ao narrar os fatos, o homem configura uma outra realidade, de caráter simbólico. Para Motta (2013, p. 33), as narrativas não apenas representam a realidade, mas “apresentam e organizam o mundo, ajudam o homem a construir a realidade humana”. Esse processo é descrito na obra de Ricoeur (1994), a partir da articulação do tempo e da narrativa, no modelo de um círculo virtuoso, que ele denomina de tríplice mimese3. Esse círculo parte de um mundo pré-figurado, uma estrutura pré-narrativa da experiência (mimese I), que é configurada narrativamente, ao se extrair uma história sensata de uma pluralidade de acontecimentos (mimese II). A terceira etapa (mimese III) seria o encontro do texto com o leitor, na refiguração da narrativa, que Ricoeur também descreve como a intersecção entre o mundo configurado pela narrativa e o mundo no qual a ação efetiva ocorre (RICOEUR, 1994). Ricoeur não aborda, necessariamente, o texto jornalístico, mas afirma que seu esforço é no sentido de compreender como os conceitos aristotélicos da composição narrativa podem se aplicar a toda e qualquer produção. Bird e Dardenne (2016) afirmam que considerar as notícias como narrativas não nega o valor de considerá-las como correspondentes da realidade exterior, afetando ou sendo afetadas pela sociedade, como produto de jornalistas ou Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas 38 da organização burocrática, mas introduz uma outra dimensão às notícias, dimensão essa na qual as ‘estórias’ de notícias transcendem suas funções tradicionais de informar e explicar. As notícias enquanto abordagem narrativa não negam que as notícias informam; claro que os leitores aprendem com as notícias. No entanto, muito do que aprendem pode ter pouco a ver com os ‘fatos’, ‘nomes’ e ‘números’ que os jornalistas tentam apresentar com tanta exatidão. Estes pormenores – significantes e insignificantes – contribuem todos para o bem mais amplo sistema simbólico que as notícias constituem. Os fatos, nomes e detalhes modificam-se quase diariamente, mas a estrutura social na qual se enquadram – o sistema simbólico – é mais duradoura. (BIRD; DARDENNE, 2016, p. 359). São as narrativas de cada sociedade e de cada época – entre as quais incluímos o jornalismo – que ensinam e orientam o ser humano sobre o mundo, seus valores e modos de agir. Estudar o jornalismo como narrativa é, portanto, reconhecer este caráter configurador, intimamente relacionado à cultura. Nesse sentido, Motta (2012) defende que o jornalismo seja interpretado como uma forma de experimentação da realidade. Para ele, as narrativas jornalísticas são esboços instáveis e provisórios do real, em constante configuração e reconfiguração. O jornalismo enquanto narrativa seria responsável, portanto, por ordenar de forma preliminar nossas experiências e os acontecimentos do presente, inserindo-os em enredos pré-figurados e, assim, tornando-os compreensíveis e aceitáveis. Ao mesmo tempo em que se parte desse reconhecimento, o estudo do jornalismo à luz das narrativas implica também em desafios. Romper com uma lógica de análise que enxergue o texto fechado em si, sem relação com as relações sociais que o produzem e adotar, na esteira de Motta, “uma postura antropológica mais vasta e cultural” (2013, p. 119), implica estudar as narrativas como produções relacionada a novos modos de apreender a realidade e interpretá-la a partir de novos métodos. É preciso, portanto, desenvolver ferramentas e procedimentos metodológicos que busquem ir além das textualidades e considerem todo o contexto de produção e recepção das narrativas jornalísticas, bem como a historicidade e asvinculações sociais que permeiam estes produtos simbólicos. Ainda não há uma consolidação de métodos e técnicas para o estudo das narrativas associadas a seu contexto. Motta (2007; 2013) é quem apresenta uma sistematização mais consistente de movimentos de análise, articulando conceitos oriundos do Estruturalismo, da Hermenêutica e da Pragmática. A Análise Crítica da Narrativa (MOTTA, 2013) – ou Análise Pragmática da Narrativa (MOTTA, 2007) – ainda não é consenso entre os pesquisadores brasileiros, como veremos adiante. Sem um arcabouço metodológico constituído, portanto, neste trabalho buscamos observar e mapear os movimentos metodológicos feitos pelos pesquisadores que estudam o jornalismo à luz das narrativas para compreender como tem sido realizada a pesquisa na área no Brasil, com base nos trabalhos apresentados nos principais eventos nacionais na área. Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas 39 3. Composição do corpus e procedimentos de análise A seleção dos artigos para o mapeamento proposto nesta pesquisa se deu por meio de sucessivos movimentos. Inicialmente, optamos por buscar textos publicados entre 2012 e 2016, nos anais de três dos principais congressos nacionais da área da Comunicação, promovidos pela Associação Nacional dos Programas de Pós- Graduação em Comunicação (Compós), pela Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação (Intercom) e pela Associação Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo (SBPJor). Valendo-nos dos mecanismos de busca on-line disponibilizados pelas entidades promotoras dos congressos, pesquisamos por artigos que utilizavam os termos “narrativa” e “jornalismo”4 como palavras-chave ou no título do texto. Nessa primeira etapa, alcançamos um total de 217 de artigos. Em seguida, nosso segundo movimento de triagem buscou identificar, entre esses textos, aqueles que empregavam a narrativa como perspectiva teórico e metodológica, alinhando-se à abordagem que apresentamos anteriormente. Ou seja, nosso olhar voltou-se aos artigos que aplicavam a narrativa para o estudo do jornalismo, compreendendo-o como processo ou ato linguístico de ordenamento, mediação social e produção de sentidos. Esse critério implicou no descarte dos trabalhos que se voltavam à análise da narrativa sob um viés estruturalista, em que a narrativa é interpretada como formato ou estrutura textual, bem como desconsiderou os artigos que, apesar de apresentarem o termo “narrativa” no título ou entre as palavras-chave, não desenvolveram nenhum tipo problematização ou discussão teórica acerca do conceito. Após esses movimentos, selecionamos 96 artigos para a análise individualizada, em que buscamos observar como a narrativa vem sendo aplicada nos estudos sobre jornalismo. Nesta etapa, elencamos como critérios os seguintes itens: identificação da Instituição de origem do(s) autor(es) do artigo, objeto empírico e mídia analisados, autores convocados para o embasamento teórico, existência de descrição dos procedimentos metodológicos, aplicação de análises da narrativa (AN)5 como método, autores de referência metodológica e, por fim, o emprego de outras técnicas ou métodos de pesquisa combinados. A análise individualizada dos artigos gerou dados de caráter quanti e qualitativo que nos permitem tecer algumas observações e inferências quanto à aplicação da perspectiva teórico-metodológica da narrativa nos estudos do jornalismo. Apresentamos e discutimos nossos principais resultados no tópico a seguir. 4. A narrativa aplicada nas pesquisas sobre jornalismo: aspectos do estado da arte Entre os 96 artigos selecionados, encontramos 15 trabalhos de cunho teórico e 81 textos que apresentavam resultados de pesquisas empíricas. Quanto às instituições de ensino e pesquisa de origem dos autores, foram registradas 43 instituições brasileiras distintas. A distribuição das pesquisas por regiões pode ser observada na Figura 1, a seguir: Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas 40 Figura 1: Distribuição dos artigos por regiões geográficas Fonte: elaboração das autoras Como podemos observar, a maior parte das pesquisas sobre narrativa e jornalismo concentra-se em instituições de ensino superior (IESs) da região Sudeste, totalizando 23 instituições distintas. Na sequência, identificamos dez IESs na região Sul, quatro na região Centro-Oeste, três na região Nordeste e três na região Norte. Destacam-se as universidades: Federal de Minas Gerais (UFMG), com dez trabalhos; Federal Fluminense (UFF), com nove trabalhos; Federal de Santa Catarina (UFSC), com oito artigos, e a Federal de Juiz de Fora (UFJF), a Universidade de Brasília (UnB) e a Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc) cada uma contabilizando seis trabalhos apresentados envolvendo as temáticas narrativa e jornalismo. Os 15 trabalhos de cunho teórico que compunham nosso corpus de pesquisa apresentavam textos de revisão bibliográfica, com caráter ensaístico e também propostas metodológicas. As temáticas abordadas eram diversas, desde reflexões epistemológicas sobre o próprio jornalismo – entendido como uma narrativa, como forma de conhecimento ou como mediação dialógica, para citar alguns exemplos – até problematizações acerca da linguagem jornalística, práticas e formatos, como aproximações entre narrativa jornalística e científica, entre as narrativas policiais no rádio e na televisão, questões de gênero e sexualidade, humanização das narrativas, entre outras. Quanto às pesquisas empíricas, observamos o tipo de mídia analisada tendo como base teórica e/ou metodológica o conceito de narrativa. Os dados obtidos podem ser visualizados no gráfico a seguir: Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas 41 Figura 2: Tipo de mídia analisada Fonte: elaboração das autoras Percebe-se que a aplicação da abordagem da narrativa em estudos que têm como objeto empírico mídias impressas se sobressai6. Somente os artigos que analisam jornais impressos correspondem a 28% das mídias (foco de análise em 32 artigos) a que se detinham as análises nos artigos examinados. Se somarmos esse índice aos que se referem a outros veículos impressos, como as revistas (19 artigos) e os livros- reportagem (10 artigos), esse indicador aumenta consideravelmente, chegando a 54% das mídias indicadas nas análises. Meios digitais também alcançaram um percentual significativo, com aplicação em 16 pesquisas. Dentre essas, porém, seis limitavam- se a análises textuais, desconsiderando os demais recursos digitais e, dessa forma, assemelhando-se aos artigos que tinham como objeto produtos jornalísticos impressos. O predomínio das pesquisas com mídias impressas pelo viés da narrativa pode ser explicado pela questão metodológica. As pesquisas com meios impressos são as que se revelam mais acessíveis aos pesquisadores, possivelmente em função da facilidade de acesso ao registro do texto, que é uma das principais “camadas” a que se dedicam os estudos das narrativas. Já as pesquisas voltadas à análise de meios audiovisuais foram identificadas em 17 artigos, cujos objetos são produtos radiofônicos (cinco artigos) e televisivos (12 artigos). Ainda que em menor número, em comparação com os meios impressos, estes estudos demonstram o esforço dos pesquisadores brasileiros em desenvolver adaptações metodológicas para a análise de narrativas que vão além da linguagem verbal, considerando também recursos sonoros e imagéticos. No âmbito metodológico, buscamos identificar nos artigos a descrição dos procedimentos metodológicos, a realização de análises da narrativa, a aplicação de outros métodos e a combinação entre ambos. Em relação ao detalhamento da metodologia empregada, encontramos 36 artigos que, de alguma forma, descreviam as escolhas, passos ou ferramentas de análise.O resultado obtido, que corresponde a 37,5% do nosso corpus, à primeira vista, nos pareceu baixo; ao interpretá-lo, contudo, observamos questões que nos levam a relativizar esta primeira impressão. É preciso considerar que o percentual alcançado se Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas 42 refere ao universo total de artigos analisados, entre os quais se encontram 15 textos de cunho teórico e ensaístico, baseados principalmente em revisões bibliográficas, o que torna a descrição dos procedimentos metodológicos desnecessária. Além disso, nossa amostra foi composta por artigos apresentados em eventos científicos e posteriormente disponibilizados em anais, publicações que estabelecem critérios e formatos específicos, geralmente limitando a extensão dos textos. Essa condição, possivelmente, leva os autores a suprimir da redação do artigo o detalhamento metodológico, com vistas a dedicar maior espaço às discussões teóricas e à apresentação dos resultados da pesquisa. Por fim, quanto à descrição dos procedimentos, podemos ainda ventilar a possibilidade de que a falta de detalhamento metodológico tenha relação com a instabilidade de uma Análise da Narrativa mais consolidada enquanto método de pesquisa no campo do Jornalismo (assim como da Comunicação, de maneira geral). É interessante observamos a proximidade entre os dados obtidos em nossa análise e estudos anteriores. Martinez e Iuama (2016), ao realizarem um mapeamento dos pesquisadores brasileiros que estudam narrativas, também perceberam a prevalência de pesquisas empíricas em relação às teóricas. Além disso, outro dado interessante registrado pelos pesquisadores, e que dialoga com nossas constatações, é em relação à descrição dos procedimentos metodológicos. Entre os pesquisadores que participaram da pesquisa realizada por Martinez e Iuama (2016) por meio de questionários, 82,61% afirmaram descrever explicitamente os procedimentos metodológicos em seus trabalhos, ao que os autores ponderam: “seria apropriado, em um estudo futuro, aprofundar a questão, uma vez que as abordagens metodológicas ainda são superficialmente descritas nos estudos brasileiros” (MARTINEZ; IUAMA, 2016, p. 8). Ou seja, ainda que os próprios pesquisadores brasileiros afirmem dedicar-se à descrição dos procedimentos metodológicos, na prática, isso ainda não acontece de maneira a contribuir para a consolidação da AN como método de pesquisa no campo do jornalismo. Em nosso corpus, encontramos 37 trabalhos que entendemos que desenvolvem análises da narrativa. Essa identificação se deu ora de forma clara, com a referência explícita no texto, ora por inferência nossa, a partir dos objetivos do artigo e da descrição dos procedimentos metodológicos. Apesar de não haver um método estabilizado, percebemos um esforço por parte dos pesquisadores em propor percursos de análise. Os 37 trabalhos que desenvolvem AN representam 38,5% dos textos, uma quantidade significativa, especialmente considerando que dos outros 59 trabalhos da amostra, 15 têm viés teórico, entendendo a narrativa como forma de interpretar o jornalismo. Excetuando-se as análises da narrativa, observamos também a aplicação de outros métodos. Em 34 artigos, o equivalente a 35% do corpus, os autores empregam outras técnicas e métodos de pesquisa, de forma complementar à AN ou articulando o referencial teórico embasado nos estudos sobre narrativa. Entre os métodos utilizados, cinco já bastante consolidados no campo da Comunicação: Análise de Conteúdo (seis artigos), Entrevista (dois artigos), Análise do Discurso (um artigo), Grupo Focal (um artigo) e Estudo de Caso (um artigo). Encontramos, ainda, um texto que aplicava uma análise semiótica, baseada no conceito de abdução de Charles S. Pierce, dois trabalhos que apresentavam como metodologia análise textual (um que explicitava o método e outro que reconhecemos por inferência), um artigo que realizava pesquisa Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas 43 empírica de inspiração etnográfica e outro que propunha uma análise com base na caracterização de reportagens hipermídia. Quatro artigos empregaram procedimentos de caráter quantitativo e, ainda, outros quatro trabalhos cujos métodos não foram identificados pelos autores e que não pudemos reconhecer por inferência. Quanto à aplicação combinada de análises da narrativa com outros métodos, encontramos dez trabalhos: três utilizavam a Análise de Conteúdo (AC) enquanto os outros empregavam, cada um deles, Análise do Discurso, Estudo de Caso, Grupo Focal, análise de enquadramento, revisão histórica, modelo de caracterização de análise de reportagens e um método identificado apenas como quantitativo. Percebe-se, nos resultados obtidos neste item, uma leve tendência à aplicação combinada das análises da narrativa com métodos de caráter quantitativo, em que se enquadra Análise de Conteúdo. Essa possibilidade é sugerida por Gouvêa (2015), que indica a aplicação da Análise de Conteúdo para análises das narrativas. Segundo a autora, a AC “se insere em um movimento exploratório que reúne informações e prepara tanto o pesquisador quanto a própria narrativa jornalística para a análise tematológica” (GOUVÊA, 2015, p. 214). Ou seja, ao concentrar-se no estudo da superfície textual, a Análise de Conteúdo auxilia na compreensão discursiva das representações simbólicas construídas pelas narrativas, bem como dos sentidos e representações sociais e culturais implícitas. Observamos, por fim, nos 96 artigos selecionados, quais os autores e principais obras foram utilizados para embasar teoricamente a discussão sobre narrativa e também para fundamentar a aplicação metodológica. Quanto ao primeiro item, identificamos 74 autores diferentes convocados para as discussões. No gráfico a seguir (Figura 3) podemos visualizar os 16 mais citados: Figura 3: Principais autores citados nas discussões teóricas sobre narrativa Fonte: elaboração das autoras Nota-se, ao observarmos a Figura 3, que as principais referências teóricas que embasam a perspectiva da narrativa nos artigos analisados é o pesquisador e professor brasileiro Luiz Gonzaga Motta (UnB/UFSC) e o filósofo francês Paul Ricoeur. Esta constatação vai ao encontro do levantamento realizado por Martinez e Iuama (2016), que também observaram a prevalência das obras de Luiz Gonzaga Motta e Paul Ricoeur Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas 44 como principais referências utilizadas pelos pesquisadores brasileiros. Em seguida, nossa análise também identificou como autores mais citados os pesquisadores e professores Cremilda Medina (USP), Muniz Sodré (UFRJ) e Fernando Resende (UFF). Interessante observar que entre os pesquisadores brasileiros mais citados, pelos menos dois deles (Motta e Resende) fundamentam-se também em Paul Ricoeur. No âmbito metodológico, novamente, a principal referência é Luiz Gonzaga Motta, cujos textos foram mencionados 24 vezes. Destacam-se aqui os livros Análise Crítica da Narrativa (MOTTA, 2013) e Narratologia: teoria e análise da narrativa jornalística (MOTTA, 2005 a); o capítulo Análise Pragmática da Narrativa Jornalística, publicado no livro Metodologia da Pesquisa em Jornalismo (LAGO; BENETTI, 2007); e o artigo homônimo apresentado no Congresso Nacional da Intercom de 2005 (MOTTA, 2005b). Outras nove referências remetem à obra de Paul Ricoeur, oito delas relacionadas à obra Tempo e Narrativa (1994), e uma ao livro A memória, a história, o esquecimento (2007). Há uma menção a dois diferentes textos de Cremilda Medina, A arte de tecer o presente (MEDINA, 2003), e Atravessagem: reflexos e reflexões na memória de repórter (MEDINA, 2014). Ainda figuram como referências metodológicas o texto de Leal (2013) O jornalismo à luz das narrativas, o Dicionário de Narratologia, dosportugueses Carlos Reis e Ana Cristina M. Lopes (2007), uma menção a um texto de Gustavo Said (UFPI) e duas referências que remetem a Walter Benjamin. O destaque alcançado pela obra de Motta nas pesquisas brasileiras parece se justificar, justamente, por representar o principal esforço de sistematização metodológica nos estudos de narrativa aplicados ao jornalismo. 5. Considerações finais O mapeamento dos trabalhos apresentados nos últimos cinco anos em congressos da área da comunicação envolvendo jornalismo e narrativa oferece-nos alguns indicativos e inferências para compreender o modo como se está configurando uma outra narrativa: esta sobre um novo viés para os estudos em jornalismo. A pluralidade de abordagens revela a adoção de diferentes caminhos metodológicos, ao mesmo tempo em que demonstra que há poucas aplicações sistematizadas de uma Análise da Narrativa como método de pesquisa. Ao longo dos últimos cinco anos houve um aumento significativo na produção acadêmica que articula a narrativa como perspectiva para o estudo do jornalismo. Se o referencial teórico está claro, ainda há desafios para a composição de sistematizações metodológicas, tanto do ponto de vista do objeto, quanto dos métodos e recursos para a análise. A predominância de pesquisas com produtos impressos, ou com textos escritos disponíveis on-line, aponta para as dificuldades metodológicas implicadas no trabalho com outros formatos narrativos, como os audiovisuais e sonoros. Para além do âmbito do objeto, os desafios parecem estar presentes, principalmente, numa análise da narrativa para o jornalismo, capaz de associá-la aos seus contextos de produção. A menção à obra de Luiz Gonzaga Motta como principal referencial metodológico em nosso corpus parece apontar justamente para a busca da adoção de uma sistematização da AN, como propõe o autor, ainda que o método não esteja estabilizado. Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas 45 Ao observar nosso corpus, percebemos, ainda, que o esforço dos pesquisadores em jornalismo para analisar as narrativas busca superar os recursos da narratologia e na produção dos formalistas e estruturalistas, que, embora proponham diferentes ferramentas para a análise, centram-se nos aspectos internos do texto. Nesta pesquisa, notamos que, mesmo os trabalhos que se voltam às textualidades buscam alcançar as vinculações sociais e os sentidos implícitos nos textos, denotando uma preocupação em romper com o texto em si como única superfície de análise. O desafio para um método de análise mais estabilizado, portanto, parece-nos passar pela sistematização de um arcabouço metodológico, sem prender-se às regras formalistas e considerando as especificidades do texto jornalístico, indissociável do contexto social em que é produzido. Notas 1 Esta é uma versão ampliada e revisada do artigo apresentado no GT Comunicação, Linguagens e Narrativas do I Simpósio Internacional de Comunicação, realizado em agosto de 2016, em Frederico Westphalen (RS). 2 O uso do termo “estória” acompanha o posicionamento de Motta (2013), que remete à distinção entre history e story, na língua inglesa, atribuindo ao segundo termo um caráter narrativo e subjetivo. O uso de história, sob essa perspectiva, estaria mais ligado aos relatos da historiografia. 3 Ricoeur busca em Aristóteles a referência à mimese, conceito que, originalmente, remete a uma imitação. Ricoeur, entretanto, emprega o termo para designar não uma cópia, mas uma versão da realidade. Para o filósofo, a atividade mimética promove uma ruptura com o referente real e uma transposição metafórica deste. A mimese ricoeuriana, assim, corresponde a um processo de recriação do mundo pela ação narrativa do homem. 4 Consideramos também, nesta etapa de triagem, variações do termo, como, por exemplo, “radiojornalismo”, “telejornalismo”, “fotojornalismo”, bem como combinações de palavras-chave, como “narrativas jornalísticas”. 5 Optamos por utilizar a referência à aplicação metodológica da narrativa no plural por entendermos que ainda não há um método definitivo e consolidado. O uso de análises da narrativa, dessa forma, contempla as diferentes propostas metodológicas desenvolvidas pelos autores dos artigos examinados. 6 Em números absolutos, o total de mídias analisadas chega a 115, extrapolando o número de artigos que compõem o corpus. Isso se dá em função de que em vários trabalhos os autores apresentaram estudos envolvendo objetos midiáticos distintos. Referências BARTHES, Roland. Introdução à análise estrutural da narrativa. In: BARTHES, Roland et al. 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Motta Introdução A configuração de uma narrativa pública é hoje uma prática viva, transmidiática e intertextual (Scolari, 2009). Cada um de nós participa cotidianamente de uma rede de construçãode significados públicos a partir de fragmentos de informações extraídos do fluxo midiático, através dos quais procuramos compreender nossas vidas. Como observa Silverstone (1999), entramos e saímos constantemente do espaço das mídias impressa, eletrônica e digitais e nelas nos abastecemos e reabastecemos. Essa cultura midiática e digital substituiu a sociabilidade tradicional, transformou-se em uma nova textura geral da experiência (Berlin, 1997), uma mundanidade mediada (Thompson, 1998). Nesse caleidoscópico fluxo e refluxo de socialização travam-se as batalhas discursivas pela hegemonia dos significados, representações e senso comum. Na cultura da convergência (Jenkins, 2008), as narrativas públicas se configuram através da intersecção de uma multiplicidade de fontes e plataformas: cada fragmento acrescentado distende a narrativa para trás, para adiante ou para os lados, reatualiza significados deixando os relatos em um permanente estado de suspensão. Até recentemente, a analise da narrativa concentrava-se no enunciado, no relato enquanto um produto acabado possuidor per se de um sentido autônomo. O foco se centrava na descoberta de estruturas recorrentes da narrativa que revelassem sua organicidade interna como um sistema fechado sobre si mesmo, com moto próprio: uma totalidade integral que agregava descrições de ações em um transcorrer sucessivo rumo a um desfecho. Categorias como significante e significado e a correlação que os une: encadeamento, seqüência, composição, duração, ritmo, função e outros desempenhavam um papel fundamental nas análises. O importante era desvelar as constantes internas que compunham um modelo universal da intriga. Esse modelo de análise imanentista, inspirado no estruturalismo - episteme hegemônica na segunda metade do século passado - revelou-se por si mesmo insuficiente para compreender a dinâmica das narrativas na sociedade moderna. A nova textura geral da experiência em redes exige procedimentos de análise mais dinâmicos que aqueles fornecidos pela linguística ou a teoria literária, principais fontes da epistemologia narratológica há até pouco tempo. O esgotamento da narratologia estruturalista suscitou a necessidade de instrumentos capazes de capturar a comunicação narrativa. Esses instrumentos já estavam se consolidando bem antes do advento das mídias digitais. A dinâmica das novas modalidades e suportes apenas tornou o modelo imanentista ainda mais obsoleto. O presente ensaio propõe que a 48 narrativa seja compreendida não mais como um discurso, escrita ou fala, mas como uma ação cujo protagonismo, voz e perspectiva dos sujeitos narrador e destinatário na coconstrução do sentido sejam incorporados a uma análise crítica que privilegie as performances dos sujeitos na enunciação narrativa. É no bojo das alternativas epistemológicas trazidas pelo linguistic turn que uma narratologia crítica brotou. As inspirações vieram das teorias dos filósofos da linguagem H. P. Grice (1957; 1969), J. H. Austin (1962), J. R. Searle (2001; 2002; 2002a), e outros. E se abasteceram nas sistematizações da pragmática no final do século passado (Reyes, 1994; van Dijk, 1987 e 2000; Vidal, 2002). Aqui, não posso recuperar as variadas proposições do linguistic turn nem as contribuições da pragmática.1 No presente ensaio, não ofereço uma sistematização teórico- metodológica acabada de um novo caminho epistemológico. Essa tarefa exigirá maior maturação intelectual. Há, aqui, apenas um esboço conceitual e metodológico preliminar que sugere interpretar as narrativas como atos de fala dinâmicos e circunstanciais, não como produtos fechados sobre si mesmos. Proponho-me esboçar formulações preliminares de uma narratologia crítica, ainda nascente, que parece representar uma radical ruptura com os modelos anteriores. Não tenho a pretensão de criar uma nova narratologia, obviamente. Até porque a maioria das ideias aqui ensaiadas são importadas de teorias desenvolvidas em outras áreas do conhecimento. Apenas tento produzir a síntese de um projeto de interpretação de narrativas que parece promissor, no qual a narratologia ganhe um status mais antropológico, para além dos restritos limites da linguística e da teoria literária. No projeto de uma narratologia crítica aqui esboçado, sigo em parte a teoria pragmática dos atos de fala, segundo a qual os atos enunciativos “são operações em contexto, como funções de contexto em contexto” (Levinson, 2007/352, grifo meu), entendidos estes como um conjunto de proposições que descrevem crenças, conhecimentos, compromissos e ideologias dos participantes. Quando uma narrativa é enunciada, acontecem mais coisas que apenas a expressão do seu significado, pois o conjunto de fundo também é alterado. A contribuição que uma enunciação fornece à mudança do contexto é a força ilocucionária, ou potência do ato de fala. A tese de Levinson, com a qual concordo, é que essa força é irredutível à questões de conteúdo, verdade ou falsidade do enunciado, pois constitui um aspecto do significado que não pode ser capturado pela semântica veridicional. “O lugar próprio da força ilocucionária é o domínio da ação, e as técnicas adequadas para a análise devem ser encontradas na teoria da ação, não na teoria do significado” (Levinson, 2007,312, grifo dele), uma maneira inteiramente pragmática de lidar com a força ilocucionária. Sigo também a hermenêutica crítica de Paul Ricoeur (1983,46/7), para quem o discurso é um evento realizado no presente, que remete ao seu locutor mediante um conjunto complexo de indicadores. O caráter do evento vincula-se, assim, à pessoa que fala. Mais ainda, o evento consiste no fato de alguém falar, tomar a palavra para expressar-se a respeito de algo: refere-se a um mundo que pretende descrever ou representar. Neste sentido, o ato de fala é a vinda à linguagem de um mundo mediante o discurso, e não somente um mundo, mas também o outro, outra pessoa, Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas 49 um interlocutor ao qual o locutor se dirige. É da tensão entre estes dois pólos que surge a produção do discurso como obra (o sentido). O que a hermenêutica deve compreender, diz Ricoeur, “não é o evento, na medida em que é fugidio, mas sua significação que permanece”.2 A obra (a narrativa) traz uma proposição de mundo “que não se encontra atrás do texto como uma espécie de intenção oculta, mas diante dele como aquilo que a obra desvenda, descobre, revela” (1983, 58). Em trabalho anterior, sugeri que a narratologia deveria deslocar-se da teoria literária para tornar-se um procedimento multidisciplinar de caráter cultural e cognitivo, envolvendo a interpretação de mitos, ideologias e os valores canônicos e políticos da sociedade (Motta, 2013). O presente ensaio pretende avançar nesse rumo, até porque nunca antes a rotina de vida das sociedades foi tão permeada por uma complexa enxurrada de narrativas como hoje. Cognitivamente, elas configuram o sentido ordinário da vida. Cotidianamente, somos inundados por biografias, mini- contos, breves romances, reportagens, filmes, documentários, telenovelas, canções, videoclipes, videogames, histórias em quadrinhos, desenhos animados, comerciais de TV, anedotas, diários de vida, breves relatos do facebook, whatsapp, Instagram e outras redes sociais digitais. Através das novas tecnologias, o público tomou para si um protagonismo maior do contar. Nunca antes nossas estórias foram tão compartidas, tornando mais densa e complexa a rede coletiva de narrativas públicas. Nunca antes fomos tão narradores, e simultaneamente destinatários, de nossas próprias aventuras. A vida contemporânea se desenvolve sob um mar de relatos híbridos e fragmentados que se emendam uns aos outros, entretecendo uma teia virtual de narrativas na qual estamos todos enredados. Provenientes de diferentes plataformas,descontínuos e dispersos, fáticos ou fictícios, locais ou universais, comerciais ou públicos, informativos ou puro entretenimento, poucos desses relatos alcançam constituir-se peças literárias. São erráticos, efêmeros e caleidoscópicos. Mal ou bem, entretanto, os relatos públicos configuram as narrativas multimidiáticas ou transmidiáticas da modernidade, e constituem o mar de híbridas histórias que confirmam a hegemônica cultural da convergência. Teoria da narrativa como uma teoria da ação A tese de Paul Ricoeur no tomo I de seu reconhecido ensaio Tempo e Narrativa (1994) é que a operação de configuração da tessitura de uma intriga extrai sua inteligibilidade de sua faculdade de mediação entre a prefiguração (processo de produção) e a refiguração (processo de recepção). Ou seja, a obra eleva-se do fundo opaco do viver e agir para ser dada por um autor à um leitor que a recebe, e assim muda seu agir. A hermenêutica ricoeuriana, dessa forma, preocupa-se em reconstruir o arco inteiro das operações da experiência: a obra media entre autores e receptores. O desafio, segundo ele, é a reconstituição do processo concreto pelo qual a configuração (mimese II) faz a mediação entre a prefiguração (mimese I) e sua refiguração (mimese III). Assim, o autor subordina a questão do encadeamento narrativo à determinação da função mediadora da intriga: ela media entre o momento da experiência prática que a precede e o estágio da experiência receptora que a sucede.3 Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas 50 Se é verdade que a intriga é uma imitação das ações humanas, quem a compõe parte de uma pré-compreensão do mundo, suas estruturas inteligíveis, simbólicas e temporais; e sua competência para articular a representação das ações em uma trama. Mais importante ainda, diz Ricoeur, é observar que quem compõe age com certas motivações a fim de produzir certos estados de espírito. Torna-se então importante, observa ele, identificar o agente enunciador e seus motivos. Ademais, prossegue, agir é sempre agir ‘com’ outros: “a interação pode assumir a forma de cooperação, de competição ou luta” (Ricoeur,1994,89). A compreensão narrativa deve, pois, ser estabelecida entre a teoria narrativa e a teoria da ação: “Compreender uma história é compreender ao mesmo tempo a linguagem do ‘fazer’ e a tradição cultural da qual procede a tipologia das intrigas” (pág. 91). Pelo lado da recepção, observa Ricoeur, “a narrativa tem seu sentido pleno quando é restituída ao tempo do agir e do padecer”, no momento em que é lida, vista ou ouvida. A recepção, segundo ele, “marca a intersecção entre o mundo do texto e o do leitor”. O mesmo ‘pano de fundo’ da cultura, de historias vividas e (ainda) não contadas, imbricadas umas às outras, sobre as quais as novas histórias emergem, opera aqui: “Narrar, seguir, compreender histórias é só a ‘continuidade’ dessas histórias não ditas” (pag. 116). No ato de ler, diz ele, o receptor reconfigura e conclui a obra: “É o leitor, quase abandonado pela obra, que carrega sozinho o peso da tessitura da intriga” (pág. 118). O ato de leitura, conclui ele, é “o último vetor da configuração do mundo da ação sob o signo da intriga” (pág. 118). Não preciso prosseguir com a rica argumentação de Paul Ricoeur a respeito da narrativa como uma teoria da ação comunicativa. Ficou evidente que configurar e refigurar uma intriga são ações protagonizadas por sujeitos vivos e ativos, são performances linguísticas movidas por motivações e intenções recíprocas. As breves citações acima são suficientes para indicar uma total reviravolta proposta por ele (e outros autores) na teoria e análise da narrativa, pois a teoria da narrativa torna-se uma teoria da ação comunicativa. É nessa direção que procederei rumo a uma análise pragmática, a ela anexando o adjetivo crítica pelo seu potencial de contextualizar a interpretação narrativa e revelas as relações de poder. É importante trazer a palavra avaliadora de Paul Ricoeur a respeito da narrativa como ato de fala por causa da respeitabilidade dele no campo da narratologia. Entretanto, Ricoeur não é uma referência fundamental na teoria dos atos de fala, que provém da filosofia da linguagem. Até pouco tempo atrás, filósofos e linguistas estavam preocupados com a competência linguística de cada frase ou texto e sua correspondência com a verdade. A virada aconteceu em meados do século passado, quando alguns filósofos explicaram que falar não é somente emitir frases para comunicar informações: a fala realiza coisas para além dos conteúdos proposicionais, e o mais importante talvez não seja a sentença proferida, e sim o que ela obtém como seu efeito independente de sua condição de verdade. Toda vez que falamos, realizamos um ato de fala: faço uma pergunta, dou uma ordem, explico ou predigo algo, etc.4 Ou seja, para além dos conteúdos, há uma força implícita na fala, que o filósofo John Austin (1962) chamou de ilocução. Os potenciais efeitos desses atos junto aos receptores, ele chamou de atos perlocutivos. Os atos ilocutivos detém quase sempre uma intenção Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas 51 realizativa: pretendem algo. A mente do sujeito falante impõe intencionalidade aos sons, imagens ou textos, conferindo a eles um significado relacionado à realidade.5 Para J. Searle (2001, 127), seguidor de Austin, o significado é uma forma de intencionalidade derivada: a intencionalidade intrínseca do pensamento do falante se transfere às palavras e frases pronunciadas. Mas, a intenção de comunicar não coincide sempre com a intenção de significar. Comunicar é obter que o outro reconheça a minha intenção de produzir certo efeito, obter que o outro capte o meu significado. Se transplantamos essas reflexões da filosofia da linguagem para a narratologia, torna-se relevante redefinir a narração (ou enunciação narrativa) como um ato de fala comunicativo porque os relatos sempre implicam em efeitos não necessariamente referenciados no texto: as narrativas são por natureza irônicas, trágicas, cômicas, etc. Cada uma delas quer produzir determinado efeito de sentido, muitas vezes apenas subentendido. Assim, precisamos partir de uma definição de comunicação que descreva adequadamente o processo de narração como um ato de fala narrativo com seus possíveis efeitos de sentido. Encontro essa definição em Levinson (2007, 19), que diz: “A comunicação consiste no fato de o emissor intentar fazer com que o receptor pense ou faça alguma coisa, simplesmente fazendo o receptor reconhecer que o emissor está tentando causar tal pensamento ou a ação. Portanto, a comunicação é um tipo complexo de intenção, que é realizada ou satisfeita simplesmente por ser reconhecida. No processo de comunicação, a intenção comunicativa do emissor torna-se conhecimento mútuo para o emissor (F) e o receptor (O). Isto é, F sabe que O sabe que F sabe que O sabe (e assim ad infinitum) que F tem esta intenção específica”. Os atos de comunicação (incluindo a narração) são regidos por acordos implícitos entre os interlocutores que tornam possível entender o significado literal, mas também inferir outras significações a partir da força ilocutiva do enunciado. Esse acordo virtual revela a intenção de quem fala e sugere uma interpretação cooperativa de quem lê, vê ou escuta uma história. Ajustamos automaticamente esses acordos em nossas relações cotidianas com os nossos diversos interlocutores readaptando continuamente as nossas expectativas e as deles, tornando cada fala um ato de comunicação uma ação singular e circunstancial. Assim, o que se diz não é necessariamente o que se comunica em cada situação: há diversas implicaturas e pressuposições insinuadas, gestos, dêiticos, etc. Os dêiticos (sutis referências de espaço, tempo, hierarquia social, etc.) são particularmenterelevantes porque revelam a importância do contexto comunicativo para a compreensão dos significados. Conforme observa Levinson (2007), os dêiticos gramaticalizam traços do contexto na enunciação e revelam como a interpretação das narrações depende da consideração do ambiente da enunciação (voltarei à questão dos dêiticos adiante). Por sua natureza criativa e argumentativa, a enunciação narrativa é rica em implicaturas e pressuposições que direcionam a fala rumo a inúmeros efeitos de sentido (espera, suspense, susto, sofrimento, riso, assombro, medo, etc.). Elas estão presentes na própria estruturação dramática do texto, na criação do suspense, no amplo uso de figuras de linguagem (metáforas, ironias, hipérboles), na intertextualidade, na Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas 52 ênfase e hierarquia lexicais que põem a comunicação narrativa em funcionamento. O uso intencional desses recursos de linguagem constitui a dimensão pragmática da comunicação narrativa: significados virtuais que decorrem das intencionalidades do sujeito narrador e das interpretações do sujeito receptor (os atos ilocutivo e perlocutivo). As intenções do autor e sua realização (ou não) no ato de recepção são os dois extremos de uma atividade de comunicação em que o texto funciona como o nexo entre os interlocutores. Ou seja, a comunicação narrativa visa provocar mudanças no estado de ânimo das pessoas, podendo eles serem positivos quando favorecem a auto-afirmação (amor, compreensão, compaixão), ou negativos quando a desfavorecem (medo, ira, inveja) (Motta, 2006). Embora brevemente, creio ter enumerado até aqui argumentos suficientes para justificar que o relato não é mera representação da vida, mas um ato comunicativo impregnado de força ilocutiva: realiza sempre uma interlocução criativa. Nesta vertente pragmática, a teoria da narrativa distancia-se da teoria literária para tornar-se uma teoria da ação comunicativa. Seu uso deixa de atender apenas à crítica literária ou estética para tornar-se uma metodologia crítica dos atos narrativos. A dimensão crítica da pragmática A disciplina da pragmática é relativamente recente entre as teorias da linguagem. Sobre a pragmática narrativa, não há literatura específica. A própria teoria dos atos de fala só há pouco saiu do campo da filosofia e começou a se constituir em um projeto metodológico mais consistente. Não há sequer uma definição precisa nem delimitação do alcance da pragmática (Levinson, 2007; Dascal, 2006).6 Ela surgiu como uma disciplina um tanto marginal, que se ocuparia das coisas que a semântica e outras disciplinas linguísticas desprezavam (as pressuposições, subentendidos, ironias, etc.), a chamada “cesta de lixo” de Gottlob Frege, ou resíduos de outras teorias (Reyes, 1994; Dascal, 2006). O interesse atual pela pragmática decorreu da percepção geral que a língua é utilizada para comunicar, e a comunicação é mais que um conteúdo proposicional. A partir daí, filósofos, linguistas, psicanalistas, antropólogos e outros se deram conta da necessidade de considerar o contexto dinâmico do uso da linguagem, a performance e motivações (intencionalidades) dos sujeitos interlocutores.7 Há consenso que a pragmática refere-se ao estudo do uso que os sujeitos interlocutores fazem da linguagem em um determinado contexto comunicativo (Reyes, 1994). Das condições que determinam o emprego de um enunciado concreto por parte de um falante concreto em uma situação de comunicação concreta, tanto quanto a interpretação de parte de um destinatário (Vidal, 2002). Isso torna a pragmática um procedimento empírico que estuda como os sujeitos interlocutores usam e interpretam enunciados em determinado contexto de comunicação, o que revela o potencial dela para tornar-se uma teoria crítica, e nos anima a perseguir um projeto teórico e metodológico que pode revelar-se promissor para a narratologia. Transplantar as propostas da pragmática para um projeto de narratologia é certamente uma atitude problemática que suscita inúmeros desafios não tratados aqui. Porém, nada me impede de ousar reconhecendo a necessidade de refinamentos posteriores. Me dedicarei em seguida a dois aspectos particulares da pragmática Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas 53 que requerem uma atenção imediata devido à dimensão metodológica deles em uma narratologia crítica: 1) o protagonismo dos atores; 2) o contexto comunicativo e os dêiticos. Antes, porém, uma advertência sobre o uso do adjetivo ‘crítica’ na análise que proponho: a meu ver, a possibilidade de incorporar o contexto nos procedimentos de análise consolida uma pragmática expandida como uma teoria crítica.8 O adjetivo crítica tem aqui um valor particular,. Ele não implica formar juízos de valor, e sim assumir uma proficiência metodológica que incorpore de maneira rigorosa e fundamentada o papel dos interlocutores e os elementos do contexto comunicativo e cultural nos próprios procedimentos, o que dá à análise da comunicação narrativa um alcance social e histórico e a remete às relações de poder.9 Protagonismo de narradores e destinatários A primeira contribuição relevante da pragmática para o projeto de uma narratologia crítica é levar em conta o protagonismo dos sujeitos interlocutores - narrador e destinatário - nos procedimentos de análise, tema para o qual me volto agora. Mais que uma questão de identidade dos atores, é necessário que o analista conheça os papéis sociais dos sujeitos, suas intenções comunicativas e as relações de força entre eles (posição social, hierarquia, diferenças de gênero, etc). A pragmática chama o sujeito enunciador de emissor, mas na teoria narrativa é mais adequado denominá- lo narrador, termo que adotarei por conferir a essa figura um ativo protagonismo. Diferente da teoria literária clássica, na pragmática, o narrador é um sujeito empírico que atua no momento em que emite sua narração com os seus valores, vontades históricas, e uma performance comunicativa concreta.10 Da mesma maneira, o destinatário é também um ativo sujeito (ou sujeitos) empírico que se engaja no ato comunicativo por vontade própria, com a sua memória, seus valores e ideologias. O destaque, portanto, é a performance dos sujeitos interlocutores. O que move ambos é a vontade coletiva de fazer sentido. Na comunicação narrativa, alguém quer utilizar as técnicas de enunciação dramática para envolver o destinatário, ainda que essa vontade possa se realizar às vezes cooperativamente e outras vezes conflituosamente. Mas o destinatário também participa do ato comunicativo por vontade própria. A intencionalidade é recíproca. O narrador é quem inicia a atividade de contar conforme sua vontade, e manipula a linguagem a fim de obter a realização de suas intenções comunicativas. Mas, não é só ele quem toma a iniciativa. Como diz Bakhtin (2003), o ouvinte tem igualmente desejos, se engaja no processo comunicativo com interesses próprios, e tem posturas ativas de resposta: pode não estar de acordo, precisa completar lacunas de sentido, se prepara para uma outra ação, etc. A simples compreensão de um discurso, diz o autor, tem sempre algum grau de resposta, ainda que ela só venha a ocorrer tempos depois. Ambos sujeitos estão imbuídos do desejo de produzir sentidos e, neste sentido, são protagonistas do ato comunicativo. A correlação de forças entre eles pode ser simétrica ou assimétrica, hierárquica ou igualitária, pode predominar a cooperação ou o conflito. Identificar os lugares que os sujeitos interlocutores ocupam hierarquicamente, seus papéis sociais, suas motivações, a correlação de poder entre eles no ato narrativo é o Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas 54 primeiro passo que um analista precisa dar ao se propor uma interpretação crítica. Dissemosacima que a comunicação só se completa quando o destinatário reconhece as intenções do falante. Isso ocorre também na comunicação narrativa. Quando alguém escolhe contar, pretende seduzir, envolver, advertir, fazer rir ou chorar, impactar de alguma forma o outro. O significado, como diz Searle (2001, pp.127/30) é uma forma de intencionalidade derivada: “A intencionalidade original do pensamento de um falante se transfere às suas palavras e textos, […] que possuem uma intencionalidade derivada do pensamento do falante. Elas não possuem apenas o significado linguístico convencional, mas também o significado que o falante a elas quis dar. […] Quando nos comunicamos com alguém, logramos que esse alguém recon- heça nossa intenção de produzir compreensão. A comunicação é peculiar entre as ações humanas no sentido que conseguimos produzir o efeito pre- tendido no ouvinte ao lograr que ele reconheça a intenção de produzir esse mesmo efeito” (tradução livre do autor). Conforme esta perspectiva, toda narração é um ato carregado de intenções: o narrador sempre realiza algo além de proferir uma história literal: ele não só ‘convida’ alguém a ouvi-lo, mas também busca seduzir esse alguém, modificar seu espírito, envolvê-lo e, principalmente, fazê-lo compreender como o mundo funciona.11 As narrativas são um meio de sensibilizar e mobilizar pessoas, obter consenso, criar o senso comum (Bruner, 1998). Neste sentido, a construção de uma intriga (fática ou fictícia) é o ato de organizar a realidade de uma maneira coerente e compreensível a fim de obter a aquiescência e/ou os reconhecimentos dos interlocutores. Assim, o analista pragmático precisa identificar no texto pistas e traços que indutivamente o permitam chegar até as intenções de um narrador diante de um destinatário (ou vários). Já dissemos que o envolvimento entre os sujeitos interlocutores pode ocorrer de maneira cooperativa ou conflituosa. Em si, a relação de interlocução é sempre solidária na medida que, no ato comunicativo, um sujeito valida a fala do outro, e vice-versa (independente da concordância sobre o conteúdo). Na comunicação face a face, há turnos de fala, permutas flexíveis e incessantes adaptações. Na comunicação mediada, há pouca ou nenhuma interação, embora a interlocução sempre esteja presente de maneira mais ou menos tangível. O mundo da vida costuma ser desigual, há sempre assimetrias sociais e culturais (antagonismos de classe, gênero, profissão, religião, hierarquia política, institucional ou familiar, etc.) que levam à diferentes pontos de vista sobre os acontecimentos. Há sempre forças antagônicas operando, e a relação de confronto é mais usual. O significado resulta de uma disputa (quase sempre velada), mais que de cooperação (no sentido do conteúdo em questão). Torna-se então útil compreender as narrativas como instrumentos de disputas, estratégias de argumentação, convencimento ou cooptação. Nessa perspectiva, as narrativas passam a serem vistas como instrumentos de naturalização do mundo e de legitimação de papéis. Instrumentos de imposição e dominação, embora talvez seja mais usual as situações onde elas funcionam como objetos de disputa e barganha por uma representação mais ‘legítima’ do mundo. Como ensina Foucault (2010), o poder flutua, vai e volta, inverte e reverte, está sempre em disputa e renegociação. Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas 55 Pessoas, grupos e classes estão sempre em disputa por narrativas hegemônicas. Há convergência, divergência e permuta constante por interpretações hegemônicas. Conforme observa Kerbrat-Orecchioni (2006/74), a interlocução é um processo dinâmico no qual nada é determinado de uma vez por todas, pois o tabuleiro se modifica constantemente: “As trocas comunicativas são o lugar de batalhas permanentes pela alta posição (batalhas mais ou menos discretas ou alardeadas, corteses ou brutais), quer se trate de trocas institucionalmente desiguais, nas quais o jogo dos taxemas pode infletir, e até mesmo inverter (pelo menos provisoriamente) a relação de lugares inicial; ou de trocas, em principio iguais, nas quais sua ação pode constituir uma relação de dominação a priori inexistente”. A disputa por narrativas mais ‘verdadeiras’ e mais ‘naturais’ é a força que move os sujeitos narradores e destinatários no mundo da vida. Que razão motiva alguém a organizar a realidade narrativamente? O que pretende alguém ao contar uma história? Que efeitos de sentido ou estados de espirito pretende produzir no destinatário? É por isso que afirmamos: nenhuma narrativa é ingênua, toda narrativa realiza algo, realiza jogos de linguagem e de poder: atrair, advertir, conquistar, excitar, motivar, cooptar, mobilizar, etc. Por isso, toda narrativa é argumentativa, pois é dotada de intencionalidade, orienta-se para mudar espíritos, realizar determinado efeito de sentido. Se alguém escolhe organizar narrativamente seu discurso, é porque sabe, intuitiva ou racionalmente, que o relato é a melhor estratégia para realizar suas intenções comunicativas. Todo narrador conhece o potencial de sedução e envolvimento que a narrativa contém. Narrativas são dispositivos argumentativos, representam o uso consciente ou inconsciente para criar uma cooperação induzida. O ato de argumentar e orientar o discurso no sentido de determinadas conclusões constitui o ato linguístico fundamental, pois a todo e qualquer discurso subjaz uma ideologia (Kock, 2011). A argumentação constitui a atividade estruturante de qualquer discurso, e particularmente das narrativas. É através da análise pragmática e retórica que se conhecerá o jogo de poder e as ideologias, dos quais a narrativa é uma parte tangível. Como nenhum ato narrativo se reproduz duas vezes, resta ao analista identificar no texto os traços e pistas que revelem as intenções comunicativas e sua realização (ou não). Isso torna a teoria narrativa uma teoria da argumentação, e sua interpretação, uma análise da retórica que poderá desvelar os ardis e artimanhas. Os jogos de poder, enfim. Contexto e dêiticos da situação comunicativa A segunda contribuição relevante da abordagem pragmática para o projeto de uma narratologia crítica, com o qual pretendo concluir este capítulo, é a incorporação do contexto aos procedimentos de análise. É a incorporação de determinantes contextuais que dá à análise um caráter crítico e a difere de outras metodologias. Todos os autores acima citados enfatizam a importância que o contexto e as circunstâncias da situação de comunicação (os fatores extralinguísticos) têm no Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas 56 processo de construção das representações sociais. Cada ato de fala narrativo ocorre em um ambiente psicossocial específico que contingência tal ato, eles concordam. Argumentando que a hermenêutica só se torna relevante devido à múltipla significação dos textos, e que o analista-intérprete precisa ter sensibilidade ao contexto, Ricoeur (1983, 19) observa: “A sensibilidade ao contexto é o complemento necessário, e a contrapartida inelutável da polissemia”. O manejo do contexto, prossegue ele, põe em jogo o discernimento da permuta concreta de mensagens entre interlocutores precisos, atividade propriamente dita da interpretação: é preciso, pois, “reconhecer qual a mensagem relativamente unívoca o locutor construiu apoiado na base polissêmica”. Identificar essa intenção de unicidade na recepção das mensagens é “o primeiro e mais elementar trabalho da interpretação”. Quero me deter sobre alguns fatores de contingenciamento que atuam de maneira decisiva, em maior ou menor grau, sobre a configuração das histórias. A partir de uma breve revisão da literatura, farei ao final uma sugestão para a incorporação desses fatores aos procedimentos de análise através da consideraçãodos ciclos dêiticos. O contexto é tão importante para a passagem do significado da sentença ao significado da enunciação que o filósofo Max Black propôs certa vez que a nascente disciplina se chamasse contextics a fim de dar conta de “todos os aspectos do contexto relevantes para a linguagem”. (Dascal, 2007/561). A questão metodológica da incorporação do contexto na análise da narrativa não é, entretanto, um problema fácil. É preciso primeiro delimitar o quê é o contexto, seus limites, e qual a sua relevância para cada ato de fala. Isso abre um amplo leque de possíveis fatores pertinentes. O que é ou não é estrategicamente relevante para os participantes em cada ato discursivo? Até onde se expande o entorno que intervém no processo comunicativo? Qual é a força determinante de cada um dos fatores?12 Mais complicado ainda é incorporar as relevâncias contextuais nos próprios procedimentos de análise, como veremos. Para tornar a análise definitivamente crítica, sugiro observar os fatores extralinguísticos como instrumentos de um jogo de poder que se manifesta nos discursos narrativos de maneira argumentativa, conforme observei acima. Penso que uma correlação de forças proveniente do ambiente psicossocial está sempre condicionando cada ato narrativo, mesmo aqueles atos aparentemente despretensiosos, como uma mãe que conta um singelo conto infantil ao seu filho ao anoitecer. Ao contar, a mãe não é totalmente despretensiosa: ela tem a intenção de acalmar e ninar sua cria, que repassar a ele certo estado de espírito. Há uma intencionalidade implícita no ato de contar o conto. A narrativa da mãe realiza um ato performativo ao embalar a criança. O relato dela é um texto, mas é também uma atividade social que existe em par com outras formas semelhantes, e com elas se interrelaciona conforme observa (Eagleton, 2006). Assim, não há ato de fala que não seja argumentativo, nem ato de fala que não carregue alguma carga ideológica. Uma reciprocidade de forças, de encantamento, empatia ou mútua compulsão, próprias de cada ação humana, move e condiciona sempre a configuração de qualquer narrativa. O estado de espirito obtido é o resultado dessa recíproca volição. Embora a vontade de sentido não signifique sempre afinidade, como observei acima. Haverá divergência sempre que houver assimetria psicossocial. Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas 57 Metodologicamente, como delimitar as forças que movem os atores e condicionam cada ato de fala? A resposta a essa pergunta não é fácil. Há na literatura variadas sugestões sobre a extensão do entorno a considerar. A maioria dos autores refere-se à identidade dos sujeitos interlocutores, ao conhecimento compartido por eles, à situação da comunicação (lugar e tempo), e suas circunstancias sociais. Citando Corseriu (1967), Vidal (2002, 30) enumera seis componentes não-linguísticos do contexto que, segundo ela, influem decisivamente: 1) contexto físico (coisas que estão à vista); 2) contexto empírico (o estado das coisas objetivas em um momento determinado); 3) contexto natural (totalidade de contextos empíricos possíveis); 4) contexto prático (a conjuntura particular objetiva e subjetiva onde ocorre a fala); 5) contexto histórico (circunstâncias históricas conhecidas pelos interlocutores); 6) contexto cultural (a tradição cultural da comunidade dos interlocutores). Segundo Vidal, só o primeiro seria um fator externo objetivamente descritível, os demais seriam componentes relacionais que geram conceitualizações subjetivas. Esses componentes são sugestivos, enumerarem possibilidades e nos advertem sobre a subjetividade da maior parte dos componentes contextuais. É preciso levar a questão mais adiante, porém. Vidal oferece uma contribuição própria ao discorrer sobre a ‘informação pragmática’, um conjunto de conhecimentos, crenças e sentimentos compartidos pelos interlocutores no momento da interlocução, que ela chama de “internalização da realidade objetiva”. Citando van Dijk (1989), Vidal diz que a informação pragmática tem um caráter geral (conhecimento de mundo), situacional (percepções recíprocas durante a interlocução) e contextual (aquilo que deriva das expressões linguísticas dos discursos imediatamente precedentes), que na sua teoria da relevância Sperber e Wilson (1986) preferem chamar de “entorno cognitivo compartido” ao se referir às representações mentais compartilhadas. Vidal sugere que o termo ‘entorno cognitivo’ parece modesto demais para dar conta de toda a informação pragmática que se comparte, porque considera que as relações sociais influem pelo simples fato de ambos interlocutores, mesmo quando assimétricos, fazerem parte de uma mesma comunidade social. Dascal (2006), por sua vez, afirma que todos os textos são opacos e necessitam do contexto para serem interpretados. A função do contexto, diz ele, é fornecer pistas para a geração de hipóteses interpretativas, cuja validade deve ser interpretada à luz da informação referencial. Em princípio, continua ele, qualquer informação contextual pode ser relevante, e neste sentido, é impossível restringir o contexto a determinado conjunto de dados. Ele sugere dois tipos gerais de contexto, um metalinguístico (gênero, normas, situação comunicativa, etc.) e outro extralinguístico (universo de referência, conhecimento de fundo, crenças compartilhadas, hábitos e idiossincrasias do falante, etc). E apresenta um ilustrativo gráfico de pistas interpretativas (Dascal, 2006/195- 9) que vão das estruturas linguísticas ao conhecimento de mundo compartilhado (cultura, ideologia). O autor sugere que o analista proceda a partir de pistas (clues) e dicas (cues). A interpretação das dicas seria um processo dedutivo, enquanto o das pistas seria indutivo. Por último, trago a alternativa apresentada por Levinson (2007/65) a respeito da relação entre a língua e o contexto. Diz ele que é através da dêixis que “as línguas gramatilizam traços do contexto da enunciação”. A partir da ideia de Levinson Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas 58 desenvolvo em seguida uma tentativa de lidar com o processo de gramaticalização dos traços do contexto nos atos de enunciação, porque ela ressalta a relevância da dêixis. Sugiro, portanto, dar uma atenção especial à deixis, e a esta sugestão me movo em seguida. Deixis ampliada: a atualização do contexto nos significados O Dicionário de Linguística de Jean Dubois (2004) define a dêixis de maneira semelhante ao Dicionário de Retórica de A. Marchese e J. Forradellas (1998). Dêixis, segundo ambos dicionários, seriam as coordenadas espaço-temporais da enunciação: o sujeito refere o seu enunciado ao momento da enunciação, aos participantes da comunicação e ao lugar em que o enunciado se produz. As referências a essa situação formariam a dêixis, um modo particular de atualização que utilizaria o gesto (dêixis gestual) ou termos da língua chamados dêiticos verbais. Apresentando uma classificação restrita da dêixis, ambos dicionários citam U. Weinreich, que propõe quatro influentes fatores da situação, organizados a partir da pessoa que fala: 1) a origem do discurso (o eu) e o interlocutor (o tu); 2) o tempo do discurso (o agora); 3) o lugar (aqui, aí); 4) identidades substitutas na situação. Para Levinson (2007/74), autor do qual tomaremos emprestado as ideias para elaborar a proposta aqui desenvolvida, a dêixis diz respeito às maneiras pelas quais a linguagem gramaticaliza traços do contexto no ato de fala. Decorre daí que a interpretação precisa levar em conta o contexto dêitico da enunciação, pois só as sentenças consideradas em contextos específicos expressariam proposições definidas: “é apenas o contexto de uso que nos diz de que maneira compreender (as sentenças)”. Em geral, a dêixis é organizada de maneira cêntrica a partir dofalante, ancorada em pontos específicos do acontecimento comunicativo, criando os centros dêiticos: a pessoa central é quase sempre o falante, o tempo central é o tempo em que o falante produz a enunciação, o lugar central é a localização do falante, assim como o centro social é a posição social e hierárquica do falante, à qual a posição dos destinatários é relativa. Irradiando-se do falante, completa Levinson, há vários círculos concêntricos que distinguem diferentes zonas de proximidades espacial e temporal. A partir dele, linearmente ordenada, parte uma linha imaginaria que estabelece os acontecimentos do passado e do futuro, etc. Apesar do autor realçar a pessoa do falante como referência de partida, a meu ver os círculos dêiticos poderiam ser melhor equacionadas se tomados em termos do relacionamento dele com o seu interlocutor, conforme sugerirei aqui. A ideia de círculos dêiticos concêntricos imaginários parece-me capaz de representar de maneira sistemática as influências do contexto sobre os atos de fala. Partindo da localização espaço-temporal do falante (em relação a seu interlocutor) de onde irradiam os dêiticos, e das informações pragmáticas, os círculos concêntricos se expandiriam desde as condicionantes situacionais mais empíricas (o aqui e agora do ato) até as mais sutis, de caráter mais subjetivo (culturais, políticas, ideológicas), situadas em ciclos mais externos. Por exemplo, de ‘dentro’ para ‘fora’: 1) Identidade dos sujeitos participantes, o lugar social que ocupam, seus interesses e intenções Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas 59 comunicativas; 2) Coações institucionais, normas profissionais, etc.; 3) Graus de hierarquias entre os sujeitos da enunciação e suas condicionantes na interlocução; 5) Espaço físico e sua influência na enunciação; 6) Percepções recíprocas por parte dos participantes dos fatores anteriores; 7) Circunstâncias históricas de ocorrência do ato; 8) Circunstâncias culturais, crenças, mitologias, ideologias, conhecimento de mundo compartido; 9) Memória coletiva de curto e longo prazos; 10) Percepções recíprocas de todo este conjunto de fatores. Não será possível aqui explorar em minúcias as sugestões e problemas que surgem da proposta apresentada. Penso, no entanto, que a imagem de círculos dêiticos mais internos para os mais externos pode fornecer pistas sugestivas para as hipóteses interpretativas, tornando a interpretação menos míope. Os fatores tomados nos círculos dêiticos concêntricos não possuem fronteiras precisas nem devem ser tomados como ‘variáveis antecedentes’ objetivas, como já se disse. Eles se superpõem, se influenciam mutuamente, e funcionam como uma cadeia de indicadores psicossociais intersubjetivos. Não obstante, ao visualizar os níveis dêiticos, o analista poderá estabelecer hipóteses consistentes a partir das quais produzir uma interpretação mais sistemática e ordenada. Os níveis dêiticos são apenas indicadores a partir dos quais as pistas e traços argumentativos da linguagem narrativa podem ser interpretados de maneira mais segura. Mas atenção, os fatores que estão no centro ou periferia (mais internos ou mais externos) não possuem per se maior ou menor força indutora que os demais. A força determinante de cada nível do contexto dependerá da situação concreta do ato comunicativo, assim como da pergunta de pesquisa de cada projeto interpretativo. Parafraseando mais uma vez P. Ricoeur, o que deve ser interpretado em um texto narrativo é a sua proposição de mundo. Não há - observa ele - uma intenção oculta a ser procurada detrás do texto, mas um mundo a ser manifestado diante dele. Por isso, a interpretação precisa ser altiva e ideologicamente crítica, pois o gesto interpretativo é uma ‘oposição’ às distorções da comunicação humana. Por outro lado, o discurso é um evento que remete aos seu interlocutores, vincula-se às pessoas que falam e ouvem, e a algo ao qual ele se refere (um mundo que pretende relatar e representar). Neste sentido, completa Ricoeur (1983,46), “o evento é a vinda à linguagem de um mundo mediante o discurso”. O que importa, pois, é a seletividade do contexto na determinação do valor das palavras e frases a respeito de determinado evento, pronunciadas por um locutor preciso frente a um ouvinte em uma situação particular. Retomo, para concluir, às perguntas que originaram as reflexões deste ensaio: como incorporar as determinantes ambientais e históricas na análise da narrativa tornando-a uma análise crítica por natureza? Tento responder de maneira objetiva: observando previamente quais motivações e propósitos movem os sujeitos interlocutores a se envolverem em um ato de interlocução. Perguntando previamente que ímpeto move um narrador a configurar certa proposição de mundo na forma de uma história em determinada circunstância? Por outro lado, porque determinado indivíduo ou segmento social se presta ao papel de audiência? Que interesses têm cada um dos participantes do ato comunicativo ao se engajar no esforço de coconstruir uma representação narrativa do mundo? Qual é o protagonismo discursivo de cada um Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas 60 deles neste ato? Que circunstâncias cercam esse protagonismo? Há antagonismos? Qual é a aparente correlação de poder entre os protagonistas? Como observei no início deste ensaio, a textura geral da experiência é hoje transmidiática: entramos e saímos seguidamente no espaço das várias mídias de onde retiramos extratos de significação com os quais configuramos as nossas representações de mundo. Nesse complexo contexto, a performance dos agentes interlocutores tornou-se mais proeminente ainda, e a incorporação desse protagonismo à análise, ainda mais relevante. Para levar em conta esta performance, trouxemos aqui a sugestão de uma teoria ampliada de círculos dêiticos que, a meu ver, fornece subsídios relevantes para a análise das narrativas como atos de fala dinâmicos e circunstancializados. Se a análise imanentista já se revelara obsoleta pelo desprezo ao protagonismo dos agentes, ela revela-se hoje ainda mais inapropriada frente ao dinamismo das narrativas em permanente processos de configuração e refiguração no interior da cultura da convergência. Seguindo a esse raciocínio, propus neste ensaio encarar a narração como um ato de fala comunicativo, e utilizar o modelo de círculos dêiticos concêntricos imaginários a fim de tornar mais sistemático o processo de identificação dos traços e vestígios do contexto no texto, modelo capaz talvez de revelar o jogo de forças de uma ação interlocutiva concreta. Nada garante uma interpretação segura, mas creio que a sugestão de se trabalhar com os ciclos concêntricos dêiticos oferece a alternativa de o analista partir de um lugar mais confortável e confiável para fazer as suas induções. As estratégias argumentativas, os subentendidos e os efeitos de sentido tornarão mais evidentes a proposição de mundo que o texto traz, e proporcionarão uma análise mais forte: a interpretação narrativa torna-se ipso facto uma crítica da sociedade. Notas 1 Aos interessados, remeto à Parte 1 do meu livro Notícias do fantástico (Motta, 2006). E particularmente à coletânea de ensaios reunidos sob o título La búsqueda del significado, de L. M. Valdés Villanueva (2000). 2 Ricoeur (1983, 56) ressalta: o que deve ser interpretado no texto é uma proposição de mundo, “um mundo tal como posso habitá-lo para nele projetar um de meus possíveis mais próprios”. O mundo do texto, próprio e único deste texto. 3 Ricoeur retoma este assunto no capítulo 3, tomo II, de Tempo e Narrativa (1995) onde reconhece a necessidade do deslocamento de atenção do enunciado para o ato de enunciação, passando para primeiro plano os jogos entre a inclusão e exclusão de conteúdos, a ideologia em últimainstância. Ao final deste capítulo, o autor explica que as noções de voz e perspectiva narrativa precisam ser incorporadas à análise da composição narrativa. Isso se faz, diz ele, vinculando-as às categorias de narrador e personagem. Ricoeur admite que a questão do ‘ponto de vista’ diz respeito à composição, mas o problema da voz narrativa é uma questão de comunicação na medida em que ela se dirige a um leitor (pág. 163). 4 Segundo J. Searle (2000), todas as enunciações caem dentro de cinco categorias básicas: elas podem ser assertivas (descrevem como as coisas são), diretivas (levam as pessoas a realizar coisas), compromissivas (comprometem as pessoas), expressivas Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas 61 (expressam sentimentos) ou declarativas (provocam mudanças no mundo) (Searle, 2000 e 2002). Essas mesmas cinco categorias são resumidas em outras obras do autor. Ver Searle (2001), pág. 133-35. É discutível se todas proposições cabem dentro de apenas cinco categorias, mas por momento elas bastam para reafirmar a narrativa como um ato de fala. 5 Autores de variadas áreas sociais desenvolveram posteriormente a teoria da ação. No que concerne à comunicação, J. B. Thompson (1998, 20/1), por exemplo, critica J. Austin e seus seguidores porque eles não conduziram suas reflexões para uma contextualização social dos atos de fala. Por isso, as considerações deles tenderiam a ser um tanto formais e abstratas, divorciadas das circunstâncias de poder nas quais os indivíduos e instituições utilizam a linguagem no dia a dia. Para Thompson, nós podemos retomar as observações de Austin somente se desenvolvermos uma teoria social substantiva da ação e dos tipos de poder em que ela se baseia. Concordo em parte com essas observações. Na proposta que apresento no presente ensaio, sigo em direção semelhante. 6 Vidal (2002) define pragmática como uma disciplina que toma em consideração os fatores extralinguísticos que determinam o uso da linguagem. Reyes (1994) a nomeia como uma disciplina linguística que estuda como os seres falantes interpretamos enunciados em contexto. Dascal (2006) diz que a pragmática é o estudo do uso dos meios linguísticos (ou outros) por meio dos quais um falante transmite as suas intenções comunicativas, e um ouvinte as reconhece. Levinson (2007) define a pragmática como o estudo das relações entre língua e contexto que são gramaticalizadas ou codificadas na estrutura da língua: o estudo apenas dos aspectos da relação entre a língua e o contexto que são relevantes para a elaboração das gramáticas. Van Dijk (2000) contribui com uma teoria cognitiva da pragmática, cuja razão fundamental é estabelecer relações entre os enunciados (a linguística) e a interação (as ciências sociais). 7 Ver Levinson (2007), especialmente págs. 42 a 56. 8 Crítica, observa Paul Ricoeur (1983, 21) citando o famoso adágio de F. Scheleiermacher, é o “propósito de lutar contra a não-compreensão: há hermenêutica onde houver não compreensão; romântico, é o intuito de compreender um autor tão bem, e mesmo melhor do que ele mesmo se compreendeu”. 9 Em sua origem, a análise crítica provém do marxismo. Diversos autores fornecem elementos estimulantes que podem, com precauções, serem transportados para um projeto de análise crítica das narrativas. Entre os marxistas, destaco duas obras do crítico literário inglês Terry Eagleton: Marxism and literary criticism (2002) e Criticism & Ideology (2006), ambos originais publicados em 1976. Entre os não- marxistas, destaco o crítico literário canadense Northrop Frye em seu The critical path (1971), e a segunda parte de Interpretação e ideologias, de Paul Ricoeur (1983), onde ele discute sua hermenêutica crítica. 10 Na teoria literária narrador e destinatário têm uma especificidade ontológica, um estatuto ficcional, primordialmente textual, diferente do autor, leitor ou audiência concretos. O narrador é o enunciador do discurso, que pode ou não corresponder a um sujeito real (Reis e Lopes, 2007/257-8). 11 Searle (2001/81) explica assim o conceito de intencionalidade: “Meus estados Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas 62 subjetivos me relacionam com o resto do mundo e o nome geral dessa relação é intencionalidade. Esses estados subjetivos incluem crenças e desejos, intenções e percepções, assim como amores e ódios, temores e esperanças. Intencionalidade, repitamos, é o termo geral para as diversas formas mediante as quais a mente pode ser dirigida à - ou referir-se à - objetos e estados de coisas no mundo”. (Livre tradução do autor). 12 Não se trata aqui de uma questão de variáveis dependentes ou independentes, como certa ciência social positivista professa. A medida exata da interferência de cada fator do contexto sobre a coconstrução compartilhada das representações sociais é uma questão cognitiva que dificilmente poderá ser delimitada com precisão, pois o reconhecimento recíproco dos parceiros do ato interlocutivo se processa através de sucessivas hipóteses-testes: em uma situação concreta o que o locutor faz é avançar uma hipótese para seu interlocutor esperando que ele interprete suas motivações. Não faltam, entretanto, inúmeras situações de mal-entendidos. No entanto, algum tipo de interferência do contexto precisa ser assumida pelo analista no momento da interpretação. Quanto mais seguro e maior domínio ele retiver do contexto, mais segura será a sua interpretação. Bibliografia de referência AUSTIN, J. H. How to do Things with Words: The William James Lectures delivered at Harvard University. Oxford: Clarendon Press, 1962 BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Martins Fontes: S. Paulo, 2003 BERLIN, Isaiah. The proper study of mankind. John Murray: London, 1997. BRUNER, Jerome. Actos de significado. Alianza Editorial: Madrid, 1998 . CORSERIU, E. Determinación y entorno, in Teoria del lenguaje y linguística general. Gredos, Madrid, 1967. DASCAL, Marcelo. Interpretação e compreensão. Ed. Unisinos, S. Leopoldo: 2006. DIJK, T. A. van. Cognição, discurso e interação. Contexto: S. Paulo, 2000. DIJK, T. A. van. In La pragmática de la comunicación literária. J. A. Mayoral, Arco, Madrid, 1987. DUBOIS, Jean e outros. Dicionário de linguística. Cultrix: S. Paulo, 2004. EAGLETON, Terry. Marxism and literary criticismo. Routledge: London, 2002. 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Se antes os jornais cuidavam da circulação de informação de interesse da aristocracia absolutista, bem como de suas demais castas adjuntas - clero e judiciário-, com os novos ares da modernidade pós-revolucionária a atividade jornalística passou de mobilizadora dos debates panfletários nas arenas políticas a um ente social com novo papel, ampliado e ressignificado em suas funções: o de dar publicidade aos debates de interesse público e o de fiscalizar os demais poderes constituídos na esfera pública. Ao lado dos agora reconfigurados poderes do executivo, legislativo e judiciário dos novos tempos, a Imprensa se assumiu como o”cão de guarda”(watchdog) da sociedade civil. Nos tempos do Iluminismo, tomados pelas normas da então recém- formulada teoria democrática tornaram-se os jornais, eles próprios, um outro poder -agora conhecido como o “quarto poder”. Nesta linha, a intenção desta reflexão é analisar a formação histórica e linguística do conceito de imprensa enquanto “quarto poder”, sob a perspectiva da formulação teórica de Koselleck, a do singular-coletivo. Representação que busca dar conta, sob uma mesma denominação, de uma pluralidade comum em meio a várias singularidades. O singular-coletivo O conceito de singular-coletivo, na definição de Koselleck (2006), aponta para uma situação em que diversas singularidades centram-se sobre um mesmo eixo semântico definidor resultando em uma única expressão, reconfigurada, a representar aquele novo coletivo. Um exemplo: das várias revoluções na História criou-se a “Revolução”, o movimento a ordenar todas as ações de ruptura com o estabelecido. Koselleck (2006) explica que “o advento da ideia do coletivo singular, manifestação que reúne em si, ao mesmo tempo, caráter histórico e linguístico, deu-se em uma circunstância temporal (...) entendida como a época da singularização das simplificações”. No caso, o período da História que o historiador Eric Hobsbawn classificou de “era das revoluções”. Época em que das várias liberdades surgiu a Liberdade; das justiças, a Justiça. E das imprensas (ou dos jornalismos), a Imprensa. Para Koselleck (2006, p. 69), como um singular-coletivo, o termo Revolução torna-se um “conceito meta-histórico”, “separando-se completamente da sua origem natural e passando a ter por objetivo ordenar historicamente as experiências de convulsão social”. Da mesma maneira, a Imprensa, como singular-coletivo, apropriou-se de valores morais e práticas sociais no sentido de sedimentar seu papel no funcionamento da incipiente sociedade da esfera 65 Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas pública burguesa, moldada sob os ideais iluministas da Revolução Francesa e das transformações técnicas e sociais da Revolução Industrial. Antes de a esfera pública moderna forjar-se sob a nova estrutura da sociedade no pós-feudalismo, a imprensa já existia como elemento mediador das relações entre o poder e o público. A relação, no entanto, trazia os jornais como um domínio do poder público, sujeitos à censura e voltada à divulgação dos proclamas e editais do governante feudal. A intenção e a função da imprensa eram tornar público (no sentido de dar ciência e/ou publicidade) para a população as determinações e decisões dos governos aristocráticos. Com o crescimento das cidades, o incremento do comércio e da circulação de mercadorias na urbe, a imprensa passa então a ocupar um novo lugar: de esfera de domínio do poder público para o de uma esfera pública crítica, independente - ou ao menos pretensamente desamarrada do poder político do Estado - a fornecer informações para as trocas e garantias mercantis promovidas entre atores comerciais muitas vezes distantes entre si, bem como a denunciar desvios nas tratativas econômicas. Segundo Habermas (2014, p. 115), “esse capitalismo estabiliza as relações de dominação estamentais e (...) libera aqueles elementos nos quais aquelas relações antigas vão se dissolver”. Segue o filósofo alemão: “Referimo-nos aos elementos de um novo contexto de relações: a circulação de mercadorias e notícias criada pelo comércio a longa distância do capitalismo inicial” (HABERMAS, 2014, p.115). Não à toa que o desenvolvimento das atividades mercantis tem relação direta com o crescimento da imprensa. Não é sem razão que o deus romano Mercúrio, assim como seu equivalente grego Hermes, é o deus ao mesmo tempo do comércio e das comunicações e imprensa. Habermas (2014, p. 21) ressalta que a esfera pública burguesa foi “formada por um público de pessoas privadas que se reuniam pra debater entre si e mediante razões um amplo leque de questões da vida privada, da administração pública e da regulação das atividades da sociedade civil”. Mas uma nova classe burguesa que não pretendia a conquista do poder estatal em si, e sim a legitimação social para “sua origem e seu exercício; o consentimento racional entre pessoas autônomas, livres e iguais” (HABERMAS, 2014, p. 21). A esfera pública na modernidade, portanto, funciona como um princípio organizador da ordem pública. Uma outra ordem pública pela qual as cidades, grandes centros de comércio, tornam permanentes a circulação de mercadorias e letras de câmbio, dependente de uma burocracia e normas de funcionamento que precisam ser publicizadas aos cidadãos. Enquanto pela ordem anterior os jornais comunicavam determinações do poder senhorial ou aristocrático, agora as publicações vão dar “publicidade” para decisões governamentais tanto para informar quanto para dar instrumentos aos cidadãos seja para acompanhamento da gestão da coisa pública ou para as críticas aos seus governantes. A imprensa, originária da mesma cepa que o sistema de correios, institucionalizou comunicações e contatos duradouros. A anterior mediatização das autoridades estamentais, promovida a partir da figura central do senhor feudal, abre espaço para uma outra esfera pública, a do poder público. “Esta se objetiva na administração pública contínua e no exército permanente. À permanência dos contratos na circulação 66 Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas de mercadorias e na circulação de notícias (bolsas de valores, imprensa) corresponde agora uma atividade estatal continuada”(HABERMAS, 2014, p.121). Na nova estrutura da sociedade moderna, a burguesia, que não é detentora do poder formalmente instituído (este nas mãos dos três poderes consagrados nas revoluções e reformas democráticas de então: executivo, legislativo e judiciário), mas deprotagonismo na centralidade da vida economia, necessita de meios de controle vindos da sociedade civil para a garantia de suas atividades, sem interferências de outros agentes sociais que possam prejudicar ou mesmo aniquilar a natureza de seus negócios. Os meios de controle partem, então, dos jornais. Não mais como divulgadores oficiais do poder institucionalizado, mas como mediadores de um espaço de debates, críticas e fiscalização. “Com o tempo, o jornalismo deixa de ser um instrumento dos políticos e ganha uma força autônoma” (MARCONDES, 2009, p. 269). A esfera pública crítica Esta nova esfera pública crítica vai abastecer a população de informações por meio da imprensa, que por sua vez vai propiciar a formação da “opinião pública” - algo como a expressão da consciência da sociedade civil. “O sujeito dessa esfera pública é o público como portador da opinião pública” (HABERMAS, 2014, p.94). De modo que a sociedade civil fosse um contraponto aos poderes formais institucionalizados. Explica Habermas que “o público pôde assumir muito melhor esse desafio mudando o funcionamento daquele instrumento do qual a administração pública se serviu para tornar a sociedade um assunto público no sentido específico: a imprensa”(2014, p. 132). Ela é o instrumento a habilitar a população, ou o público, a submeter a seu jugo os governantes. Como aponta Gomes (2014, p. 223), “a esfera pública burguesa é descrita como um âmbito normativo livre do domínio das instâncias estabelecidas e isento do poder do Estado”. Esse novo “lugar” do jornalismo moderno veio sendo configurado num devir que, historicamente, iniciava-se com as gazetas venezianas, ainda no século XV. Foram sucedidas, posteriormente, pelas chamadas folhas volantes. Acredita-se que imprensa periódica, com regularidade de impressão, surgiu na França, em 1604, com a La Gazette Français, e na Antuérpia, na Bélgica, no início do século XVII, com a folha As últimas notícias (NieuweTydinghen), em 1605. Em 1616 havia um total de 25 folhas volantes na Europa, surgindo também publicações em Londres (1622), Florença (1636), Roma (1640) e Madri (1661). Tratam-se de impressos que retratavam tanto o tempo da monarquia absolutista do trono francês, com uma imprensa sob rígida censura, quanto os ares da Inglaterra parlamentarista e que, posteriormente, atingiriam as colônias na América. As “gazetas” da época já tinham elementos comuns aos jornais de hoje, como textos simplificados e diretos, data e local de impressão, periodicidades mais ou menos regulares, menção às fontes de informação, titulação, nome do editor e narrativa cronológica. As notícias versavam sobre assuntos variados, geralmente acontecidos nas vésperas da edição, e tinha até mesmo anúncios pagos. Porém, eram publicações sujeitas à censura prévia, embora houvesse também as clandestinas em circulação. O 67 reinado do francês Luís XIV, por exemplo, valeu-se em demasia das gazetas nas ações de comunicação e, como diz Burke (1994), do seu pioneiro projeto de marketing político. Conforme Souza (2008, p. 80), “o aparecimento das gazetas permite afirmar que o jornalismo noticioso é uma invenção europeia dos séculos XVI e XVII, com raízes remotas na antiguidade clássica e antecedentes imediatos na Idade Média e no Renascimento”. A revolução industrial, em seus dois momentos - o da máquina a carvão e o da eletricidade -, resultaram nos processos de urbanização e de letramento (alfabetização em massa) da população, os quais, de um modo ou outro, forneceram condições de crescimento dos impressos nas cidades. Uma presença só possível graças aos avanços técnicos da nova era das máquinas, tanto que nas suas primeiras edições o Daily Mail, de Londres, publicava no alto de sua primeira página: “invenções novas e maravilhosas acabaram de aparecer para ajudar a imprensa. Nosso tipo é feito por máquinas que podem produzir, cortar e dobrar 200 mil jornais por hora” (BRIGGS e BURKE, 2006, p.192-198). Essa situação de crescimento viria a ser consolidada tempos depois com a chamada pennypress, fenômeno jornalístico nascido nos Estados Unidos, que daria origem ao denominado jornalismo sensacionalista como o conhecemos hoje. Muito embora os jornais tivessem ainda em fases incipientes as características das publicações modernas, de certa maneira, pode-se considerar que a pennypress representou a assunção definitiva do jornal como produto mercantil, com as notícias sendo insumos a serem comercializados, dando a matriz econômica do que seria o polo comercial da imprensa: jornais com grandes tiragens, com exemplares vendidos a preços baixos, tendo a notícia tanto o caráter de prestação de serviços e informações quanto o diversional. Ou seja, com reportagens moldadas para a diversão e distração do leitor. E ainda contando com anúncios publicitários, na combinação de que as receitas obtidas na venda de exemplares e publicação de propagandas seriam os sustentáculos econômicos a dar independência aos veículos perante os demais poderes institucionalizados. Independência e liberdade Independência - tanto econômica quanto editorial - e liberdade seriam as palavras- chave da imprensa moderna como singular-coletivo. Agora, então sob designação de um coletivo e não mais como a de um apanhado de jornais de vozes diversas, a Imprensa passa a ocupar uma “função” determinada na nova esfera pública só possível nesta nova configuração social daqueles tempos pós-revolução. Na definição de Bourdieu (1997), a imprensa estruturou-se num “campo” da esfera pública, que “com seus dois polos, o econômico e o intelectual, constituiu- se nas sociedades democráticas numa fundação onde o jornalismo partilha como herança toda história contra a censura e em prol da liberdade” (TRAQUINA, 2005, p.42). O próprio conceito de campo em Bourdieu também remete à modernidade e seu tempo histórico, quando emergiram vários “campos”, enquanto espaços sociais relativamente autônomos, dotados de regras próprias de funcionamento e critérios internos de legitimação, onde se configuram relações de concorrência, disputa e Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas 68 cooperação entre os agentes, em torno de formas de poder específicas (BOURDIEU; 1997, 2004). Como lembra Traquina (2008, p. 20), “o ‘campo jornalístico’ começou a ganhar forma nas sociedades ocidentais durante o séc. XIX, com o desenvolvimento do capitalismo. E com outros processos: industrialização, urbanização, educação em massa, progresso tecnológico e a emergência da imprensa como ‘mass media’”. Um campo, inserido numa nova esfera pública, ao qual cabem os papeis de fiscalizador e de mediador entre os entes sociais no espaço público, cuja atividade é atrelada a determinadas responsabilidades, como a de “zelar” pelo equilíbrio de forças entre as demais instâncias de poder. Agora substituindo as estruturas vindas do período pré-revolucionário pelos novos ares políticos inspirados pelos movimentos democráticos franceses, ingleses e estadunidenses. Tempos a moldar uma nova ordem, em sintonia com o pensamento liberal daqueles tempos. Os iluministas não se contentaram apenas com concepções teóricas sobre o lugar do ser humano na sociedade. Eles lutaram por aquilo que chamaram de ‘direitos naturais’ dos cidadãos. Tratava-se de uma luta que envolvia combate à censura, ou seja, defendia-se a liberdade de expressão. No que diz respeito à religião, à moral e à política, o indivíduo precisava ter assegurado o seu direito à liberdade de pensamento e de expressão de seus pontos de vista. (PAULINO, 2008, p.43). A “herança” de crítica à censura e pela liberdade, inspirada por pensadores como Milton, Voltaire e Rousseau, encontra eco nesse novo campo do jornalismo moderno, instruído pela teoria democrática. É fruto neste pensamento da época o clássico panfleto de John Milton,“Aeropagítica”, de 1644, considerado o primeiro libelo contra a censura e pela liberdade de imprensa, assim como a proclamação da Bill of Rights (declaração de direitos), de 1689, do Parlamento inglês. Pelo documento, reconhecia- se as liberdades formais dos cidadãos, entre elas, a liberdade de expressão. Mainenti (2014, p. 48) lembra que a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, aprovada na França, em 1789, trazia em seu artigo 11: “A livre circulação de pensamento e opinião é um dos direitos mais preciosos do homem. Todos podem portanto falar, escrever e publicar, livremente, exceto quando forem responsáveis pelo abuso dessa liberdade em casos bem determinados por lei”.Essa posição, posteriormente, seria complementada pela teoria libertária da imprensa, de Thomas Jefferson, John Stuart Mill e do próprio John Milton, segundo a qual: A imprensa e os outros meios de comunicação devem ser de propriedade privada e desligados (...) do governo para que possam buscar a verdade cada um à sua maneira e colocar o governo em xeque. A imprensa pode ser irresponsável tanto quanto responsável, imprimir a imagem de falsidade tanto quanto a da verdade, porque os cidadãos podem separar uma da outra. O importante na teoria libertária é a tese de que deve haver um mercado livre de ideias, porque se todas vozes puderem ser escutadas, a verdade, certamente, acabará por emergir. (GOODWIN, 1993, p.45 apud PAULINO, 2008, p.50). Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas 69 A opinião pública Segundo a teoria democrática, o jornalismo teria então dois papeis: um deles, como visto, é o de promover os debates na arena pública. Seria esse o polo positivo da imprensa. O segundo, o polo negativo, abarcaria as questões nas quais o jornalismo torna-se o “guardião do poder”, aquele cujas “relações se assentam numa postura de desconfiança e claramente adversarial ao poder político”, o watchdog da sociedade, seguindo ditames do princípio da responsabilidade social da imprensa. Desta forma, a imprensa moldou o ethos da atividade num tripé cujas pontas são o jornalismo em si, o poder e a opinião pública. Traquina lembra Montesquieu, para quem a centralidade da divisão de poder é fundamental no novo desenho das estruturas sociais. Diz o filósofo francês: “Se não quiser abusar do poder, as coisas devem ser dispostas de modo a que o poder controle o poder” (MONTESQUIEU apud TRAQUINA, 2005, p. 44). A postura adversarial da imprensa, conforme pregada pela Teoria Libertária, aparece na primeira emenda (1791) da Constituição dos Estados Unidos da América. Nesta posição de adversária ou de contraposição ao poder, os jornais têm o atributo fiscalizador do poder governamental para que o Estado preserve sua função original. Esse mote fiscalizador e o de promotor de ideias e debates no interior da sociedade acaba assim legitimado pelo “lugar” social da imprensa, o porta-voz da opinião pública. O controle do poder por meio de uma opinião pública cujos sentidos são formados pela imprensa livre. Sarto (2016, p. 95) aponta que a opinião pública, “desde um ponto de vista ideal e normativo, pode ser entendida como resultado (sempre provisório) do processo de comunicação pública, que expressa um acordo coletivo ou uma vontade geral”. Mas ressalta que o acordo coletivo tem legitimidade apenas “na medida em que se constitui por meio de um debate livre e inconcluso” (SARTO, 2016, p. 95). A corrente deliberativa, uma entre várias, da teoria democrática apregoa a questão da racionalidade nos debates da esfera pública. O confronto de opiniões e argumentos permitiriam chegar-se num acordo coletivo, a opinião pública. Por isso, uma imprensa livre de amarras e a democracia assentada na vontade de maioria, expressa por essa opinião pública. Para pensadores clássicos como Jeremy Bentham, “a opinião pública era uma parte integrante da teoria democrática do Estado. A opinião pública era importante como instrumento de controle social” (BENTHAM apud TRAQUINA, 2005, p.47). Assim como Mills, que em 1831, escrevia que “...a imprensa é nosso único instrumento, tem nesse momento a efetuar a mais delicada e exaltante função que algum poder teve até agora que desempenhar neste país” (MILLS apud TRAQUINA, 2005, p.49). Opinião pública a representar o interesse público, o qual, conforme Mainenti (2016, p. 83), trata-se de “um princípio normativo do jornalismo e um dos mais importantes critérios de noticiabilidade que orientam a produção informativa”. Pois, dando publicidades aos acontecimentos públicos, torna-os relevantes e visíveis. Daí sujeitos a juízo dos cidadãos. Ou melhor, do “público”, grupo de indivíduos com um interesse comum. Neste novo contexto, uma produção informativa que Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas 70 “rompe a esfera dos laços de intimidade da vida privada e se torna passível de circular socialmente com base num ‘uso público’ desse conteúdo pela sociedade” (Franciscato, 2005, apud SARTOR, p.84). O “quarto poder” A imprensa, então legitimada em seu papel de agente fiscalizador dos arbítrios e discricionaridades dos demais poderes constituídos, ocupa seu lugar como um “quarto poder”. A expressão foi cunhada pelo deputado do Parlamento inglês, lorde MacCaulay (1800-1859), que num discurso em 1828 apontou para o local onde os jornalistas acompanhavam as sessões, referindo-se aos repórteres como o “quarto poder”, isso considerando-se as estruturas de poder à época da Revolução Francesa: clero, nobreza e o troisième état (burguesia e povo). E complementa Traquina (2005, p. 46) “no novo enquadramento da democracia, com o princípio de ‘poder controla poder’ (power ckecks power), a imprensa (os media) seria um ‘quarto’ poder em relação aos outros três: o poder executivo, o legislativo e o judicial”. Em síntese, tem-se que “a imprensa tal como praticada contemporaneamente nas modernas democracias, surge e se desenvolve a partir da vontade de emancipação da sociedade civil em relação aos Estados absolutistas predominantes na realidade europeia no período pré-iluminista” (PAULINO, 2008. p.50). Situação que lhe concedeu a aura “institucional” legitimada de agente social a zelar pelo funcionamento da sociedade nos novos parâmetros sociopolíticos daqueles tempos. Para executar com propriedade sua performance na esfera pública como “quarto poder” e ter “autoridade” no cumprimento de suas atividades publicitárias e, de certo modo, polemicistas, a Imprensa abriga-se então sob a capa do singular-coletivo. Se antes os jornais dedicavam-se ao fomento dos debates políticos e a notícias de variedades ou pitorescas, sendo uma miríade dispersa de vozes na sociedade e sem uma unidade a uni-los, tal quadro é substancialmente alterado por essa nova conformação da sociedade moderno-burguesa. Para ter sentido, e principalmente legitimidade, o novo papel publicista e fiscalista dos jornais necessita de uma unidade semântica, justamente aquela fornecida por um singular-coletivo, a “Imprensa” ou o “quarto poder”. Desta maneira, a diversidade jornalística entre as publicações impressas ganha uma unidade abrigada numa metonímia que junta as partes num mesmo todo, conforme a figura de linguagem da sinédoque. Se, conforme Koselleck, das revoluções fez a “Revolução” (o movimento a ordenar as rupturas...) das várias edições das “imprensas” surge a Imprensa. Como aponta Marcondes (2009, p. 242): “A imprensa ganhará coloração: será amarela, marrom; ou condição: será imprensa de qualidade, imprensa popular, imprensa alternativa. O livro, o panfleto, depois os jornais e revistas, tudo o que é impresso corresponderá, num sentido mais amplo, à imprensa”. Assim, as vozes dispersas dos jornais ganham consonância numa metalinguística de discurso único graças à função institucional a ela deliberada pelanova sociedade civil, formada na também nova esfera pública da modernidade. Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas 71 Considerações finais Apesar de a Imprensa ao longo da História, como pretendemos demonstrar aqui,ter- se consolidado como um singular-coletivo e ser (re)conhecido como o “quarto poder”, há várias críticas que podem ser feitas ao seu papel de mediador da esfera pública na contemporaneidade. Conforme alguns autores (HABERMAS, 2003;GOMES, 2009; MORETZSOHN, 2008; LIMA, 2006), com a transformação da imprensa num meio de comunicação de massa, principalmente a partir do início do séc. XX, tornando-se um empreendimento capitalista voltado ao lucro, como todos os são, os jornais ficaram suscetíveis aos seus próprios interesses enquanto negócio. Neste aspecto, muitas de suas posições, sob aparência de representarem a «opinião pública», guardam intenções que são, na verdade, as suas próprias ou de agentes sociais específicos. O jornalismo assumiu «o modelo da imprensa empresarial, não mais entendida como um conjunto de serviços sociais destinados a suprir a arena da opinião civil, mas como um sistema industrial de serviços voltados para prover o mercado de informações segundo o interesse das audiências» (GOMES, 2009, p.75). Para Habermas (2003), a redação do jornal tem «correlação» com a venda de anúncios, de forma que, ao invés de atentar para o interesse público coletivo volta-se para atender determinados grupos do público enquanto pessoas privadas, o que abre espaço para a defesa de interesses privados na esfera pública. Segundo Moretzsohn (2008, p.13), «nada é inocente, a começar pela conceituação de ‹quarto poder›, que subverte o sentido de mediação jornalística e a apresenta como uma espécie de fiel da balança, escondendo os interesses na seleção e hierarquização da informação». E, por fim, tem-se que o interesse público foi incorporado pela imprensa, nesse escopo do singular-coletivo, em seu discurso identitário, servindo como autolegitimador de sua ação na sociedade. Mas que não dispensa divergências ou críticas em sua práxis dos tempos atuais. Como sentencia Lima: «O conceito de jornalismo como ‹quarto poder› livre, desvinculado de interesses econômicos e porta- voz da opinião pública está totalmente superado pela realidade histórica. O ‹quarto poder› se transformou em uma grande ilusão» (2007, p.1). Notas bibliográficas No fim do século XVII, surge o termo inglês publicity, derivado do francês publicité. Na Alemanha, a palavra aparece no século XVIII. A própria crítica se apresenta na forma de öffenctlichenMeinung (opinião pública), termo que se formou a partir de opinioi publique na segunda metade do século XVIII. Quase simultaneamente surge na Inglaterra publicopinion; contudo muito tempo antes já se falava de general opinion (HABERMAS, 2014, p.134). Bibliografia BOURDIEU, Pierre. Sobre a Televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. ______. O Poder Simbólico. 7 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004. Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas 72 BRIGGS, A.; BURKE, Peter. Uma história social da mídia: de Gutemberg à internet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006. BURKE, Peter. A fabricação do rei:A construção da imagem pública de Luís XIV. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. GOMES, Wilson. Dicionário de comunicação. São Paulo: Contexto, 2014. HABERMAS, Jurgen. Mudança estrutural da esfera pública: investigações sobre uma categoria da sociedade burguesa. São Paulo: Unesp, 2014. KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: Contribuição à semântica dos temas históricos. Rio de Janeiro: Editora Contraponto, Ed. PUC-Rio, 2006. LIMA. Venício A. de. Mídia: crise política e poder no Brasil. São Paulo: Perseu Abramo, 2006. ______. A ilusão do quarto poder. Teoria e Debate. 1 nov 2007 disponível em http:// www.teoriaedebate.org.br/index.php?q=edicoes/5950 acesso em 18.06.2017 MAINENTI, Geraldo Márcio Peres. O jornalismo como quarto poder: a liberdade de imprensa e a proteção aos direitos da personalidade.Alceu, Rio de Janeiro, v. 14, n. 28, p. 47- 61, jan./jun. 2014. MARCONDES FILHO. Ciro. Comunicação e jornalismo: A saga dos cães perdidos. São Paulo: Hacker Editores, 2002. ______. Dicionário de comunicação. São Paulo: Paulus, 2009. MORETZSOHN, Sylvia. Entretenimento: valor-notícia fundamental. Estudos em Jornalismo e mídia, Florianópolis, v.5, n.1, p.13-23,jan/jun. 2008. PAULINO, Fernando O. Responsabilidade social da mídia: Análise conceitual e perspectivas de aplicação no Brasil, Portugal e Espanha. Brasília: UnB, 2008. SARTO, Basilio Alberto. A noção de interesse público no jornalismo. 2016. Tese de jornalismo (Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Informação) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2016. 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Cabe destacar que não se trata de uma reflexão sobre a influência do tempo nas rotinas produtivas das redações, embora reconheçamos que o tempo de produção também é um elemento determinante das narrativas jornalísticas. Entendemos que há um tempo de produção diferente para cada dispositivo nas diferentes plataformas onde essas narrativas estão disponíveis (TV, Impressos, Web, Rádio, etc.). Mas não é sobre formato ou suporte que trata nossa reflexão. Inquieta-nos pensar o tempo como um fio condutor dos acontecimentos que nos afetam na esfera da experiência diária e, mais ainda, instiga-nos a refletir sobre a forma como o jornalismo tece temporalidades em suas narrativas, com tessituras que demarcam presente, entrecruzam passado e norteiam o futuro ao tratar de determinados acontecimentos. O jornalismo e suas práticas estão comumente associados às temporalidades, visto que o tempo presente, território próprio da área, não se configura sem as marcas do passado e sem as fendas abertas para o campo dos possíveis ou das expectativas do futuro. Vítima de certo preconceito por parte de outros campos do conhecimento, visto que, muitas vezes, assumiu o discurso do “presentismo” de maneira absoluta, o jornalismo (ou “os jornalismos” dada as novas configurações do campo) configura- se como o espaço da intersecção entre as várias épocas, assumindo um lugar proeminente para se refletir e conhecer as histórias de determinadas comunidades, pessoas, fenômenos e lugares do mundo contemporâneo. A noção sobejamente disseminada de que o jornalismo seria o lugar do efêmero e do superficial perde lugar para narrativas jornalísticas que extrapolam o lugar institucional das redações dos veículos tradicionais como jornais, revistas, emissoras televisivas ou radiofônicas ou ainda os sites noticiosos. Com o advento de novos formatos e suportes - como documentários, podcasts e livros -, além de novas formas de organização da atividade jornalística - como os financiamentos coletivos -, ampliam-se as possibilidades de tratamento dos fatos, fenômenos e acontecimentos que traduzem o leitmotiv do campo. A potência trazida por este novo cenário convoca a reflexão sobrea temporalidade, afinal se o tempo não existe de maneira absoluta, há que se pensar sobre as relações que podem ser estabelecidas entre o presente, o passado e o futuro no campo humano, território por excelência do jornalismo. É preciso, portanto, problematizar o 74 Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas modo da operacionalização dessas relações, compreendendo o papel do jornalismo na percepção dos sujeitos e acontecimentos no tempo social. Nessa perspectiva, compreendendo que o jornalismo, de maneira direta ou indireta, participa ativamente desse circuito temporal, esse capítulo pretende trabalhar as narrativas jornalísticas e as temporalidades a partir de uma perspectiva plural da atualidade sem ater-se a um acontecimento ou visada temática específica. Pretende-se, sobretudo, refletir sobre as instâncias acionadas pelo passado, presente e futuro nas narrativas contemporâneas. O Acontecimento e o Tempo Social: eis que surgem as narrativas jornalísticas O processo de mediação dos acontecimentos, seja pela televisão, rádio, jornais e revistas impressos, webjornais e redes sociais, perpassa diretamente as narrativas jornalísticas. No entanto, neste cenário contemporâneo, marcado pelo efêmero e pela circulação cada vez mais veloz das informações, torna-se fundamental uma breve reflexão sobre a noção de acontecimento e sua relação com o conceito de tempo social. A discussão sobre acontecimento não pode estar descolada da discussão sobre tempo social, visto que as duas dimensões estão intimamente relacionadas, em especial quando se trata da discussão sobre o campo comunicacional. Nessa perspectiva, vários autores que trataram dessa relação poderiam ser arrolados nesse capítulo, como Norbert Elias, responsável pelo emblemático estudo “Sobre o Tempo”. Nesse ensaio, o autor questiona certas clivagens teóricas que buscam dissociar a “natureza” e a “realidade humana”, já que para ele o “estudo do ‘tempo’ é o de uma realidade humana inserida na natureza” (ELIAS, 1998, p. 79). Tendo como mote essa perspectiva relacional, passamos, agora para a contribuição de Reinhart Koselleck (2006), em seu estudo intitulado “Passado-futuro”, em que ele trata dos tensionamentos entre as categorias “espaço de experiência” (passado) e “horizonte de expectativa” (futuro). As duas expressões tratam de categorias formais do conhecimento capazes de fundamentar a possibilidade de uma história, não as histórias mesmas. Com isso, compreendemos que todas as histórias foram constituídas pelas experiências vividas e pelas expectativas das pessoas que atuam ou que são afetadas por elas. Em termos semânticos, o par de conceitos “experiência” e “expectativa” estão estreitamente relacionados entre si, embora não constituam imagens recíprocas. Eles não propõem uma alternativa, não se pode ter um sem o outro: “não há expectativa sem experiência, não há experiência sem expectativa” (KOSELLECK, 2006, p. 307). Além disso, as duas categorias são constitutivas da história e de seu conhecimento, produzindo uma relação interna entre passado e futuro, hoje e amanhã. Em suma, são categorias adequadas para compreender o tempo histórico, pois enriquecidas em seu contexto, elas dirigem as ações concretas no movimento social e político e remetem à temporalidade dos seres humanos (KOSELLECK, 2006). 75 Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas A relação entre experiência e expectativa não acontece de maneira uniforme, já que estamos tratando de relações humanas que evocam diferenças em seu espaço social. Koselleck (2006) menciona o Renascimento e a Reforma como exemplos de tensões que perpassaram todas as camadas sociais desses períodos históricos. Afinal os modos de percepção do tempo e das expectativas do futuro não acontecem de maneira linear e equânime como nos alerta o autor: “Essa constatação, de uma transição quase perfeita das experiências passadas para as expectativas vindouras, não pode ser aplicada de igual maneira a todas as camadas sociais” (KOSELLECK, 2006, p. 315). Tendo como mote essas diferenças de percepção sobre passado e futuro e que é no campo da esfera social que as experiências acontecem, podemos refletir sobre a relação entre tempo social e acontecimento, visto que é possível identificar no exterior do jornalismo ou em seu âmbito disciplinar, diferentes perspectivas teórico- metodológicas que evidenciam os estudos do acontecimento. Neste sentido, Zamin e Marocco (2010) revisam as teorias inscritas nas perspectivas exógenas e endógenas, numa tentativa de aproximar-se das possibilidades de formulação do objeto, das ferramentas conceituais e dos aportes metodológicos do que elas determinam como “estudos de acontecimento jornalístico”. O pensamento exógeno dedica-se à teoria abstrata que busca a comprovação empírica nos meios jornalísticos ou ao trabalho de campo, na antropologia ou na sociologia, contrapondo-se ao modo jornalístico de objetivação do real. As teorias exógenas reúnem um conjunto de autores que apontam modos para o estudo de acontecimentos, a partir da sociologia (sociologia do acontecimento, segundo Edgar Morin), da antropologia (etnografia do acontecimento, segundo Marc Augé) e da pedagogia (pedagogia do acontecimento, segundo Daniel Dayan). O pensamento e as teorias endógenas, por sua vez, reúnem autores que reconhecem os processos de produção e as práticas jornalísticas que configuram a construção jornalística dos acontecimentos e dos indivíduos. Entre eles: Verón (1995), que se dedica à reflexão sobre a construção do acontecimento a partir de três etapas - análise dos despachos das agências de notícias, acompanhamento do comportamento de cada veículo a partir do material informativo e análise dos efeitos de reconhecimento; e, Fausto Neto (1991), que realiza um exercício metodológico, no âmbito do discurso, apoiando-se em elementos da teoria da enunciação. A partir desta revisão teórica, Zamin e Marocco (2010) sugerem a existência de uma terceira vertente de estudos que ocupa o espaço do “entre”, nem exógena nem totalmente endógena. Trata-se de uma região de confluência entre filosofia e jornalismo, na qual a primeira fornece base para uma análise do presente e, o segundo, que se constitui no tempo da atualidade, produz e faz circular um conjunto de informações sobre acontecimentos de todos os tipos. O jornalismo, ao dizer do acontecimento e de seus conjuntos singulares de elementos, por meio de aproximações de dizeres de outros campos e de outras temporalidades e em meio a regimes diferentes de poder-saber, o transpõe à notícia. Isso porque o acontecimento não significa em si, ele 76 Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas acontece quando inserido em um discurso, em uma instância, como a jornalística. (ZAMIN e MAROCCO, 2010, p.118, grifo das autoras). Para Benetti (2010), a orientação do olhar sobre o que seja “acontecimento jornalístico” consiste em um movimento circular que começa nos interesses da fala institucionalizada do poder e retorna a esses mesmos interesses, sempre mediado pelos procedimentos técnicos que legitimam a prática discursiva do jornalismo. Porém, o entendimento dessa dinâmica de constituição do acontecimento jornalístico nem sempre é partilhado pelo leitor comum, que pode não perceber as marcas discursivas que configuram as lutas de poder e o direcionamento editorial diluídos ou explícitos na narrativa jornalística. Berger e Tavares (2010) apontam a existência de dois tipos de acontecimentos. O primeiro seria o acontecimento na instância da experiência cotidiana, que é pensado pela História, a Filosofia e as Ciências Humanas, como objeto de estudo que tangencia reflexões sobre as relações com o tempo, objetivo e/ou (inter)subjetivo. Para os autores, o acontecimentoem si consiste em uma ação que rompe com a normalidade, com a ordem das coisas em nosso quadro de vida, num dado contexto temporal, e que só existe quando há sujeitos que são afetados e que lhe dão sentidos. A partir desse movimento, inicia-se o processo da busca pelo sentido e pela explicação ao inesperado, ao novo que fará parte do cotidiano ou da história. O segundo tipo é acontecimento jornalístico, localizado nas reflexões dos estudos de jornalismo ou em textos em que o acontecimento midiático ilustra a natureza da sociedade contemporânea. É no texto jornalístico que se constroem os múltiplos sentidos dos acontecimentos cotidianos. É nessa instância que o acontecimento se projeta para além da experiência individual e passa a ser pensado em termos de alcance coletivo. Há, desse modo, certa impossibilidade de separar os dois acontecimentos e as abordagens das diferentes disciplinas, pois é do acontecimento vivido que se abastece o acontecimento jornalístico e este intervém na percepção daquele. Em outras palavras, o acontecimento na esfera do jornalismo, “diz respeito à construção do acontecimento em forma de notícia ou das linguagens jornalísticas que constroem o acontecimento” (BERGER e TAVARES, 2010, p.122). No entanto, segundo Patrick Charaudeau (2006), a questão do acontecimento é frequentemente mal colocada no domínio das mídias, apresentando diversas definições equivocadas. Pode ser definido como fenômeno que se produz no mundo que está fora da ordem habitual. Ou ainda, confunde-se com novidade ou se diferencia dela sem que se defina os pontos divergentes. E, por fim, defende-se também a ideia de que o acontecimento é um dado da natureza e que pode ser provocado. Ao observar as lógicas de configuração do acontecimento na mídia, Charaudeau (2006) pontua que o acontecimento se encontra no que ele denomina como “mundo a comentar”, instância de uma fenomenalidade que se impõe a um sujeito de enunciação, em estado bruto, antes de sua captura perceptiva e interpretativa. A significação do acontecimento, ou seja, seu direcionamento à instância da recepção, depende do olhar que se estende sobre ele, do olhar de um sujeito que o torna 77 Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas inteligível. E esse processo de “percepção-captura-sistematização-estruturação”, que concede aos fenômenos existência significante, se dá por meio da linguagem. “O acontecimento nasce, vive e morre numa dialética permanente da ordem e da desordem, dialética que pode estar na natureza, mas cuja percepção e significância dependem de um sujeito que interpreta o mundo” (CHARAUDEAU, 2006, p. 99). Ainda segundo o autor, para que se possa compreender o processo evenemencial ou processo de construção do acontecimento são necessárias três condições: 1) que se produza uma modificação no estado do mundo fenomenal (é preciso que aconteça alguma coisa que cause uma ruptura na ordem estabelecida e provoque um desequilíbrio nos sistemas que fundam essa ordem); 2) que haja a percepção dessas modificações por sujeitos (é preciso que alguém perceba o que provoca o efeito de “saliência”, isto é, uma operação perceptivo- cognitiva que faz com que seja o sujeito que impõe seu olhar ao mundo); 3) a inscrição dessa percepção numa rede coerente de significações sociais (essa modificação do mundo deve ser digna de interesse, deve ser notável para o sujeito como ser social e, ainda, inscrever-se numa problematização ou cadeia de causalidades que lhe conferirá uma razão de ser). Em suma, para que o acontecimento exista é necessário nomeá-lo, pois o acontecimento não significa em si, ele só significa enquanto acontecimento em um discurso. E o acontecimento só se torna “notícia” a partir do momento em que é levado ao conhecimento de alguém. “O acontecimento é convertido em notícia através de um processo narrativo que o insere numa interrogação sobre a origem e o devir, conferindo- lhe uma aparência (ilusória) de espessura temporal” (CHARAUDEAU, 2006, p. 135). Articulando essa perspectiva ao processo temporal e o papel de mediação das narrativas jornalísticas, tem-se que a circulação dos acontecimentos está conectada às possibilidades dos processos históricos, pois como argumenta França (2012, p. 46), “a criação de fatos apenas se traduz em acontecimento se eles conseguem inscrever no horizonte de sentidos possibilidades que não estavam dadas anteriormente”. Assim, ao pensar os acontecimentos e o registro de sua materialidade existencial nas narrativas jornalísticas, temos a oportunidade de refletir sobre a teia de temporalidades tecida a partir da natureza dos fatos, seja por registro ou reforço de “presentismos”, por necessidade de rememoração do passado ou porque vislumbra no futuro um horizonte de mudanças. Marcas do tempo nas narrativas jornalísticas Deuze e Witschge (2016, p. 8) definem “o jornalismo contemporâneo como um conjunto bastante complexo e desenvolvido de atitudes e práticas de (grupos ou equipes de) indivíduos envolvendo tanto jornalistas profissionais quanto profissionais de áreas afins, como programadores, designers e profissionais de marketing”. Essa definição nos diz sobre um campo profissional instável e permeado por inúmeras contradições. Outro pesquisador que nos ajuda a compreender de maneira adequada as mudanças ocorridas na cultura e na prática da profissão é o sociólogo Neveau (2010). 78 Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas Para ele, três mudanças foram responsáveis pela atual condição do campo: o poder de pressão e produção de notícias já “prontas” para os jornalistas, a transformação das empresas familiares de comunicação em megacorporações com enorme poder de rentabilidade e a aceleração das informações propiciada pelo advento da internet, o que culminou no amplo processo de convergência midiática. Isso posto, pode-se afirmar que a atividade jornalística no século XXI é bastante ampla e envolve diferentes tipos de narrativas. O crescente interesse pelo estudo das narrativas jornalísticas demonstra que esse campo participa ativamente do processo de midiatização, sendo um dos lugares de produção de sentidos mais atuantes nessa dimensão. O interesse por esse campo de estudos cresceu bastante nos últimos anos, entretanto o conceito ainda é objeto de diferentes visadas. No caso desse trabalho, parte-se da noção apresentada por Paul Ricoeur (2010, p. 93, grifo do autor), que, a partir de extenso trabalho intelectual, expõe a necessária relação entre tempo e narrativa ao afirmar que “o tempo torna-se humano na medida em que está articulado de modo narrativo, e a narrativa alcança sua significação plenária quando se torna uma condição da existência temporal”. Ele irá pensar a mediação entre tempo e narrativa a partir da relação entre a mímesis I, momento de configuração da narrativa, a mímesis II, espaço de reconfiguração e a mímesis III, responsável pela “intersecção entre o mundo do texto e o mundo do ouvinte ou do leitor” (RICOEUR, 2010, p. 122). Vale ressaltar que Ricoeur (2010), ao trabalhar com a dimensão mimética - noção oriunda da “Poética”, de Aristóteles -, irá ampliar essa noção ao dizer que as narrativas ultrapassam o mero aspecto da imitação, já que há uma dimensão criadora nesse processo, seja pelo agenciamento dos fatos na configuração da narrativa, seja pela presença do leitor (mímesis III) nesse processo de reconfiguração. Essa visada é relevante na medida em que a orientação para a análise das narrativas jornalísticas deve levar em consideração a presença do leitor nesse processo. O jornalismo passa ser pensado então em sua dupla dimensão temporal: aquele inscrito nas produções jornalísticas e aquele originado do encontro do leitor com o material produzido. O jornalismo, ao operar com a produção de sentidose com o imaginário social, contribui para a interação social não obstante a acirrada disputa de sentidos acionada pela expansão de referenciais simbólicos produzidos no interior da sociedade. Refletir, portanto, sobre essas narrativas é refletir sobre o modus operandi do próprio campo, que produz, cotidianamente, sentidos sobre o presente, o passado e o futuro. Como tão adequadamente nos alerta Resende (2011, p. 134): Aos conteúdos dos acontecimentos narrados inserimos modos de dizer, inscrevendo e excluindo sujeitos, ressaltando e apagando saberes e poderes, concedendo e negando espaços e direitos. O mundo contado nos jornais, à luz da narrativa, é menos da ordem da retórica das imparcialidades e objetividades, do que do jogo de forças, das negociações e dos embates próprios do mundo da vida. É peculiar à narrativa jornalística, portanto, a perspectiva contraditória e complexa da dimensão social. Os sentidos engendrados pelas inúmeras produções dessa área 79 Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas nos dizem sobre a materialidade da linguagem explicitada diariamente pelos inúmeros formatos presentes na práxis cotidiana dos sujeitos. Ao estudar a disputa de sentidos entre narrativas jornalísticas de três revistas brasileiras (Época, Veja e Brasileiros) acerca dos acontecimentos ocorridos durante a vigência da ditadura civil-militar no Brasil, Maia e Aniceto (2016) puderam perceber que a memória, aqui pensada como uma categoria que só pode ser acionada a partir do presente, tem presença garantida nas páginas das revistas, contribuindo para a retomada e reverberação de acontecimentos que ocorreram no passado, mas que seguem tecendo sentidos na atualidade. Para eles, a “recuperação destes temas na atualidade demonstra a importância e a capacidade do jornalismo de atualizar e reconstituir acontecimentos, além de demonstrar seu papel na consolidação e reassunção da memória, impedindo (...) que o acontecimento seja totalmente finito” (MAIA; ANICETO, 2016, p. 250). É possível pensar na potência das narrativas e na reescrita da história (seja imediata ou mais alongada) por intermédio dos textos e imagens jornalísticos, pois como nos assegura Ricoeur (2010, p. 129), “contamos histórias porque, afinal, as vidas humanas precisam e merecem ser contadas”. É digno de nota, entretanto, o embate que ocorre nesse processo já que há, sempre, uma memória em disputa como tão bem nos lembra Pollak (1989, p. 8): “Conforme as circunstâncias ocorre a emergência de certas lembranças, a ênfase é dada a um ou outro aspecto”. Os diversos dispositivos jornalísticos fazem circular múltiplas narrativas, em diferentes plataformas e linguagens, que podem gerar sentidos diversos e consequentes efeitos que podem reverberar na sociedade. Os textos jornalísticos relatam acontecimentos em âmbito factual, mas também contam e remontam histórias que transpassam a linearidade cronológica do olhar temporal ao qual estamos condicionados, utilizando enunciados, imagens, cores, sons, entre tantos outros recursos verbais, visuais e sonoros, por meio de relações de temporalidade. Mas, o jornalismo também atua como agente de memória, na medida em que também aciona fatos passados significativos para a compreensão de determinados acontecimentos, intencionalmente para justificar fatos do presente ou induzir a interpretações. Torna-se, portanto, imprescindível refletir sobre tempo e memória no limiar da história que o jornalismo ajuda a tecer, reconhecendo como suas narrativas contribuem para a cristalização da imagem de certos acontecimentos simbólicos. Assim, buscamos compreender como o jornalismo articula as relações de temporalidade partindo de sua dimensão urgente de presente e rompendo as barreiras de passado e futuro, por meio de operações narrativas. “O jornalismo é a prática de oferecer cotidianamente uma profusão de marcações temporais – seja para dizer o que é passado, seja para dizer o que é presente ou para indicar com que sonhos se devem sonhar o futuro” (MATHEUS, 2011, p. 219). A cultura jornalística, por sua vez, possui uma maneira própria de agir, falar e ver o mundo. Da mesma forma, os jornalistas têm uma maneira própria de sentir e experimentar o tempo em diversas circunstâncias que perpassam o processo produtivo: seja através dos preceitos que determinam o “novo” e “atual”, seja na corrida frenética pelo furo jornalístico em tempos instantaneidade, ou ainda, em virtude dos meios de 80 Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas apuração e da natureza do dispositivo (impresso, televisivo, radiofônico, digital), e, por fim, por meio dos mais variados formatos textuais verbo-visuais possíveis. A noção de tempo indicada como parâmetro jornalístico e as relações da temporalidade articuladas no texto jornalístico são discussões distintas, porém, em certa medida, uma pode ser resultante da outra. A construção da notícia como recorte, com uma marcação temporal, demarca um sentido de início-fim do evento (ou acontecimento), além de sua localização num contexto temporal que é referência para seu público-leitor. Segundo Franciscato (2005), esse movimento consiste na “fragmentação discursiva dos eventos” e é determinado por princípios e valores da instituição jornalística e viabilizado por ferramentas que conferem à notícia um sentido de completude temporal. Essa fragmentação, por sua vez, nos faz pensar em Hartog (2013) e seu debate sobre os “regimes de historicidade”. Em síntese, o termo “historicidade” expressa a maneira como um indivíduo ou uma coletividade se instaura e se desenvolve no tempo, seja como artefato para esclarecer a biografia de um personagem histórico ou a de um homem comum, ou ainda atravessar uma grande obra literária, como também questionar a arquitetura de uma cidade ou comparar a relação com o tempo das diferentes sociedades. O regime de historicidade, portanto, é o instrumento que ajuda a criar um desprendimento do presente, um distanciamento, para melhor ver o próximo. É também “uma maneira de engrenar passado, presente e futuro ou de compor um misto das três categorias” (HARTOG, 2013, p. 11). Esse regime de “presentismo”, segundo Hartog (2013), é fruto da tirania do instante e da estagnação de um presente perpétuo. Para Antunes (2007), a matriz do presentismo pode estar relacionada à diminuição do sentido histórico em favor do horizonte restrito ao tempo presente. No jornalismo, estaria relacionado ao “tempo real”, associando a temporalidade ao relato noticioso, situado na relação entre presente e atualidade: “Ao invés de operar como um critério que ao mesmo tempo permite selecionar e singularizar elementos relevantes dos fatos relatados, a temporalidade é tomada como um mero dispositivo de ativação da atualidade na notícia pela sua equivalência com o presente histórico” (ANTUNES, 2007, p. 4). Cabe destacar que esse “presente fabricado” revela a vinculação entre o ambiente midiático ao trabalho de agentes (jornalistas) que partilham saberes, crenças e modos de interpretação do mundo social no processo de produção das notícias. “Trata-se de um presente sobrecarregado por, ao mesmo tempo, recolher e alimentar uma avalanche de acontecimentos que organiza o universo dos agentes sociais, saturar a experiência social de ‘eventos presentes’” (ANTUNES, 2007, p. 6). A contribuição do jornalismo para a percepção social do tempo é dada de duas maneiras, conforme pontua Matheus (2011): a primeira, de ordem material, pela inserção dos dispositivos midiáticos que dão suporte ao jornalismo e, a segunda de unidade textual, pelas múltiplas relações de temporalidade possibilitadas pelas narrativas jornalísticas. Ambas se complementam. Por um lado, atribuem determinados sentidos históricos aos acontecimentos; por outro, contribuem para a percepçãode que estamos inseridos no processo histórico. 81 Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas Inicialmente, perguntávamos se o jornalismo tratava fundamentalmente do presente, mas a profusão de narrações de passado evidenciou a necessidade de “complexificar” essa suposição. Ainda que falar do passado seja uma atividade realizada no presente e em referência a ele, já que não possuímos outro lugar para existir que não no agora, percebemos a existência de narrativas jornalísticas sobre o passado muito mais do que imaginávamos, no intuito de produzir falas autorizadas sobre esse tempo ido. É toda uma relação particular, jornalística, entre passado, presente e futuro, que é mercantilizada na forma de jornalismo. Sua identidade narrativa se relaciona de modo tão íntimo com o tempo que sua forma material primeira – o impresso – tem o nome derivado da própria duração: jornada. (MATHEUS, 2011, p. 17). Entre outras formas, o jornalismo é o instrumento narrativo que serve para marcar o tempo. É através de sua prática narrativa que se estabelece “as fronteiras entre o não-mais, o agora e o ainda-não” (MATHEUS, 2011, p.218), por meio das diversas camadas de significação. Para construir a notícia, experiência do presente imediato, o jornalismo, recorre ao passado completando o sentido da narrativa por meio de referências pretéritas (embora ausente, é o espaço das experiências concretas, mas que só pode ser acessado a partir dos registros materiais e das memórias). O futuro, horizonte do desconhecido, é o espaço das expectativas que vivenciamos no presente. Mas o jornalismo também estabelece uma conexão com a noção de tempo que pode ser pensada de modo mais específico: sua atuação como agente de memória. Seja ao articular um sentido de tempo passado e de presente ou na relação do passado com o futuro, o jornal poderá ser lido como registro documental, histórico, impondo certo modo de recordação. “O antes é o flashback, a memória, a volta ao passado, como foi dito” (BRUCK e SANTOS, 2013, p. 92). Para Halbwachs (1990) o indivíduo participa de dois tipos de memória, que se apoiam mutuamente, mas não se confundem. A memória individual está situada no quadro da personalidade ou da vida pessoal, ou seja, são as lembranças comuns ao indivíduo sob o aspecto que lhe interessa. Para evocar seu passado, o indivíduo tem necessidade de fazer apelo às lembranças dos outros, reportando- se a referências externas e que são fixadas pela sociedade. A memória coletiva diz respeito às anotações históricas, demarcadas por um tempo social, partilhadas pelo indivíduo enquanto membro de um grupo que contribui para evocar e manter as lembranças impessoais. A memória permite ao indivíduo remontar-se no tempo, porém, mantendo-se no presente. Esse processo de acionamento da memória é dado a partir de recordações pessoais que, parecem vívidas, mas podem ofuscar imaginários, uma vez que o passado não pode ser restituído na íntegra. Sua reconstrução está fundada em vestígios, imagens, relíquias, entre outros suportes da memória coletiva. “Aqui a memória coletiva é considerada como sendo capaz de transformar, em determinadas condições, uma recordação, uma imagem ou uma relíquia, numa presença real, de efetuar mais do que uma reevocação: uma ressurreição do passado” (POMIAN, 2000, p. 513). A memória é constituída, portanto, por processos de negociação com a temporalidade, que serve como ponto de referência para estruturá-la e significar o presente, a atualidade: 82 Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas No momento em que lembramos de algo, o que era passado torna-se narrativa e articula-se no presente, sendo portanto simultâneo a este presente. E o que seria futuro é apenas uma especulação, podendo ser articulado apenas no discurso, o que também o tornará presente. Neste sentido, a memória só é memória no esquecimento ou no segredo, pois quando acionada também se torna discurso (PENA, 2007, p. 44). Conforme defende Ribeiro (2000), a mídia é o principal lugar de memória e/ou história das sociedades contemporâneas na medida em que anuncia os acontecimentos e as transformações do social. O jornalismo, por sua vez, amparado em seus parâmetros e narrativas, atribui significado às transformações do social, retrata a realidade, registra suas transformações e as deixa como legado às sociedades futuras (RIBEIRO, 2000). Neste sentido, podemos afirmar que o jornalismo e a memória possuem uma relação simbiótica e, ao mesmo tempo, desigual: são campos que sabem da existência mútua, admitem intersecções e se tornaram fenômenos autônomos, sem demonstrar dependência um do outro. Em linhas gerais, o jornalismo precisa do trabalho de memória para contextualizar o recontar de eventos públicos, ao passo que a memória precisa do jornalismo para fornecer um “rascunho público” dos acontecimentos. Nesse sentido, os jornalistas exercem então um papel vital e crítico de agentes da memória (ZELIZER, 2008), uma vez que criam documentos históricos, como as reportagens e as imagens icônicas para que no futuro possamos lembrar quem somos e como nos sentíamos em determinadas situações (KITCH, 2011a; KITCH, 2011b). Entretanto, os jornalistas ajustam a rememoração e as reconstruções dos acontecimentos não apenas tomando como referência eventos passados, mas também de acordo com sua agenda, pauta de notícias e interesses políticos, ideológicos e editoriais. A princípio, o passado apresenta-se como um rico repositório disponível aos jornalistas para explicar determinados eventos (ZELIZER, 2008), mas as especulações em relação ao futuro combinadas às referências ao passado ajudam os jornalistas a dar sentido ao presente, estabelecendo relações, sugerindo inferências, atuando como critério para medir a magnitude e o impacto de determinado evento, oferecendo analogias e explicações (LANG e LANG citado por ZELIZER, 2008). Nota-se então o papel alargado da narrativa jornalística, não mais restrita ao caráter noticioso, mas merecedora de inúmeros outros atributos em sua práxis cotidiana. Considerações finais Olick (2014) alega que o jornalismo participa do processo de construção, discussão e reflexão sobre memória sob diferentes visadas. Ele argumenta que o jornalismo “não apenas cobre comemorações como também as celebra, por exemplo, publicando reportagens especiais sobre acontecimentos passados” (OLICK, 2014, p. 17, tradução nossa). O autor apresenta a perspectiva de que uma memória cultural não pode ser pensada sem a participação dos media e que o campo jornalístico ainda prescinde de pesquisas específicas: “De fato, a literatura sobre memória midiática, mídia e memória, e mídia da memória são agora bastante extensas. Mas não está claro de que maneira, 83 Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas em que medida ou por quais razões esse tipo de pesquisa deixou o jornalismo para trás”. (OLICK, 2014, p. 19, tradução nossa) Nesse sentido, é possível visualizar as relações de temporalidade nas narrativas jornalísticas na atualidade a partir de um alargamento do próprio fazer jornalístico (NEVEAU, 2010; DEUZE; WITSCHGE, 2016), sendo este convocado pelos acontecimentos e pelo tempo social de maneira complexa. Se antes o jornalismo poderia ser pensado a partir de categorias mais afeitas ao presente, hoje, em pleno século XXI, ele é acionado por outras instâncias que não mais as rotinas produtivas do próprio processo de organização empresarial. A partir das três condições necessárias para o processo de construção do conhecimento apresentadas por Charaudeau (2006) é possível considerar que as narrativas jornalísticas são configuradas (nas) e pelas rupturas, pela afetação dos sujeitos e pela rede de significações sociais. Mas é preciso considerar ainda que essas rupturasnem sempre significam alterações temporais de grande alcance. Muitas vezes, verifica-se certa recorrência a acontecimentos que já ocuparam as manchetes dos meios, o que garante relativa estabilidade aos próprios acontecimentos veiculados. De todo modo, observamos um espaço ocupado não mais somente pelas redações institucionalmente articuladas, mas por diversas experiências comunicacionais em que acontecimento, memória e conexões percorrem movimentos que transbordam o factual e o presente. Nessa perspectiva mais ampliada, destacamos a potência do jornalismo no sentido de impulsionar movimentos que configuram as possibilidades de sua força narrativa que ressignificam tanto o “espaço de experiência” como o “horizonte de expectativa”, visto que o presente, tensionado por estas categorias, concebe uma nova maneira de relacionar o passado e o futuro tomando o acontecimento como ponto de partida. Referências ANTUNES, Elton. Temporalidade e produção do acontecimento jornalístico. Em Questão: Programa de Pós-graduação em Comunicação e Informação, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, v. 13, n. 1, 2013. BENETTI, Marcia. O jornalismo como acontecimento. 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Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas 86 De fontes a personagens: definidores do real no jornalismo literário Mateus Yuri Passos 1. Dois modelos jornalísticos Este trabalho centra-se sobre o papel das fontes de informação no jornalismo e move-se a partir da indagação sobre quais particularidades permitem distinguir a função discursiva das fontes no jornalismo literário em relação a outros modelos jornalísticos – em especial, tendo em vista os diferentes pressupostos que embasam a episteme de cada modelo, interessa-me saber se há maior ou menor potencial para um tratamento mais isento das fontes, expresso naquilo a que Bakhtin (2010) denomina polifonia – a presença de uma miríade de vozes discursivas distintas que permita reconstituir um acontecimento ou discutir um tópico de forma complexa, sem direcionar o leitor a um fechamento conclusivo, fornecendo mais instrumentos para uma abertura interpretativa. Desse modo, discutiremos brevemente os elementos distintivos dos dois modelos jornalísticos em discussão e apresentaremos alguns pressupostos sobre seu comportamento em relação a fontes de informação. A seguir, apresentaremos brevemente alguns casos clássicos de usos distintos de fontes de informação no jornalismo literário. Finalmente, serão analisadas três reportagens: “Eletrochoque”, de Consuelo Dieguez, e “Voluntário número 13”, de Roberto D’Ávila – ambas publicadas na revista piauí e exemplares de gêneros de jornalismo literário – em contraste a “Magnetismo contra a depressão”, de Ricardo Zorzetto, publicada na revista Pesquisa Fapesp, mais afim aos princípios do jornalismo de pirâmide. A análise centra-se sobre como diferentes formas de representação de entrevistados e da articulação de seus discursos em três reportagens pode, por um lado, colocar toda a autoridade discursiva nas mãos da ciência, e por outro colocar essas instituições em diálogo ou confronto com outros setores da sociedade, cuja voz é igualmente valorizada. Embora tenham sido publicados entre 2007 e 2008, os três textos jornalísticos – coletados no contexto de uma pesquisa mais ampla sobre o uso da narratividade em reportagens sobre ciência – permitem traçar de forma mais clara o contraste entre modelos jornalísticos ao abordarem, de modo bastante distinto, a aplicação de terapias experimentais em medicina. O tópico foi selecionado com o pressuposto de que o jornalismo literário não se restringe ao que se convencionou chamar de conteúdo “de interesse humano”, ou mesmo diversional, e oferece boas soluções como veículo para o oferecimento de informações. Estando claras as linhas gerais do trabalho, é preciso apresentar duas premissas gerais que tomo comoponto de partida, desenvolvidas em trabalhos anteriores. A primeira delas define jornalismo literário como um termo bastante amplo que abarca um conjunto diverso de gêneros enunciativos situados na fronteira entre jornalismo 87 Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas e literatura (PASSOS, 2014). O jornalismo literário surgiu e se desenvolveu de forma independente em diversos lugares do mundo entre os séculos XVIII e XX – no mundo anglófono, por exemplo, teve como ponto de partida as sketches que se popularizaram a partir dos anos 1820, um gênero análogo à crônica brasileira (SIMS, 2007) –, com alguns momentos de influência mútua – o Novo Jornalismo norte-americano da década de 1960, por exemplo, foi decisivo para o investimento em jornalismo literário por veículos brasileiros como a revista Realidade e o Jornal da Tarde (LIMA, 2008). Derivando dessas considerações, a segunda premissa defende que, enquanto representação do real, o jornalismo literário pode ser melhor compreendido como um modelo jornalístico distinto, ao invés de um gênero ou modalidade agrupada junto às categorias de jornalismo informativo, opinativo, interpretativo etc (PASSOS e ORLADINI, 2008). Desse modo, o jornalismo literário se contrapõe, como modelo, ao jornalismo de pirâmide (PASSOS, 2010), assim denominado por ter como seu produto principal e mais nobre as notícias e reportagens estruturadas na forma da pirâmide invertida encabeçada pelo lead, o qual concentraria em si a unidade informativa essencial de um acontecimento (GENRO FILHO, 2012) – porém, o jornalismo de pirâmide, num escopo mais amplo, marcado pela separação histórica entre notícia e opinião, abarca também os diversos gêneros opinativos e interpretativos associados a essa dicotomia. Tendo isso em vista, uma primeira possibilidade a se levantar seria a de que nos gêneros de jornalismo literário essa separação inexiste; porém, como apontado por Eason (1990) ao tratar de vozes enunciativas no Novo Jornalismo, há uma parcela considerável de repórteres que evita incluir conteúdo opinativo, ou prefere fazê-lo por meio de descrições metafóricas ou comparações (MARTINEZ, 2016), sem emitir diretamente juízo a respeito de pessoas e ações – para Eason (1990), esses são jornalistas literários “realistas”, a quem poderíamos chamar também de empiricistas, que tomam como pressuposto a viabilidade de se apreender e reconstruir em texto uma realidade externa existente a priori; em oposição a esse conjunto Eason (1990) apresenta repórteres “modernistas”, a quem poderíamos considerar fenomenologistas, que se propõem a apresentar uma apreciação e narração de acontecimentos e pessoas a partir de suas próprias lentes, de seus filtros culturais e ideológicos, e não se contêm no que toca ao oferecimento de opiniões, pois compreendem seu papel não como o da mediação isenta, mas como o da interpretação da realidade – embora ainda baseada na apuração de fatos e na realização de entrevistas. Assim, o grau de separação entre fatos e opiniões, o nível de interpretação autoral embutido nos textos varia fortemente entre autores e gêneros de jornalismo literário. Conforme apontado por Ritter (2015) em sua tese de doutoramento, o jornalismo gonzo de Hunter S. Thompson tem como traço distintivo a parresía – uma enunciação franca, sem freios –, a qual não se encontra de forma alguma, por exemplo, nas reportagens de Lillian Ross, a qual entendia que as próprias ações e as falas de seus entrevistados seriam suficientes para que os leitores tirassem conclusões a respeito deles. Um elemento que permite distinguir de forma mais demarcada como cada um dos modelos concebe a episteme do jornalismo, porém, está no peculiar uso de personagens como definidores do real em obras de jornalismo literário – o qual parece ser comum aos diversos gêneros enunciativos que o termo compreende. 88 Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas No jornalismo de pirâmide o papel de fontes de informação, de acordo com Schmitz (2011), configura-se tanto no auxílio à apuração das notícias, enquanto entrevistados, como no oferecimento de conteúdo próprio para deliberadamente fornecer informações que possam dar origens a pautas de notícias e reportagens – podendo, nesse caso, ser consideradas como «um poder que mede forças com o ‹poder da imprensa›» (SCHMITZ, 2011, p. 10). O autor distingue as fontes entre primárias – diretamente envolvidas com fatos – e secundárias – cujo papel é o de analisar e interpretar informações obtidas a partir das fontes primárias, podendo ser ainda classificadas, de acordo com seu status social, como fontes oficiais, empresariais, institucionais, populares, notáveis, testemunhais, especializadas ou referenciais. Stuart Hall et al (2016) defendem ainda que um conjunto específico de indivíduos ocupa um patamar privilegiado enquanto fonte – seja pelo envolvimento direto com eventos em questão ou pelo oferecimento de análises –, a ponto de suas enunciações serem utilizadas para definir o enfoque, o fio condutor da narrativa noticiosa; ou seja, para definir um determinado recorte e uma determinada leitura de realidade que serão seguidos numa determinada peça jornalística. Essas fontes, que compreendem as oficiais, empresariais, institucionais e especializadas, são chamadas por Hall (2016) e seus colaboradores como «definidores primários», justamente por conta desse papel crucial na condução da produção jornalística. Como apontei em um trabalho anterior (PASSOS, 2010), é justamente em busca de objetividade que o jornalismo de pirâmide confia aos definidores primários o papel de intérpretes da realidade, delegando ao repórter a função de mediador e de «garimpador» de declarações dessas fontes. Desse modo, podemos afirmar que o jornalismo de pirâmide se fia não em indivíduos para a representação e análise de fatos, mas em instituições – governos, órgãos de polícia e defesa, empresas e, principalmente, os diversos ramos da ciência; e seria justamente o poder institucional dessas organizações, seu prestígio e reconhecimento social, o que conferiria credibilidade tanto às fontes que as representam quanto ao material noticioso que faz uso delas para tratar de determinado acontecimento. Esses procedimentos, porém, têm como consequência a reprodução de um pensamento hegemônico a que Bakthin (2012) conceitua como ideologia oficial, desenvolvida e reforçada justamente pelo conjunto de instituições que respaldam os definidores primários, e que o autor contrapõe a uma ideologia do cotidiano que seria formada pela experiência imediata de indivíduos ligados ou não a essas instituições – e nesse caso me parece adequado reforçar a acepção dessa experiência como algo não-mediado, ou seja, anterior à construção da realidade nos meios de comunicação de massa. A definição da leitura do real por essas fontes, assim como a circulação majoritária de suas declarações, que as hierarquiza num estrato superior de qualidade e credibilidade em relação a outros tipos de fonte, acaba por reforçar o suporte à ideologia oficial e por silenciar e marginalizar outras vozes e possibilidades interpretativas, fenômeno a que Noelle-Neumann (1993) denomina espiral do silêncio. Por outro lado, enquanto o jornalismo de pirâmide utiliza entrevistados como fontes de informação amparadas e validadas a partir das instituições de poder que representam, no jornalismo literário esses indivíduos se transformam em personagens 89 Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas que, retratados em seu sentir e agir no mundo, têm a validação de sua fala articulada a partir de suas vivências, que lhes conferiria credibilidade de modo independente de um amparo institucional. Repórteres como Joseph Mitchell (2012) e James Agee (2009) buscavam em suas reportagens maiscélebres não apenas ouvir fontes não-oficiais, o chamado everyman [“homem comum”], mas tornar suas experiências e ponto de vista o centro da enunciação, o principal definidor do enfoque e do tom da narrativa. Todo o conjunto da obra de Mitchell pode ser compreendido como análogo aos esforços de Joe Gould, um de seus personagens, que pretendia compor uma história oral da vida norte- americana das primeiras décadas do século XX, a suprema antologia da ideologia do cotidiano dentro dessa delimitação cronotópica (PASSOS, 2014). Já Gay Talese (2005) e Truman Capote (2003) ao reconstruírem em texto, respectivamente, alguns dias na vida do cantor Frank Sinatra e os acontecimentos em torno do assassinato da família Clutter, no Kansas, entrevistaram incansavelmente dezenas de pessoas que tiveram contato direto com seus protagonistas – que, no caso do romance de não-ficção de Capote, eram tanto os membros da família quanto os assassinos Perry e Dick. Mesmo quando seus entrevistados eram indivíduos de capital institucional que comumente receberiam o tratamento de definidores primários, como policiais, juízes ou produtores da indústria fonográfica. Interessava mais aos repórteres a experiência que essas pessoas carregavam consigo, aquilo de ideologia do cotidiano que tinham a ofertar – e é na forma de experiências, de cenas que essas entrevistas foram transportadas para as narrativas. Podemos atribuir esse comportamento discursivo à postura contra-hegemônica que pautava o Novo Jornalismo norte-americano (PAULY, 1990), que pode ser estendida à tradição do jornalismo literário anglófono como um todo, estendida mesmo a temas de ciência e tecnologia, com abordagens que não se restringem nem têm seu enquadramento delineado necessariamente por definidores primários – nesse caso compreendido com as expertises científicas de um determinado conjunto de conhecimentos. Como apontei num trabalho anterior (PASSOS, 2010), o jornalismo de pirâmide tem dificuldades em confrontar declarações de expoentes da ciência – ou seja, de confrontar as próprias instituições científicas –, ou mesmo de descolar-se deles para buscar outros caminhos de definição dos fatos, por ter uma base epistemológica positivista erigida sobre a firme convicção de que os métodos científicos geram leituras que, se não inequívocas, seriam as mais confiáveis acerca de fenômenos, fatos e comportamentos. O arranjo discursivo do jornalismo literário, por outro lado, ao privilegiar a experiência e organizar as fontes/personagens de forma mais horizontalizada, comporta-se de forma bastante similar à comunidade estendida de pares proposta por Funtowicz e Ravetz (1993), na qual as expertises de determinada área dialogariam em igualdade com não-especialistas diretamente interessados ou envolvidos em algum tópico para que se pudesse realizar tomadas de decisão baseadas num diálogo mais plural – verdadeiramente polifônico, nos termos de Bakhtin (2010), uma vez que vozes com discursos efetivamente distintos teriam oportunidade de ser ouvidas sem que algum poder mediador conferisse maior ou menor autoridade a uma parte delas. 90 Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas Um tratamento polifônico de temas ligados a tecnociências pode ser encontrado em Vozes de Tchernóbil, de Svetlana Aleksiévich (2016), formado por depoimentos de pessoas de diversos estratos sociais – dentre eles camponeses e a esposa de um bombeiro – que foram tomados de surpresa pelas consequências da explosão do quarto reator da usina nuclear de Tchernóbil em abril de 1986 – porta-vozes da ideologia do cotidiano que se viu fustigada pela ideologia oficial, passando por deslocamentos forçados, testemunhando mortes apavorantes de entes queridos e recebendo sempre ordens, mas nunca instrumentos para compreender o que se passava. Nesse aspecto, a definição do real é pautada pelos testemunhos, pelo drama humano, em meio aos quais pareceria irônico e de menor importância a busca por explicações científicas sobre a explosão ou as consequências do envenenamento radioativo. Nessa mesma linha estava também centrada a força discursiva de Hiroshima, de John Hersey (2002), no qual ocupam lugar central na narrativa as experiências de seis sobreviventes do bombardeio nuclear a Hiroshima em agosto de 1945. 2. A voz de pacientes e cobaias Nesta seção, analisarei três reportagens publicadas entre 2007 e 2008 que tinham como tópico central o estudo ou aplicação de experimentos terapêuticos – estando, portanto, compreendidas no escopo do jornalismo científico e do jornalismo de saúde, dois ramos bastante próximos que costumam se respaldar integralmente em expertises científicas como fontes, chegando ao ponto de utilizar a publicação de artigos em periódicos de alto renome como Science e Nature como principal ponto de partida para definir suas pautas. Como informei anteriormente, a seleção de reportagens deriva de um estudo mais amplo sobre o uso de narratividade em reportagens de ciência e tecnologia. Um exemplo comum de monofonia – ou não-polifonia – encontrado no corpus é o uso de personagens não-especialistas que participam voluntariamente de experimentos científicos, como apresentado ou de tratamentos experimentais, dos quais seriam beneficiários. No entanto, a inclusão de suas histórias, como ocorre na reportagem “Magnetismo contra a depressão”, de Ricardo Zorzetto, é meramente ilustrativa: os personagens são abandonados tão logo suas histórias cumpram o papel de introduzir o tema, que conduzirá à apresentação da pesquisa a ser detalhada: Ana Paula custa a se lembrar da última vez em que viu a mãe sorrir. Desde que sofreu sua primeira crise de depressão há quase 20 anos, Maria passa os dias triste, deitada no sofá remoendo pensamentos que brotam de um mundo sempre cinza. Já experimentou todos os tipos de antidepressivos conhecidos, mas nenhum foi capaz de pôr fim à apatia que ainda hoje a acompanha e a fez abandonar o trabalho na empresa da família na Região Metropolitana de São Paulo. Úteis na maioria das vezes, os remédios, no caso de Maria, no máximo adiavam a próxima recaída. Na última, há seis meses, os médicos tiveram de recorrer à aplicação de descargas elétricas no cérebro do paciente sob anestesia geral, a eletroconvulsoterapia, mais conhecida como eletrochoque – tratamento considerado como um dos mais eficazes para os casos mais graves, ainda que estigmatizado por já ter 91 Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas sido aplicado de modo cruel e usado até mesmo como técnica de tortura contra presos. Esse tratamento pode ajudar a restabelecer o funcionamento normal das células nervosas, ainda que geralmente cause uma perda de memória passageira, que pode durar de alguns dias até meses. Como nem as descargas elétricas funcionaram, em novembro Maria iniciou no Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo (IPq/USP) uma terapia contra a depressão que nos últimos anos vem despertando o interesse de psiquiatras e neurologistas do mundo todo: a estimulação magnética transcraniana repetitiva (EMTr), uma seqüência de pulsos magnéticos intensos capazes de estimular ou inibir a atividade do tecido nervoso. (ZORZETTO, 2007, p. 42). Esse é um expediente bastante comum em produções da revista Pesquisa Fapesp, cumprindo efetivamente a função que se propõe a desempenhar: o fornecimento de uma abertura humanizadora à reportagem, permitindo chamar a atenção do leitor para uma determinada pesquisa financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa no Estado de São Paulo. A estratégia, porém, é menos humanizadora do que publicitária – Ana Paula, filha de Maria, a paciente, desempenha o papel de cliente satisfeita que, após buscar diversas alternativas para sanar a depressão da mãe, sem resultados, descobre o tratamento por estimulação magnética– retornando, ao final da reportagem, para atestar os bons resultados da terapia. A própria Maria, porém, não possui voz própria na reportagem, que não fornece nenhuma declaração sua – e ambas, mãe e filha, ao se verem desprovidas de sobrenome, têm sua condição de personagens ilustrativas reforçada em relação a fontes como o psiquiatra Marco Antonio Marcolin, os neurologistas Adriana Conforto e Alvaro Pascual-Leone e o físico Oswaldo Baffa, entre outros especialistas que fornecem o contexto e a interpretação dos dados da reportagem. O tom do texto é divulgacionista – e por isso mesmo publicitário –, com a prerrogativa de apresentar e explicar os princípios de um determinado tratamento experimental. Quando há questionamentos, eles vêm da própria comunidade científica e são colocados como opiniões minoritárias, quase sempre sem nomes ou instituições que as respaldem, e logo em seguida são apresentados dados que os refutam; trata- se, assim, de uma pseudopolifonia. Já “Eletrochoque”, de Consuelo Dieguez, publicada em piauí, aproxima-se dessa narrativa, mas de forma subversiva. O tema da reportagem, o uso de eletrochoques, ou terapia eletroconvulsiva – termos que se alternam constantemente ao longo do texto – para o tratamento da depressão, é também introduzido pela história de um paciente que se submete a um tratamento terapêutico: Trancuilo Tezoto caminhou lentamente até uma fileira de cadeiras pretas. Acomodou-se em uma delas, dobrou o corpo, descalçou os sapatos e as meias, tirou um par de sandálias de borracha de uma sacola de plástico e as ajeitou nos pés. Endireitou o corpo, tirou a dentadura e a aliança e as entregou a sua mulher, Inês, para que as guardasse. Recostou a cabeça na parede e respirou fundo, como se aquela operação banal lhe tivesse custado um esforço sobre-humano. Há quase cinco meses, duas vezes por semana, o metalúrgico aposentado Trancuilo Tezoto repete o mesmo ritual. Aos 69 anos, ele tem os cabelos um pouco grisalhos e uma calva que começa a se pronunciar. Os seus olhos parecem estar sempre marejados. Aos sussurros, 92 Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas ele definiu a depressão que há três anos o corrói: “É uma dor sem fim, uma angústia e uma tristeza que não passam nunca, um mergulho permanente no horror.” Esse estado de espírito é acompanhado por fortes dores na nuca, inapetência e um cansaço infindável, exacerbado por noites agitadas e insones. Desde que afundou na depressão, Tezoto tomou um sem-número de medicamentos. Nenhum deles fez efeito. “Ele simplesmente não melhora”, disse Inês. “Vê-lo assim é morrer um pouco a cada dia.” Eram oito e meia da manhã de uma quarta-feira. O ex-metalúrgico fora um dos primeiros pacientes a chegar ao ambulatório psiquiátrico do Hospital das Clínicas de São Paulo, onde seria submetido a mais uma sessão de eletroconvulsoterapia, ou ECT, o novo nome para um dos mais atacados tratamentos psiquiátricos, o eletrochoque. Tezoto passara por 35 aplicações, o triplo das sessões consideradas suficientes para ultrapassar uma crise depressiva. Os efeitos não se fizeram sentir, embora ele admita que, nos dias em que toma choque, se sinta um pouco mais aliviado. (DIEGUEZ, 2008, p. 58). A abertura, assim, é pontuada pelo mesmo tema central: o drama humano causado pela doença, que as terapias disponíveis não conseguem resolver. Porém, o texto é polifônico, na medida em que busca nove fontes diferentes – daquelas que se opõem ao tratamento por eletrochoque por terem sofrido abusos em hospitais psiquiátricos com o uso dessa terapia, ou defendem o uso de medicamentos como alternativa, àquelas que o consideram estigmatizado e o justificam frente a uma indústria farmacêutica que visaria a lucrar ao fabricar doenças: Para Marco Antonio Brasil, a psiquiatria tem deixado em segundo plano a origem psicossocial dos transtornos psicológicos. Muitos deles, como a bulimia, a anorexia, o estresse e a síndrome do pânico, ele diz, são provocados por pressões da vida contemporânea. O psiquiatra Renato Del Sant, do Hospital das Clínicas de São Paulo, defensor dos eletrochoques, vai na mesma linha: “Os remédios estão substituindo totalmente as conversas com os pacientes. Corremos o risco de tratar a doença mental meramente como distúrbio físico, e não como um comportamento humano.» Se o paciente está triste, toma Prozac; se está impotente, toma Viagra. A visão biológica é tão preponderante que as escolas de medicina, segundo ele, estão reduzindo a carga horária dos estudos de psicopatologia e aumentando a dos métodos neurocientíficos. «Dessa forma, a psiquiatria tende a desaparecer», radicaliza Del Sant. «Nos tornaremos neurocientistas, ou neurologistas, deixando a psicopatologia para os psicanalistas.» (DIEGUEZ, 2008, p. 61). O percurso narrativo parte, dessa forma, da história de um paciente sem cura (Trancuilo Tezoto) para a contextualização da terapia eletroconvulsiva no Hospital das Clínicas de São Paulo (seção protagonizada pelo psiquiatra Sérgio Rigonatti), desembocando em uma breve historiografia do uso clínico de eletrochoques, inicialmente para o tratamento de esquizofrenia, cujos possíveis ganhos logo em seguida são colocados em confronto com o testemunho de Austregésilo Carrano, uma das lideranças do Movimento Antimanicomial, que denuncia os abusos e danos dessas práticas. Segue então uma seção de repercussão dos três pontos-chave – as terapias contra a depressão, o uso clínico do eletrochoque e o movimento antimanicomial – nos quais pesquisadores, médicos e pacientes se alternam em depoimentos, sem que 93 Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas seja conferido maior peso ou credibilidade a um ou outro segmento. A reportagem se encerra ao retomar a história de Trancuilo: Menos de um mês depois do tratamento com eletrochoque, Trancuilo Tezoto tentou se suicidar. Subiu na laje de sua casa e se jogou de uma altura de quase 5 metros. Dias antes, sua mulher insistira com os médicos da psiquiatria do Hospital das Clínicas para que o internassem. «Os médicos me disseram para tomar conta dele até que surgisse uma vaga no hospital», ela contou. «Mas ele estava muito triste, esperou um descuido meu e se jogou. Nem os remédios, nem o eletrochoque foram capazes de pôr fim a sua angústia.» (DIEGUEZ, 2008, p. 61). Com essa moldura narrativa, após sequências de parágrafos em que a defesa de fármacos ou de eletrochoque estão em contraponto, o personagem ilustrativo da abertura reaparece para tornar-se, de certa forma, protagonista. O percurso narrativo- discursivo que a reportagem descreve é também o debate acerca de sua vida, da busca por um tratamento que pudesse, adequadamente, livrá-lo da depressão. O desfecho, porém, incluem um terceiro ponto discursivo, de insatisfação e indignação, visto que a rivalidade de terapias toma a forma de uma disputa de mercado, de reserva profissional. Nossa terceira reportagem veste um manto discursivo bastante distinto, ao optar pela narrativa em primeira pessoa: Na data marcada para buscar meu cheque, conheço Jordi Ribas, o coordenador do projeto. Ele lamenta minha saída do estudo. O objetivo específico da pesquisa que participei, diz ele, é descobrir se, depois de tomar a segunda dose da ayahuasca, os efeitos são mais fortes ou mais fracos. Ou seja, se o fármaco causa ou não tolerância. Não há nenhuma pretensão em averiguar um possível uso terapêutico. Ele começou a pesquisar o alucinógeno porque estava interessado no seu mecanismo de ação no sistema nervoso central. Em 2003, defendeu a tese «Human Pharmacology of Ayahuasca» na Universidade Autônoma de Barcelona. Em um dos estudos, uma análise tomográfica mostrou que o alucinógeno ativa áreas do cérebro ligadas ao processamento de informações emocionais, como o sistema límbico. Daí se podededuzir a presença de fortes mudanças emocionais nos voluntários. Uma diminuição das chamadas ondas lentas, delta e teta, provoca um efeito estimulante da atividade cerebral, o que aumenta a velocidade do pensamento. Segundo ele, a experiência também tem um «componente estressante», com o aumento da liberação de cortisol. Geralmente, os efeitos duram de quatro a seis horas. (D’ÁVILA, 2007, p. 48). O trecho acima, da reportagem “Voluntário número 13”, publicada na edição de abril de 2007 de piauí, conclui um texto a partir do qual diversos pontos problemáticos acerca da pesquisa científica – e do próprio jornalismo científico – podem ser levantados. A narrativa acompanha alguns dias na vida do próprio repórter, Marcos D’Ávila, que, desempregado em Barcelona, submete-se voluntariamente a um experimento acerca dos efeitos da ayahuasca, substância alucinógena de origem andina, utilizada em cerimônias religiosas de grupos como o Santo Daime. Um dos temas principais são as condições a que são submetidas as cobaias de experimentos e tratamentos experimentais, e o benefício que se pode trazer desse tipo de pesquisa. 94 Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas No caso dessa reportagem, o autor deixa bem demarcado que a finalidade não é farmacêutica, mas verificar se a substância tem efeito semelhante ao álcool, causando tolerância conforme é consumida. O tom é diverso daquele empregado durante a maior parte do texto1, mais debochado ou pessoal, em que são evidenciadas hesitações e questões de identidade junto aos procedimentos do experimento. Pode-se considerar irônico o uso de jargões técnicos da farmacologia (em geral ausentes do vocabulário utilizado) e das aspas, num distanciamento enunciativo, ao se falar no eufemismo de “componente estressante” para os efeitos da ahayuasca – que, em diversos trechos, são descritos como reações insuportáveis pelo repórter-voluntário, com uma riqueza de detalhes sensoriais e gráficos –, uma denotação da frieza da curiosidade científica e do tratamento desumano de voluntários/cobaias, não distante da “rotina grotesca dos criadouros” a que o autor remete. A lógica dessa reportagem segue uma hierarquização inversa à de “Magnetismo contra a depressão” ao colocar a experiência pessoal do repórter como principal definidora do real e fio condutor da narrativa; quando especialistas são consultados, suas contribuições são pontuais – e por vezes ilustrativas, curiosidades. A prerrogativa de D’Ávila (2008) é que o leitor o acompanhe por sua jornada pessoal pelo submundo da ciência, a partir do ponto de vista privilegiado – e incomum – da cobaia de um experimento, cujas experiências degradantes se tornam o foco da narrativa, a informação a se compartilhar, permitindo ao leitor problematizar, de uma forma mais ampla, o uso de seres vivos em testes laboratoriais, lançando questionamentos à ética das pesquisas. 3. Instituições, experiência e compreensão Ao longo deste texto, tive como preocupação central compreender distinções do uso de entrevistados como fontes de informação e/ou personagens no jornalismo de pirâmide e no jornalismo literário, a partir do argumento central de que o primeiro se ampara no prestígio de instituições para buscar as definições primárias de um texto noticioso, enquanto para o segundo importam mais as experiências individuais dos entrevistados, mesmo no caso em que não são os protagonistas das reportagens. A dicotomia entre instituição e experiência, entre ideologia oficial e ideologia do cotidiano, foi exemplificada em três reportagens: “Magnetismo contra a depressão”, de Ricardo Zorzetto, “Eletrochoque”, de Consuelo Dieguez, e “Voluntário número 13”, de Márcos D’Ávila – as quais, como pode ter sido possível depreender, são respectivamente exemplares de jornalismo de pirâmide, jornalismo literário realista/ empiricista e jornalismo literário modernista/fenomenológico. Na reportagem de Zorzetto (2007), seguindo um procedimento editorial padrão da revista Pesquisa Fapesp, vemos que, das fontes ligadas à ideologia do cotidiano, uma é silenciada e outra instrumentalizada numa retórica publicitária na qual o lugar de saber é conferido unicamente às fontes especializadas, à ideologia oficial. No texto de D’Ávila (2008), porém, essa equação se inverte e a ideologia do cotidiano prevalece sobre a ideologia oficial, numa narrativa em que a experiência conta muito mais do que os discursos oficiais – ironizados pelo uso distanciado de jargões científicos. Temos aí um novo binômio dicotômico: o discurso individualizador da experiência única em 95 Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas contraposição ao discurso universalizante de uma ideologia oficial que se pretende como aplicável a todos os contextos. Já em “Eletrochoque”, os polos da instituição e da experiência, universal e individual, oficial e cotidiano, entram em um tensionamento sem resolução: a autora costura um mosaico polifônico – uma verdadeira comunidade estendida de pares – de situações e posicionamentos a favor do tratamento de eletroconvulsoterapia ou opostos a ele, em geral favoráveis ao uso de medicamentos para combater condições mentais consideradas patológicas, como esquizofrenia e depressão. A história que emoldura a reportagem – especialmente em seu desfecho, narrativo-descritivo mas não declaratório, oferece linhas discursivas que se contrapõem à maioria daquelas apresentadas ao longo da reportagem: o contraste é intenso uma vez que a dicotomia ideológica que constitui o seu fio narrativo (a defesa do eletrochoque ou do uso de fármacos), na qual a maior parte das fontes afilia-se a um ou outro dos lados, é abalada pelo encerramento, quando um paciente que não foi curado por nenhuma das alternativas tenta o suicídio; assim como num romance de Henry James, as linhas finais parecem ter o poder de pôr abaixo tudo o que se tomou como certeza ao longo do percurso narrativo, e percebe-se que a ciência moderna possui limites, e sempre os possuirá. O maior trunfo, e potencial libertário desse tipo de texto, é que o repórter não toma para si a tarefa de trazer uma conclusão pronta a respeito do tema abordado; não se tem, portanto, uma impressão de acabamento, e cabe ao leitor dar a sua contrapalavra. A complexidade no tratamento da reportagem está bem afim aos princípios de uma epistemologia compreensiva conforme definida por Künsch, Menezes e Passos (2017): a reunião de diversas formas de saber, não necessariamente científicos, e o estímulo ao debate igualitário, despido de preconceitos entre eles. Dentre os pilares da compreensão kunschiana está ainda mais um binômio – o da compreensão oposta à explicação; o assunto merece desenvolvimento ulterior, mas já a partir das discussões apresentadas aqui posso tomar como pressuposto de que o jornalismo de pirâmide se sente mais à vontade com a resolução de dúvidas, com o didatismo, com a explicação dos fenômenos que acompanha e reforça sua tendência universalizante, enquanto ambos os exemplares de jornalismo literário aderem, de maneiras distintas, ao gesto da compreensão – a reportagem de Consuelo Dieguez pelo tratamento complexo e polifônico do tema, enquanto a de Marcos D’Ávila, ao apresentar uma visão particular que não pretende oferecer um enclausuramento discursivo, adiciona mais uma voz à cadeia dialógica sobre o tópico do uso de seres vivos em experimentos Notas 1 “Recebo um formulário. Sexo? Masculino. Raça? Aí complica... Opções: negro, branco ou oriental. Tem nenhuma das anteriores? Já me confundiram com japonês. Olhos castanhos, ligeiramente puxados, e cabelo preto bem liso. Creio que herdei de antepassados indígenas do Peru. Mas também tem português no meio, italiano, es- panhol. Sou, hum... Moreno? Não pode. O enfermeiro dá fim às minhas inquietações raciais. - Põe branco.(D’ÁVILA, 2008, p. 45). 96 Referências AGEE, James. Elogiemos os Homens Ilustres. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. ALEKSIÉVICH, Svetlana. Vozes de Tchernóbil: a história oral do desastre nuclear. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. BAKHTIN, Mikhail. O Freudismo. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2012. ______. Problemas da poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. CAPOTE, Truman. A Sangue Frio. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. D’ÁVILA, Marcos. Voluntário número 13. piauí, São Paulo, n. 7, abr. 2007, p. 44-48. DIEGUEZ, Consuelo. Eletrochoque. piauí, São Paulo, n. 21, jun. 2008, p.58-62. EASON, David. The New Journalism and the Image-World. In: ______ (Org.). 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Na literatura, por exemplo, é visível que o autor é aquele que cria/ elabora e assina a obra. Este autor pode adotar inúmeras perspectivas para contar uma história, eis o narrador. De acordo com Friedman (2002), para sistematizar o ato narrativo é preciso ter claro algumas questões a serem respondidas: quem conta a história? Qual é a posição que o narrador adota para contar a história? Quais são os canais que ele usa? A qual distância ele coloca o leitor da história narrada? Autor: o repórter. Narrador: aquele que o repórter escolhe para narrar a história. Este capítulo problematiza as distinções entre a “instância autor” e a “instância narrador”. De acordo com Reis e Lopes (2007, p. 285), “a narratologia é uma área de reflexão teórico-metodológica autônoma, centrada na narrativa como modo de representação literária e não-literária”. É na perspectiva da narratologia que buscamos observar algumas experiências de reportagem nas quais os autores das reportagens alçaram voos experimentais e revelaram uma multiplicidade de potencialidades da narrativa da vida real. Concebendo a narrativa numa perspectiva organicista, a narratologia procura, pois, descrever de forma sistemática os códigos que estruturam a narrativa, os signos que estes códigos compreendem, ocupando-se de um modo geral, da dinâmica de produtividade que preside à enunciação dos textos narrativos. Por ouro lado, a narratologia, ao contemplar prioritariamente as propriedades modais da narrativa, não privilegia em exclusivo os textos narrativos literários, nem se restringe aos textos narrativos verbais; ela visa também práticas narrativas como o cinema [...] ou a narrativa de imprensa. (REIS; LOPES, 2007, p. 285). Se desejarmos compreender e experimentar as tessituras que envolvem o autor e o narrador no jornalismo/na reportagem, é necessário que alcemos voos emancipatórios permeados por atos epistemológicos complexos. Um desafio proposto por Medina (2003, p. 143): A criação de narradores, uma vez que estes não se confundem com o autor, responde ao impulso dialógico, e não ao autoritarismo monológico. [...] A forma de narrar não baixa do céu de graça, mas a graça de sentir profundamente o mundo e o outro, em movimento, encurta os caminhos nunca dantes navegados. 99 Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas É por esses complexos caminhos que buscaremos navegar aqui1. Transitamos pelas noções de autor, narrador e estratégias narrativas na reportagem. 2. Autor, um sujeito real e empírico Quem é o autor no jornalismo? Se mesclarmos as noções de autoria propostas por Medina (2013) com a definição de Reis e Lopes (2007), vamos caminhar no sentido de compreender este sujeito como um agente cultural, produtor de sentidos, que atua, cotidianamente, na reelaboração das realidades observadas. Para Medina (2006, p. 81), o jornalista: [...] como privilegiado leitor da cultura, uma vez que transita na primeira realidade, observa o mundo à sua volta e capta depoimentos dos protagonistas sociais, ouve relatos e reúne declarações do universo conceitual (informações especializadas, opiniões e interpretações), assume, nessas mediações, uma responsabilidade autoral que permeia qualquer editoria. Ao produzir sentidos – e é isso que o jornalista faz –, ele está falando de certa cultura, com os protagonistas culturais localizados2. Ao mesmo tempo, para Reis e Lopes (2007, p. 39), o autor é: [...] a entidade materialmente responsável pelo texto narrativo, sujeito de uma atividade literária3 a partir da qual se configura um universo diegético com suas personagens, acções, coordenadas temporais etc. A condição do autor conexiona-se estreitamente com as várias incidências que atingem a autoria: nos planos estético-cultural, ético, moral, jurídico e econômico- social, a autoria compreende direitos e deveres, ao mesmo tempo que atribui uma autoridade projectada sobre o receptor. Esse sujeito, que é um leitor cultural, é também dotado de direitos e deveres, tem um lugar social demarcado por sua formação profissional e age socialmente também em sintoniacom o veículo de comunicação para o qual trabalha (a sintonia não significa ausência de conflitos, mas a permanente necessidade de mediação). A identidade social do jornalista transita no cruzamento de dois planos: 1) de um conjunto de normas e valores tacitamente aceitos e apreendidos na sua formação profissional4; 2) de um conjunto de concepções formuladas, intuitivamente, na prática cotidiana da profissão, nas quais se detectam os traços de visão de mundo e concepção de jornalismo que cada autor carrega consigo. O autor, o sujeito formal e real, tem nome, sobrenome, identidade profissional. O autor está diretamente ligado ao exercício de um ofício. É ele quem determina o ponto de partida da narrativa jornalística. Ao pensar em uma pauta e sugeri-la para o chefe, o jornalista dá início à elaboração da narrativa. É o momento embrionário da narrativa, mas o narrador ainda não está, efetivamente, configurado neste momento. Durante todas as etapas da apuração (pesquisa, produção, observação e entrevistas), o sujeito que age e elabora é o jornalista/autor. Este autor, a priori, define 100 Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas seu modus operandi e estabelece as relações com os acontecimentos – e com os sujeitos dos acontecimentos – permeado por um papel social do qual se espera um determinado comportamento profissional. Os jornalistas (autores) vão ao encontro do acontecimento demarcados pela sua identidade profissional. O encontro com o outro tem início mediante uma clara formalização do lugar e do papel social, nos quais um dos interlocutores (o jornalista) está envolto. A experiência e vivência da apuração das informações é permeada pela institucionalidade que se espera de um jornalista. Ao mesmo tempo, no processo de edição essa mesma institucionalidade deixa suas marcas. Podemos recorrer a Goffman (1985, p. 20) para compreender alguns dos aspectos que perpassam o lugar formal do autor/repórter no jornalismo: A sociedade está organizada tendo por base o princípio de que qualquer indivíduo que possua certas características sociais tem o direito moral de esperar que os outros o valorizem e o tratem de maneira adequada. Assim, Quando um indivíduo desempenha um papel, implicitamente solicita de seus observadores que levem a sério a impressão sustentada perante eles. Pede-lhes para acreditarem que o personagem que veem no momento possui os atributos que aparenta possuir, que o papel que representa terá as consequências implicitamente pretendidas por ele e que, de um modo geral, as coisas são o que parecem ser. (GOFFMAN, 1985, p. 25). No jornalismo, autor e narrador estão envoltos em conflituosas tramas conceituais, quando não raro passam por um processo de “apagamento”. O jornalismo, historicamente, recusa até mesmo a autonomia da autoria no texto, quando encarcera o jornalista em um narrador de 3ª pessoa, disciplinado em manuais de redação. Imagine, então, admitir que a “narrativa da vida real” possa ser elaborada por um sujeito “criado” pelo autor? Se não há a autonomia da autoria, o jornalista é apenas aquele que redige “narrativas enclausuradas”, conforme analisa Resende (2002, p. 42): [...] porque partem [os jornalistas] do princípio de que sua construção [a narrativa] depende exclusivamente de normas/regras previamente estabelecidas que, uma vez aplicadas ao texto jornalístico, são capazes de explicar os acontecimentos do mundo. Um dos princípios epistemológicos do jornalismo ancora-se no fato de ser este o lugar do discurso pautado pela verdade. É possível perceber que as normatizações sedimentadas como verdades na prática jornalística não só promovem um embaçamento do olhar do repórter, mas também atam o processo de elaboração do texto. Se o jornalista aceitar, tacitamente, que o seu lugar profissional é o do simples relato objetivo dos fatos, ele estará abrindo mão de ser um sujeito partícipe da construção cotidiana das narrativas da contemporaneidade. Esse problema está, frequentemente, colocado nas rotinas profissionais, como verifica Christofoletti (2004) na sua tese de doutorado. Ao 101 Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas investigar a questão da objetividade e da autoria na reportagem, ele diz: Na maioria dos produtos jornalísticos oferecidos ao público, existe uma tentativa deliberada de calar os sujeitos que reportam em detrimento de uma suposta possibilidade de os fatos falarem por eles mesmos. Nas redações, nos estúdios, e nas ruas, o repórter deve desaparecer em nome da notícia. (CHRISTOFOLETTI, 2004, p.165). Mas também alerta que fazer desaparecer a autoria no jornalismo é impossível, posto que: A comunicação, e em especial o Jornalismo, envolve sujeitos que consomem informações e sujeitos que as produzem e as disseminam. Por mais que se tente, não é possível fazer desaparecer os sujeitos dessa equação. Por natureza, a atividade é humana e não pode prescindir dos elos que a compõem. A cada tentativa de matar o autor, mais o estilo se firma como um eco da voz do criador. Não só na literatura, mas também no jornalismo (CHRISTOFOLETTI, 2004, p.173). A partir dessa premissa, é possível caminhar no sentido oposto a um conjunto de valores e práticas que, hegemonicamente, está alicerçado nas rotinas profissionais jornalísticas. Eis a possiblidade de um ethos: compreender o jornalismo como uma forma de mediação social, cujas narrativas estejam abertas à pluralidade, à polifonia, à dialogia, à experimentação, portanto, à complexidade. O jornalista, dotado de autoria, é um sujeito que se deixa tocar pelos fatos e que se coloca na perspectiva de elaborar sujeitos outros aos quais cabe a arte da tessitura do presente, da narrativa do presente. Exige-se uma postura complexa do jornalista, como ressalta Medina (2008, p. 98): [...] a reportagem, na sua estilística interpretativa, articula [...] entrevistas conceituais com o protagonismo e o contexto sociocultural numa narrativa autoral que põe em movimento a aventura humana. O resgate da cena viva exige a criação de um narrador que dramatize o que se passa à sua volta. Para isso o autor da narrativa é um ser aberto aos demais códigos da experiência social que observa. A postura complexa, um olhar amplo sobre a vida é citado como uma necessidade também por Martinez (2008, p. 39): [...] os comunicadores sociais envolvidos na produção de biografias, perfis e grandes reportagens precisam transcender o mero domínio dos aspectos técnicos da profissão. Uma vez que a sua missão é a de captar fatos e seus desdobramentos, eles necessitam de amplo conhecimento sobre a vida. Medina (2008) reitera a importância da desobstrução dos sentidos para que o jornalista seja capaz de uma narrativa fértil. Uma narrativa provocativa, inquietante, problematizadora da realidade? Sim! Com uma postura epistemológica que promova o rompimento com reducionismo, com as padronizações e os superficialismos. 102 Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas Ou melhor, O que efetivamente sinaliza a busca autoral é a narrativa dos afetos. Descobrir-se afeto ao seu tempo. Perceber a dimensão identitária de estar afeto ao outro, embora existam conflitos e diferenças que são inerentes à convivência. (MEDINA, 2006, p. 77). Pois, A plenitude dos cinco sentidos no repórter afeto ao acontecimento lhe dá condições para ensaiar uma compreensão da dinâmica do caos em seus múltiplos códigos. Jornalistas que narram tanto o cotidiano quanto o evento extraordinário são convidados a fertilizar o texto verbal com notações não- verbais. (MEDINA, 2008, p. 107). 3. Um passeio por quatro reportagens Se compreendermos a busca autoral do repórter como uma condição inequívoca para a possibilidade de dar maior complexidade ao ato narrativo, o autorassume perspectivas distintas no texto. Isto é, mobiliza distintos narradores. Abre-se para a possibilidade de articular vozes, visões de mundo e experiências no desejo de compreender a atualidade. Adota estratégias singulares para contar o que vê e o que e apura. Aqui neste capítulo, trazemos à reflexão experiências de estratégias narrativas singulares expressas em quatro reportagens, a saber: Povo caranguejo5, de Audálio Dantas; Sonhos e frustrações do Velho Chico6, de Cremilda Medina; Sou suçuarana7, de Ivan Marsiglia e Memórias póstumas de um estudante da Medicina8, de Angelo Ishi. [Reportagem 1] O repórter Audálio Dantas, lá nos idos de 1970, recebeu a incumbência de acompanhar a vida de catadores de caranguejo. E lá foi ele. Por uma semana, se embrenhou nos mangues na aldeia de Livramento, uns 20 quilômetros de João Pessoa, no estado da Paraíba. Como parceira de empreitada jornalística, Audálio teve a companhia da fotógrafa Maureen Bisilliat. Povo caranguejo é a história que eles contam e que rendeu, além do destaque na capa da edição da revista, mais oito páginas de texto e fotos. Impossível conter o espanto ao ler uma batalha visceral entre homem e caranguejo. Entre caçador e caça. Mas não era uma simples batalha, narrada com o olhar de um observador distante da ação. Audálio se dispôs a “enfiar o pé na lama”9 (DANTAS, 2012, p. 113) expressão que ele mesmo usa para justificar suas escolhas. O texto narrado em terceira pessoa adota, esquematicamente, dois pontos de vista: do homem e do caranguejo. A reportagem nos transporta para uma batalha no mangue, que segue o ritmo da lida na cata dos crustáceos. Trecho do homem. Trecho do caranguejo. Trecho do homem. Trecho do caranguejo. Trecho do homem. Compadre Ota, Zé Preto, Luciano e Sabino reúnem-se no alpendre da venda de dona Nevinha, sobre o pequeno Porto do Livramento. A aldeia ainda está 103 Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas mal amanhecida, dormindo em seus ranchos debaixo das jaqueiras e das mangueiras. As luzes de João Pessoa ainda brilham a distância, sumidas e trêmulas, acima da massa escura dos mangues. Eles são os primeiros homens a chegar e começam a preparar as canoas — Nazaré e Correio da Ilha — para a viagem em busca dos caranguejos. Trecho do caranguejo. Na solidão e no silêncio sombrios do lamaçal, caranguejo é rei. Riscam a face lisa e negra da lama com suas patas cabeludas, as molas atentas, agressivas, movendo-se como alicates, à espera das folhas de mangue, que caem de maduras ou derrubadas, pelo vento. As molas — patas maiores — recolhem rapidamente as folhas, que são o alimento principal dos caranguejos desses pântanos distantes de cidade (quando encontram, eles comem de tudo — dejetos humanos, frutas, bichos mortos). [...] De repente, o fervilhar aumenta. Há uma enorme agitação, um rápido correr de lado, para todos os lados. Os homens estão chegando, a pisar forte e profundamente a lama. Fuga. Fundo de buraco. Medo. [Reportagem 2] A pesquisadora e repórter Cremilda Medina, em tempos de Signo da Relação à frente da Coordenadoria de Comunicação Social da USP, aproveitou para mergulhar na história do rio São Francisco. A reportagem “Sonhos e frustrações do Velho Chico” é a história que ela conta. Ancorada na pequena Pirapora, norte de Minas Gerais, à margem direita do rio, Cremilda dá voz ao próprio São Francisco que vagueia entre passado e presente num diálogo de profundezas. O texto narrado em primeira pessoa, na perspectiva do rio, faz uma síntese afetuosa dos caminhos, conflitos, contradições e possibilidades de futuro que o São Francisco tem. Documentos fundadores, um acervo municipal e a memória dos ribeirinhos vão tecendo, pari passu, com o Velho Chico uma narrativa caudalosa, composta de cenas míticas, donde quase é possível vislumbrar ele, Chico, personificado num sábio em ruminações com o mundo. Assim começa a narrativa: Já me chamaram “rio sem história”, depois reconheceram que sou importante na unidade e na integração nacional. Coisas da civilização moderna, porque desde tempos não registrados, sou o caminho das águas para os andarilhos de terras de Santa Cruz. Ficaram para sempre aqui, no meu primeiro trecho navegável, as marcas dos índios que habitaram nas minhas margens: Pirapora, de origem tupi, conjuga pira (peixe) e poré (salto). A cachoeira onde o peixe salta. Isso me faz lembrar guerras antigas. Os índios cariris, aqui abrigados das lutas na costa atlântica, atacaram os bandeirantes em 1687. A bandeira de Fernão Dias Paes Leme desceu o Rio das Velhas e, na batalha que se travou na altura das cachoeiras de Pirapora, os nativos venceram os invasores. Mais adiante, o rio-narrador dá as mãos para uma moradora, com quem partilha a história: 104 Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas Você conhece dona Maria Eugênia? Se encontrar com ela, ouça só: aos 75 anos, firme e alegre, mulher de forte presença como muitas que você vai encontrar no interior de Minas, Goiás, Bahia, Rio Grande do Norte, enfim, nessas terras longe das águas atlânticas, conta os vinte e três filhos, nove, infelizmente, já morreram, mas aí estão onze mulheres e três homens para contar a história. Dona Maria Eugênia, matriarca do povoamento contemporâneo do sertão, ainda criou mais 28 meninos, seus afilhados, que vieram da roça com a roupa do corpo, muitas vezes sem sapatos. A sua casa, irrigada pelas minhas águas, deu teto, comida e roupa lavada para todos os necessitados. [Reportagem 3] O repórter Ivan Marsiglia, quase findando a primeira década do século XXI, em momento de especial maestria no jornal O Estado de S. Paulo, publica a reportagem “Sou suçuarana”, no caderno Aliás, impulsionado por uma informação veiculada no dia 14 de setembro no mesmo diário. Ao revisitar o tema já explorado na forma de notícia, Marsiglia adota como narrador da história a onça batizada de Anhanguera. Personagem principal da história e narrador, o animal ganha voz, memória, ironia e olhar astuto para conduzir o leitor às idiossincrasias do mundo humano contemporâneo, que valoriza condomínios ecológicos amplamente protegidos. Na narrativa, as contradições do ser humano urbano soam estranhas, descabidas, incompreensíveis na perspectiva do animal. Enquanto proseia com o leitor, Anhanguera deixa seus rastros de bicho do mato. “Vagueia”. Está acostumado a “zanzar”. “Busca de-comer”. “Agarrou vereda nesse mundéu”. Enfim, a aventura de um atropelamento às margens da Via Anhanguera, no km 71, assume feições de fábula na reportagem jornalística. E a gente segue a onça-parda nas suas andanças e divagações. O narrador conta o atropelamento: [...] Como ia contando, domingo à noite já estava cansado de vaguear atrás de uma refeição quentinha: o senhor sabe que eu só saio para comer quando escurece. E, com o desassossego da juventude - só tenho 1 ano de idade -, agarrei vereda nesse mundéu. Quando dei por mim tinha descido a ribanceira toda, escutando a barulhada que vem da toca de vocês. Tenho audição sensível, de ouvir detalhe, farfalhar. De modo que fiquei atordoado com tanta balbúrdia. Para piorar, aquelas luzes passando... Olho de gato é feito para enxergar no escuro, viu? Então me apercebi que o dia já ia raiar e eu ali, tão longe de casa. Corri em disparada. A onça-parda, enquanto se recuperava do atropelamento, traz a perspectiva dos humanos para o texto: Ainda ontem, da jaula de 1 m por 1,5 m onde estou convalescendo, ouvi o dono da ONG, Jorge Bellix, explicar que os muros dessas propriedades funcionam como uma armadilha para os animais. Irracionais que somos, a cada vez que saímos da área de proteção e damos nos fundos do condomínio, em vez de voltar para trás, tentamos contornar a muralha. E, assim, caímos direto nas ruas e rodovias. Sem falarnos fios de alta tensão, no arame 105 Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas farpado e nas cercas eletrificadas. Jorge disse que não sou o primeiro de minha espécie a pôr o focinho nas redondezas esse ano, embora certos estudos de licenciamento digam que não há animais em risco de extinção por aqui. [Reportagem 4] O repórter-estudante Angelo Ishi, quando ainda um aprendiz de jornalista nas salas da ECA/USP, estava aberto às experimentações que o laboratório da vida universitária oferece. Permeado pelas provocações da mestra Cremilda Medina, ele iria muito além do lead ao noticiar o suicídio de um jovem estudante de medicina. Em uma reportagem sintética, sem imagens, diagramada no canto inferior do Jornal do Campus, o estudante de jornalismo alçava um voo autoral de singular afetuosidade. “Memórias póstumas de um estudante da Medicina” é a história que ele conta. Angelo Ishi optou por elaborar uma reportagem em primeira pessoa, assumindo a perspectiva do estudante de medicina já morto. De clara inspiração machadiana, o narrador-defunto, procura reconstruir “o que talvez seriam suas palavras póstumas”. Numa apuração que envolveu entrevistas com amigos, professores e familiares, o repórter expõe, de forma visceral, os conflitos, inquietudes, dramas e dores do aluno de medicina. Vejamos o início da reportagem: Me matei — e comigo morreu um pouco de todos eles. A aula começou, mas continuaram ali, sentados na escadaria. Chocados, arrasados. Será que agi mal? Silêncio. O repórter chega, logo adivinha meus amigos: e o suicida? Sérgio o chama para um canto: “Ele já está enterrado”. Sim, eu, Pedro Bezerra Arantes, terceiranista, aluno da turma 73, matei-me às onze da manhã, no quarto de casa, na Consolação. Meu corpo foi encontrado às 13h pela empregada. Deixei escrita uma pequena carta, que a polícia levou. Como meus pais, os amigos da faculdade passaram a noite em claro. Ainda pensam estar vivendo um pesadelo. Estou morto! Morto... Era bonito, rico, nem precisava trabalhar... Como justificar? As quatro reportagens aqui observadas têm narrativas que podem nos conduzir à uma reflexão epistemológica sobre o ethos do narrador no jornalismo. Justamente por deixarem explícita a diferença entre narrador e autor, aqui encontramos peças jornalísticas que são reveladoras dos caminhos da narrativa. Audálio Dantas, Cremilda Medina, Ivan Marsiglia e Angelo Ishi não se furtaram a ir plenamente ao outro – assumir sua voz em primeira pessoa. Mesmo no texto de Dantas, no qual a narrativa está em terceira pessoa, a voz do caranguejo vem à tona com a mesma intensidade da voz humana. São exemplos raros, que não fazem parte das rotinas em veículos de comunicação. A experimentação e singularidades detectadas nestas quatro reportagens colocam-nos diante da explicitação das duas instâncias – autor e narrador. 4. Narradores: percursos e escolhas dos autores Contar uma história é uma forma de ressignificar o tempo, o espaço e os sujeitos. 106 Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas É o narrador quem conta, conduz, guia, alinha palavras e acontecimentos. Então, perguntamos: quem é o narrador no jornalismo? Dificilmente este questionamento pode ser feito no singular. Portanto, quem são os narradores no jornalismo? O plural, logo de início, traz uma marca forte desta noção quando no campo jornalístico. A narrativa jornalística é, preponderantemente, uma costura, uma articulação de narrativas. De acordo com Medina (2014, p. 49), “ao narrar, o escritor mobiliza múltiplos narradores literários, muitos coautores e receptores da mensagem. A intertextualidade existe antes, durante e depois de uma escritura”. A constituição do(s) narrador(es) do jornalismo está sob a batuta do autor da reportagem. É o repórter – aquele que observou, sentiu, viu e ouviu –, o sujeito que impulsiona o “nascer” dos narradores na reportagem. Pelo que foi possível compreender das leituras das reportagens e diálogos com os respectivos autores, os elementos disparadores do processo de criação dos narradores se dá por um conjunto de variáveis intrincadas: na observação atenta e sensível dos fatos e personagens; na experiência in loco (isto é, ir aos acontecimentos); no diálogo com distintas fontes de informação/personagens; na costura de visões/opiniões/vozes na elaboração do texto. Para uma definição de narrador, recorremos a Reis e Lopes (2007, p. 257-258): [...] o conceito de narrador deve partir da distinção inequívoca relativamente ao conceito de autor, não raro susceptível de ser confundido com aquele, mas realmente dotado de diferente estatuto ontológico e funcional. Se o autor corresponde a uma entidade real e empírica, o narrador será entendido fundamentalmente com o autor textual, entidade fictícia a quem, no cenário da ficção cabe a tarefa de enunciar o discurso, como protagonista da comunicação narrativa. [...] o narrador é, de facto, uma invenção do autor; responsável, de um ponto de vista genético, pelo narrador, o narrador pode projetar sobre ele certas atitudes ideológicas, éticas, culturais etc., que perfilha, o que não quer dizer que o faça de forma directa e linear, mas eventualmente cultivando estratégias ajustadas à representação artística dessas atitudes: ironia, aproximação parcial, construção de um alter ego, etc. Entidade fictícia. Autor textual. Invenção do autor. Definições precisas e claras no mundo das artes, mas uma caixa de marimbondos no mundo do jornalismo. Embarcamos aqui em um universo de reflexão que encontra ressalvas e rejeições várias de estudiosos da comunicação. Entretanto, é impossível deixar de meter a mão na caixa de marimbondos. Narradores em primeira pessoa. Narradores em terceira pessoa. Mutantes. Invisíveis. Próximos. Afastados. Acima. Ao lado. Adiante. Atrás. Solidários. Generosos. Pacientes. Questionadores. Mediadores. Ensimesmados. Ordeiros. Irônicos. Autoritários. Imperiosos. Banhados das falas e da vivência da apuração. Impregnados da experiência de campo. Centrados no eixo da psiquê do autor. Centrados na psiquê de outrem. Mais, mais e muito mais. Eis as múltiplas possibilidades da composição dos narradores na reportagem. 107 Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas Para além de um olhar reducionista e permeado pela “gramática normativa” (MEDINA, 2003; 2006) da narrativa jornalística, é possível, sim, identificar que há sujeitos distintos mobilizados na narrativa de uma reportagem. Há profundas heterogeneidades nesse processo: daquilo que é uma experiência mais radical, digamos, como um narrador-rio; um narrador-defunto; um narrador-bicho tal qual neste capítulo; àquilo que poderíamos, convencionalmente, denominar como narradores clássicos, especialmente aquele que se posiciona em terceira pessoa e procura “um distanciamento” do que é narrado. Então, quais seriam, as relações que podemos pontuar para caminhar no sentido de alinhavar elementos que compõem o ethos do narrador no jornalismo? A tradição teórico-conceitual (também deontológica) na qual o jornalismo está preponderantemente envolta, de proposição explicativa, monocausal e asséptica nos conduz à pretensão de narrar com distanciamento, com uma “pressuposta neutralidade” e com primazia de objetividade. Ancoradas na postura epistemológica hegemônica, as técnicas profissionais que moldam as narrativas pouco contribuem para que repórteres sejam instigados à autonomia, capazes de assumirem a condição de autores e experimentarem todas as potencialidades da construção de narradores na elaboração de reportagens. A mudança de foco narrativo é um dos elementos que pode enriquecer o conhecimento do real no campo da reportagem. É uma atitude de descentralização da autoria no caminho rumo ao outro; é uma atitudede democratização das possíveis leituras de mundo que a reportagem proporciona, enquanto uma privilegiada forma de narrativa da contemporaneidade. O jornalismo teme explorar a descentralização do foco narrativo/ponto de vista e a democratização de vozes? O narrador em terceira pessoa e distanciado corresponde a uma postura epistemológica tradicional no campo do jornalismo, alicerçado numa posição positivista e racionalista com a pretensa possiblidade de controle daquilo que se narra. Entretanto, mesmo o narrador em terceira pessoa pode banhar-se das incertezas, das problematizações que a contemporaneidade provoca em cada um de nós. Autores “afetos à” cena viva da realidade, ao outro e às incompletudes do humano ser potencializam narradores de maior complexidade? O “deslocamento de sujeito” experimentado pelo repórter-autor para narrar está na episteme do ato narrativo. Impossível evitá-lo, ignorá-lo. O autor pode caminhar por trilhas experimentais ou tradicionais. Pode tatear novos caminhos. É no encontro com o outro, na observação atenta, sutil e minuciosa das realidades encontradas que o autor se abre para a disponibilidade de elaborar/constituir narradores. Entretanto, cabe alertar que o deslocamento de sujeito no ato narrativo não é per si garantia de uma narrativa complexa, solidária, compreensiva, generosa, problematizadora. Os sujeitos mobilizados pelo autor para narrar podem ser autoritários, incisivos, professorais, arrogantes... Uma trilha possível seria a confluência da problematização de uma postura epistemológica complexa; com uma postura de autonomia autoral do repórter; com um deixar-se levar pelos intuitivos signos da relação? 108 Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas Notas 1 Neste capítulo, trabalhamos com uma síntese da tese de doutorado O autor e o narrador nas tessituras da reportagem, elaborada sob orientação de Cremilda Medina, na qual estabelecemos diálogos com 10 repórteres e um conjunto de 20 reportagens para detectar as estratégias narrativas adotadas pelos autores para contar cada uma das histórias que eles apuraram. Para além destes diálogos, a tese foi construída a partir da observação das estratégias singulares adotadas por quatro outros repórteres, que fizeram opções narrativas incomuns no jornalismo. Foram estes quatro textos que nos despertaram para a problematização da questão: autor e narrador na reportagem. 2 Grifos meus. 3 Reis e Lopes sempre fazem referência ao ambiente literário nas suas definições, entretanto, podemos trazê-las para o campo jornalístico. 4 Neste ponto vale ressaltar a obra de Carlos Eduardo Sandano Santos, Para além do código digital: o lugar do jornalismo em um mundo conectado, publicada em 2015, pela EDUFSCAR. O autor discute o status epistemológico do jornalismo, os valores culturais e sociais nos quais o exercício profissional está envolto. Caminha para “descrever o jornalismo como uma ação comunicativa virtuosa, realizada por mediadores epistemologicamente qualificados e responsáveis, que visa ao endossamento democrático e à afirmação de solidariedade nas relações humanas”. 5 A reportagem Povo caranguejo foi publicada na revista Realidade, em edição de março de 1970. Tem quase 25 mil caracteres. Na capa, com foto de uma menina enlameada, havia a manchete Vida Corajosa. 6 A reportagem Sonhos e frustrações do Velho Chico foi publicada no Jornal da USP, ano XVIII, no 666, de 17 a 23 de novembro de 2003. O texto ocupa as páginas 10 e 11 da edição do jornal, tem quatro fotos e pouco mais de 16 mil caracteres. 7 A reportagem Sou suçuarana foi publicada no jornal O Estado de S.Paulo, de 20 de setembro de 2009. O texto ocupa a página J8 do caderno Aliás, tem cinco fotos e pouco mais de 8 mil caracteres. 8 A reportagem Memórias póstumas de um estudante da Medicina foi publicada no Jornal do Campus, jornal laboratório do curso de jornalismo da ECA/USP, edição no 54, de 14 de setembro de 1987. O texto ocupa parte da página 7 do jornal, sem fotos, e tem um total de quase 6 mil caracteres. 9 A afirmação é dita em um texto do livro Tempo de reportagem – histórias que marcaram época no jornalismo brasileiro, publicado com uma coletânea de treze textos do repórter, cada um deles com uma breve reflexão sobre a apuração, as escolhas narrativas em cada situação. Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas Referências BUBER, Martin. Do diálogo e do dialógico. São Paulo: Perspectiva, 1982. ______. Eu e Tu. São Paulo: Centauro, 2013. CARVALHO, Alfredo Leme Coelho de. Foco narrativo e fluxo de consciência: questões da teoria literária. São Paulo: Editora Unesp, 2012. CHRISTOFOLETTI, Rogério. A medida do olhar: objetividade a autoria na reportagem. 2004. Tese (Programa de Pós-Graduação em Jornalismo e Editoração – Doutorado) – Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP), São Paulo, 2004. DANTAS, Audálio. Povo caranguejo. 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Micro-história e jornalismo: aproximações O presente capítulo ancora-se nos pressupostos da micro-história na tentativa de compreender como a redução de escala de observação e a exploração exaustiva das fontes podem auxiliar na representação da vida das pessoas comuns na narrativa jornalística. Sob essa perspectiva teórico-metodológica serão analisadas as reportagens A floresta das parteiras e A guerra do começo do mundo, presentes no “livro de repórter” O olho da rua, da jornalista Eliane Brum. Carlo Ginzburg (2007) serve de parâmetro para se analisar os contextos sociais, históricos e, por extensão, jornalísticos a partir de uma escala reduzida. Seus trabalhos focalizam os indivíduos em detrimento dos agregados anônimos de longa duração. Desse modo, a micro-história tem se constituído como uma metodologia importante para o trabalho dos historiadores, principalmente, por ajudar na reconstrução de trajetórias e biografias. Tomando-se a microanálise como caminho epistemológico, nota-se que os acontecimentos e fatos assumem uma dimensão social, em que as narrativas engendram uma gama profusa de sentidos e promovem o aprofundamento dos aspectos históricos – adotando como termo central o indivíduo – em contraposição aos valores arraigados que colocam em primeiro plano a história social dominante. O trabalho de Eliane Brum pode ser concebido dentro dessa vertente – uma vez que a vida dos sujeitos ditos subalternos é elevada ao patamar do debate social e suas histórias emergem como acontecimentos jornalísticos. O estudo baseia-se também na articulação com o pensamento dos comentadores Henrique Espada Lima (2006) e Carlos Antonio Aguirre Rojas (2012). Richard Romancini (2007) pontua que os campos jornalístico e histórico guardam profundas semelhanças. Esse aspecto é constatado nas diretrizes teórico- metodológicas dos estudos sobre história do jornalismo e também nas investigações em que “o jornalismo serve de fonte ou objeto para a História” (2007, p. 24). Compreende-se que o campo jornalístico é clivado por práticas sociotécnicas e por linguagens. Desse modo, o fazer jornalístico instaura um intricado processo de interação – atravessado por dinâmicas de disputa que transformam o tecido social. A prática jornalística é pensada aqui como arena de significação e de inteligibilidade sócio-cultural, tendo-se a micro-história como processo hermenêutico para a compreensão e discussão do “livro de repórter” O olho da rua. A disciplina historiográfica forja seu aparato científico em fins do século XIX, assentando suas ideias sob as premissas do historiador alemão Leopold von Rank. 113 Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas O paradigma rankeano sedimenta suas matrizes de investigação à luz dos arquivos oficiais – nutrindo-se na crença de que os documentos dos governos e das autoridades garantem uma maior cientificidade e credibilidade aos estudos do campo da história. O modelo de von Rank apresenta marcas profundas dos ideais de objetividade científica – encontrados no positivismo de Auguste Comte. Este modelo de pesquisa histórica – chamado de tradicional – apresentará uma mudança de paradigma somente no século XX, com a primeira geração da Escola dos Annales, liderada por Lucien Febvre, Marc Bloch e Fernand Braudel, em 1929. As principais críticas ao modelo rankeano dizem respeito “à tentativa de superar o nível da descrição dos acontecimentos para alcançar uma análise das estruturas, ou seja, a compreensão dos mecanismos que presidem as mudanças históricas” (ROMANCINI, 2007, p. 26). Romancini (2007) coloca os pressupostos da Escola dos Annales dentro do que se denomina de paradigma “moderno” dos estudos historiográficos. Com o pós- 1968 emerge a concepção “pós-moderna” de pesquisa histórica, com a finalidade de entender o dinâmico e complexo devir social. Com efeito, a insatisfação com as teorias de viés holístico existentes – ou a dificuldade para construí-las – a fim de explicar a realidade social e as mudanças colocaram dificuldades ao paradigma “moderno”. Ao mesmo tempo, ensejaram as alternativas ou respostas, ao seu modo, do novo paradigma. Assim, em perspectivas mais relativistas da corrente “pós-moderna” a própria noção de que deva existir uma teoria global é vista como problemática ou superada (...). A possibilidade de realizar uma macroanálise seria uma ilusão cientificista. Propõe-se então – neste extremo relativista do paradigma – a feitura de diferentes discursos, “histórias” sobre ou para grupos particulares. (ROMANCINI, 2007, p. 27-28). É na confluência dessas discussões que a micro-história italiana alcança espaço privilegiado para pensar os contextos socioculturais e também a crise política, teórica e historiográfica. O olhar da história – antes consagrado aos processos macrossociais – direciona suas interrogações e problemáticas de pesquisa para os novos sujeitos sociais, como os estudantes, as mulheres, os migrantes e os anônimos. Há um deslocamento das análises totalizadoras para os processos microscópicos do social. O jornalismo desenvolvido por Eliane Brum, em O olho da rua, pode ser analisado à luz das matrizes analíticas presentes na micro-história italiana. O relato de Brum desvia a pauta jornalística das discussões hegemônicas para uma abordagem em que o sujeito comum aparece como o articulador social. Observa-se, nesse sentido, uma aproximação do campo jornalístico com a micro- história no que diz respeito à forma como se articulam os discursos, os sujeitos e os aspectos culturais. Pensar a narrativa jornalística de Eliane Brum a partir do arcabouço teórico da micro-história italiana constitui um trabalho de reflexão necessário – porque permite trazer para o primeiro plano as discussões sobre os anônimos e a constituição microanalítica dos contextos sociais e culturais. Para entender como as análises da micro-história podem auxiliar na compreensão da prosa jornalística de Brum é necessário investigar como essa corrente historiográfica se estruturou, quais 114 Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas são suas ferramentas de análise e os principais pensadores. Os primeiros debates sobre a micro-história remontam a década de 1970 em torno da revista Quaderni Storici1 – fundada em Ancona por Alberto Caracciolo - durante o outono de 1965. A revista mais tarde seria editada em Bolonha com a colaboração de diversos historiadores ligados à micro-história, como Edoardo Grendi, Carlo Poni, Giovanni Levi e Carlo Ginzburg. Lima (2006) explica que, é em torno da revista Quaderni Storici, que os principais textos programáticos e os primeiros trabalhos influenciados pela micro-história irão aparecer. Os Quaderni Storici são marcados por uma clara atitude interdisciplinar. A revista começa a ocupar um espaço destacável frente às demais publicações de história na Itália, como os Studi Storici, revista do Instituto Gramsci e a tradicional Rivista Storica Italiana. Suas discussões estão centradas na “amostra”, isto é, afasta- se de uma perspectiva epistemológica de se pensar o regional a partir do nacional; pelo contrário, tenta-se entender a “história local”, seus sujeitos e suas problemáticas a partir de um recorte circunscrito de análise. Rojas (2012, p. 89) alerta para a perspectiva problemática contida no termo micro-história que, ao contrário do que se pode supor, não busca pensar uma história de microespaços, microrregiões ou microlocalidades, isto é, “uma história local ou de espaços pequenos -, mas antes uma nova maneira de se enfocar a história”. Desse modo, o caminho traçado pela micro-história italiana sedimenta suas bases sobre os procedimentos de mudançade escalas no âmbito de observação e também de análises pormenorizadas das problemáticas históricas. Isso significa que ela utiliza o acesso aos níveis “micro-históricos” – as escalas pequenas ou reduzidas de observação, que podem ser locais, mas também individuais ou referidas a um fragmento, uma parte ou um elemento de uma realidade qualquer – como espaço de experimentação e de trabalho, como procedimento metodológico para o enriquecimento da análise. (ROJAS, 2012, p. 89). Nas páginas dos Quaderni Storici, os debates acerca do estudo microanalítico envolvendo a família e as comunidades do Antigo Regime são desenvolvidas por Edoardo Grendi, Giovanni Levi e Gérard Delile. O diferencial desses estudos iniciais, além de uma aproximação com a história oral e com a antropologia, dizia respeito à escala de análise. Em vez de se focalizar nas instâncias de longa duração e em vastos espaços geográficos, os estudos apontavam para uma investigação sobre comunidades, grupos familiares e indivíduos. Optava-se, portanto, por uma escala reduzida de observação. A justificativa dessa redução de escala estava no fato de que apenas no âmbito “microscópico” seria possível articular de modo mais consistente os vários perfis que as fontes seriais produziam – originalmente independentes entre si – em uma compreensão coerente da realidade social. As fontes seriais, tratadas em escala reduzida, não deveriam, portanto, ser consideradas apenas separadamente. Ao contrário, seriam combinadas entre si de modo a revelar, 115 Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas ainda que indiretamente, o conjunto de estratégias comuns e individuais que constituem o concreto das relações sociais. (LIMA, 2006, p. 62). A escala reduzida de observação constitui um elemento importante para se pensar os contextos microssociais – uma vez que permite uma visão mais ampla das dinâmicas cotidianas. Isso significa que a opção por uma escala particular de observação resulta em efeitos de conhecimento distintos. A variação de escala não quer dizer ampliar ou diminuir o corpus, porém, consiste em analisar as mudanças na forma e na trama. Atrelada à ideia de escala, apresenta-se a do “método nominativo”. Lima (2006) pontua que, em termos gerais, o “método nominativo” significa um exame histórico caracterizado pela interrogação sobre um espaço delimitado e pela necessidade de reconstituição da teia que reveste o tecido social em que os sujeitos estão inseridos. Dessa forma, como destaca Ginzburg, Poni e Castelnuovo (1991), em O nome e o como, a pergunta sobre o sujeito reconstitui as estruturas sociais. Os autores definem a micro-história como uma “prosopografia a partir de baixo”, isto é, apresentam- na como uma busca para reconstituir uma biografia coletiva, tentando colocar em primeiro plano as ações e pontos de vistas das chamadas classes subalternas. A corrente historiográfica italiana erige suas linhas temáticas e metodológicas, sustentando-se sob as bases da microanálise e da redução da escala de observação. A primeira tem as redes de relações sociais como processo catalisador e definidor. A segunda operação desdobra-se sobre problemas historiográficos, tendo as biografias e os estudos de caso como corpus de investigação privilegiados. A micro-história trouxe para o primeiro plano as discussões referentes aos sujeitos marginalizados, subalternos, as pessoas comuns. Nessa senda, destacam-se as obras O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição (publicado em 1976), de Carlo Ginzburg, e A herança imaterial: trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII (lançado em 1985), de Giovanni Levi. Igor Sacramento (2014) ressalta que os trabalhos referenciados no parágrafo acima procuram engendrar novos amálgamas entre o particular e o geral ao restringir a escala de análise ao plano do indivíduo comum: No lugar dos grandes personagens tidos como responsáveis pelos grandes acontecimentos, passou a fazer parte da história sujeitos subalternos, comuns e esquecidos. Por conta disso, a microanálise histórica se estruturou no jogo entre a descrição detalhada do que é enfocado com a relação com o contexto social mais amplo e que passa a ser complexificado pela análise do microssocial. (SACRAMENTO, 2014, p. 167). A microanálise tem se constituído como uma metodologia importante para o trabalho dos historiadores, principalmente, por ajudar na reconstrução de trajetórias e biografias. A questão central passa a ser a de problematizar os sujeitos colocando-os em diferentes contextos e relações sociais, salientando semelhanças e, principalmente, diferenças. Trazendo Ginzburg (2007, p. 264) ao debate: 116 Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas Reduzir a escala de observação queria dizer transformar num livro aquilo que, para outro estudioso, poderia ter sido uma simples nota de rodapé numa hipotética monografia sobre a Reforma protestante no Friul. (...) Pouco a pouco me dei conta de que uma grande quantidade de acontecimentos e conexões que eu ignorava totalmente contribuiu para orientar as decisões que eu imaginara tomar automaticamente: um fato em si banal, mas sempre surpreendente, porque contradiz as nossas fantasias narcísicas. Sob a perspectiva da microanálise, os acontecimentos e fatos assumem uma dimensão social, em que as narrativas articulam os sentidos e promovem o aprofundamento dos aspectos históricos – tomando como termo central o indivíduo – em contraposição aos valores arraigados que colocam em primeiro plano a história social dominante. O trabalho de Eliane Brum2 pode ser concebido dentro dessa vertente – uma vez que a vida dos sujeitos ditos subalternos é elevada ao patamar do debate social e suas histórias emergem como acontecimentos jornalísticos. Em duas obras bastante destacáveis, A vida que ninguém vê (2006) e O olho da rua (2008), Brum apresenta personagens como habitantes de favelas e trabalhadores que executam atividades simples e modestas. Mostra, por exemplo, a vida de um carregador de malas, uma mulher analfabeta cujo sonho é aprender a ler, parteiras que moram nas florestas da Amazônia, garimpeiros e idosos abandonados em casas de repouso. Para Cardoso (2016), diferente das bases do jornalismo referencial, a escrita de Brum prioriza “as vozes ordinárias”. A autora de O olho da rua deixa cair um olhar oblíquo sobre as fontes institucionalizadas, isto é, os valores-notícia que guiam sua prática estão assentados sob as bases da imersão no cotidiano e pela “visibilidade dos esquecidos sociais”. Apreende-se, a partir de Cardoso (2016), que o lugar de estudo sobre os anônimos configura-se como campo aberto à problematização. Essa atitude permite determinar a identidade dos sujeitos, os lugares sociais que ocupam, suas posições hierárquicas e o seu ordenamento para se colocar na disputa das representações sociais. 2. A floresta das parteiras e A guerra do começo do mundo A corrente investigação busca pensar os sujeitos subalternos na prosa jornalística de Eliane Brum. Nessa perspectiva serão analisadas as reportagens A floresta das parteiras e A guerra do começo do mundo presentes no “livro de repórter” O olho da rua. A pesquisa adota como aporte teórico-metodológico a micro-história italiana, tendo-se as pesquisas de Carlo Ginzburg como o leitmotiv para se discutir a presença das pessoas comuns na tessitura da prosa jornalística. O livro O olho da rua foi inicialmente publicado em 2008 e é resultado de reportagens produzidas por Eliane Brum para a revista Época. A obra foi lançada pela editora Globo e é composta pelas reportagens A floresta das parteiras, A guerra do começo do mundo, A casa de velhos, O homem estatística, O povo do meio, Expectativa de vida: vinte anos, Coração de ouro, Umpaís chamado Brasilândia, O inimigo sou eu 117 Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas e Vida até o fim. Barcellos (2008) escreve, no prefácio do livro, que o trabalho da reportagem “para Eliane, é um ato de entrega, de envolvimento intenso entre quem fala e quem escuta, por meio de uma relação preciosa de confiança mútua entre repórter e personagem” (BARCELLOS, 2008, p. 10). Santos (2014, p.2) pondera que a micro-história configura-se como um percurso metodológico que pode possibilitar a construção de uma “história dos sistemas comunicativos, a partir da trajetória individual”. Nessa senda, os estudos de Carlo Ginzburg permitem a arquitetura de uma modalidade de jornalismo centrado nos aspectos individuais, nas relações com o outro e nas formas de sociabilidades das classes subalternas na narrativa jornalística. Opera-se, dessa forma, uma rede de identidades sociais, de concorrências, de solidariedades e alianças. A figura do jornalista investe-se de uma série multifacetada de contextos e sujeitos com a finalidade de compreender e problematizar os fenômenos que medeiam os espaços histórico-sociais. Rompe-se com o tom homogeneizador da teia social (que privilegia a história vista de cima), deslocando-se para a ambiência dos processos individuais das classes subalternas - como forma de entender e articular contextos sociais, políticos e culturais. Sob esse viés é que se julga que os parâmetros da microanálise e da redução da escala de investigação podem ser problematizados à luz das reportagens A floresta das parteiras e em A guerra do começo do mundo. Para compor o enredo da reportagem A floresta das parteiras, Eliane Brum viaja ao Amapá – que no momento da escrita do texto – era o estado brasileiro recordista em partos normais. A narrativa da jornalista gaúcha é entrecortada pela descrição dos rios sinuosos e pelo ritmo dos remos, pela apresentação da floresta e, principalmente, por trazer para o âmbito de discussão a atividade “das pegadoras de meninos”. A história é urdida pelas vozes das parteiras. Nos locais em que não há maternidades, os pequenos vêm ao mundo pelas mãos das apanhadoras de crianças. A narrativa é tecida pelas “personagens” Maria dos Santos Maciel, a Dorica; Jovelina Costa dos Santos; Rossilda Joaquina da Silva; Tereza Bordalo; Cecília Forte; Delfina dos Santos; Maria Labonté; Maria Rosalina dos Santos; Nazira Narciso e Juliana Magave de Souza. Já em A guerra do começo do mundo, a atenção de Eliane Brum recai sobre o conflito judicial envolvendo a demarcação da reserva indígena Raposa-Serra do Sol, em Roraima. Na reportagem, a autora de O olho da rua não se atém a relatar as contendas que põem em campos antagônicos as figuras dos arrozeiros, dos indígenas e do exército. Sua narrativa se constitui a partir da arquitetura de diferentes vozes - de anônimos a figuras hegemônicas. O objetivo é tentar capturar a complexidade dos contextos sociais e a heterogeneidade dos sujeitos que compõem a sociedade roraimense. As reflexões sobre as reportagens A floresta das parteiras e A guerra do começo do mundo ancoram-se também no conceito de “livro de repórter” proposto por Marocco (2010, 2016) e Zamin (2011). Diferentemente da perspectiva de Lima (2009, p.26) que concebe o livro-reportagem como veículo impresso “não-periódico que apresenta reportagens em grau de amplitude superior ao tratamento costumeiro nos meios de comunicação jornalística periódicos”, a noção de “livro de repórter”, para Marocco, 118 Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas sustenta-se no valor hermenêutico do jornalismo, guiando-se pela crítica e pela interpretação. A pesquisadora corrobora que: Trata-se de um tipo de texto que se ocupa do jornalismo, para dele elaborar outro texto que oferece o desvendamento de certos processos jornalísticos, ou a crítica dos mesmos, em operações de produção de sentidos, em que o jornalista, naturalmente, fará um exercício de interpretação criativa do que é considerado jornalismo. (MAROCCO, 2010, p. 5). Zamin (2011, p.394) reitera que por meio da tessitura da narrativa, os “livros de repórteres” expõem um conjunto de práticas, formulam comentários e permitem “complexificar a compreensão do próprio jornalismo”. As reportagens em análise permitem a apropriação dos conceitos de micro-história e de “livro de repórter” para se pensar a constituição das narrativas jornalísticas. Marocco (2016) explicita que, para Eliane Brum, o texto jornalístico é substantivo, isto é, a tessitura da narrativa ancora-se na investigação, apuração e na escuta. A descrição e o aprofundamento sobre as “personagens” retratadas nunca constitui um mero bordado em prosa, mas apresenta-se como uma unidade de sentido para a composição do enredo da reportagem. Nesse sentido, para a jornalista gaúcha, o bom jornalismo é aquele que sabe ouvir os silêncios, que assimila as sutilezas e que se desloca em direção ao outro. Para abarcar a dimensão social, cultural e política que desempenham as parteiras, Brum se despe do regime de práticas do jornalismo e direciona-se para o íntimo de suas entrevistadas. O ouvir se converte em uma atitude heurística, interpretativa. Para a autora de O olho da rua, O que as pessoas falam, como dizem o que têm a dizer, que palavras escolhem, que entonação dão ao que falam e em que momentos se calam revelam tanto ou mais delas quanto o conteúdo do que dizem. Escutar de verdade é mais do que ouvir. Escutar abarca a apreensão do ritmo, do tom, da espessura das palavras – e do silêncio. (BRUM, 2008, p. 37). Em A floresta das parteiras e em A guerra do começo do mundo, observa-se que a construção da narrativa alicerça-se sob a perspectiva da microanálise e da redução da escala de observação, centrando-se nos sujeitos. Tais aspectos podem ser percebidos nos excertos a seguir: Do interior da floresta, elas vão surgindo tímidas, silenciosas. De pés no chão, sandálias de borracha. São pobres, as parteiras. Muitas nem dentes têm. Outras só comem farinha de tapioca. Ajudar a humanidade a vir ao mundo nunca lhes rendeu um tostão. “O que eu mais queria nesta minha vida era uma cama bonita”, suspira Cecília Forte, 66 anos, que nunca conheceu outro pouso para o corpo que não fosse uma rede de algodão. Quando a fome aperta o ventre, o coração capitula, ameaça parar. Moldada em casca dura, Cecília resiste. De partejar, ela confessa que nem gosta tanto. “O que eu mais gosto é de remendar roupa velha. Por quê? Ora, acho que todo velho gosta de remendar a roupa. É um pouco como remendar a vida. Todos dois, 119 Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas um pelo outro.” (BRUM, 2008, p. 32-33). Numa manhã comum no sul de Roraima, a maranhense Cleonice Conceição, de 36 anos, despenca do ônibus, traz no corpo a poeira dos caminhos. A fome azeda o estômago, o medo escala o esôfago. Pela mão arrasta os dois filhos, Silene, de quinze, e Rosenildo, de oito, assustados como ela, resignados também. Carregam um colchão emprestado, meia dúzia de roupas, as escovas de dentes penduradas na caixa de papel. Cleonice não tem um centavo. Gastou tudo o que amealhou com a venda de um guarda- roupa e de uma mesa na viagem de Santarém, no Pará, a Rorainópolis, a porta de entrada de Roraima. Não tem para onde ir. (BRUM, 2008, p. 49). As vidas de Cecília Forte e Cleonice Conceição trazem para o plano da análise as minúcias dos contextos sociais. As duas fazem parte, respectivamente, das reportagens A floresta das parteiras e A guerra do começo do mundo. Nos fragmentos percebe-se algumas características da micro-história, como a pesquisa exaustiva das fontes, a exposição narrativa do fato e a descrição pormenorizada das “personagens” e realidades. O enredo representa uma mudança epistemológica no tratamentoque é dado às fontes – porque rompe com o espaço sacralizado das personalidades hegemônicas – trazendo para a zona de discussão as narrativas oblíquas dos sujeitos anônimos, como pode ser percebido nas figuras da parteira Cecília e da retirante Cleonice. Essa escrita nas bordas se deve às táticas de resistência utilizadas por Eliane Brum – o que redunda em um modo particular de apurar os “desacontecimentos” e também à arquitetura de uma narrativa que se equilibra nas margens, tendo como leitmotiv os sujeitos subalternos. Marocco (2016) explica que para a autora de O olho da rua, a notícia não emerge como uma matriz da prática jornalística unicamente, mas como uma escolha histórica, cultural, política e econômica. A prosa de Brum opta pelos sujeitos comuns como forma de assimilar os aspectos históricos e culturais. Dessa forma, a jornalista gaúcha consegue adentrar por paisagens mais densas do tecido social e compreender como se formam as redes de relações de sentido, a estrutura social em suas complexas nuances e como se estabelecem a história dos sujeitos subalternos. Alicerçada sob essas diretrizes, Brum engendra uma espécie de narrativa em palimpsesto, em que os diálogos enredados com os sujeitos subalternos processam um universo heterogêneo de realidades, reproblematizam contextos e instauram novas interpretações sobre o mundo. Nos fragmentos em estudo, a realidade emerge como poliedro. A prosa de Brum busca trazer para a tessitura da reportagem as fraturas e as incongruências que atravessam os contextos históricos e culturais. A percepção sobre o mundo social alicerça-se, como se vê, na premissa de resgate das estratégias individuais e de grupos para assimilar de que maneira são processadas situações particulares no âmbito social da grande escala. Essa alquimia de visões de mundo pode ser percebida no conjunto de cenas alinhavadas por Eliane Brum para a composição das reportagens investigadas. 120 Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas A heterogeneidade que perpassa o sistema de normas sociais é verificada por meio do compósito de sujeitos e de vozes enredados na trama da sociedade roraimense, por exemplo. Fato constatado por meio do surgimento de “personagens” como o Maurício Habert Filho, do suíço Walter Vogel, do general Claudimar Magalhães Nunes, dos ianomâmis Chicão e Davi Kopenawa, dos arrozeiros Paulo César Quartiero e Genor Faccio e da retirante Cleonice Conceição, com os filhos e o esposo, Francisco Gildo dos Santos. As reportagens A floresta das parteiras e A guerra do começo do mundo apontam, sob esse viés, para a impossibilidade de o contexto social ser concebido como um continuum homogêneo, uma vez que a realidade é resultado do fazer humano, apresentando-se, portanto, como um dado problemático e complexo. Deduz-se, assim, que tanto a narrativa jornalística de Eliane Brum quanto a micro-histórica estão assentadas sob o mesmo terreno rugoso, alimentando-se dos mesmos sulcos e depressões. E é no conjunto desses interditos que as vozes subalternas alcançam repercussão e emergem como constructo social. Considerações finais As bases metodológicas da micro-história articulam processos de contextualização da vida social a partir de um compósito de ângulos e de percursos analíticos. Esse processo redunda na manifestação da realidade como poliedro. Suprime-se o lugar hegemônico de observação – tanto na narrativa historiográfica quanto na prosa jornalística de Eliane Brum – instaurando-se uma topografia em que a pluralidade dos sujeitos, as oportunidades de ação e protagonismo, a multiplicidade de linguagens e das práticas sociais emergem como um espaço de contestação e de desvio, trazendo para o primeiro plano a narrativa do sujeito subalterno como elemento heurístico, como revelação, como problemática. As reflexões sobre o “livro de repórter” O olho da rua são atravessadas aqui pelo campo da história, contudo, busca-se desentranhar o comunicacional como forma de compreender as afetações proporcionadas pela micro-história italiana na práxis jornalística. Sob essa perspectiva, quando se analisa as reportagens A floresta das parteiras e A guerra do começo do mundo, percebe-se que a narrativa jornalística se estrutura como espaço privilegiado para se analisar as dinâmicas sociais e culturais que se estabelecem em contextos econômicos e históricos específicos. Com a utilização do arcabouço teórico-metodológico advindo da micro-história, busca-se alcançar a abertura do conceito de jornalismo para refletir que o contexto político-cultural não é estático, mas que é atravessado por um complexo matiz de cores sociais. A confluência entre os parâmetros da micro-história e do “livro de repórter” articulam de forma problematizadora os mundos social, cultural, histórico e da prática jornalística. Nesse aspecto, a microanálise se caracteriza como um processo relacional. Os “instrumentos” micro-históricos podem ser utilizados para a sondagem dos espaços sociais e culturais. 121 Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas Os nexos analíticos são cartografados por meio da redução da escala de observação, da microanálise e da atenção às trajetórias anônimas, que abrangem a diversidade das transformações sociais. Por fim, percebe-se que a micro-história e os “livros de repórteres” refletem uma perspectiva epistemológica que busca pensar a prática jornalística longe dos parâmetros etnocêntricos, afastando-se, assim, do caráter homogeneizador da realidade social, cultural, histórica e jornalística. Notas 1 Rojas (2012) explica que a revista Quaderni Storici se constitui como o espaço de expressão e propagação da perspectiva micro-histórica na Itália. Inicialmente chamada de Quaderni Storici delle Marche, a revista traz em seu número inicial, a primeira tradução italiana do famoso artigo de Fernand Braudel “História e ciências sociais: a longa duração”. Em 1970, depois da reorganização de seu comitê e de perder o complemento “delle Marche”, o periódico passa a funcionar como o principal espaço de concentração e de difusão da corrente micro-histórica. A partir de 1981, Carlo Ginzburg e Giovanni Levi publicam pela editora Einaudi, a coleção Microstorie, que passa a concentrar grande parte dos pensamentos, das publicações e do arcabouço teórico-metodológico da micro-história italiana. Nesse período, a revista Quaderni Storici perde parte de seu status de núcleo estruturador dos principais debates sobre a micro-história. 2 A jornalista se destaca pela qualidade textual, preocupação estética na forma de escrever sobre o cotidiano e sua predileção por uma narrativa humana – centrada nas pessoas e nos “desacontecimentos”. Brum trabalhou durante onze anos como repórter do jornal Zero Hora, em Porto Alegre, e dez como repórter especial da Revista Época, em São Paulo. Publicou os livros Coluna Prestes: o avesso da lenda (1994); A vida que ninguém vê (2006); A menina quebrada e outras histórias (2013); Meus desacontecimentos: a história da minha vida com as palavras (2014); O olho da rua (2008, 2017), além do primeiro romance, Uma duas (2011). Também codirigiu os premiados documentários Uma história Severina Laerte-se e Gretchen filme estrada. Referências BARCELLOS, Caco. Prefácio. In: BRUM, Eliane. O olho da rua: uma repórter em busca da literatura na vida real. São Paulo: Globo, 2008. BRUM, Eliane. O olho da rua: uma repórter em busca da literatura da vida real. São Paulo: Globo, 2008. CARDOSO, Ercio do Carmo Sena. Disposições sobre anônimos. In: ENCONTRO ANUAL DA COMPÓS. 25. Anais... Universidade Federal de Goiás, 07 a 10 de junho de 2016. 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Determinados formatos narrativos, hoje naturalizados, nasceram e se atualizam vinculados às exigências das rotinas temporais e de circulação urbana. Evocamos aqui o clássico A cidade das letras, de Angel Rama (2015), para sugerir que as cidades se constituem como linguagem mediante pelo menos duas redes superpostas: uma física, material, constituída pela experiência do múltiplo e do fragmento; e a simbólica, que a ordena, a interpreta e propõe determinada ordem sujeita à resistência e à reinvenção. Entendemos a cidade a partir da perspectiva de um construto simbólico, lugar socialmente criado em um contexto histórico- espacial; texto feito de camadas e superposições, cenário de disputa de relatos e perspectivas e que tem no jornalismo um de seus emblemáticos artífices (CERTEAU, 2014; BARTHES, 1993; PESAVENTO, 2004; LIMONAD; RANDOLPH, 2002). Ao explorar determinadas espacialidades, o jornalismo é um produtor privilegiado de sentidos, oferecendo critérios para interpretar a realidade citadina. Este artigo discorre, na primeira parte, sobre as relações amplas entre jornalismo e narrativa a partir da metáfora da cidade-texto, tensionando, posteriormente, estes pressupostos em um estudo sistemático que tem como foco a construção narrativa da rua, um dos textos emblemáticos da urbe, tendo como objeto a seção Brasiliana da revista semanal CartaCapital1. Considerando que ancoramos nossa discussão sobre um objeto jornalístico impresso, relembramos a associação entre a cidade e a escrita, entre a cidade e o livro, como signos representativos da modernidade ocidental expressa no desejo ideal e abstrato de fazer da paisagem uma ordenação dividida em partes, enxergando-a através de textos prenhes de significados. Se um parágrafo, uma página ou um capítulo pressupõe um projeto de leitura, o plano de fazer do habitar uma forma de escrita também estrutura a divisão, a funcionalidade, a identidade dos espaços, a toponímica das ruas (DI FELICE, 2009)2. 124 Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas O tecido da cidade Partimos da metáfora da cidade como um texto, figura encontrada em autores de diferentes perspectivas, como da história, da antropologia e da semiologia, as quais se refletem no jornalismo. A cidade seria como uma obra escrita por diversos autores, caminhantes que moldam frases à medida que desenham percursos. De um conjunto de sentenças, formam-se os pequenos textos, nos quais encontramos múltiplas construções de sentido. Esse espaço é muito mais do que algo demarcado pela objetividade da cartografia, é constructo, nunca fixo, a partir da apropriação de seus pedestres. Vale apontar que esta ideia do que tomamos por cidade segue na trilha da perspectiva de Limonad e Randolph (2002)3: lugares socialmente estabelecidos em relação a um contexto histórico-espacial. E lugares, nessa linha de pensamento, não são localidades, mas são entendidos como uma criação com caráter simbólico, realizada por meio de representações. Se os objetos que compõem o lugar têm autonomia de existência, explica Santos (1988), ao mesmo tempo eles não têm autonomia de significação, já que as funções de prédios, ruas, calçamentos podem mudar ao longo do tempo. Ao voltarmos à ideia de cidade como um texto, apontamos para interessantes analogias encontradas no trabalho de Certeau (2014) entre o ato de andar pela urbe e o exercício de enunciação. Nos passos do caminhante da cidade – que escolhe e traça percursos em razão de tempo, afetos ou memórias –, espaços e lugares são “escritos”. O próprio ato de caminhar seria um ato de enunciação, percurso subjetivo, descrição como ato criador. Segundo Certeau (2014, p. 164), “o processo de apropriação do sistema topográfico pelo pedestre é uma realização espacial do lugar (assim como o ato de palavra é uma realização sonora da língua) e implica relações entre posições diferenciadas, ou seja, ‘contratos’ pragmáticos sobre a forma de movimentos”. As improvisações da caminhada reservam ainda mais semelhanças aos rearranjos de uso da língua. Assim como na linguagem, a norma oferece variantes que podem ser utilizadas ou não pelo falante, que faz a escolha e abre portas para este ou aquele significado; o caminhante, ao privilegiar diferentes percursos em momentos distintos, multiplica o número de possibilidades que existem para além do que é oferecido pela ordem urbanística planejada. A esta combinação de usos e estilos ou variação de percursos que se assemelham a “figuras de estilos”, Certeau (2014) chamará de retórica da caminhada. Entre elas estão a sinédoque e o assíndeto. Essas figuras ambulatórias são complementares, uma vez que uma delas representa o papel de um “mais”, ao dilatar um elemento de espaço, e a outra, pela elisão, cria um “menos” (CERTEAU, 2014). Entretanto, o conflito entre a carga semântica que a história de uma cidade carrega e a necessidade de ter quantificados e planificados todos os elementos desse espaço coloca em desalinho muitos urbanistas. Pois se uma cidade é formada por elementos fortes e elementos neutros, por elementos marcados e elementos não marcados,como afirma Barthes (1993), esse processo de significação entra em confronto direto 125 Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas com a realidade dos dados objetivos dos mapas. Isso porque a cidade fala a seus habitantes, que, ao percorrê-la e habitá-la, criam diferentes significações sobre ela. Para além das metáforas, Barthes (1993) pondera que os significados extraídos da cidade estão sempre em mutação, portanto, uma análise não deveria pretender fixá- los, pois “a cidade é uma escritura, quem se move pela cidade, quer dizer, o usuário da cidade (que somos todos), é uma espécie de leitor que, segundo suas obrigações e deslocamentos, isola fragmentos do enunciado para atualizá-los secretamente” (BARTHES, 1993, p. 264, tradução nossa). Das inúmeras categorias de leitores da cidade, desde o sedentário ao forasteiro (BARTHES, 1993), o antropólogo da comunicação urbana Massimo Canevacci (1997) trabalha com a ideia de cidade polifônica, lida e interpretada por diferentes vozes, cada qual com suas regras, estilos e improvisações. Ele defende que, para se fazer ver a polifonia da cidade, é preciso estar atento às inúmeras interações que se dão entre ela e seus diferentes espectadores. Esse olhar sobre a cidade leva em consideração que a comunicação urbana é do tipo dialógico, e não unidirecional, e atravessada pelos fluxos emotivos dos espectadores. Estes, ao escolherem um percurso por uma rua e não por outra, por exemplo, agem sob influência de critérios subjetivos e imprevisíveis: “As memórias biográficas elaboram mapas urbanos invisíveis” (CANEVACCI, 1997, p. 22). Como espaço construído, a cidade é também a construção de significados e os entendimentos que foram sendo fixados pelos homens ao longo do tempo. Isso é o que está embutido na ideia de cidade palimpsesto4, trazida a partir da perspectiva histórica e defendida por Pesavento (2004). Para chegar às cidades soterradas ou desvendar suas múltiplas combinações possíveis a partir de superposição, substituição ou composição entre formas do passado e do presente que compõem a paisagem urbana, é preciso se valer da vontade e da atitude hermenêutica (PESAVENTO, 2004). Assim, os textos ocultos e os sentidos das experiências de outros tempos da cidade podem se desvendar aos olhos de quem assume essa posição. A ideia de palimpsesto remete também a ver além, aproximando-se do princípio literário da mise en abyme, ou seja, da história que contém outra história, um “tecido, onde os diferentes fios se articulam em trama na montagem das camadas superpostas. Neste caso, é o autor/tecelão da cidade imaginária que deve construir enredos, descobrir caminhos e apresentar a composição da trama” (PESAVENTO, 2004, p. 28). A rua como sulco e a escritura da flânerie Ao tomar o mapa de uma cidade nas mãos, podemos enxergar um emaranhado de traços viários e um conjunto de nomes de pessoas, acontecimentos, datas importantes que nem sempre dizem diretamente sobre a memória, os afetos, as batalhas de cada um desses lugares. Obra em constante construção e ressignificação, a cidade deixa também vestígios nos produtos do jornalismo, que age como mediador dos possíveis textos nela contidos ao organizar os discursos sobre ela. Entre os textos da cidade, tramados a partir de imaginários superpostos, temos a rua. 126 Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas Relatamos, pela concepção de Rodrigues (2014), esse espaço de interações como um território de constituição da sociabilidade. Nesse contexto, é interessante pensar, conforme sugere o autor, a etimologia da palavra rua para as línguas portuguesa e francesa. Rua e rue vêm do latim ruga, ou seja, como rugas de um rosto, as ruas são, para essas comunidades de fala, como sulcos cavados na superfície. Gerações deixam marcas inscritas nas ruas, que podem ser identificadas em seus traçados, toponímia ou monumentos. Por mais que estejam escondidos, os sulcos da história da cidade estão à disposição para serem decifrados em um jogo de interações que dá espessura às ruas (RODRIGUES, 2014). Esta rua que Rodrigues (2014) chama de espaço público por excelência é também espaço simbolicamente demarcado como referencial para o jornalismo. Do processo de urbanização intensa entre os séculos XVIII e XX à cidade informacional do século XXI, o vínculo entre as experiências vividas na cidade e a mediação exercida pelo jor- nalismo integra uma continuidade histórica. Tal relação está na base do surgimento da atividade jornalística moderna. O valor da rua é produto da modernidade, que se expressa no avanço de diferen- tes cidades a partir do século XIX. Deste momento nasce a importância da rua para o repórter, uma vez que a cidade grande, as grandes avenidas e a presença da multidão aparecem como requisito à existência do flâneur, ou, no mínimo, à sua ação (SAL- GADO, 2006). O cronista e repórter João do Rio (1908), que personificou a saída do jornalista do espaço fechado, afirmou que a rua é um fator de vida nas cidades e só poderia ter sua psicologia conhecida por aqueles que apresentam espírito vagabundo e cheio de curiosidades, a quem define como flâneur, recuperando o termo expandido por Charles Baudelaire no século XIX. Por meio da obra e do legado do escritor fran- cês, o conceito é reapresentado por Benjamin (1991) sob o manto de sua importância histórica e operacional. Ele é usado para uma espécie de reconhecimento no labirinto da modernidade, um instrumento de orientação e mapeamento da sociedade: aristo- cracia, burguesia, trabalhadores, produtores de cultura e os desclassificados. Para Benjamin (1991), o flâneur é considerado o primeiro paisagista da cidade ao produzir textos (fisiologias) imprimindo um tom inofensivo às narrativas da urbe, tendo nas passagens5 de Paris no início do século XIX seu lugar emblemático. À ati-À ati- ati- vidade desse sujeito estava atrelada a disposição ao ócio e ao devaneio, mas era também um detetive atento, que olhava, observava e classificava (FEATHERSTONE, 2000). Nessa arte do flâneur havia uma hermenêutica do olhar, que buscava tornar o estranho familiar e o familiar, estranho. Novamente aqui surge a cidade como um texto a ser inscrito, lido, reescrito e relido (BENJAMIN, 1991; BOLLE, 2000). Se a flânerie tinha em sua essência o locomover-se pela cidade sem um propósito a não ser o protesto ao tempo de produção capitalista, a ociosidade como hábito foi assumindo o contorno hostil do indivíduo desocupado e desempregado. Ameaçado de extinção, fascinado pelo espetáculo das mercadorias, o flâneur como um “caleidoscópio dotado de consciência” torna-se um abandonado na multidão e se entrega ele próprio à situação de mercadoria. Entre as ocupações da burguesia a que teve de se curvar, estava também o jornalismo. Sua base social, escreve Benjamin (1997), foi o jornalismo. A cidade torna-se condenada à existência de capital e, fruto 127 Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas disso, a cultura também se transforma em mercadoria. Tendo, portanto, como parâmetro os pressupostos da cidade como um texto que pode ser lido e reinterpretado, sintetizamos a seguir inferências feitas após o estudo da série Brasiliana da revista semanal CartaCapital por meio da análise da narrativa conforme sistematizada por Motta (2013) para aplicação em estudos de jornalismo e apoiada em apontamentos de Ricoeur (1994). A seção Brasiliana da revista CartaCapital Em agosto de 2001, quando CartaCapital entrou no time das revistas semanais de informação6, surgia Brasiliana. É uma seção composta normalmente por duas páginas espelhadas, com fotos, localizada após o índice, as cartas dos leitores e alguns anúncios. Quase sempre é a reprodução do relato sobre algum lugar, personagem ou situação. A cartola Brasiliana é a mais recorrente,mas pode trazer reportagens de lugares de fora do país, quando receberá a cartola correspondente. Por exemplo, Americana, Inglesa, Palestina. Pela leitura de seus textos, percebe-se que, ao longo de 15 anos de produção da seção, são adotadas formas narrativas menos amarradas a recursos como lead e uso de fontes convencionais, por exemplo. No início, aproximava-se mais do gênero crônica, mas, com o tempo e a variação de autores, foi ganhando formatos mais híbridos. Em uma pesquisa que teve a coluna como objeto de estudo (HORN, 2017), e por meio de uma análise flutuante dos textos veiculados entre agosto de 2001 e agosto de 2016, percebeu-se que o assunto cidade era bastante presente na seção: 272 textos dentre 742 narrativas percorridas. Pelo interesse em estudar a seção pelo viés das articulações entre jornalismo e cidade, e pensando a urbe como um texto composto por fragmentos menores, a rua foi tomada como referência para estudo do objeto. Por meio de uma nova leitura flutuante entre os 272 textos, chegou-se a 11 narrativas que tratavam de diferentes ruas7. A apresentação desta análise será conduzida, a seguir, por meio de três eixos: a narração sobre a rua, em que são apontados os percursos na rua traçados pelo jornalista-narrador a partir do ponto de vista do ato de narrar; as personagens e os conflitos da rua que são relatados nos textos, observados no plano do conteúdo narrativo; e os efeitos sobre a espacialidade da rua, quando buscamos identificar as estratégias de figuração do jornalista-narrador no plano do discurso8. A narração sobre a rua Ao olhar para o conjunto de matérias, foi possível fazer algumas observações sobre como se dá o ato de narrar na seção e alguns resultados sobre as escolhas narrativas feitas pelo jornalista-narrador para construir uma realidade sobre a rua. Relatamos aqui as principais inferências sobre os 11 textos estudados por meio de duas matérias exemplares – As babás da Buenos Aires (FERNANDES, 2001) e A Paulista invisível (MARTINS, 2006), cujas ponderações apontam para indícios 128 Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas representativos do conjunto de textos que têm a rua como protagonista. O texto As babás da Buenos Aires (FERNANDES, 2001) foi publicado em 19 de dezembro de 2001, sob a cartola Brasiliana. A partir de um diálogo entre personagens, começa a descrição de uma manhã em que babás zelam pelas crianças. O espaço é urbano, uma praça, a Buenos Aires, localizada em um bairro elitizado de São Paulo, o Higienópolis. Então, o leitor é levado a uma série de conversas entre as cuidadoras. Quanto a A Paulista invisível (MARTINS, 2006), trata-se de uma Brasiliana publicada em 4 de outubro de 2006, que tem como objetivo mostrar as personagens anônimas da Avenida Paulista. Para isso, o narrador percorre a via atrás de histórias para contar9. O primeiro ponto a se atentar é que parece não existir um protocolo de posição do narrador que seja próprio da coluna. Embora a ausência do uso de primeira pessoa pelo narrador seja característica da maioria dos textos, podemos observar que, quase sempre, existe a presença do jornalista-narrador como conceituado por Resende (2006). Para o autor, quando o jornalista se permite observar e contar a história e coloca-se como um outro que vê, seu texto passa a ser habitado pelo narrador-jornalista10. Em As babás da Buenos Aires (FERNANDES, 2001), se ele apaga sua presença ao não deixar marcas de enunciação, ao mesmo tempo leva o leitor a “passear” pela praça, por meio de seu olhar. Os pimpolhos passeiam. Os tênis são Nike, as camisas, Polo Ralph Lauren. A bolsa da mamadeira da Maria Antonia do Tom é Vuitton. Uma babá confessa a outra a paixão por perfumes: – Ah, o vinte e quatro vírgula seis (na verdade o 24) da Faubourg, quinhentos e cinquenta reais. – Eu só compro Avon. – Avon? Avon? Eu, só importado. (FERNANDES, 2001, p. 7). Ao descrever uma cena cotidiana do local, o comportamento do narrador é como o de um cinegrafista, buscando causar no leitor a sensação de ver uma película em que se desenrolam os acontecimentos. Essa percepção é possível porque ele opta por um percurso pela praça que se mostra mais estático do que móvel. Já em A Paulista invisível (MARTINS, 2006), o jornalista-narrador sai a percorrer a avenida em busca de histórias, ou seja, o percurso pela rua é móvel – algo que podemos perceber em outros sete textos dos 11 pesquisados, incluindo também uma variação entre ritmos lentos e percursos velozes, refletindo a aceleração das grandes cidades. No primeiro parágrafo do texto, o jornalista-narrador descreve uma avenida que tanto apresenta significados em mutação, se pensarmos em uma semântica da cidade (BARTHES, 1993), quanto demonstra que ela pode ser um lugar polifônico, onde se sobrepõem diversas interações com aquele espaço (CANEVACCI, 1997). Há muitas avenidas paulistas. Uma é a vitrine das grandes corporações financeiras, dos executivos empertigados, da arquitetura moderna que reveste os imponentes edifícios, como a torre espelhada do Banco Bic. Outra é o palco das constantes manifestações políticas e comemorações 129 Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas esportivas, a via que melhor exemplifica a lentidão do trânsito paulistano na hora do rush. Outra ainda é o lar de 12 mil habitantes, que se orgulham de ter acesso a uma ampla rede de bares, restaurantes, cinemas, museus e espaços culturais a poucos passos de casa, ou melhor, do apartamento. (MARTINS, 2006, p. 6). O caminho que “percorre” para descrever a via, neste primeiro momento, é como a figura ambulatória que amplifica o detalhe, conforme Certeau (2014). Em sua proposta de mostrar outra visão sobre o espaço, ele percorre a superfície, vai ao subterrâneo e retorna à superfície, simulando seu próprio andar. Na parte introdutória reproduzida, ao enumerar como a avenida “fala” por meio da arquitetura, dos rituais, do estilo de vida conhecido como característico deste espaço, o jornalista-narrador não nega a existência dessas vozes da Paulista, tidas como as mais conhecidas. Todavia, ele deixa os executivos empertigados e passa, então, a focar na descrição das personagens que sustentam uma outra Paulista, quando lança luz, a partir de sua caminhada, à invisibilidade dos artistas de rua, camelôs, religiosos e mendigos vistos sempre a partir de sua perspectiva, mas agora em um novo olhar sobre a via. Os subterrâneos também são os locais de trabalho do engenheiro Gilberto Dimitrov e do eletricista Fernando Baptistucci, funcionários da Eletropaulo com mais de 20 anos de carreira. Responsáveis pela manutenção de 90 transformadores e de 41 quilômetros de cabos da rede subterrânea da Paulista, eles trabalham em cubículos de 20 metros quadrados cravados no subsolo da avenida. [...] De volta à superfície, um prédio desperta a atenção. Abandonado há mais de dez anos, o edifício Dumont Adams, ao lado do Masp, tem paredes pichadas e vidros quebrados. [...] A alguns metros dali, Adolfo Rodrigues toma conta de um casarão tombado pelo patrimônio histórico. (MARTINS, 2006, p. 7). No caso de As babás da Buenos Aires (FERNANDES, 2001), essa relação entre o jornalista-narrador e a rua se revela ao percebermos que ele parece ocupar uma manhã de trabalho para escutar as histórias das personagens que encontra na praça. Ele ouve para depois filtrar e reproduzir aqueles diálogos. Daquilo que escolhe narrar – uma série de conversas entre babás –, surge uma nova moldura sobre o espaço, o que mostra que as ruas da cidade podem revelar diferentes formas de interação dos habitantes com esses locais, lembrando que trechos da cidade podem ter significados diferentes para cada um. Aqui, ele opta por dar voz e visibilidade às babás que ocupam aquele ambiente, ao mesmo tempo em que mostraque ali também estão mendigos, seguranças e enfermeiras, demarcando a cidade como espaço de diferenças. A maneira como os jornalistas se deslocam pelas ruas revela que a cidade não obedece a caminhos impostos. Como pedestres, eles percorrem essas ruas de maneira própria, assumindo atalhos e opções em nome daquilo que pretendem revelar sobre elas. Isso, junto às escolhas feitas pelos jornalistas-narradores, os transforma em figuras centrais, protagonistas, ainda que muitas vezes ancorados na narração em terceira pessoa. Daquele espaço da realidade urbana, arbitram sobre o que narrar e como fazê-lo, ou seja, assumem a mediação narrativa e dão uma nova inteligibilidade a esses espaços. 130 Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas As personagens e os conflitos da rua Antes de analisar a disposição dos conflitos na narrativa jornalística, é preciso observar a escolha dos locais que foram retratados, uma vez que os espaços dizem muito sobre os tipos de embates que ali se estabelecem. Das ruas que fazem parte dos 11 textos estudados, seis são na capital de São Paulo, uma na Grande São Paulo, uma em Vitória, no Espírito Santo, e três no exterior (Buenos Aires, na Argentina, Belém, na Cisjordânia, e Jerusalém, em Israel). Dentre as localizadas na cidade de São Paulo, duas são em bairros de classe média alta, três em região central e duas em periferia. Apontar as seleções dos locais, de onde personagens e conflitos serão destacados, é identificar também o enquadramento ou o ponto de vista do narrador. No caso dos textos analisados, as opções realizadas mostram um alinhamento do jornalista-narrador ao posicionamento à esquerda de CartaCapital no espectro político-ideológico, pois mesmo nos textos ambientados em bairros nobres, como nos dois exemplos que escolhemos mostrar aqui, quem ganha visibilidade são as personagens periféricas. Os espaços, diz Bourdieu (2007), refletem as hierarquias da sociedade e as distâncias sociais, que podem se desenhar pela distribuição de capital desses locais. Nas Brasilianas, encontramos descrições de espaços marcados pelas diferenças econômicas e sociais. A partir dos tipos de conflitos que se estabelecem nesses cenários, percebe-se o quanto as personagens são também produto do lugar onde vivem, trabalham, interagem. Essa capacidade de domínio do espaço pela posse do capital fica bastante evidente no texto As babás da Buenos Aires (FERNANDES, 2001). Dezenas dessas profissionais que cuidam de filhos de celebridades têm, em um trecho da praça, a Pracinha da Mãe, um lugar assegurado para levar os pequenos, ainda que observadas por seguranças. A ambientação, em uma zona elitizada, ressalta ainda mais a discrepância socioeconômica das personagens. Ao mesmo tempo em que o narrador cita que o bairro é de “cidadãos de posses quase sempre acima da média e ainda incrustado de apartamentos na casa do milhão de dólares”, ele revela que “o piso salarial das babás ronda os seiscentos reais” (FERNANDES, 2001, p. 6). No mesmo texto, apresenta valores de objetos que custam mais do que a remuneração pelo trabalho ali iluminado, como a carteira Fendi, de R$ 700, que uma das empregadas ganhou da patroa. As personagens que ilustram as 11 narrativas selecionadas para estudo são sempre pessoas comuns, da vida cotidiana, de feitos menos extraordinários e mais inusitados, e raríssimas vezes são descritas de forma a ganhar mais complexidade. No texto de Fernandes (2001, p. 6), o protagonismo é de um tipo social, as babás, e talvez por isso mesmo sejam tratadas apenas pelo primeiro nome, Maria Amélia, Eliete, Ililda, Lina, entre outras, mas ao mesmo tempo designadas como “Maria Amélia, babá da Maria Antonia do Tom Cavalcante”, “Eliete, babá da Ana da Silvia Poppovic”. No entanto, cabe ressaltar que o tratamento das personagens apenas pelo primeiro nome, também observado em outros textos do conjunto, reforça a ideia de que as cidades, como palco 131 Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas do cotidiano, são, sobretudo, habitadas por anônimos. Já na narrativa A Paulista invisível (MARTINS, 2006), a “invisibilidade” pode ser percebida pela opção do narrador pelo tipo de personagem que vai retratar. Com o objetivo de mostrar que a avenida é também “arena de personagens anônimos”, em vez de apresentar executivos e empresários, ele fala sobre o homem-placa sonhador Rogério Gonçalves, a prestadora de serviços para o Ibope Eliana Carvalho e o missionário hare krishna Rãmalandra Rrpa Dos, entre outros, todos com nome e sobrenome, mas trabalhadores informais. O propósito deste texto nos ajuda a perceber que, tanto em A Paulista invisível (MARTINS, 2006) quanto nas outras narrativas, o jornalista-narrador é também personagem das histórias. Neste caso específico, a motivação é dar visibilidade para outras visões de mundo, como de panfleteiros, artistas de rua, vendedores ambulantes e carroceiros. Ele tenta construir um novo sentido sem negar os outros da avenida. As personagens podem ser divididas conforme as funções que exercem no conflito, expostas pela forma como interagem com a avenida e os outros habitantes desse espaço: as que clamam por atenção, as que apelam de forma sutil e as que preferem se manter na discrição. O principal conflito na Avenida Paulista é socioeconômico. Vemos a história de trabalhadores informais que lutam pela atenção de outros transeuntes para desempenhar suas funções e conseguir um sustento, mas também é possível destacar que, nessa informalidade, vivem um embate com o poder público. Na história, temos artistas, vendedores e carroceiros que, muitas vezes, têm seus pertences e produtos confiscados pela polícia, que representa a fiscalização do Estado. Assim como temos também o conflito de um espaço em que os moradores de rua não são “bem-vindos”. Abandonado há mais de dez anos, o edifício Dumond Adams, ao lado do Masp, tem paredes pichadas e vidros quebrados. Ao redor dele, moradores de rua disputam um lugar coberto. Em breve, serão enxotados pelo porteiro José Luiz da Silva, de 33 anos. Responsável pelo turno da noite, ele tem a tarefa de manter ladrões, bêbados e maltrapilhos afastados. “Sempre que encontro um mendigo, peço para ele sair. Às vezes fico com pena e deixo o cara passar uma noite.” (MARTINS, 2006, p. 7). O jornalista-narrador apresenta o porteiro como alguém que tem esta função, mas que, muitas vezes, é acometido também pelo sentimento de pena. Ao mostrar que o conflito dá lugar à compaixão, ele aponta que, neste espaço, ocorrem distanciamentos, mas também empatia. Os efeitos sobre a espacialidade da rua A narrativa jornalística é conhecida por uma retórica própria, que busca a maior coerência possível com a realidade por meio de algumas estratégias que buscam a produção de efeitos de veracidade nos textos. Muitos são encontrados nas Brasilianas. O principal deles é o uso do tempo presente pelos jornalistas-narradores. Um dos efeitos de elidir a distância da narração do momento dos fatos é fazer 132 Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas com que o leitor se aproxime mais daquilo que é narrado. Ao fazer isso, o jornalismo, como mediador dos textos da cidade, também constrói os tempos desses locais, ambientando a vida do dia a dia. Essa aproximação com a rotina das ruas das cidades é bastante forte nestas Brasilianas. Outras estratégias de efeitos de real11 se repetem nos textos: precisão na localização dos espaços, idade e nome completo das personagens, estatísticas, comparações de dados e localizações temporais. As narrativas também apresentam falas das personagens em discursos diretos e, com menos frequência, por discurso indireto. Esse recurso busca causar a impressão de que não houve intervenção do narrador no discurso das personagens.As fotos presentes nas Brasilianas costumam ser das personagens relatadas ou dos lugares visitados pelos jornalistas, uma forma de provar que elas são pessoas que existem no mundo reportado. Algo que ganha ainda mais força quando as imagens são do próprio repórter, como no caso do texto sobre a Avenida Paulista – e se repetiu em outros cinco textos do conjunto analisado. Junto às artimanhas para produzir coerência entre o narrado e o mundo real, o jornalista-narrador pode utilizar recursos da retórica para alcançar diferentes estados de espírito, como surpresa, espanto, compaixão, deboche, riso, entre outros. Assim como também a forma em que o narrador dispõe os acontecimentos em princípio, meio e fim. Em A Paulista invisível (MARTINS, 2006), por exemplo, o narrador recorre a muitos adjetivos na introdução para causar no leitor a perspectiva de uma avenida de magnitude: “Grandes corporações”, “imponentes edifícios”, “ampla rede”. Quando apresenta “o homem-placa sonhador”, busca fazer com que o leitor sinta simpatia pela primeira personagem citada por Martins. É também ao panfleteiro que o autor atribui um sorriso maroto ao final de uma fala, deixando que o leitor decida se o que o homem disse era verdade ou não. O homem-placa sonhador é Rogério Gonçalves, de 30 anos. Por 700 reais mensais, o profissional passa mais de 12 horas por dia em pé a distribuir panfletos. Dos oito colegas que disputam o mesmo trecho da calçada, é o único que não tem um banquinho de descanso. E raramente perde o bom humor. “Um cara ciumento já tentou me bater porque chamei a namorada dele de ‘loirinha’. Fui mal interpretado, eu só queria distribuir os papéis”, conta, com um sorriso maroto. (MARTINS, 2006, p. 6). Além dessa liberdade maior de organização do texto, também percebemos nas colunas que os narradores algumas vezes se aproximam do uso de uma linguagem mais literária, com traços de ironia e humor, como neste trecho de As babás da Buenos Aires: “Manhã de uma quarta-feira. Na pracinha da mãe, um círculo com chão de pedras portuguesas e bancos de madeira no alto da Buenos Aires, 52 babás cuidam das crianças e das vidas. Das suas e das alheias” (FERNANDES, 2001, p. 6). Com isso, eles alcançam uma maior humanização dos relatos, que resulta em uma melhor compreensão dos conflitos vividos. No caso das 11 narrativas analisadas, percebemos que, ao humanizar os embates das personagens, os jornalistas- 133 Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas narradores desses textos revelaram ruas que são palcos de diferentes interações. Isso não apenas demonstra a polifonia dessas vias, como desenha esses espaços em molduras nas quais as diferenças sociais da cidade estão demarcadas, onde também se dão interações afetivas e identidades são sedimentadas, repensadas ou disputadas. Considerações finais O jornalismo, cujo campo se institucionalizou no compasso da Modernidade e se desenvolveu atrelado ao crescimento urbano, exerce papel fundamental na produção de conhecimento sobre a cidade. Em Brasiliana, encontramos narrativas capazes de mediar esse conhecimento ao articular em mosaico determinados fragmentos que revelam os sulcos da urbe, um mapa possível de travessia sobre o cotidiano das ruas. Ao analisar os percursos dos jornalistas-narradores pelas vias escolhidas, bem como as personagens e os conflitos relatados, além das estratégias de figuração adotadas, os resultados apontaram que, pela forte presença de alguém que pesquisa a realidade a ser retratada, escolhe e filtra fragmentos desse quadro e não se prende a recursos do discurso jornalístico como institucionalizado, as Brasilianas são um exemplo de fazer jornalístico mais plural sobre a cidade. São retratos construídos por um profissional que fugiu dos itinerários oficiais tanto do discurso jornalístico quanto do percurso físico por esses espaços. Por meio de atalhos que tangenciaram o “discurso utópico e urbanístico” (CERTEAU, 2014, p. 160), foram capazes de alargar o horizonte de sentidos sobre as ruas. Na descrição minuciosa de cenas, na forma como escolheram amplificar detalhes do mapa urbano e no uso de uma linguagem às vezes mais próxima da literária, que ajudou a humanizar os relatos, esses jornalistas-narradores foram capazes de mostrar como a cidade-texto apresenta diferentes matizes. Ou seja, na sua função mediadora, este autor-tecelão assumiu o arbítrio na seleção de personagens, percursos, conflitos para relatar que deram nova inteligibilidade a esses espaços, muitas vezes contrapondo-se à sua moldura consensual. A análise dos 11 textos apontou para a composição polifônica das ruas, pois os enquadramentos mostraram diferentes vozes em disputa, seja qual fosse a classe dos conflitos – embora muitos fossem de ordem socioeconômica. São também vias que refletem a condição da cidade, muito mais do que lugar de acolhimento e pertencimento, como espaço da produção de diferença. Se no século XIX foi o estranhamento em relação à experiência urbana que fez surgir a figura do fisiologista, tipo que foi às ruas para produzir relatos que visavam a apaziguar inquietações, a tentativa hoje de colocar muros visíveis e invisíveis em tudo aquilo que seja estranho ou diferente na realidade das cidades demonstra a relevância do repórter em sair das redações para contar histórias, produzir novas escrituras sobre o já escrito. Pelas considerações feitas, reassumimos a crença de que o jornalismo, aqui representado pela seção Brasiliana, ao revelar em suas narrativas jornalistas- narradores abertos à pluralidade das ruas e ao desvelar o diário de seus habitantes, pessoas comuns ou não, que interagem nesses espaços e elaboram novos sentidos 134 Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas sobre eles, atua como um importante mediador de um alargamento da compreensão do cotidiano das urbes. Trata-se da letra do jornalismo ordenando a cidade, lançando sobre ela um manto de projeções, sensível à sua dimensão de tecido sempre aberto e móvel. Notas 1 Dissertação de mestrado “A construção narrativa da rua na seção Brasiliana da revista CartaCapital” defendida em março de 2017 junto ao Programa de Pós- -graduação em Comunicação e Informação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). 2 No mesmo livro, o autor desenvolve as formas eletrônicas do habitar, lembran- do que o território deslocativo, cuja paisagem é desfocada pelo movimento, encontra- -se na gênese da metrópole moderna, do trem ao olhar distraído do flâneur na rua ou na vitrine. O desenvolvimento dos meios eletrônicos vai possibilitar, cada vez mais, experiências híbridas de intersecção de espaços e territórios materiais e imateriais, a expansão de metageografias comunicativas, espacialidades eletrônicas e digitais estendidas ao infinito, novas superfícies de escrita e de leitura das relações sociais e do espaço (DI FELICE, 2009; LEMOS, 2007). 3 Pesquisadores na área de planejamento urbano, Ester Limonad e Rainer Ran- dolph, no ensaio Cidade e lugar: sua representação e apropriação ideológica (2002), compilam o pensamento de alguns autores para pensar uma diferenciação entre ci- dade e urbano (ou urbanização) e ancoram suas ideias na hipótese de que a urbani- zação é uma condição generalizada e extrapola os limites físicos da cidade. As novas formas de interações proporcionadas pela internet não apenas modificam o dia a dia das pessoas, mas a convivência no âmbito cotidiano. Neste artigo, os autores partem da suposição do fim da cidade em um mundo urbanizado não para tomar isso como uma possível realidade de agora ou no futuro, mas como desafio para buscar uma definição de cidade. 4 Imagem arquetípica para a leitura do mundo, palimpsesto é uma palavra gre- ga do século V a. C. Tratava-se de um pergaminho do qual se apagava a primeira escritura