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UNIVERSIDADE DE MOGI DAS CRUZES VICTÓRIA BEATRIZ RAMALHO A POSSIBILIDADE DO ABORTO NO CASO DE ESTUPRO MARITAL Mogi das Cruzes, SP 2018 UNIVERSIDADE DE MOGI DAS CRUZES VICTÓRIA BEATRIZ RAMALHO 11141102711 A POSSIBILIDADE DE ABORTO NO CASO DE ESTUPRO MARITAL Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Universidade de Mogi das Cruzes – Curso de Direito como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Direito. Prof.ª Orientadora Dra. Luci Mendes de Melo Bonini Mogi das Cruzes, SP 2018 VICTÓRIA BEATRIZ RAMALHO A POSSIBILIDADE DE ABORTO NO CASO DE ESTUPRO MARITAL Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Universidade de Mogi das Cruzes – Curso de Direito, como requisito parcial para obtenção de título de Bacharel em Direito. Aprovado em: BANCA EXAMINADORA Componente da Banca – Titulação, Nome Instituição a que pertence Componente da Banca – Titulação, Nome Instituição a que pertence Componente da Banca – Titulação, Nome Instituição a que pertence A POSSIBILIDADE DO ABORTO EM CASA DE ESTUPRO MARITAL Victória Beatriz Ramalho1 Luci Mendes de Melo Bonini2 RESUMO: Esta pesquisa tem como tema o aborto nos casos de estupro dentro do casamento, explorando a possibilidade de estupro nas relações conjugais e a análise da possibilidade do aborto sentimental decorrente deste ato, uma vez que, nos tempos atuais, ainda existe a ideia de que a mulher é subordinada a satisfazer os desejos sexuais de seu companheiro independente de sua vontade, perpetuando a cultura do estupro. Os objetivos do presente trabalho foram: a) realizar uma revisão doutrinária para elencar posicionamentos de doutrinadores acerca do referido tema; b) apontar questões sobre a possibilidade de estupro dentro do casamento, bem como a possibilidade do aborto legal decorrente deste ato; e c) buscar entendimento em nossos tribunais nos últimos anos sobre esse assunto. Este trabalho teve como método não só a revisão doutrinária, em que há diversas posições sobre o tema, bem como o estudo das leis, jurisprudência de diversos tribunais e artigos jurídicos. Palavras-chave: Estupro Marital. Aborto Sentimental. Subordinação. Cultura do Estupro. 1 INTRODUÇÃO Ao analisar o crime de estupro é possível chegar ao desfecho de que ele existe em todas as civilizações desde o início dos tempos, porém há desequilíbrio no que diz respeito à punição da prática. Embora seja um crime que causa aversão na sociedade por violar a liberdade sexual da vítima, existem situações onde a prática do delito é tolerada, como por exemplo, quando há conjunção carnal não consentida dentro da relação conjugal, também conhecido, corriqueiramente, como estupro marital. A convivência conjugal implica na vida em comum no lar conjugal do casal, inclui-se nessa perspectiva a vida sexual dos cônjuges, que parte doutrina denomina como sendo “direito-dever” nomeada pelo Direito Canônico, assim como jus in corpus, que significa ter direito sobre o corpo, fazendo referência ao direito do homem sobre 1 Bacharelanda do Curso de Direito pela Universidade de Mogi das Cruzes, SP, victoria.beeatriz@live.com 2 Doutora e Mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC, SP e Professora Universitária pela Universidade de Mogi das Cruzes, SP, luci.bonini@gmail.com o corpo da mulher, tais expressões evidenciam a sexualidade na vida do homem que em algumas vezes supera a necessidade comum do ser humano, tornando-se doentio e, muitas vezes, ocasionando o estupro. Vale salientar, nesta presente introdução, que no estupro marital, apesar de cometido entre cônjuges, muitas vezes, também é respaldado de brutalidade, crueldade e violência que, em alguns casos, passam impunes, pois por se tratar de sexo cometido no casamento, que deveria ser fundado em amor e respeito, pode se tornar um estupro cruel, violento e brutal. A razão principal da escolha do presente tema foi a controvérsia doutrinária, já que uma parte da doutrina adota a posição de que a relação sexual se trata de direito- dever, ou seja, o direito do homem sobre o corpo da mulher, e a outra parte entende que se há violência ou grave ameaça o marido deve ser responsabilizado pelo crime de estupro, levando também em consideração a falta do consentimento da vítima, no caso a esposa. No que tange o crime de aborto, previsto na Parte Especial do Código Penal nos artigos 124 a 128, daremos enfoque no aborto sentimental, previsto no inciso II do artigo 128 do referido código, permitido em casos de uma gestação decorrente de violência sexual, tendo em vista que os doutrinadores entendem que a gestante não deve ser obrigada a gerar uma criança sabendo que esta não foi concebida por amor, trazendo-a ainda mais frustações. Neste sentindo, o presente trabalho irá discutir a possibilidade do aborto na gravidez decorrente do estupro dentro do casamento. Para a discussão referente a esse tema, o presente trabalho se encontra dividido em dois capítulos. Primeiramente irá tratar do crime de estupro, conceito, sujeitos, elementos, bem como as hipóteses de consumação e tentativa. Já o segundo capitulo, tratará do crime de aborto, espécies e meios abortivos, bem como as hipóteses do aborto legal e, por último, irá abordar o principal assunto: o aborto no caso de estupro dentro do casamento. 2 DO CRIME DE ESTUPRO O crime de estupro, previsto no artigo 213 do Código Penal, tutela a liberdade sexual e inviolabilidade carnal que, em hipótese alguma, deve ser levada em consideração a moral da vítima, uma vez que vai de encontro com a moral e a dignidade sexual, conforme aduz Mirabete (1999). O Código Penal, no seu artigo 213, previa, originalmente, o tipo penal do estupro, com redação dada pela Lei N.º 2.8.48/1940, a qual narrava que o estupro era a prática de “Constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça”. Nota-se que o referido delito só permitia como vítima a pessoa do sexo feminino Mais adiante, a Lei N.º 12.015/2009 alterou a redação do tipo penal e passou a garantir a tão falada igualdade para todos, tendo em vista que atualmente não há qualquer restrição de gênero para a vítima da violência sexual, uma vez a referida Lei incluiu a expressão “alguém", conforme segue: “Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso” Nesse sentido, pode-se analisar outra consequente alteração do Código Penal, de modo que o estupro passou a ser crime comum, ou seja, pode ser praticado por qualquer pessoa contra qualquer pessoal, o que não era possível anteriormente, já que o mesmo era reconhecido como crime próprio, que só poderia ser consumado com a conjunção carnal e realizado somente pelo homem contra a mulher. No que concerne ao ato libidinoso, podemos entender qualquer ato que satisfaça a vontade do criminoso, com o emprego de violência ou grave ameaça, não incluindo fotos, escritos ou imagens. É ofensa material de ordem sexual, como por exemplo, um simples beijo lascivo pode ser considerado atentado violento ao pudor e, pela ótica da Lei N.º 12015/09, será considerado estupro. Hoje, o crime mencionado pode ser realizado por meio de vários atos decorrentes de uma atividadepositiva do agente, como por exemplo, o ato de constranger, porém somente pode ser cometido de forma vinculada, ou seja, só pelos meios de execução previstos no Código Penal que são: violência ou grave ameaça. Ultimamente, o criminoso que comete o referido crime acaba sendo favorecido, uma vez que, anteriormente, em casos como este, era usado o artigo 69 do Código Penal, sendo o agente penalizado pelo concurso de crimes materiais. Atualmente, se o criminoso mantém conjunção carnal e em seguida comete com a vítima qualquer outro ato libidinoso, só responderá pelo crime único de estupro previsto no artigo 213 do mesmo código. Dessa forma, vale ressaltar o entendimento do nosso Superior Tribunal de Justiça que afastou a possibilidade do concurso de crime no presente caso, impossibilitando a dupla punição, sendo, consequentemente, unificado o referido entendimento. Ademais, vale ressaltar que presente crime de estupro é considerado crime material, que necessita de resultado naturalístico, ou seja, a mudança no mundo exterior em decorrência do ato praticado. Sendo assim, o crime restará consumado quando ocorrer a conjunção carnal ou ato libidinoso em razão da efetiva a lesão a liberdade sexual da vítima, podendo ser praticada por um só agente e não se admiti em hipótese alguma a modalidade culposa. Por fim, vale ressaltar que o crime de estupro, em qualquer de suas modalidades, tentado ou consumado, é considerado crime hediondo, pois este está previsto no artigo 1º, inciso V, da Lei N.º 8.072/90 (Lei de Crimes Hediondos). 3 DO ESTUPRO MARITAL Desde que o mundo existe, a mulher é colocada em uma posição de subserviência, tornando-se e sendo vista como um objeto, primeiramente, comandada pelo seu genitor e irmão ou irmão e, após o casamento, pelo marido. Hoje, com a figura da mulher cada vez mais presente mercado de trabalho, ocupando papéis que antigamente só era aceito por homens, a submissão da mulher vem sendo minimizada e o feminismo tem se tornado, cada dia mais, uma realidade. Mesmo com toda evolução da mulher na sociedade, o estupro marital ainda é algo pouco visualizado, porém bastante recorrente, tendo em vista que, mesmo nos dias atuais, ainda prevalece o pensamento arcaico na sociedade que a mulher deve satisfazer os desejos sexuais de seu companheiro mesmo contra sua própria vontade. Além do mais, vale ressaltar que os crimes contra a dignidade sexual são de difícil comprovação e, muitas das vezes, não há sequer uma investigação pelo fato da vítima do abuso sentir vergonha, preferindo guardar para si quando essa situação acontece dentro de sua própria casa, onde ela deveria se sentir protegida pelo autor do delito, que o é seu marido. É onde a situação fica ainda mais gravosa. No âmbito jurídico, existem duas correntes sobre esse assunto, a primeira adotada por juristas mais antigos, como Hungria (1958), que afirma ser impossível o crime de estupro cometido pelo marido em relação a sua esposa, por entender que a relação sexual entre casais é uma das obrigações e qualquer um dos cônjuges tem o direito de exigi-la. Nesse mesmo sentindo, Noronha (1990, p.70) afirma que o ato praticado pelo marido não constitui, em princípio, crime de estupro, quando a razão da esposa para não querer a relação sexual se tratar de motivo fútil ou mero capricho de sua parte, pois a mulher só poderia se escusar-se se o marido, por exemplo, estivesse afetado por moléstia venérea. A segunda corrente, definida pelos juristas Damásio de Jesus e Mirabete, prevalece o entendimento de que é plenamente possível o crime de estupro na relação entre marido e mulher, pelo simples fato de a lei não permitir o uso da violência ou grave ameaça em qualquer tipo de relação. Conforme Damásio de Jesus explica (2000, p.96): Entendemos que o marido pode ser sujeito ativo do crime de estupro contra a própria esposa. Embora com o casamento surja o direito de manter relacionamento sexual, tal direito não autoriza o marido a forçar a mulher ao ato sexual, empregando contra ela a violência física ou moral que caracteriza o estupro. Não fica a mulher, com o casamento, sujeita aos caprichos do marido em matéria sexual, obrigada a manter relações sexuais quando e onde este quiser. Não perde o direito de dispor de seu corpo, ou seja, o direito de se negar ao ato sexual [...]. Assim, sempre que a mulher não consentir na conjunção carnal e o marido a obrigar ao ato, com violência ou grave ameaça, em princípio caracterizar-se-á o crime de estupro, desde que ela tenha justa causa para a negativa. E, nesse sentido, Mirabete (2007) completa essa ideia: Embora a relação carnal voluntária seja lícita ao cônjuge, é ilícita e criminosa a coação para a prática do ato por ser incompatível com a dignidade da mulher e a respeitabilidade do lar. A evolução dos costumes, que determinou a igualdade de direitos entre o homem e a mulher, justifica essa posição. Como remédio ao cônjuge rejeitado injustificadamente caberá apenas a separação judicial. Contudo, Bittencourt (2008) aduz: O marido, à evidência, pode também, ser sujeito ativo de estupro contra a própria mulher (parceira). O chamado “débito conjugal” não assegura ao marido o direito de “estuprar a mulher”; garante-lhe tão somente, o direito de postular o término da sociedade conjugal. Os direitos e obrigações de homens e mulheres são, constitucionalmente, iguais (artigo 5º, I, da Constituição Federal). Para um melhor entendimento, Teles (2006), diz o seguinte: A oposição da mulher ao ato sexual não precisa ser justificada, nem motivada. Basta que ela não o queira. Seja porque não o quer com a pessoa do agente, seja porque não quer naquele momento ou nas condições propostas ou sugeridas. Simplesmente porque não quer, porque está em sua liberdade querer ou não, qualquer que seja a razão. A mulher não está obrigada à conjunção carnal nem quando o agente é seu próprio marido. As relações sexuais entre marido e mulher, companheiros em união estável, concubinos, namorados ou noivos serão sempre, segundo o ordenamento jurídico brasileiro, consentidas por ambos. Diante desses entendimentos e ao analisar o já mencionado artigo 213 do Código Penal, nota-se que o mesmo deve ser aplicado em qualquer situação onde tenha ocorrido violência e grave ameaça, pois em situações como essas, a vítima se vê obrigada a manter relação sexual, independentemente de sua vontade, sendo ela esposa ou não do autor deste delito. Nesse sentindo, é necessário também o estudo da Lei N.º 11.340/2006, conhecida como Maria da Penha, que trouxe ainda mais relevância sobre essa questão da violência sexual contra a mulher no âmbito familiar, conforme podemos analisar no artigo 7º do referido diploma legal: São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras: III - a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos Força-se ainda mais o que já foi dito no Código Penal, que essa ação é uma conduta totalmente ilegal e em todo caso deve haver a punição. Vale ressaltar que o consentimento do ofendido afastaria a ilicitude de tal ato, uma vez que se a mulher aceitasse o ato, o crime não mais existiria. Outro ponto a ser abordadoé a comprovação da materialidade do delito, conforme o entendimento de Nucci (2002): Não se desconhece, por certo, a dificuldade probatória que advém de um estupro cometido no recanto doméstico, inexistindo muitas vezes, testemunhas da violência ou da grave ameaça, mas também porque a singela alegação do cônjuge por ter sido vítima de estupro pode dar margem a uma vindita de ordem pessoal, originária de conflitos familiares Importante mencionar que o tema em questão, por mais que não seja tão exposto em nosso cotidiano, é muito presente na sociedade, até mesmo em obras fictícias como, por exemplo, a série Game Of Thones, baseada nos livros de George R.R Martin, atualmente exibida na emissora HBO, em que a personagem Sansa Stark é obrigada a se casar com o Lorde Ransay Bolton e, logo após o casamento, é estuprada pelo mesmo sem qualquer pudor. Infelizmente, na vida real, esse tipo de ato é pouco denunciado, pois a vítima, muitas vezes, não sabe do seu direito ou até mesmo por medo do que uma denúncia pode trazer como consequência, tendo em vista que núcleo familiar seria drasticamente desfeito. A prova disso é a pesquisa realizada em nosso país no ano de 2014 pelo Instituto de Pesquisa Aplicada (IPEA), onde 25% (vinte e cinco por cento) das pessoas entrevistadas concordam com a ideia de que a mulher deve manter relações sexuais com seu marido, mesmo sem sua vontade e que isso não se trata de estupro. Diante disso, mais uma vez fica claro que em nossa sociedade ainda impera o pensamento de que o homem é superior a mulher, sendo extremamente necessária a mudança da mentalidade social, para que essa violência e os danos consequentemente causados por ela ultrapasse os lares e seja cada vez mais combatida. 4 O CRIME DE ABORTO O crime de aborto, está previsto nos artigos 124 ao 128 do Código Penal e, diferente do crime de estupro, o direito penal adota o crime de aborto em duas modalidades, seja ela dolosa ou culposa, que de alguma forma lesionam o bem jurídico, que é caracterizado como bem valioso, portanto merece total proteção, que no presente caso se trata do feto. Sabe-se que o direito à vida é reconhecido e amparado pelo ordenamento jurídico, de uma forma mais vasta, havendo proteção a vida desde o momento da concepção, mesmo que o feto concebido ainda não seja considerado uma pessoa, até porque ainda se encontra em um estágio de formação, porém possui personalidade jurídica, não de forma independente, que só irá ocorrer após o nascimento. Contudo, o direito à vida é reconhecido a partir da concepção daquele ser humano ainda em formação, portanto o encerramento desse processo que ocorre durante a gestação é qualificado como aborto. Neste sentindo, é importante ressaltar que o direito penal se preocupa com a conduta de pessoas e dessa forma o aborto espontâneo, aquele causado de forma natural, é isento de conduta, não sendo objeto de atuação do direito penal. Recorrendo ao ensinamento de Mirabetti (2007), que sustenta: Aborto é a interrupção da gravidez com a destruição do produto da concepção. É a morte do ovo (até três semanas de gestação), embrião (de três semanas a três meses) ou feto (após três meses), não implicando necessariamente sua expulsão. O produto da concepção pode ser dissolvido, reabsorvido pelo organismo da mulher ou até mumificado, ou pode a gestante morrer antes da sua expulsão[...]. O artigo 124 do Código Penal trata do crime de aborto como crime de mão própria, já que para ser considerada autora do presente delito, requer-se uma característica especial, ou seja, deve a autora estar gravida. Até porque, nesse caso especifico, a realização do crime será feita por ela mesmo ou mediante sua autorização, podendo a pena de detenção variar de 1 (um) a 3 (três) anos. Quanto ao sujeito passivo, nesse caso, trata-se do embrião ou o feto que ainda está em desenvolvimento. Não devendo a gestante ser configurada como vítima, mesmo que sofra qualquer tipo de lesão em decorrência desta conduta criminosa, até porque no direito penal não se admite a incriminação por autolesão. Nesse sentido, é importante ressaltar que não existe a possibilidade da modalidade culposa, pois a gestante age querendo e assumindo o resultado, seja por ela mesmo produzindo ou autorizando outra pessoa a praticar o encerramento da gravidez, causando a morte do nascituro Conforme já informado no presente trabalho, é possível a tentativa do crime previsto no artigo 124 do Código Penal, uma vez que é complemente possível que iniciado o procedimento a morte do embrião ou feto não ocorra, por possibilidades alheias à vontade da autora, ora gestante. Já o Artigo 125 do Código Penal, estuda a hipótese do aborto por terceiros sem que haja prévia autorização da gestante, tratando-se de uma conduta de livre e espontânea vontade do autor, onde a pena de reclusão varia de 3 (três) a 10(dez) anos. Para Capez (2005, p. 119), é a maneira mais onerosa desse crime, merecendo mais atenção do nosso ordenamento jurídico. Para a configuração desse crime é necessária a falta da aprovação da gestante, caso contrário, a prática desse ato será também enquadrado no referido artigo 124 do Código Penal, tendo a gestante como autora e o terceiro quem provocou o aborto, responde pelo artigo 126 do mesmo código. No crime em tela, qualquer pessoa pode atuar como sujeito ativo, já que não é necessário possuir uma característica especial, tratando-se de crime, denominado pela doutrina, como comum. Em compensação, no polo passivo, para Bittencourt (2001, p. 158), temos dupla subjetividade, já que as vítimas de tal delito podem ser o nascituro, bem como a gestante, que sofreu integridade física, pois foi submetida a tal procedimento sem que houvesse ciência e concordância de sua parte. A consumação do crime se dá com a morte do feto, não sendo relevante se a morte ocorreu no interior do ventre da vítima, ora gestante, ou pela expulsão do feto do corpo da mãe, já que, de qualquer forma, houve o resultado pretendido pelo agente, ou seja, a morte do feto. Para Nucci (2002, p. 617), a tentativa do crime previsto no artigo 125 do Código Penal é completamente possível, tendo em vista que, ao tentar a realização do procedimento, o agente pode ser surpreendido por uma circunstância alheia a sua vontade, configurando a modalidade tentada do crime. Quanto ao artigo 126 do Código Penal, este aduz a possibilidade da gestante junto com terceiro, de forma consciente, realizar o procedimento para a provocação do aborto, resultando na morte do embrião, podendo a pena de reclusão ser fixada em 1 (um) a 4 (quatro) anos. Nesse caso, o referido crime pode ser considerado "plurissubjetivo", não adotando a modalidade prevista no Código Penal de concurso de agentes, pois cada um dos sujeitos ativos do crime irão responder sozinhos pelo delito provocado, tendo a gestante que responder diante do Artigo 124, conforme já explicado anteriormente e o terceiro de acordo com o Artigo 126, ambos do Código Penal. Por ser crime comum, o sujeito ativo pode ser qualquer pessoa, não sendo necessário ser a gestante. No que tange ao sujeito passivo, esse deve ser configurado somente pelo nascituro que ainda está em desenvolvimento. Nesse caso, a gestante não será configurada no rol do sujeito passivo, já que tal conduta foi praticada com sua permissão, mesmo que o procedimento venha lhe causar lesão corporal de qualquer natureza ou até mesmo a morte. Como sabemos, o crime de estupro é material, tendo sua consumação confirmada com a morte do embrião em decorrência do procedimento ilegal realizado.Já no que diz respeito à modalidade tentada, essa é completamente possível, no caso de o agente ser pego de surpresa por situações alheias a sua vontade que acabam impedindo o resultado, ou seja, a morte do feto. No mais, de uma forma mais exemplificada, vamos tratar do aborto necessário, praticado por médico, previsto no artigo 128 do Código Penal, onde só é possível quando a gestante está correndo risco de morte e não há outra maneira de preservar a sua vida, a não ser praticando o aborto, não sendo de maneira nenhuma punido, conforme o referido artigo aduz. No mesmo sentindo, Cunha (2009) salienta: Para o primeiro caso (aborto necessário), indispensável o preenchimento de três condições: aborto praticado por médico: caso seja necessária a realização do aborto por pessoa sem habilitação sem habilitação profissional do médico (parteira, farmacêutico, etc.), apesar de o fato ser típico, estará o agente acobertado pela discriminante do estado de necessidade; o perigo de vida da gestante: não basta o perigo para a saúde: a possibilidade do uso de outro meio para salvá-la; não pode o médico escolher o meio mais cômodo, pois se houver outra maneira, que não a interrupção da gravidez, para salvar da vida gestante, o agente responderá pelo crime. Entende a doutrina que não há necessidade de consentimento da gestante para realização do aborto. Basta que o profissional entenda ser indispensável fazê-lo. Desnecessário, ainda, autorização judicial. Finalmente, vamos tratar do aborto sentimental, aquele que só pode ser realizado pelo profissional da saúde (o médico), mediante autorização da gestante ou de seu representante legal, conforme previsto no artigo 128, inciso II, do Código Penal. O aborto sentimental é permitido em nome da dignidade da pessoa humana e, dessa forma, o direito permite que seja cessada a vida do embrião que foi concebido pelo ato da violência sexual, possuindo dois valores morais, porém preservando aquele que já existe, ou seja, a vida da vítima. (NUCCI, 2002, p. 620) Ademais, para que ocorra o aborto sentimental, é indispensável que haja a violência sexual, já que o direito não pode intervir e fazer com que a mulher se sujeite a gerar e criar uma criança fruto da violência sexual, atentando diretamente sua dignidade pessoal, nesse caso e, como dito anteriormente, é necessário que preserve o bem já existente que é a vida da gestante. No mais, vale ressaltar que diferente do aborto necessário, o aborto sentimental só irá ocorrer mediante a concordância da vítima e em caso desta ser incapaz, com a devida concordância do seu representante legal. Para melhor entendimento, insta salutar que é licito o aborto em caso de estupro, devendo ser realizado por uma pessoa legalmente autorizada, que no presente caso é o médico, já que a vítima violentada não tem a obrigação de gerar ou criar uma criança fruto de uma violência, pois isso só iria lhe causar ainda mais frustações, atingindo, dessa forma, diretamente sua dignidade pessoal. Seguindo essa linha, Cunha (2009) leciona que: O inciso II fala do aborto no caso de gravidez resultante de estupro (aborto sentimental). Se no tocante ao “aborto terapêutico”, é a preocupação de salvar a vida da gestante que informa o preceito, em relação ao inciso II o motivo consiste em que nada justificaria impor-se à vítima do atentado sexual, ofendida em sua honra, uma maternidade que talvez lhe fosse odiosa e sempre lembraria o triste acontecimento em sua vida. Nesse sentindo, resta esclarecer algo que pouquíssimas pessoas têm conhecimento em nossa sociedade: para que haja o aborto sentimental não é necessário que a mulher apresente o boletim de ocorrência, laudo do instituto médico legal ou qualquer ordem judicial, uma vez que o código penal, ao abordar a possibilidade do aborto sentimental não faz qualquer exigência de comprovação, necessitando apenas do consentimento da gestante e quando a mesma for incapaz, consentimento do seu representante legal e devendo o procedimento ser realizado por um médico, conforme expõe o inciso II do artigo 128: “se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal”. Todavia, o Ministério da Saúde (2005), a fim de garantir aos profissionais da saúde envolvidos no referido procedimento segurança jurídica, editou a Portaria N. º 1.145 de 7 de julho de 2005, deixando claro que não há necessidade do boletim de ocorrência, mas estabeleceu a obrigatoriedade do “procedimento de justificação e autorização da interrupção da gravidez”, que deve ser composto de quatro fases, conforme segue: (Art. 2º): Primeiramente, deve haver o relato da vítima do evento criminoso, na presença de dois profissionais da saúde, logo após o médico emitirá um parecer técnico e a mulher deverá receber a atenção da equipe multidisciplinar, onde as opiniões sobre o referido caso serão anotadas em documento escrito (art. 4º). Após, se todos estiverem de acordo, lavrar-se-á termo de aprovação da realização do procedimento (art.5º), sendo necessário a vítima ou seu representante legal assinar o termo de responsabilidade e por último será realizado o termo de consentimento livre e esclarecido (art.6º). Por derradeiro, ante as informações aqui arguidas, resta-se nítido que, embora a fragilidade do assunto no que tanto ao aborto, o legislativo, de modo a preservar a dignidade da mulher, previu a hipótese do aborto sentimental. 5 DO ABORTO EM CASA DE ESTUPRO MARITAL Com base nessas informações, levando em consideração o que já foi abordado até o presente momento, fica claro que é plenamente possível o estupro dentro do casamento, conhecido nos dias atuais como “estupro marital” e, se deste crime sobrevier uma gravidez indesejada, é possível o abortamento, tendo em vista que a gestação foi decorrente de uma violência sexual, conforme foi possível analisar: Para Noronha (2003): Estupro é delito definido no art 213, que, sinteticamente, pode ser considerado como o coito vagínico violento. Permite a lei que a mulher, vítima dessa cópula, aborte. É o chamado aborto sentimental, que muito discutido foi por ocasião da Primeira Conflagração Mundial. Defendem-no uns, dizendo não ser humano se imponha à mulher trazer nas entranhas um ser que não é gerado pelo amor, que só lhe recorda o momento de pavor que viveu como desumano também será impor-lhe que alimente e crie esse ente. Nessa seara, José Frederico Marques (2002), acrescenta: Aborto sentimental, ou aborto humanitário, é aquele permitido em lei para interromper a gravidez de mulher estuprada. Nos termos em que situo o Código Penal, no art. 128, inciso II, trata-se de fato típico penalmente lícito. Afasta a lei a antijuricidade da ação de provocar aborto, por entender que a gravidez, no caso, produz dano altamente afrontoso para a pessoa da mulher, que significa que é o estado de necessidade da impunidade de fato típico. Nucci (2002) salienta que em casos como este não dá o direito de o homem estuprar sua esposa para com ela manter relações sexuais, podendo simplesmente exigir o término da sociedade conjugal na esfera cível, por infração a um dos deveres do casamento. Diante do exposto, é claro que é autorizado o aborto sentimental no caso da gravidez advinda do crime de estupro, sendo necessário ser procedido por pessoa habilitada (profissionais da saúde), uma vez que a gestante não deve ser submetida a uma gestação e consequentemente a criação de um filho indesejado, levando em consideração que, toda vez que a vítima olhar para esta criança, lembrará que a mesma foi fruto de uma violência sexual, mesmo quando o autor do delitose tratar do seu próprio marido. Dessa forma, podemos entender que uma gestação advinda de um estupro na constância do casamento também pode ser interrompida, uma vez que a lei não faz qualquer menção ao referido assunto, sendo considerado estupro qualquer relação que empregue violência ou grave ameaça, sem o consentimento da mulher, não importando se o sujeito do crime é terceiro ou seu próprio marido. Sendo assim, se da relação sexual forçada por parte do marido, a esposa decidir pela prática do aborto sentimental, esta será devidamente amparada pelo artigo 128, inciso II do Código Penal. CONSIDERAÇÕES FINAIS De início, o presente trabalho abordou sobre o crime de estupro, que com a entrada da Lei N.º 12.015/2009, permitiu que o homem também possa figurar como vítima deste ato, tendo em vista que, anteriormente, a Lei N.º 2.848/1940, só poderia ocorrer o crime de estupro com pessoa do sexo feminino. Como vimos, o crime de estupro é considerado crime comum, tendo em vista que pode ser praticado por qualquer pessoa, pois hoje não é mais necessário que haja a conjunção carnal para haver a consumação deste crime, uma vez que, com a alteração do Código Penal, todo ato libidinoso praticado pela vítima ou contra ela, sem seu consentimento, é considerado estupro. Foi abordado a hipótese de o crime ser concretizado dentro do casamento, conhecido atualmente como estupro marital, que uma parcela da doutrina acredita ser impossível a prática deste delito pelo próprio marido, com base nas relações sexuais consensuais anteriores. Já a outra parte da doutrina, entende ser completamente possível o crime de estupro na relação marital, uma vez que o marido não pode, de maneira alguma, forçar uma relação sexual com a sua esposa, contra a sua vontade, não podendo usar como argumento relações sexuais anteriores consensuais, pois conforme já informado, o não consentimento da vítima é o bastante para a concretização do crime de estupro. Em seguida, tratou do crime de aborto previsto nos artigos 124 e seguintes do Código Penal, onde há duas hipóteses em que o ato deve ser punido, sendo eles: o aborto praticado pela própria gestante ou por terceiro com o seu consentimento, ou quando terceiro provoca o aborto sem o consentimento da gestante. Todavia, há outros dois casos em que não se pune o aborto: quando este for necessário, ou seja, quando não há qualquer outro meio de salvar a vida da gestante, denominado de aborto sentimental, que é quando a gravidez se resulta de uma violência sexual e a lei, jurisprudência e os tribunais preservam a vida já existente, no caso, da gestante, entendendo a frustração da vítima a ser obrigada a levar adiante uma gestação e a criação de um filho decorrente deste ato, podendo-lhe causar ainda mais traumas. Quanto à possibilidade do aborto no caso de estupro marital, deve-se levar em consideração que a relação sexual que deu fruto a esta gestação foi mediante violência e grave ameaça e, claro, não houve o consentimento da vítima, que no caso é a própria esposa do autor. Sendo assim, o procedimento para a adoção do aborto sentimental deve ser o mesmo no caso de um estupro em que o autor se trata de um desconhecido, apenas devendo preservar o bem-estar da vítima. Dessa forma e com base em todos os argumentos apresentados no presente trabalho, é possível a prática do aborto nos casos do estupro marital, uma vez que por mais que exista uma relação entre o autor e a vítima, ela, de maneira nenhuma, pode ser submetida ao ato sexual sem a sua vontade ou mediante violência ou grave ameaça. Além do mais, vale ressaltar que o Código Penal, ao tratar do aborto sentimental no Art. 128, inciso II, não faz qualquer menção a proibição do aborto quando o autor do crime é o marido da vítima, apenas esclarece que tal ato deve ser praticado com o consentimento da vítima ou de seu representante legal. Nesse sentindo, é valido destacar que o direito ao aborto nada mais é um acompanhamento do momento social e, hoje, a cultura do estupro tem sido tema de inúmeros debates a fim de tirar a mulher da posição de subserviência, a qual ficou alocada durante tantos séculos. Houve uma época em que nós, mulheres, não tínhamos o direito ao voto, tratadas, na maioria das vezes, como objeto pelos seus companheiros e tudo isso sofreu alteração, devendo levar em conta o princípio da dignidade da pessoa humana. Com base em todas as informações passadas no presente trabalho, é claro que ninguém pode ser obrigada em um ato sexual contra a sua vontade, mesmo em casos onde já exista uma relação, pois a mulher não está sujeita a sofrer todo o tipo de violência pelo seu marido. Portanto, levando em consideração em jurisprudências e artigos do Código Penal, não há dúvidas que o marido pode ser sujeito ativo do crime de estupro contra a sua própria mulher, e em caso de uma gravidez decorrente deste ato, a mesma será amparada pelo Art. 128, II do Código Penal. REFERÊNCIAS BITTENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte especial IV. 3. ed. São Paulo. Saraiva, 2008. BRASIL, 1940. Decreto-Lei N.º 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. 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