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Tratamento jurídico da AIDS

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TRANSMISSÃO DOLOSA DE AIDS: TENTATIVA DE HOMICÍDIO?
Andrei Zenkner Schmidt
Referência Bibliográfica: SCHMIDT, Andrei Zenkner. Transmissão Dolosa de
Aids: tentativa de homicídio?. Última Instância Revista Jurídica,
www.ultimainstancia.com.br, 2005.
A Aids não tem cura. Ninguém jamais ousou afirmar (e provar) o contrário.
Seria correto, entretanto, afirmar que a Aids mata? Poderíamos reconhecer que uma
pessoa contaminada pelo vírus HIV irá, com razoável grau de certeza, morrer em razão
do vírus?
Tais indagações, parece-nos, são relevantes para que possamos enfrentar a
intrincada questão penal relacionada à transmissão dolosa do vírus HIV. Temos algumas
decisões proferidas por Tribunais brasileiros (v., por exemplo, o HC 9378/RS – julgado
no STJ) reconhecendo que o tipo penal incidente é o de tentativa de homicídio.
Argumenta-se, normalmente, que tal tipificação decorre do fato de a transmissão da
doença ser idônea para a caracterização do homicídio na forma tentada. Estaria correto tal
entendimento? Será que a possibilidade de uma conduta acarretar a morte de alguém é
capaz, por si só, de ensejar tal tipificação? Todos sabemos que a gonorréia e a sífilis, por
exemplo, são doenças que, caso não tratadas devidamente, podem até levar o
contaminado à morte. Alguém, contudo, teria a coragem de afirmar que aquele que
transmite gonorréia a alguém, ainda que com a esperança de que a vítima venha a morrer,
responderia por tentativa de homicídio?
Ainda são muito precoces as descobertas acerca dos efeitos que o uso dos
coquetéis de medicamentos possuem no tratamento da doença. A terapia combinada
previne o desenvolvimento das infecções, diminui a carga viral e aumenta a contagem de
CD4. Algumas semanas após o inicio do tratamento, muitas pessoas sentem que
recuperaram o apetite e o peso e, ainda, sua energia e bem-estar. Pode-se, inclusive,
recuperar ou aumentar o interesse sexual. Entretanto, ainda não se sabe com certeza
durante quanto tempo a combinação de drogas irá manter seus benefícios: até agora,
mostrou-se efetiva por, pelo menos, dois anos (cf. www.aids.org.br/tratamento.asp).
Estima-se que em mais da metade dos usuários do coquetel a doença esteja estagnada,
embora nada possa garantir que, em alguns anos, a carga viral torne a aumentar ao ponto
de os medicamentos tornarem-se inficazes. Todo esse problema, então, origina duas
premissas científicas atuais: a) a AIDS não tem cura; b) o paciente contaminado, não
necessariamente, irá sucumbir à doença.
Parece evidente que o Direito penal não pode permanecer inerte a essas
questões. Inicialmente, é importante frisar que não se está mitigando a gravidade e a
relevância jurídico-penal da conduta daquele que transmite dolosamente o vírus HIV. O
problema, na verdade, é outro: estaria, o Direito penal brasileiro, aparelhado para tipificar
condutas dessa natureza? Penso que a resposta é negativa. Com efeito, não basta, para a
tipificação de uma conduta, que a conduta do agente tenha adequação típica subjetiva, até
mesmo porque o crime impossível – causa de ausência de tipicidade - está caracterizado
pela intenção criminosa do agente, sendo que sua conduta é tão tosca ao ponto de não ser
possível, num caso concreto, a realização do delito. Pense-se, por exemplo, na conduta de
alguém que, ao receber um diagnóstico incorreto de HIV-positivo, põe-se a tentar
transmitir a (falsa) doença a outras pessoas. É evidente que, por força do art. 17 do
Código Penal, não poderíamos falar em qualquer punição ao nosso personagem, e isso
por uma singela razão: só a maldade não pode ser objeto de punição. Conseqüentemente,
não é o fato de alguém pretender transmitir Aids, ainda que com a intenção de matar
alguém, que poderá autorizar, por si só, a adequação típica no crime de tentativa de
homicídio.
O problema, creio, é de tipicidade objetiva: a) quem transmite Aids não tem o
domínio do acontecer causal, ou seja, embora a transmissão da doença seja controlável
pelo agente, o mesmo não se pode afirmar em relação ao resultado morte; b) se a ciência
não é capaz de afirmar, com relativio e satisfatório grau de certeza, que uma pessoa
contaminada pelo vírus HIV irá morrer, parece temerária e precipitada a conclusão no
sentido do crime de homicídio tentado. Quando alguém deflagra um disparo de arma de
fogo contra um terceiro, pode-se ressaltar que o resultado morte, apesar de não
impreterivelmente verificar-se, está dentro de um certo domínio pela conduta do agente.
Por outro lado, o grau de letalidade de um disparo de arma de fogo é bastante razoável.
Não estamos trabalhando com juízos de certeza, mas sim de probabilidades: aquele que,
com a intenção de matar alguém, deflagra um disparo e acerta exatamente o local em que
havia mirado, pode contar, com alto grau de probabilidade, que irá atingir o resultado
morte. Será que aquele que transmite dolosamente a Aids pode contar com o mesmo grau
de certeza?
Essas considerações estão a indicar que os problemas de adequação típica
(lembre-se de que sequer aventamos a questão da transmição culposa) da conduta de
transmissão dolosa do vírus HIV, bem como a relevância jurídica do tratamento penal da
matéria, apontam para a necessidade de um novo tipo penal específico, cuja consumação
estivesse associada à mera transmissão dolosa da doença, consignando, com resultado
qualificador, a morte da vítima.

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