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PENSANDO PIAGET E VYGOTSKY NO ENSINO DE HOJE. CARLOS EDUARDO LOHSE REZENDE. Piaget e Vygotsy são considerados dois grandes nomes no contexto teórico da pedagogia. Seus estudos são até hoje citados no meio acadêmico e servem de base para que futuros professores possam encarar melhor seu meio profissional. Esse trabalho tem por objetivo fazer uma pequena reflexão sobre pontos da teoria desses dois pesquisadores e de como elas se relacionam com questões que surgem hoje em dia no ensino. Até que ponto os pensamentos desses teóricos ainda são úteis ou podem estar ultrapassados? Comecemos com Piaget[1]. Segundo o pesquisador francês, o conhecimento é uma relação evolutiva entre a criança e seu meio, numa perspectiva interacionista. O indivíduo não possui idéias inatas, constrói o seu conhecimento com a influência do ambiente, não meramente o copia. Piaget está preocupado com o chamado sujeito epistêmico, aquele que está interessado na busca pelo conhecimento propriamente científico. Essa construção teórica retrata aquilo que há em comum em todas as crianças de um mesmo nível de desenvolvimento. Além do mais, enquanto constituído pelo conjunto dos traços intelectuais que são comuns a todas as crianças de uma mesma faixa etária, o sujeito epistêmico é por definição um sujeito universal.[2] A visão de mundo infantil evolui progressivamente evidenciando assim uma seqüência de etapas, cada uma com características próprias. A inteligência sensório-motora dos dois primeiros anos de vida, essencialmente prática, revela um bebê descobrindo-se sujeito autônomo em meio a um mundo organizado de objetos situados no espaço e no tempo. O período pré- operatório caracteriza-se por centrações de vários tipos que levam a uma leitura da realidade que, do ponto de vista do adulto, é muitas vezes parcial e incompleta: priorizam-se certos aspectos em detrimento de outros sem considerar relações e interações, e assume-se uma perspectiva centrada sobre si mesmo sem considerar outros pontos de vista. Já o período das operações concretas revela uma lógica de pensar que nos é familiar, uma vez que é precisamente a mesma lógica que utilizamos enquanto adultos. Neste período, as crianças levam em conta os múltiplos aspectos de uma situação, o que lhes possibilita raciocinar de forma organizada e sistemática. O pensamento hipotético-dedutivo, típico do período das operações formais, opera com um Universo abstrato em que a realidade é a realização material de uma entre as inúmeras possibilidades pensadas e elaboradas de acordo com uma lógica rigorosa. Neste estágio o adolescente raciocinaria como os cientistas cujos sistemas teóricos se caracterizam pela coerência, o que significa a eliminação de todo tipo de contradição, uma organização lógica interna impecável e um acordo sistemático com a experiência.[3] Devemos ressaltar aqui que a teoria dos estágios de Piaget tem sido interpretada nas escolas em termos de prontidão[4]. O acesso a tal estágio de desenvolvimento é visto como se o aluno estivesse pronto a abordar determinados conteúdos em sala de aula. Os estágios distinguiriam, nessa perspectiva, aqueles que sabem daqueles que não sabem. Quem não estiver apto a trabalhar com determinados conteúdos, seria considerado “atrasado” com relação ao resto da turma. E aí muitas escolas dividem as turmas em “fortes” e “fracas”. Acreditamos que essa divisão em turmas “fortes” e “fracas” é uma má interpretação da teoria de estágios de Piaget, pois devemos lembrar que esses estágios não podem ser rigidamente compartimentados. Piaget, entretanto, não considerava a questão do indivíduo e o meio social e cultural em que vivia; além disso, o indivíduo não é apenas um sujeito epistêmico, que busca unicamente o conhecimento científico. Esses fatores também influem severamente no aprendizado. A divisão das turmas em “fortes” e “fracas” pode, inclusive, ser prejudicial, pois rotula e classifica os alunos, cujos rótulos podem afetar suas auto-estimas e comportamentos. Piaget, ao enumerar os fatores que levam ao desenvolvimento cognitivo, cita a chamada transmissão social, isto é, as informações apreendidas pelas outras crianças ou transmitidas pelos pais, professores ou livros no processo de educação. Ele acredita que, quando uma criança ouve informações desafiadoras, seja em casa, seja na escola, seu equilíbrio fica perturbado. Sai então em busca de uma resposta que lhe possibilite atingir um equilíbrio mais elevado. Nesse caso, podemos perceber como é importante para o desenvolvimento cognitivo dos alunos a relação pai/professor. Se o aluno, por transmissão social no ambiente familiar, tem uma dúvida com relação a uma determinada questão, o professor vai poder ter a capacidade de trabalhá-la melhor se tiver alguma forma de contato com os pais do aluno. Infelizmente essa interação não se dá perfeitamente hoje em dia, pois geralmente os pais não dispõem de tempo suficiente para acompanharem seus filhos nas escolas, devido à necessidade de dedicarem um tempo maior ao trabalho e sustento das famílias. Há, inclusive, a concepção para alguns pais, de que o colégio deve ser o responsável pela educação total de seus filhos. Entretanto, algumas escolas, principalmente as de cunho religioso, exigem uma maior participação dos pais no processo do aprendizado. Passemos, agora, a um brevíssimo esboço das teorias de Vygotsky[5]. Para o pesquisador russo, o ser humano possui processos mentais superiores, isto é, mecanismos psicológicos sofisticados mais complexos que envolvem o controle consciente do comportamento, a ação intencional e a liberdade do indivíduo em relação às características do momento e do espaço presentes. Vygotsky ainda fala do conceito de mediação, ou seja, o processo de intervenção de um elemento intermediário numa relação. O pesquisador conclui que a relação do homem com o mundo não seria direta, mas sim mediada por ferramentas auxiliares na atividade humana. Estas ferramentas podem ser instrumentos de trabalho ou signos internalizados. Esses signos possibilitam a formação de representações mentais da realidade exterior. Entretanto, devemos lembrar que essas representações da realidade são também socialmente dadas. O conceito de avião, por exemplo, é socialmente dado, consistindo numa representação mental que faz a mediação entre o indivíduo e o objeto real que está no mundo. A palavra avião, que designa uma certa categoria de objetos no mundo real, é um signo mediador entre o indivíduo e o avião enquanto elemento concreto. Uma sociedade que nunca viu um avião não terá condições de interpretá-lo como qual ao vê-lo pela primeira vez, pois não tem a representação simbólica e o instrumental psicológico para fazê-lo. Logo, a representação da realidade é socialmente dada. É o grupo cultural onde o indivíduo se desenvolve que lhe fornece formas de perceber e organizar o real, os quais vão construir os instrumentos psicológicos que fazem a mediação entre o indivíduo e o mundo.[6] Para exemplificar como essas representações do real se processam, podemos imaginar uma situação onde um aluno proveniente de uma comunidade carente veja o ato de estudar as disciplinas da escola como uma alternativa para se subir na vida e escapar de sua realidade cotidiana de comunidade excluída. Sua representação da sociedade é dada pelo meio social em que vive, isto é, a comunidade carente, e o aluno interpreta o aprendizado na escola como um meio para buscar uma realidade melhor. Cabe aqui dizer que isso não significa que todo aluno que mora numa comunidade carente vá ter o mesmo ponto de vista. Alguns poderiam achar o que se ensina na escola algo totalmente inútil, preferindo o aprendizado da “escola da vida”, por exemplo. Portanto, devemos lembrar também do fator individual na construção dessa realidade. Os indivíduos constroem seu sistema de signos através da experiênciacom o mundo objetivo e do contato com as formas culturalmente determinadas de organização do real, mas cada construção se processará de forma diferente para cada indivíduo, isto é, cada indivíduo pode interpretar o mundo exterior de forma diferente de outro. Há mais de um tipo de relação entre pensamento e fala; mais de um tipo de significado, portanto.[7] Vygotsky ainda menciona que as funções psicológicas superiores devem ser buscadas na relação do indivíduo com outros homens. Os elementos mediadores na relação entre o homem e o mundo – instrumentos, signos e todos os elementos do ambiente humano, carregados de significado cultural – são fornecidos pelas relações entre os homens. Os sistemas simbólicos, e, particularmente, a linguagem, exercem um papel fundamental na comunicação entre os indivíduos e no estabelecimento de significados compartilhados que permitem interpretações dos objetos, eventos e situações do mundo real. A linguagem, enquanto sistema complexo de signos, utilizada por todos os grupos humanos, é, portanto, de suma importância para Vygotsky e entender a sua relação com o pensamento é importante para a compreensão do funcionamento psicológico do ser humano.[8] O pensamento e a linguagem têm, para o pesquisador russo, origens diferentes e desenvolvem-se segundo trajetórias diferentes e independentes, antes que ocorra a ligação entre esses dois fenômenos. A essas duas trajetórias Vygotsky chama de fase pré-verbal do desenvolvimento do pensamento e fase pré-intelectual do desenvolvimento da linguagem. Na fase pré-verbal do desenvolvimento do pensamento, temos a chamada “inteligência prática”, ou seja, a capacidade de solucionar problemas e alterar o ambiente para chegar a determinados fins. No caso de crianças, estas podem subir na cadeira para pegar um brinquedo, por exemplo. Este tipo de ação exige um raciocínio não muito elaborado, independendo da linguagem. No caso da fase pré-intelectual do desenvolvimento da linguagem, a criança, por exemplo, embora não domine a linguagem enquanto sistema simbólico, já utiliza manifestações verbais como o choro e o balbucio e o riso, que provocam alívio emocional e também servem como meio de contato social, de comunicação difusa com as outras pessoas. Aqui já vemos que existe uma linguagem que não está ainda organizada pelo pensamento. Num dado momento, essas duas trajetórias se unem, fazendo o pensamento verbal e a linguagem racional. A fala torna-se intelectual, com função simbólica e o pensamento torna-se verbal, mediado por significados dados pela linguagem. Com o pensamento verbal e a linguagem racional, o ser humano passa a ter a possibilidade de um modo de funcionamento psicológico mais sofisticado, mediado pelo sistema simbólico da linguagem. [9] Uma questão que aparece aqui é se essas duas trajetórias apontadas por Vygotsky se conectam em sua plenitude no ensino atual. Temos visto nas escolas um problema cada vez maior entre os alunos com a interpretação de textos, motivado pela carência cada vez mais gritante de leitura, quer dizer, a tradução de idéias em palavras parece que está se processando de forma insuficiente. Outra questão que surge aqui reside nas formas de manifestação da linguagem. Ainda é muito presente nos sistemas de avaliação o uso de provas e trabalhos escritos. Será que os alunos estão sendo preparados apenas para se manifestarem por escrito? Tais sistemas de avaliação baseados somente na escrita, não estariam prejudicando o aluno em outras manifestações da linguagem, como por exemplo, a oral? Logo, devemos discutir como a instituição do pensamento verbal e da linguagem racional se dá nas diferentes manifestações da linguagem, seja de forma escrita, seja de forma oral, seja de forma visual (a interpretação das imagens, por exemplo) e de como as escolas encaram essa questão. Ainda com relação às teorias de Vygotsky, podemos falar do conceito de zona de desenvolvimento proximal. Este é definido como a distância entre o nível de desenvolvimento real, onde o aluno resolve problemas de forma independente, e o nível de desenvolvimento potencial, onde o aluno soluciona problemas ou com a ajuda do professor ou com a ajuda dos colegas que já sabem a solução. Logo, a zona de desenvolvimento proximal é uma espécie de caminho que o aluno precisa percorrer para desenvolver funções que estão em processo de amadurecimento e que se tornarão funções consolidadas, estabelecidas em seu nível de desenvolvimento real. A ação externa, por parte do professor ou do colega, é fundamental para a zona de desenvolvimento proximal. E a escola terá uma importância fundamental na construção do ser psicológico, pois é o espaço onde se dão as relações sociais necessárias para o aprendizado.[10] Aqui encontramos mais uma argumentação que se opõe à prática da divisão, na escola, de turmas em “fortes” e “fracas”. Como os alunos precisam de um auxílio externo para chegarem ao nível de desenvolvimento real, e esse auxílio vem por meio de relações sociais, a separação dos alunos “fortes” dos “fracos” faz com que não haja uma interação entre os dois tipos de alunos, e assim os “fracos” não terão disponível uma ajuda no seu caminho para o nível de desenvolvimento real. O professor, nesse caso, será o único agente externo que poderá ajudar os alunos na zona de desenvolvimento proximal (ou, também, os próprios alunos “fracos” podem se reunir para pensar conjuntamente na resolução dos problemas). Portanto, concluímos que não só o professor deve agir como agente externo na zona de desenvolvimento proximal, mas também os alunos devem agir da mesma forma, e a sua separação baseada em critérios que dêem alguma homogeneidade às turmas pode ser prejudicial para o ensino como um todo. Após um pequeno exame das teorias de Piaget e Vygotsky, podemos dizer que os pensamentos desses dois pesquisadores ainda são muito úteis para se fazer uma reflexão sobre os problemas que o ensino passa hoje. Piaget está mais preocupado com um sujeito “epistêmico”, com um sujeito que busca o conhecimento científico. Ele identifica vários estágios evolutivos na busca por esse conhecimento. Entretanto, devemos ressaltar que esses estágios evolutivos devem ser utilizados somente como parâmetros de referência e de forma altamente flexível, pois eles não consideram as nuances culturais dos indivíduos. Uma má interpretação do uso desses estágios pode cair no conceito de prontidão e ser altamente prejudicial à educação do indivíduo. Vygotsky já considera mais a questão cultural. Ao buscar processos mentais superiores, o indivíduo estabelece, através de mediações, representações da realidade que são socialmente dadas. Logo, a construção do conhecimento depende da carga de conteúdos simbólicos e do meio cultural onde vive o indivíduo. A linguagem e a relação com outros indivíduos é também um fator importante nessa busca pelos processos mentais superiores. Logo, qualquer tipo de isolamento é condenável sob essa perspectiva. O afastamento dos pais em relação aos filhos, em virtude de um ritmo de trabalho cada vez mais frenético, o isolamento provocado por um mau uso de inovações tecnológicas como a Internet e, principalmente para o caso da educação, a separação de alunos em turmas “fortes” e “fracas” são, portanto, altamente prejudiciais para a construção do conhecimento, segundo a concepção dada a nós por Vygotsky. Bibliografia. COLINVAUX, D., “Piaget na terra de Liliput: reflexões piagetianas sobre a educação”, in Revista Movimento, no. 1. Niterói, Faculdade de Educação da UFF, maio de 2000. OLIVEIRA, M. K., Vygotsky. Aprendizado e desenvolvimento – um processo sócio-histórico. São Paulo, Editora Scipione, 1993. PULASKI, M. A., Compreendendo Piaget. Uma introdução ao desenvolvimento da criança. Rio de Janeiro, Editora Guanabara, 1990. TUNES, E., “Os conceitos científicos e o desenvolvimentodo pensamento verbal”, in Cadernos Cedes 35: Implicações pedagógicas do modelo histórico cultural. Campinas, Unicamp, 1995. [1] PULASKI, M. A., Compreendendo Piaget. Uma introdução ao desenvolvimento da criança. Rio de Janeiro, Editora Guanabara, 1990. [2] COLINVAUX, D., “Piaget na terra de Liliput: reflexões piagetianas sobre a educação”, in Revista Movimento, no. 1. Niterói, Faculdade de Educação da UFF, maio de 2000. [3] Idem. [4] Idem. [5] OLIVEIRA, M. K., Vygotsky. Aprendizado e desenvolvimento – um processo sócio-histórico. São Paulo, Editora Scipione, 1993. [6] OLIVEIRA, M. K, “A mediação simbólica”, in OLIVEIRA, M. K., Op. cit. [7] TUNES, E., “Os conceitos científicos e o desenvolvimento do pensamento verbal”, in Cadernos Cedes 35: Implicações pedagógicas do modelo histórico cultural. Campinas, Unicamp, 1995. [8] OLIVEIRA, M. K., “Pensamento e linguagem”, in OLIVEIRA, M. K., Op. cit. [9] Idem. [10] OLIVEIRA, M. K., “Desenvolvimento e aprendizado”, in OLIVEIRA, M. K., Op. cit.
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