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ART. 168 — APROPRIAÇÃO INDÉBITA 1. CONCEITO Dispõe o art. 168 do Código Penal: “Apropriar-se de coisa alheia móvel, de que tem a posse ou a detenção”. 2. OBJETO JURÍDICO Assim como nos demais delitos contra o patrimônio, tutela-se aqui o direito à propriedade. 3. OBJETO MATERIAL Como no delito de furto, somente a coisa móvel pode ser objeto material do crime em tela (v. comentários ao crime de furto). O dinheiro pode ser apropriado? Nos termos do art. 85 do Código Civil brasileiro, “são fungíveis os móveis que podem substituir-se por outros da mesma espécie, qualidade e quantidade”. As coisas fungíveis dadas em depósito ou em empréstimo, com obrigação de restituição da mesma espécie, qualidade e quantidade, não podem ser objeto material de apropriação indébita. Nesses casos, há transferência de domínio, de acordo com os arts. 645 e 587 do mesmo estatuto, que tratam, respectivamente, do depósito irregular e do mútuo. É por isso que não existe crime de apropriação indébita, uma vez que o tipo penal exige que a coisa seja alheia (...)”1. Entretanto, na hipótese em que o bem fungível, no caso o dinheiro, é confiado a alguém, pelo proprietário, para ser entregue a terceiro, como no caso do caixeiro-viajante ou de algum cobrador, pode ocorrer a apropriação indébita2. Os títulos de crédito podem ser apropriados, assim como os documentos comprobatórios de direitos. Tal como ocorre em todos os crimes patrimoniais, é imprescindível que o objeto material tenha um valor significante, pois, se irrelevante, ínfimo, poderá incidir o princípio da insignificância, que exclui a tipicidade penal, por exemplo, apropriarse de um isqueiro, cujo valor é irrisório. Se a coisa for de pequeno valor, configurar-se-á o crime de apropriação indébita privilegiada (CP, art. 170 c/c o art. 155, § 2º). 4. ELEMENTOS DO TIPO 4.1. Ação nuclear Consubstancia-se no verbo apropriar-se, que significa fazer sua a coisa de outrem; mudar o título da posse ou detenção desvigiada, comportando-se como se dono fosse. O agente tem legitimamente a posse ou a detenção da coisa, a qual é transferida pelo proprietário, de forma livre e consciente, mas, em momento posterior, inverte esse título, passando a agir como se dono fosse. Nesse momento se configura a apropriação indébita. Veja-se: há a lícita transferência da posse ou detenção do bem para o agente pelo proprietário. O agente, por sua vez, estando de boa-fé, recebe o bem sem a intenção de apoderar-se dele. Até aqui nenhum crime ocorre. A conduta passa a ter conotação criminosa no momento em que o agente passa a dispor da coisa como se dono fosse. Não pode haver o emprego de violência ou fraude por parte do agente para conseguir a posse ou detenção do objeto, pois sua obtenção contra a vontade do dono caracterizará outras figuras criminosas (estelionato, roubo, furto etc.). Assim, se o agente aluga uma joia para utilizá-la em uma festa e depois resolve dela apoderar-se, comete o crime de apropriação indébita. Se, por outro lado, o agente aluga o bem com a intenção de apropriar-se dele, utilizando o contrato como artifício para induzir a vítima em erro, haverá o crime de estelionato, pois a obtenção da posse se deu mediante o emprego de fraude iludente da vontade da vítima. Conclusão: a) o agente obtém a posse ou detenção do bem mediante lícita transferência deste pelo proprietário; b) não há o emprego de fraude, violência, grave ameaça — o proprietário transfere a posse ou detenção de forma livre e consciente; c) nos demais crimes patrimoniais (furto, roubo, estelionato) a apropriação é contemporânea à aquisição da posse ou detenção do bem, pois a vontade de apoderar-se deste existe desde o início da conduta. Na apropriação indébita, a apropriação é posterior à aquisição da posse ou detenção do bem, pois inicialmente o agente está imbuído de boafé, não tendo a intenção de se apropriar dele, porém, num segundo instante, surge a vontade de tê-lo para si. Vejamos em que consistem a posse e a detenção. Posse (v. art. 1.197 do CC). Cuida-se aqui da posse direta exercida pelo locatário, usufrutuário, mandatário, ou seja, é a posse exercida pelo indivíduo em nome de outrem. O exercício da posse nesse caso é desvigiado. Por exemplo: indivíduo que aluga um automóvel com o fim de fazer turismo pela cidade, mas, posteriormente, resolve apoderar-se dele, não mais o devolvendo. O indivíduo não cometeu crime de furto, uma vez que a posse direta do bem lhe foi entregue licitamente. Ele não subtraiu o bem, a sua retirada não foi clandestina, contudo, após a sua obtenção lícita, passou a dispor daquele como se dono fosse. Detenção (v. arts. 1.198 e 1.208 do CC). A detenção sobre o bem pode ser vigiada ou desvigiada. Segundo Hungria, “somente na última hipótese é que pode haver apropriação indébita, pois, na primeira, inexistindo o livre poder de fato sobre a coisa (não passando o detentor de um instrumento do dominus a atuar sob as vistas deste), o que pode haver é furto”3. Exemplos citados pelo autor: “caixeiro-viajante que se apropria de objetos do mostruário recebido do patrão, comete apropriação indébita qualificada, mas o caixeiro sedentário que se apropria de objetos tirados à prateleira ou do dinheiro recebido no balcão, iludindo a custódia do patrão, é réu de furto”. Conclusão: somente na detenção desvigiada, em que há livre disponibilidade sobre a coisa, pode-se falar em crime de apropriação indébita. Não exerce detenção desvigiada o vendedor de uma loja, que está sob constante vigilância do proprietário, porém o representante comercial exerce, pois está fora da esfera de vigilância daquele. O primeiro pratica furto; o segundo, apropriação indébita. A apropriação da coisa alheia pode-se dar de diversas maneiras: a) consumindo a coisa — “A” entrega a “B” prato de alimento para levar a “C”, e “B” ingere-o no caminho; b) alterando a coisa — o ourives que funde um tipo de ouro de menor valia do que aquele que lhe foi entregue para confecção de uma joia; c) retendo a coisa — o agente não devolve o objeto ou não lhe dá o destino conveniente, para o qual o recebeu; d) ocultando o objeto — o agente afirma que não recebeu a coisa. Uma das formas de execução do crime em tela é a não restituição do bem e a recusa em devolvê-lo. É preciso tomar muito cuidado na análise desses casos, visto que o simples ato de não restituir ou se recusar a tanto pode não denotar o propósito de apropriar-se do bem. Nesse diapasão, leciona Noronha que a não restituição e a recusa em devolver são atos que corporificam o delito, mas que devem ser examinados com o dolo do agente, que é o de apropriar-se. Afirma o autor: “Saillard, reproduzindo Garçon, cita os exemplos de pessoa que recebeu do amigo um relógio para usar em viagem, acontecendo que, no decurso desta, perdeu sua passagem, tendo, então, de empenhar aquele objeto...”4. Conclui Noronha que, nesse caso, não houve a intenção de se apropriar do bem, dando-se o mesmo com a recusa em devolver. Compartilha desse entendimento Hungria: “suponha-se, por exemplo, o caso de um credor pignoratício que, por necessidade momentânea de dinheiro, faz um arbitrário subpenhor da coisa recebida em garantia, mas com a intenção de ulterior resgate e oportuna restituição, e tendo capacidade financeira para tanto: não comete apropriação indébita”5. A maioria dos casos de não restituição do bem configura descumprimento de obrigações contratuais, e pode ser resolvida na esfera cível. De qualquer forma, quando podemos dizer que a não restituição do bem configura o delito em tela? Quando jáhouver vencido o prazo para a devolução da coisa. E se não houver prazo para tal? O vencimento do prazo passa a ficar na dependência de prévia interpelação, notificação ou protesto por parte da vítima (CC, art. 397, caput, e parágrafo único), muito embora tais medidas não sejam indispensáveis à configuração do crime. É que, antes da interpelação judicial, pode o agente ter alienado a coisa a terceiro, não se vendo razão para aquela medida preliminar. Vale dizer, qualquer tipo de interpelação, judicial ou extrajudicial, sem forma solene, mas apta a caracterizar a intenção de receber a coisa de volta, dá margem ao surgimento do crime. É preciso mencionar que muitas vezes o Código Civil autoriza em determinadas situações específicas a não restituição do bem pelo indivíduo, é o denominado direito de retenção (jus retentionis), por exemplo, o art. 664 do Código Civil menciona que “o mandatário tem o direito de reter, do objeto da operação que lhe foi cometida, quanto baste para pagamento de tudo que lhe for devido em consequência do mandato”. O mesmo sucede com os arts. 450 e seguintes do Código Civil, que preveem o direito de compensação (jus compensationis). 4.2. Elemento normativo Exige o tipo penal que a coisa móvel seja alheia, mas, conforme veremos logo a seguir, o condômino, sócio ou proprietário podem praticar o crime em tela. 4.3. Sujeito ativo Qualquer pessoa que tenha a posse ou detenha licitamente a coisa móvel alheia, por exemplo, locatário, usufrutuário, caixeiroviajante. O condômino, sócio ou coerdeiro podem praticar o crime em tela, no momento em que tornam sua a coisa comum. No entanto, tratando-se de coisa fungível, e a apropriação restringir-se à cota que cabe ao agente, não ocorre o crime em estudo, ante a ausência de qualquer lesão ou possibilidade de lesão patrimonial6. Se o sujeito ativo for funcionário público e apropriar-se de qualquer bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, responderá pelo crime de peculato-apropriação (CP, art. 312, caput). Contudo, se o bem particular não estiver sob a guarda ou custódia da administração e o funcionário público dele se apropriar, responderá por apropriação indébita. 4.4. Sujeito passivo É a pessoa física ou jurídica, titular do direito patrimonial diretamente atingido pela ação criminosa, ou seja, aquele que experimenta o prejuízo, que pode ser diverso daquele que entregou ou confiou a coisa ao agente. 5. ELEMENTO SUBJETIVO É apenas o dolo, consubstanciado na vontade livre e consciente de apropriar-se da coisa alheia móvel, o que pressupõe a intenção de apoderar-se da res, o propósito de assenhorear-se dela definitivamente, ou seja, de não restituir, agindo como se dono fosse, ou de desviá-la do fim para que foi entregue. É o denominado animus rem sibi habendi7. O tipo penal não exige qualquer fim especial de agir (elemento subjetivo do tipo). Para autores como E. Magalhães Noronha, o verbo apropriar contém o dolo específico (elemento subjetivo do tipo), consistente na vontade de obter proveito para si ou para outrem, pois do contrário outro crime configurar-se-á. Assim, “quem retém um objeto, a que julga ter direito, ao invés de recorrer à justiça, pode cometer exercício arbitrário das próprias razões, mas não pratica apropriação indébita”8. É preciso reforçar que o dolo de apropriar-se da coisa não pode anteceder à posse ou detenção desta pelo agente. Nesse instante, deve estar presente a boa-fé do agente. Do contrário, poderá configurar-se o crime de estelionato, em virtude de a vítima ter sido induzida em erro. Assim, a má-fé do agente deve ser subsequente à posse ou detenção da coisa para que se configure a apropriação indébita. A apropriação indébita para uso configura o crime em questão? Segundo a doutrina, não se configura o crime em estudo se, por exemplo, o depositário de um automóvel se serve dele para um simples passeio9. No caso, presente está a intenção de restituir a coisa, e não a de apropriar-se dela definitivamente. Não há previsão da modalidade culposa do crime. 6. MOMENTO CONSUMATIVO Trata-se de crime material. Consuma-se no momento em que o agente transforma a posse ou detenção sobre o objeto em domínio, ou seja, quando passa a agir como se fosse dono da coisa. A inversão de ânimo é demonstrada pela própria conduta do agente, que passa a adotar comportamentos incompatíveis com a mera posse ou detenção da coisa. a) Apropriação indébita propriamente dita: consuma-se com o ato de disposição. Só admite a modalidade comissiva. Por exemplo, alienar, doar ou locar a coisa que foi dada ao agente em depósito. b) Apropriação indébita — negativa de restituição: consuma-se com a não restituição do bem uma vez vencido o prazo para a sua entrega. Ausente esse prazo, o vencimento passa a ficar na dependência de prévia interpelação, notificação ou protesto por parte da vítima (CC/2002, art. 397, caput, e parágrafo único), muito embora tais medidas, conforme já estudado, não sejam indispensáveis à configuração do crime. 7. ARREPENDIMENTO POSTERIOR Ressarcimento do prejuízo antes e depois do oferecimento da denúncia. Efeitos. Em que pesem alguns posicionamentos divergentes dos tribunais no tocante à exclusão ou não da tipicidade penal na hipótese em que o agente repara o prejuízo antes do oferecimento da denúncia, entendemos que no caso incide a regra do art. 16 do CP (arrependimento posterior — causa geral de diminuição de pena, de 1/3 a 2/3). Na hipótese, não podemos falar em exclusão da tipicidade, uma vez que no momento em que o prejuízo foi ressarcido o crime já tinha se consumado. O dolo de apropriar-se da coisa não desaparece com o mero ressarcimento posterior do dano. Assim, acordos e avenças posteriores não podem dar o caráter de licitude a um fato delituoso. Nesse sentido, inclusive, firmou-se jurisprudência no Supremo Tribunal Federal10. Se a reparação do dano ocorrer após o oferecimento da denúncia, incidirá a atenuante genérica prevista no art. 65, III, b, do CP. 8. TENTATIVA Controverte-se na doutrina acerca da possibilidade da tentativa do crime de apropriação indébita. Tratando-se de crime material, em tese, ela seria possível11 no caso de apropriação indébita propriamente dita, por exemplo, agente que é impedido de vender o objeto de que tem a posse ou a detenção. O conatus, porém, não seria possível na hipótese de negativa de restituição. 9. FORMAS 9.1. Simples Está prevista no caput (pena — reclusão, de 1 a 4 anos, e multa). 9.2. Causas de aumento de pena Estão previstas no § 1º (na realidade, houve erro do legislador, pois trata-se de parágrafo único, já que não existe nenhum outro). A pena é aumentada de um terço. a) Depósito necessário (inciso I): é considerado depósito necessário, segundo o art. 647 do CC, aquele que se faz no desempenho de obrigação legal (inciso I — depósito legal); o que se efetua por ocasião de alguma calamidade, como o incêndio, a inundação, o naufrágio, ou o saque (inciso II — depósito miserável). O art. 649 do CC, por sua vez, equipara a esses depósitos o das bagagens dos viajantes ou hóspedes nas hospedarias onde estiverem (depósito por equiparação). Há grande divergência doutrinária no tocante à abrangência dessa causa de aumento de pena. Vejamos os entendimentos: 1º) O dispositivo abrange apenas o depósito miserável. Não está incluído o depósito legal, pois o depositário legal é sempre funcionário público, que recebe a coisa em razão do cargo, e, portanto, comete o crime de peculato. O depósito por equiparação tambémnão é compreendido no inciso I, devendo, no caso, o agente responder pelo delito do art. 168, § 1º, III. Nesse sentido, Nélson Hungria12. 2º) O dispositivo compreende o depósito legal, miserável e por equiparação. Nesse sentido, E. Magalhães Noronha. Contudo, “se o hoteleiro ou estalajadeiro não incidir neste inciso, incidirá no inciso III, por haver cometido o crime em razão de profissão”13. 3º) Segundo Damásio, “tratando-se de depósito necessário legal, duas hipóteses podem ocorrer. Se o sujeito ativo é funcionário público, responde por delito de peculato (CP, art. 312). Se o sujeito ativo é um particular, responde por apropriação indébita qualificada, nos termos do art. 168, parágrafo único, II, última figura (depositário judicial). Assim, não se aplica a disposição do n. I. Tratando-se de depósito necessário por equiparação, não aplicamos a qualificadora do ‘depósito necessário’, mas sim a do n. III do parágrafo único (coisa recebida em razão de profissão). O parágrafo único, I, quando fala em depósito necessário, abrange exclusivamente o depósito necessário miserável”14. b) Apropriação indébita qualificada pela qualidade pessoal do autor (inciso II): a enumeração legal é taxativa e não abrange, por conseguinte, pessoa que desempenhe função diversa das mencionadas. São elas: 1) tutor — pessoa que rege o menor e seus bens; 2) curador — aquele que dirige a pessoa e bens de maiores incapazes; administrador judicial — pessoa incumbida da administração da falência15; 3) inventariante — quem administra o espólio até a partilha; 4) testamenteiro — aquele que cumpre as disposições de última vontade do de cujus; 5) depositário judicial — a pessoa nomeada pelo juiz com a incumbência de guardar objetos até decisão judicial. Cuida-se aqui do particular nomeado depositário judicial pelo juiz, pois, se funcionário público, responderá por peculato. Desde o Decreto-Lei n. 7.661/45 foi abolida a figura do liquidatário. Conclui-se que tais pessoas, apesar de exercerem um munus público, não cometem crime de peculato, mas apropriação indébita qualificada. c) Coisa recebida em razão de ofício, emprego ou profissão (inciso III): para que se configure a agravante especial em exame é necessário que o sujeito tenha recebido a posse ou detenção do objeto material em razão do emprego, ou seja, deve existir um nexo de causalidade entre a relação de trabalho e o recebimento. Ofício. É a atividade, com fim de lucro, habitual e consistente em arte mecânica ou manual, por exemplo, ourives, sapateiro etc. Emprego. É a ocupação em serviço particular em que haja relação de subordinação e dependência, por exemplo, empregada doméstica, operário de fábrica etc. Exige-se a justificável confiança da vítima. Profissão. É a atividade habitual remunerada, de caráter intelectual, por exemplo, médico, advogado16 etc. 9.3. Privilegiada Vem prevista no art. 170 c/c o art. 155, § 2º, do CP. Requisitos: a) que o criminoso seja primário; b) que a coisa seja de pequeno valor. Presentes as circunstâncias legais, o juiz está obrigado a reduzir a pena de reclusão de um terço a dois terços ou substituí-la por detenção, ou aplicar apenas a multa. Vide comentários ao art. 155, § 2º, do CP, para melhor compreensão do tema. 10. DISTINÇÕES Apropriação indébita e estelionato. Na apropriação indébita, a coisa é entregue livremente ao agente. Este não emprega nenhum artifício para obter a posse ou detenção da coisa. Não há o emprego de fraude iludente da vontade do proprietário. A posse e a detenção são obtidas de forma lícita. No estelionato, o agente emprega artifícios que induzem a vítima em erro. Esta lhe entrega o bem sem saber que está sendo enganada. A posse ou a detenção pelo agente é ilícita. Na apropriação indébita, o agente não age com dolo ab initio, ou seja, não há vontade de se assenhorear da coisa, de tê-la para si. A inversão de ânimo somente ocorre em momento posterior, ou seja, após obter a detenção ou a posse da coisa. Assim, o dolo, no crime de apropriação indébita, é sempre posterior ao recebimento da coisa (dolus subsequens), vale dizer, o sujeito ativo inicialmente tem a posse ou detenção da coisa alheia móvel e, em seguida, dela resolve apropriar-se ilicitamente. No estelionato, pelo contrário, o agente age com dolo ab initio, ou seja, o sujeito ativo desde o início tem a intenção de apoderar-se definitivamente da res. A posse ou a detenção da coisa desde o início já é ilícita. Assim, se me comprometo a ficar como depositário de um automóvel e com o passar do tempo resolvo vendê-lo, cometo o crime de apropriação indébita. Contudo se me comprometo a ficar como depositário daquele bem, já visando desde o início que esse poder sobre ele me proporcionará vendê-lo, cometo o crime de estelionato. Apropriação indébita e furto. Se a detenção for vigiada, haverá furto, pois o agente não tem a livre disponibilidade do bem (p. ex., empregado de uma loja que é vigiado pelo gerente). Se for desvigiada, ocorrerá apropriação indébita (p. ex., representante comercial que detém os bens para a venda fora da esfera de vigilância do proprietário). Já a posse do bem é sempre desvigiada, ou seja, o seu exercício não é controlado pelo proprietário; logo, sempre admite a apropriação indébita (p. ex., locação de um automóvel). 11. CONCURSO DE CRIMES Apropriação indébita e crime de falsidade documental. Pode suceder que o agente pratique outro crime para dissimular a apropriação indébita. Se o crime praticado for o de falsidade documental, questiona-se: haverá concurso material de crimes ou a apropriação indébita absorverá o crime de falso? Há duas posições: 1ª) Haverá concurso material de crimes, pois o crime de falsidade documental lesa interesse ou bem jurídico diverso da inviolabilidade do patrimônio, além disso, consuma-se em momento anterior. 2ª) O crime de apropriação indébita absorve o delito de falsidade documental. Entendemos que somente será possível falar em concurso de crimes se as ações forem bem destacadas e praticadas em situações bastante diferentes. Se tudo tiver se desenvolvido em um mesmo contexto fático, haverá crime único, ficando absorvida a falsificação. Aplica-se, por analogia, o entendimento da Súmula 17 do STJ: “O falso é absorvido pelo estelionato quando nele se exaure”. Assim, em todas as situações nas quais se configurar conflito aparente de normas, a consunção será aplicada dependendo de o crime-meio estar ou não inserido no mesmo contexto, pois só nessa hipótese será possível falar em fase normal de execução do delito posterior. 12. INTERPELAÇÃO JUDICIAL E PRESTAÇÃO DE CONTAS A interpelação judicial, conforme visto, nas hipóteses de não restituição ou recusa na devolução do bem, não constitui formalidade essencial para a propositura da ação penal. Do mesmo modo, não se exige a prévia prestação de contas para o exercício da ação penal17, devendo a matéria ser resolvida na própria ação penal, a não ser em determinadas situações: compensação de créditos, mandato18, gestão de negócios. Desse modo, se o advogado que, em decorrência de procuração outorgada pelo seu cliente, detém poderes gerais para receber e quitar, retém importância em nome de seu constituinte, este deverá entrar com uma prévia ação de prestação de contas contra aquele, em que o advogado será obrigado a especificar as receitas e a aplicação das despesas, bem como o respectivo saldo (CPC, art. 917), pois é a partir desses cálculos contábeis que se poderá constatar a efetiva retenção de valores pelo mandatário. A ação de prestação de contas deveráser proposta no juízo cível, de acordo com o procedimento previsto nos arts. 914 a 919 do Código de Processo Civil. Trata-se de questão prejudicial heterogênea. 13. COMPETÊNCIA. AÇÃO PENAL. PROCEDIMENTO A competência no crime de apropriação indébita é do lugar onde o agente converte em proveito próprio a coisa que deveria restituir. Na apropriação indébita praticada por representante comercial, é competente para processar e julgar o delito o Juízo do lugar da empresa onde seria efetuada a prestação de contas19. Trata-se de crime de ação penal pública incondicionada. No que diz respeito ao procedimento a ser seguido, vide art. 394 do CPP, com as alterações promovidas pela Lei n. 11.719/2008, a qual passou a eleger critério distinto para a determinação do rito processual a ser seguido. A distinção entre os procedimentos ordinário e sumário darse- á em função da pena máxima cominada à infração penal e não mais em virtude de esta ser apenada com reclusão ou detenção. A suspensão condicional do processo (art. 89 da Lei n. 9.099/95) somente é cabível na forma simples do crime de apropriação indébita (caput), uma vez que a pena mínima cominada é de reclusão de um ano. 14. ESTATUTO DO IDOSO A conduta de apropriar-se de ou desviar bens, proventos, pensão ou qualquer outro rendimento do idoso, dando-lhes aplicação diversa da de sua finalidade, constitui crime previsto no art. 102 do Estatuto do Idoso (Lei n. 10.741, de 1º-1003), punido com pena de reclusão de um a quatro anos e multa. Trata-se de crime de ação penal pública incondicionada, não se lhe aplicando os arts. 181 e 182 do CP (art. 95 do Estatuto).
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