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1 A PROTEÇÃO INTERNACIONAL DO PATRIMÔNIO MUNDIAL, CULTURAL E NATURAL E O PATRIMÔNIO CULTURAL BRASILEIRO Solange de Holanda Rocha Procuradora Federal em exercício na Procuradoria Federal em Mato Grosso Professora de Direito Previdenciário – Unirondon Mestranda em Direito Agroambiental pela Universidade Federal de Mato Grosso Especialista em Direito Público Lato Sensu e em Direito Constitucional SUMÁRIO: Introdução; 1 Conceito unificador de patrimônio mundial; 2 Classificação e regime jurídico dos bens integrantes do patrimônio mundial; 3 Patrimônio cultural brasileiro: paisagem cultural e patrimônio cultural imaterial; Considerações finais; Referências. RESUMO: A tendência internacional de integração do patrimônio cultural e natural inaugurada pela Convenção relativa à Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural de 1972 foi seguida pela Constituição brasileira de 1988, que adotou uma concepção ampla de patrimônio cultural, abrangente e democrática, que engloba tanto o patrimônio material, composto de bens naturais e culturais, como o patrimônio imaterial, representado pelas tradições, expressões orais, artísticas, práticas sociais, conhecimentos e técnicas artesanais. Este artigo destaca dois exemplares do patrimônio cultural brasileiro recentemente reconhecidos como patrimônio da humanidade: a cidade do Rio de Janeiro incluída na Lista do Patrimônio Mundial, na categoria de paisagem cultural urbana, e o ritual indígena yaokwa praticado pela comunidade Enawene Nawe, do noroeste do Estado de Mato Grosso, incluído na Lista do Patrimônio Cultural Imaterial em Necessidade de Salvaguarda Urgente. PALAVRAS-CHAVE: Convenção Relativa à Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural. Patrimônio Cultural Brasileiro. Paisagem Cultural. Patrimônio Cultural Imaterial. ABSTRACT: The international trend of integration of cultural and natural heritage inaugurated by the 1972 World Heritage Convention was followed by the 1988 Brazilian Constitution, which adopted a broad conception of cultural heritage, inclusive and democratic, encompassing both the material assets, consisting of natural and cultural assets as intangible heritage represented by traditions, oral and artistic expressions, social practices, knowledge and craft techniques. This article highlights two examples of Brazilian cultural heritage recently recognized as world heritage: the city of Rio de Janeiro included on the World Heritage List, in the category of urban cultural landscape, and indigenous ritual yaokwa practiced by the community Enawene Nawe, from the Northwestern State of Mato Grosso, included on the List of Intangible Cultural Heritage in Need of Urgent Safeguarding. KEYWORDS: World Heritage Convention. Brazilian Cultural Heritage. Cultural Landscape. Intangible Cultural Heritage. 2 INTRODUÇÃO O presente trabalho intitulado A proteção internacional do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural e o patrimônio cultural brasileiro* tem por objetivo abordar alguns aspectos da proteção internacional do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural, com os olhos voltados para o patrimônio cultural brasileiro, à luz da Convenção Internacional de 1972 e da Constituição Federal de 1988 e sob a ótica do Direito Internacional do Meio Ambiente. Inicialmente, pretende-se analisar o conceito unificador de patrimônio mundial, com as qualificações cultural e natural, criado pela Convenção relativa à Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural, adotada em 1972 sob a égide da UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), bem como demonstrar que a tendência internacional de integração do patrimônio cultural e natural foi seguida pela Constituição brasileira de 1988. Na sequência, serão examinados a classificação e o regime jurídico internacional a que estão submetidos os bens que integram a Lista do Patrimônio Mundial. Ao tratar do patrimônio cultural brasileiro, daremos enfoque a dois fatos recentes, a inclusão do Rio de Janeiro na Lista do Patrimônio Mundial, como primeira cidade do mundo a receber o título de paisagem cultural urbana, e do ritual indígena yaokwa praticado pela comunidade Enawene Nawe, do noroeste do Estado de Mato Grosso, na Lista do Patrimônio Cultural Imaterial em Necessidade de Salvaguarda Urgente, com o intuito de ressaltar nosso patrimônio regional. 1 CONCEITO UNIFICADOR DE PATRIMÔNIO MUNDIAL O conceito de patrimônio mundial representado por bens existentes na natureza, como montanhas, formações rochosas, cavernas e paisagens não construídas pelo homem, conjuntamente com os bens criados pela criatividade humana e que ganharam significativa valoração histórica, foi desenvolvido no Direito Internacional, mas sem ligação direta com o meio ambiente. A primeira referência a patrimônio comum da humanidade no Direito Internacional Público é encontrada no preâmbulo do Tratado de Constituição da UNESCO1 de 1945. A UNESCO foi criada em 1945 durante a Conferência de Londres. É uma organização internacional de caráter governamental vinculada à Organização das Nações Unidas (ONU), especializada em promover uma política de cooperação cultural e educacional. As principais decisões são tomadas na Conferência Geral, constituída pelos representantes dos Estados-membros da Organização, que se reúne a cada dois anos. No magistério de Cançado Trindade2, a noção de patrimônio comum da humanidade está associada ao conceito de interesse comum da humanidade (common concern of mankind) constituído dos seguintes elementos: concentração em questões fundamentais a toda a humanidade, consoante a noção de commonness, afetando toda a humanidade, desprovidas de conotações proprietárias; engajamento necessário dos países e das sociedades; dimensão temporal de longo prazo, abrangendo gerações presentes e futuras; ênfase no 1 Disponível em: <http://unesdoc.UNESCO.org/images/0014/001472/147273por.pdf>. Acesso em: 30 jul. 2013. 2 TRINDADE, Antonio Augusto Cançado. Direitos Humanos e Meio-Ambiente. Paralelo dos Sistemas de Proteção Internacional. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1993. p. 217-218. 3 elemento da proteção, com base em considerações de ordem pública, transcendendo a reciprocidade; atenção primária nas causas dos problemas, tanto para prevenção quanto para dar respostas aos efeitos consequentes; partilha equitativa das responsabilidades como princípio subsidiário instrumental na aplicação do próprio princípio de interesse comum da humanidade. Segundo Silva3, a noção de patrimônio comum da humanidade pressupõe o reconhecimento da humanidade como sujeito de Direito Internacional, titular de direitos e obrigações, que contempla os seres humanos da atual e das futuras gerações, para que os recursos desse patrimônio possam ser utilizados para atender às necessidades do presente, sem comprometer sua fruição pelas gerações vindouras, sob pena de extinção de toda a espécie humana. A UNESCO foi criada com a preocupação de resguardar a cultura e a civilização, tanto em tempos de guerra como de paz. Antes de sua criação, as questões relacionadas com a preservação de bens culturais eram discutidas, de forma mais restrita, para hipóteses de conflitos armados4, com exceção do Pacto Roerich5 de 1935, adotado no Continente Americano, que disciplinava a proteção de bens imóveis em tempos de guerra e de paz. Para proteção de bens culturais em tempo de paz, a princípio, foram aprovadas, em sede de Conferências Gerais da UNESCO, a Convenção sobre as Medidasa Serem Adotadas para Proibir e Impedir a Importação, Exportação e Transferência de Propriedade Ilícitas dos Bens Culturais6 (Paris, 1970) e a Convenção relativa à Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural7 (Paris, 1972). O conceito unificador de Patrimônio Mundial, com suas qualificações natural e cultural, foi criação da Convenção relativa à Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural de 1972. Na lição de Silva8, com alicerce na doutrina de Kiss9, o interesse comum da humanidade sobre os bens desse patrimônio é o “traço comum” entre eles, ou seja, é o elemento que unifica ambas as categorias sob o mesmo signo. A Convenção em foco dispõe em seu preâmbulo que o 3 SILVA, Fernando Fernandes da. As Cidades Brasileiras e o Patrimônio Cultural da Humanidade. 2 ed. São Paulo: Peirópolis, 2012. p. 38-39. 4 As Convenções de Haia de 1899 e 1907, codificadoras dos costumes de guerra, estabelecem a obrigação dos Estados beligerantes respeitarem os monumentos históricos o quanto possível. A Convenção de Genebra Relativa à Proteção de Civis em Tempo de Guerra de 1949 proibia destruições de bens móveis e imóveis em caso de ocupações militares, salvo quando absolutamente necessárias. A Convenção para a Proteção dos Bens Culturais em Caso de Conflito Armado (Convenção de Haia de 1954), primeiro tratado internacional que trata exclusivamente da proteção de bens culturais em caso de guerra. 5 Primeiro tratado multilateral adotado para tratar exclusivamente da proteção de bens culturais. Foi elaborado no âmbito de uma organização internacional de caráter regional, mas não fazia restrições às adesões de Estados não membros da União Pan-Americana (criada em 1890 na I Conferência Internacional Americana em Washington, com denominação original de Sociedade Internacional das Repúblicas Americanas). 6 Promulgada no Brasil pelo Decreto 72.312, de 31 de maio de 1973. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1970-1979/D72312.htm>. Acesso em: 28 jul. 2013. 7 Promulgada no Brasil pelo Decreto 80.978, de 12 de dezembro de 1977. Disponível em: <http://www2.cultura.gov.br/site/wp-content/uploads/2007/10/decreto-80978.pdf>. Acesso em: 28 jul. 2013. 8 SILVA, op. cit. p. 43. 9 Cf. KISS, Alexandre Charles. La Notion de Patrimoine Commun de Humanité. Recueil des Cours. Académie de Droit Internacional de La Haye, Haia, v. 175 (II), 1982. 4 desaparecimento do patrimônio cultural e natural constitui um empobrecimento nefasto do patrimônio de toda a humanidade. Neste sentido, Silva10 explica que os interesses comuns da humanidade na proteção de bens culturais decorrem da ideia de sobrevivência, de tradicionalismo, de romantismo, de enriquecimento espiritual, científico e histórico, de fonte de prazer e contemplação, entre outros elementos. No rol de instrumentos normativos internacionais para proteção do Patrimônio Mundial, algumas recomendações da UNESCO11 fazem referência a um patrimônio cultural da humanidade. Trata-se de um conceito aberto, que abrange bens materiais (tangíveis) e imateriais (intangíveis) e engloba a diversidade cultural como objeto de proteção. Nas palavras de Kretzmann12: Não somente os monumentos, prédios históricos e obras arquitetônicas são importantes para a memória e cultura de um povo. O modo de agir, de ser e viver é o que define os contornos de sua história, enche-a de cores, vozes e movimentos, dando sentido à vida desse povo. A riqueza cultural é expressa na diversidade cultural e em suas manifestações, sempre valiosas, em todas as suas formas e independentemente de sua origem. Com bastante propriedade, Lybdek V. Prott13, Jurista Chefe da Seção de Normas Internacionais da Divisão de Patrimônio Cultural da UNESCO, acentua que não há consenso doutrinário acerca dos conceitos de patrimônio da humanidade, patrimônio mundial e patrimônio comum utilizados nos instrumentos normativos da UNESCO, porém, prevalece o ponto de vista, de que este patrimônio deve ser gerido com vistas ao interesse geral e a sua transmissão às gerações futuras. E arremata dizendo: Apesar destas flutuações e divergências de interpretação, o uso crescente do conceito de “patrimônio cultural da humanidade” é considerado como uma boa indicação da aceitação geral do processo de elaboração de regras aplicáveis em escala mundial, para definir o dever de proteção. Assim, a proteção jurídica deve recair não apenas sobre o patrimônio natural composto de paisagens naturais de especial significado para a ciência, mas também sobre o patrimônio cultural, herdado de gerações passadas, uma vez que os bens culturais integram o hábitat do homem moderno. Nesta esteira, bastante elucidativa a doutrina de Soares14: Tal patrimônio natural e, sobretudo, o cultural encontram-se de tal maneira associados ao modo de vida do ser humano, que exigem preservação, para as gerações futuras, sob pena de quebrar um evolver da história e obrigar as futuras gerações a 10 SILVA, op. cit. p. 44. 11 O texto das recomendações da UNESCO está disponível em: <http://portal.UNESCO.org/es/ev.php-URL_ID=12026&URL_DO=DO_TOPIC&URL_SECTION=- 471.html>. Acesso em: 29 jul. 2013. 12 KRETZMANN, Carolina Giordani. Multiculturalismo e diversidade cultural: Comunidades Tradicionais e a Proteção do Patrimônio Comum da Humanidade. Caxias do Sul: 2007. p. 100. 13 Tradução livre do texto original em espanhol. Disponível em: <http://132.248.35.1/cultura/informe/Art14.htm>. Acesso em: 29 jul. 2013. 14 SOARES, Guido Fernando Silva. Direito Internacional do Meio Ambiente: emergências, obrigações e responsabilidade. São Paulo: Atlas, 2003. p. 343. 5 viverem sem uma herança cultural, que caracteriza o habitat do homem. Explica Soares15 que a tutela do meio ambiente natural e cultural, por meio de normas internacionais preservacionistas, destina-se a garantir a convivência harmoniosa entre o passado, o presente e o futuro, e assim conclui: Portanto, ainda que as origens históricas das atuais normas internacionais sobre preservação do patrimônio natural e cultural tenham tido motivações distintas daquelas próprias às atuais considerações sobre a preservação de hábitats ou da diversidade biológica, há um encontro nos objetivos de ambas as regulamentações. No plano do direito interno, a Constituição Federal de 1988 seguiu a tendência internacional de considerar de forma integrada o patrimônio natural e cultural, ao consagrar a noção de patrimônio cultural no artigo 21616 constituído de bens de natureza material (obras, objetos, edificações, conjuntos urbanos, sítios históricos) e imaterial (formas de expressão, criações, modos de vida). Para Milaré17, a Constituição brasileira abraçou modernos conceitos científicos sobre a matéria: Assim, o patrimônio cultural é brasileiro e não regional ou municipal, incluindo bens tangíveis (edifícios, obras de arte) e intangíveis (conhecimentos técnicos), considerados individualmente e em conjunto; não se trata somente daqueles eruditos ou excepcionais, pois basta que tais bens sejam portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos que formam a sociedade brasileira. Relevante registrar que o enunciado do referido artigo 216 é exemplificativo, podendo abranger outros bens não relacionados, de acordo com critérios técnicos definidos pelo Poder Público. Tais critérios estão pautados na existência de nexo vinculante entre a identidade, a ação e a memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira. Ensina Machado18 que a identidade é construída a partirde um conjunto de atributos culturais fornecido pela história, geografia, biologia, instituições produtivas e revelações de cunho religioso. A ação é revelada por realizações materiais ou imateriais, consideradas individual ou coletivamente. A memória cultural é a conservação de fatos ou ações do passado ou do presente visando ao tempo futuro. 15 Ibid, p. 452. 16 Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I - as formas de expressão; II - os modos de criar, fazer e viver; III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico. 17 MILARÉ, Édis. Direito do Ambiente. A gestão ambiental em foco. Doutrina. Jurisprudência. Glossário. 7. ed. São Paulo: RT, 2011. p. 318. 18 MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. 15. ed. revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 919. 6 Desse modo, a proteção do patrimônio cultural, atribuída ao Poder Público com a colaboração da comunidade, como previsto no artigo 216, § 1º19, do texto constitucional pátrio, importa na proteção conjunta do patrimônio cultural e natural. É dessa integração de cultura e natureza que surge a noção de meio ambiente cultural ou patrimônio ambiental cultural. Como é cediço, o meio ambiente não está limitado à natureza e ao equilíbrio ecológico, pois abrange elementos criados pelo ser humano, de maneira que toda a riqueza que compõe o patrimônio ambiental transcende a matéria natural e incorpora também um ambiente cultural, revelado pelo patrimônio cultural20. Importante destacar que as discussões e os acordos firmados durante a Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro em 1992 (ECO92), foram o ponto de partida para dar uma nova dinâmica ao conceito de patrimônio cultural, fazendo a interface com o meio ambiente21. Desde então, o tema passou a ser objeto de estudo do direito ambiental e, além das fronteiras do direito interno, do Direito Internacional do Meio Ambiente. Isto se deve principalmente às políticas destinadas a garantir os direitos dos povos indígenas e das populações tradicionais sobre recursos genéticos, que foram adotadas na Convenção sobre Diversidade Biológica22 durante a ECO92, idealizadas a partir do reconhecimento da estreita relação entre a preservação dos recursos naturais e os conhecimentos, costumes e tradições dessas populações. A associação entre patrimônio natural e cultural também foi albergada como princípio norteador da Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, cujas ações e atividades dirigidas à consecução de seus objetivos devem observar o reconhecimento, a valorização e o respeito à diversidade socioambiental e cultural dos povos e comunidades tradicionais, conforme expresso no art. 1º, I, do Anexo do Decreto nº 6.040/200723. Neste contexto, a preservação da biodiversidade depende da valorização da diversidade cultural dessas comunidades. Daí emergindo a compreensão valorativa dos bens que integram o patrimônio ambiental de um Estado, que se unificam em duas categorias: o patrimônio natural e o patrimônio cultural. 19 § 1º - O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação. 20 REISEWITZ, Lúcia. Direito Ambiental e Patrimônio Cultural: direito à preservação da memória, ação e identidade do povo brasileiro. São Paulo: J. de Oliveira, 2004. p. 63. 21 BOSH, Queli Mewius. Responsabilidade Civil por danos causados ao Patrimônio Ambiental Cultural. Direito Ambiental e Sociedade. v. 1, n. 1, jan./jun. 2011. p. 217. 22 Promulgada no Brasil pelo Decreto 2.519, de 16 de março de 1998. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D2519.htm>. Com texto integral em anexo. Acesso em: 29 jul. 2013. 23 Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007- 2010/2007/decreto/d6040.htm>. Acesso em: 28 dez. 2013. 7 2 CLASSIFICAÇÃO E REGIME JURÍDICO DOS BENS INTEGRANTES DO PATRIMÔNIO MUNDIAL O artigo 1º da Convenção relativa à Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural considera como patrimônio cultural os monumentos (obras arquitetônicas, elementos ou estrutura de natureza arqueológica, entre outros grupos de elementos com valor universal excepcional do ponto de vista histórico, artístico ou científico), os conjuntos (grupos de construções isoladas ou reunidas com valor universal excepcional do ponto de vista histórico, artístico ou científico) e os lugares notáveis (obras do homem ou obras conjugadas do homem e da natureza, bem como as zonas, inclusive lugares arqueológicos, com valor universal excepcional, do ponto de vista histórico, estético, etnológico ou antropológico). A Convenção reconhece a valorização das obras criadas pelo homem em qualquer tempo, sejam antigas ou modernas, pois a qualificação decorre da importância da proteção e conservação dessas obras para as gerações futuras. De acordo com o artigo 2º da Convenção, são considerados como patrimônio natural: os monumentos naturais constituídos por formações físicas e biológicas ou por grupos de tais formações, que tenham valor excepcional do ponto de vista estético ou científico; as áreas que constituem hábitat de animais e vegetais ameaçados e que tenham valor universal excepcional, do ponto de vista da ciência ou da conservação; os lugares notáveis de excepcional beleza natural. A Convenção estabelece um sistema de cooperação e assistência internacional24, destinado a envidar esforços para preservar e identificar o patrimônio mundial, cultural e natural. A cooperação está prevista no Tratado Constitutivo da UNESCO, cujo preâmbulo estabelece a cooperação entre as nações para educação, ciência e cultura como formas de alcançar a paz internacional e o bem-estar geral da humanidade. A cooperação e prestação de assistência internacional realizam-se tanto na qualificação ou delimitação do patrimônio cultural, por meio da inscrição do bem cultural na Lista do Patrimônio Mundial25 ou na Lista do Patrimônio Mundial em Perigo26, assim como nas ações desenvolvidas nos planos técnico (estudos, pesquisas e assistência técnica), educativo (atividades de formação e informação) e financeiro (concessão de empréstimos e financiamentos). No âmbito da cooperação técnica, a assistência é desenvolvida conforme as necessidades do Estado beneficiado, podendo ser preparatória, por meio da elaboração de lista indicativa ou de atividades preparatórias para a inscrição do bem cultural na Lista do Patrimônio Mundial, ou de emergência, para conservação de bens inscritos ou que poderão ser inscritos, diante da ocorrência de graves danos ou de fenômenos súbitos e inesperados, tais como fenômenos da natureza, ou de acompanhamento, por meio do sistema de monitoramento27 24 Convenção Relativa à Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural, artigo 7º.25 Cf. Lista do Patrimônio Mundial disponível em: <http://whc.unesco.org/en/list>. Acesso em: 01 ago. 2013. 26 O bem inscrito na Lista do Patrimônio Mundial em Perigo passa a receber assistência internacional imediata, em razão de perigos sérios e concretos que poderão provocar o seu desaparecimento. 27 O Comitê do Patrimônio Mundial promoveu um encontro de especialistas em Cambridge, Reino Unido, em 1993, que apontou três categorias de monitoramento que poderão ser implementadas: sistemático (elaboração de relatórios periódicos); administrativo (execução de recomendações e decisão do Comitê do Patrimônio Mundial) e ad doc (relatórios ad doc e estudos de impactos para 8 do estado de conservação dos bens culturais inscritos na Lista do Patrimônio Mundial. Compete aos Estados-partes apresentar, na medida do possível, inventários dos bens situados em seu território e que possam ser incluídos na Lista do Patrimônio Mundial. A técnica de arrolamento ou inventário dos bens culturais para inclusão em lista indicativa28 é semelhante ao processo de tombamento, instituto jurídico adotado na legislação brasileira, regulamentado pelo Decreto-lei nº 25 de 1937, pelo qual se faz a proteção do patrimônio histórico e artístico, através da imposição de limitações administrativas à propriedade privada ou pública, por meio da inscrição do bem no livro do tombo. A Lista do Patrimônio Mundial é elaborada pelo Comitê do Patrimônio Mundial29 com o propósito de arrolar, divulgar e proteger os bens culturais e naturais de valor universal excepcional que representam o patrimônio cultural e natural da humanidade, conforme previsto no artigo 11, parágrafo 4 da Convenção Relativa à Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural. Cabe ao Comitê do Patrimônio Mundial formular e atualizar as listas de bens integrantes do Patrimônio Mundial e receber e estudar os pedidos de assistência internacional formulados pelos Estados-partes. Além disso, o Comitê é responsável pela elaboração dos instrumentos normativos que definem os critérios de inclusão ou exclusão de um bem cultural na Lista do Patrimônio Mundial previstos nas Orientações Técnicas para Aplicação da Convenção do Patrimônio Mundial30. Entende-se por valor universal excepcional31 a importância cultural ou natural tão excepcional que transcende as fronteiras nacionais e se reveste de caráter inestimável para as gerações atuais e futuras de toda a humanidade. Para ser considerado de valor universal excepcional, um bem deve atender aos critérios de autenticidade e/ou integridade, assim como ser beneficiado de um sistema de proteção e gestão adequado para sua salvaguarda32 proporcionado pelo Estado interessado em promover sua inscrição na Lista do Patrimônio Mundial. circunstâncias excepcionais que afetam o estado de conservação dos bens). Posteriormente, as Orientações do Comitê incorporaram essas modalidades de monitoramento na forma de monitoramento reativo, para avaliar as condições de perigo que possam acarretar danos ao bem cultural, e nos relatórios periódicos entregues periodicamente pelos Estados à Conferência Geral da UNESCO e ao Comitê do Patrimônio Mundial. 28 Convenção Relativa à Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural, artigo 11, parágrafo 2º. 29 O Comitê do Patrimônio Mundial é órgão executivo permanente instituído pela Convenção, de caráter intergovernamental, composto por vinte e um representantes dos Estados signatários. As demais instituições previstas na Convenção, que compõem a estrutura da autoridade internacional de proteção são: O Conselho Internacional de Monumentos e Lugares de Interesse Artístico e Histórico (ICOMOS), o Centro Internacional de Estudos para a Conservação e Restauração dos Bens Culturais (ICCROM) ou Centro de Roma e o Fundo para a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural ou Fundo do Patrimônio Mundial. Ao lado do ICOMOS, órgão consultivo do Comitê do Patrimônio Mundial para sítios culturais, a União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN), organização internacional criada em 1948, atua como órgão consultivo para sítios naturais. 30 Cf. Operational Guidelines for the Implementation of the World Heritage Convention. Disponível em português em: <whc.unesco.org/archive/opguide11-pt.doc>. Acesso em: 01 ago. 2013. 31 Cf. Orientações, capítulo II.A, parágrafo 49. 32 Cf. Orientações, capítulo II.D, parágrafo 78. 9 Em linhas gerais, a autenticidade é avaliada pelas características originais e subsequentes do patrimônio cultural, com base no grau de credibilidade ou veracidade atribuído às fontes de informação relativas a esse valor, enquanto a integridade é examinada pela apreciação de conjunto e do caráter intacto do patrimônio natural ou cultural, a partir dos elementos ou características que exprimem a importância desse bem. A exclusão do bem cultural da Lista do Patrimônio Mundial decorre da perda de suas características ou de suas qualidades intrínsecas, seja pela cessação das condições que legitimaram sua inscrição ou pela inexecução das medidas protetoras impostas pela Convenção aos Estados-partes. Na inclusão de um bem na Lista do Patrimônio Mundial, o Comitê faz a distinção de bens do patrimônio cultural ou do patrimônio natural, ou ainda pertencentes a ambas categorias. Atualmente, a lista contempla 981 bens, sendo 759 culturais, 193 naturais e 29 mistos, distribuídos por 190 Estados- partes da Convenção. Durante a 37ª sessão do Comitê do Patrimônio Mundial, realizada até 27 de junho de 2013, em Phnom Penh e Siem Reap (Camboja), 19 novos sítios foram acrescidos à Lista do Patrimônio Mundial, sendo 14 culturais e 5 naturais33. A inscrição de um bem na Lista do Patrimônio Mundial submete-o a um regime jurídico internacional, que estabelece duplicidade de direitos e deveres, ou seja, obrigações que incumbem aos Estados-partes onde os bens estão situados, tais como tomar medidas jurídicas, científicas, técnicas, administrativas e financeiras para proteção, conservação e revalorização do patrimônio, e aquelas imputadas à comunidade internacional, com destaque para o dever de assistência financeira. Para este fim, foi instituído um Fundo do Patrimônio Mundial (World Heritage Fund – WHF), constituído por fundos pagos regularmente pelos Estados-partes, com vistas a dar efetividade à atuação da UNESCO, no intento conservacionista do patrimônio cultural. Como leciona Mazzuoli34, a UNESCO faz parte do rol de organizações internacionais que exerce um papel mais diferenciado do que o habitual, ligado aos deveres de prevenção e proteção do meio ambiente. De acordo com Silva35, citando Kiss, o regime diferenciado de gestão do Patrimônio Mundial é baseado em uma relação de trust, segundo a qual a gestão dos bens é atribuída aos Estados e organizações internacionais, que, no papel de tutores, assumem a missão de depositários dos interesses comuns da humanidade, zelando pela conservação dos bens a serem transferidos às futuras gerações. Esclarece Silva36 que o descumprimento das obrigações impostas pela Convenção aos Estados-partes implica na ruptura do pacto de compromissos mútuos firmado entre os Estados e a comunidade internacional, constituído de obrigações assumidas pelos Estados para proteção dos bens culturais e benefícios oferecidos pela comunidade internacional em contrapartida à proteção nacional, com base no regime de cooperação internacional. 33 Para mais informações sobre os 19 novos sítios em inglês.Cf. New Inscribed Properties disponível em: <http://whc.unesco.org/en/newproperties/>. Acesso em: 01 Ago. 2013. 34 MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de direito internacional público. 7. ed. revista, atualizada e ampliada. São Paulo: RT, 2013. p. 1033. 35 SILVA, op. cit. p. 40. 36 Ibid, p. 118-119. 10 3 PATRIMÔNIO CULTURAL BRASILEIRO: PAISAGEM CULTURAL E PATRIMÔNIO CULTURAL IMATERIAL A preservação do patrimônio cultural teve início com a proteção de monumentos isolados, em especial os arqueológicos e arquitetônicos. Em meados do século XX, os enquadramentos foram estendidos às cidades históricas, centros históricos, bairros antigos e conjuntos urbanos inteiros, com base em critérios de antiguidade e excepcionalidade, além de outros aspectos como o vernacular e o moderno na arquitetura e no urbanismo. A par desses avanços, percebeu-se a necessidade de dar novo tratamento aos patrimônios dinâmicos, em permanente construção e mutação, integrados ao território e dotados de dimensão imaterial. Foi assim, que se chegou até a paisagem cultural, por definição o cenário resultante da interação da ação humana (material ou imaterial) com os espaços da natureza. O conceito de paisagem cultural foi adotado pela UNESCO em 1992 e incorporado como uma nova tipologia de reconhecimento dos bens culturais, para fins de inscrição na Lista do Patrimônio Mundial. Desde então, os sítios reconhecidos mundialmente como paisagem cultural estavam relacionados a áreas rurais, sistemas agrícolas tradicionais, jardins históricos e outros locais de cunho simbólico, religioso e afetivo, até que o reconhecimento da cidade do Rio de Janeiro, com suas paisagens entre a montanha e o mar, culminou em nova visão e abordagem sobre os bens culturais inscritos na Lista do Patrimônio Mundial. A concepção de patrimônio cultural adotada pela UNESCO também evoluiu em outra vertente, que será abordada neste estudo, qual seja, a identificação, reconhecimento e salvaguarda do patrimônio imaterial. Ao focar no patrimônio cultural brasileiro, sob a perspectiva do Direito Internacional do Meio Ambiente, optamos por destacar, primeiramente, a inclusão de uma cidade brasileira como primeira paisagem cultural urbana inscrita na Lista do Patrimônio Mundial e, na sequência, o registro do ritual indígena yaokwa praticado pela comunidade Enawene Nawe, do Vale do Rio Juruena no noroeste do Estado de Mato Grosso, na Lista do Patrimônio Cultural Imaterial em Necessidade de Salvaguarda Urgente, a fim de ressaltar nosso patrimônio regional. Atualmente, há 19 bens brasileiros inscritos na Lista do Patrimônio Mundial37, dos quais 7 são naturais e 12 culturais. Os bens naturais correspondem às seguintes áreas de preservação permanente: Complexo de Áreas Protegidas da Amazônia Central/AM, Parque Nacional do Iguaçu/PR, Complexo de Áreas Protegidas do Pantanal - MS/MT, Costa do Descobrimento BA/ES, Reserva Mata Atlântica SP/PR, Áreas Protegidas do Cerrado/GO e Ilhas Atlânticas/PE. Já os bens culturais podem ser inscritos em três classes: monumentos, conjuntos ou sítios culturais, e lugares notáveis (também denominados sítios mistos ou paisagens culturais). Na classe dos monumentos, estão inscritos os seguintes bens culturais brasileiros: Ruínas de São Miguel das Missões/RS e o Santuário do Bom Jesus de Matosinhos em Congonhas do Campo/MG. 37 Disponível em: <http://www.unesco.org/new/pt/brasilia/culture/world-heritage/list-of-world- heritage-in-brazil/>. Acesso em: 08 ago. 2013. 11 Os conjuntos ou sítios culturais brasileiros são compostos dos centros históricos das cidades de Ouro Preto/MG, Olinda/PE, Salvador/BA, São Luiz do Maranhão/MA, Diamantina/MG, Goiás/GO e São Cristóvão/SE, dos sítios arqueológicos do Parque Nacional Serra da Capivara/PI e do Plano Piloto de Brasília/DF, primeiro núcleo urbano construído no século XX incluído na Lista do Patrimônio Mundial. Por último, a cidade do Rio de Janeiro tornou-se a primeira do mundo a receber o título de Patrimônio Mundial como paisagem cultural urbana. Em setembro de 2009, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN38 entregou a UNESCO o dossiê completo da candidatura da cidade, justificando seu valor universal excepcional pela interação da sua beleza natural com a intervenção humana. Por ocasião da 36ª Sessão do Comitê do Patrimônio Mundial, em São Petersburgo, na Rússia, iniciada em 24 de junho de 2012, o comitê técnico da candidatura defendeu as paisagens cariocas entre a montanha e o mar. Na apresentação, o Rio de Janeiro foi mostrado como uma cidade onde a paisagem urbana se funde com uma natureza exuberante que dá origem a uma cultura de rua, com grandes espaços abertos, parques públicos, jardins e orla que são parte da vida cotidiana dos cariocas. A candidatura foi aprovada pelo Comitê em 1º de julho de 2012. O Comitê do Patrimônio Cultural destaca o caráter evolucionista da ação humana como definidor das paisagens culturais e as divide em três categorias: 1) Paisagens claramente definidas, que são aquelas desenhadas e criadas intencionalmente, como jardins e parques; 2) Paisagens evoluídas organicamente, que se subdividem em paisagens cujo processo de construções terminou no passado e paisagens com processos evolutivos em curso; 3) Paisagens culturais associativas, que são valorizadas de acordo com associações feitas acerca delas, como as associações espirituais de povos tradicionais com determinadas paisagens. No Brasil, o instrumento jurídico para reconhecimento e proteção de paisagens culturais é denominado chancela e foi instituído pela Portaria Iphan nº 127/200939. De acordo com a Portaria, qualquer pessoa natural ou jurídica é parte legítima para requerer a instauração de processo administrativo, visando à chancela de paisagem cultural brasileira. A chancela das paisagens culturais brasileiras deve ser revalidada no prazo máximo de 10 anos, em vista do caráter dinâmico da cultura e da ação humana sobre porções do território. Os processos administrativos de chancela de Paisagem Cultural40 devem prever o estabelecimento de pactos que configurem acordos entre o poder público, a sociedade civil, a iniciativa privada e entidades culturais, além de outros interessados e envolvidos. É um importante instrumento para a continuidade de práticas responsáveis pela configuração da paisagem, atuando especialmente sobre os aspectos socioeconômicos e culturais. A prática dos inventários de referências culturais em sítios urbanos tem demonstrado que a valorização do patrimônio imaterial sensibiliza a comunidade local para a 38 Autarquia Federal vinculada ao Ministério da Cultura criada pela Lei 378, de 13 de janeiro de 1937. 39 Disponível em: <http://portal.iphan.gov.br/portal/baixaFcdAnexo.do?id=1236>. Acesso em: 09 ago. 2013. 40 Cf. Reflexões sobre a Chancela da Paisagem Cultural Brasileira disponível em: <http://portal.iphan.gov.br/portal/baixaFcdAnexo.do?id=1757>. Acesso em: 09 ago. 2013. 12 preservação do patrimônio edificado, facilitando o trabalho de orientação e fiscalização. A chancela da Paisagem Cultural e o título de Patrimônio Mundial podem atuar com eficácia para preservação da natureza desses bens culturais: destacando o sítio e suas práticas, reconhecendo e transferindo valor, inclusive econômico, motivando os protagonistas para a continuidade de suas atividades e instituindo medidas de proteção e fomento. No caso do Rio de Janeiro, vários locais da cidadevalorizados com o título de Patrimônio Mundial serão alvo de ações integradas visando à preservação da sua paisagem cultural. São eles o Pão de Açúcar, o Corcovado, a Floresta da Tijuca, o Aterro do Flamengo, o Jardim Botânico, a praia de Copacabana, além da entrada da Baía de Guanabara, que deverá ser beneficiada com projeto de despoluição. Os bens cariocas incluem o forte e o morro do Leme, o forte de Copacabana e o Arpoador, o Parque do Flamengo e a enseada de Botafogo. Para Santilli41, a chancela das paisagens culturais pode ser considerada um novo instrumento de proteção à biodiversidade, tanto de seus componentes materiais (espécies, variedades, ecossistemas, etc) como imateriais (conhecimentos e saberes associados à biodiversidade). Destaca que o objetivo da chancela é contribuir para a preservação do patrimônio cultural, complementando e integrando os instrumentos de promoção e proteção existentes,42 a exemplo do registro de bens culturais imateriais. Em conformidade com nossa Constituição Federal, o patrimônio cultural brasileiro é constituído de bens de natureza material e imaterial, incluindo as formas de expressão, os modos de criar, fazer e viver, devendo ser protegido pelo Poder Público, com o apoio da comunidade, por meio de inventários e registros (art. 216, incisos I e II e § 1º). A Constituição também assegura proteção às manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, além de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional (art. 215, § 1º). Ademais, reconhece a organização social dos índios, seus costumes, línguas, crenças, tradições e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam (art. 231). Neste contexto, pertinente a lição de Sirvinskas43: Percebe-se que o texto constitucional consagra o pluralismo cultural decorrente da interação dinâmica dos diversos segmentos sociais, dando ênfase não apenas aos bens que ostentam valor econômico intrínseco mas a todos os que, materiais ou imateriais, sendo reflexo de nossa identidade, ação e memória, guardem referência com a cultura brasileira [...]. A despeito de o normativo constitucional existir desde 1988, a regulamentação das práticas de conservação do patrimônio cultural imaterial demorou a ser instituída, vindo a ocorrer por meio do Decreto nº 3551/200044, que estabeleceu o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial, dividindo o 41 SANTILLI, Juliana. Novos Instrumentos de Proteção: A Chancela da Paisagem Cultural. I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural. Sessão Temática 4. v. 2, 2011. p. 245. 42 Ibid, p. 244. 43 SIRVINSKAS, Luís Paulo. Manual de Direito Ambiental. 6 ed. revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 492. 44 Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D3551.htm>. Acesso em: 09 ago. 2013. 13 registro nos Livros dos Saberes, das Celebrações, das Formas de Expressão e dos Lugares45. Para Sant´Anna46, o instituto do registro é um instrumento de reconhecimento patrimonial que firma o compromisso do Estado com o fortalecimento das condições que propiciam a continuidade dos bens culturais imateriais. O registro gera obrigação dos poderes públicos de promover ações de salvaguarda, a fim de apoiar a continuidade e as condições sociais e materiais que possibilitam a existência do bem cultural imaterial47. O registro deve ser refeito a cada 10 anos do reconhecimento oficial, com o intuito de reavaliar a continuidade e reprodução desse bem. Isto se justifica pelo caráter dinâmico das práticas e expressões culturais, que são transformadas, reiteradas e atualizadas com o passar do tempo, sendo assim, passíveis de desaparecimento, tanto por ameaças ou fatores exógenos, como por eventual perda da função simbólica, tecnológica ou econômica junto ao grupo social que as sustentam. Por isso, explica Sant´anna48, como documentação exaustiva da expressão cultural, o Registro permite preservar sua memória para a posteridade. Na esfera internacional, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) adotou a Convenção nº 169, durante a 76ª Conferência Internacional do Trabalho em 1989, que revisou a Convenção nº 107 de 1957, sobre povos indígenas e tribais. A Convenção em comento foi ratificada pelo Brasil em 2002 e promulgada no direito interno por meio do Decreto nº 5051/200449. De acordo com seu art. 4º, deverão ser adotadas medidas especiais para salvaguardar as pessoas, as instituições, os bens, as culturas e o meio ambiente dos povos interessados. Neste prisma, o registro de bens culturais imateriais pode ser classificado como uma medida especial para dar efetividade ao compromisso internacional assumido pelo Estado brasileiro de salvaguarda da cultura e identidade dos povos indígenas, desde que assegurados os direitos de consulta e participação dos povos interessados. Já a UNESCO inicialmente identificava patrimônio cultural com patrimônio material. Tal identificação foi revista após a Declaração Universal da Diversidade Cultural de 200250, bem como adoção em 2003 da Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial51 e posterior aprovação em 2005 45 Lista dos bens registrados pelo Iphan disponível em: <http://portal.iphan.gov.br/portal/montarPaginaSecao.do?id=12456&retorno=paginaIphan>. Acesso em: 10 ago. 2013. 46 SANT´ANNA, Márcia. A política federal salvaguarda do patrimônio cultural imaterial. Desafios do desenvolvimento. ed. especial. Brasília: Ipea. Jun./jul. 2010. p. 45. 47 O Decreto 3551/2000 também criou o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial (PNPI) e consolidou o Inventário Nacional de Referências Culturais (INCR). O Programa estabelece planos de salvaguarda, em que são definidas as formas de salvaguardar o bem, que podem incluir ajuda financeira a detentores de saberes, organização comunitária ou facilitação de acesso a matérias-primas. 48 Idem. 49 Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004- 2006/2004/decreto/d5051.htm>. Acesso em: 28 dez. 2013. 50 Disponível em: <http://unesdoc.unesco.org/images/0012/001271/127160por.pdf>. Acesso em: 10 ago. 2013. 51 Disponível em: <http://unesdoc.unesco.org/images/0013/001325/132540por.pdf>. Acesso em: 10 ago. 2013. 14 da Convenção sobre a Proteção e a Promoção da Diversidade das Expressões Culturais52. O Brasil é signatário das referidas Convenções de 2003 e 2005, que foram promulgadas através dos Decretos 5753/2006 e 6177/2007, respectivamente. Para os fins deste trabalho, releva destacar do texto da Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, o artigo 2, item 1, que traz a definição de patrimônio cultural imaterial e os artigos 16 e 17, que dispõem acerca das Listas do Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade, transcritos abaixo: Entende-se por “patrimônio cultural imaterial” as práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas - junto com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que lhes são associados - que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural. Este patrimônio cultural imaterial, que se transmite de geração em geração, é constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função de seu ambiente, de sua interação com a natureza e de sua história, gerando um sentimento de identidade e continuidade e contribuindo assim para promover o respeito à diversidade cultural e à criatividade humana. [...] Artigo 16: Lista representativa do patrimônio cultural imaterialda humanidade 1. Para assegurar maior visibilidade do patrimônio cultural imaterial, aumentar o grau de conscientização de sua importância, e propiciar formas de diálogo que respeitem a diversidade cultural, o Comitê, por proposta dos Estados Partes interessados, criará, manterá atualizada e publicará uma Lista representativa do patrimônio cultural imaterial da humanidade. 2. O Comitê elaborará e submeterá à aprovação da Assembléia Geral os critérios que regerão o estabelecimento, a atualização e a publicação da referida Lista representativa. Artigo 17: Lista do patrimônio cultural imaterial que requer medidas urgentes de salvaguarda 1. Com vistas a adotar as medidas adequadas de salvaguarda, o Comitê criará, manterá atualizada e publicará uma Lista do patrimônio cultural imaterial que necessite medidas urgentes de salvaguarda, e inscreverá esse patrimônio na Lista por solicitação do Estado Parte interessado. No que toca à Convenção sobre a Proteção e a Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, interessa-nos a observação de Lima53 quanto à relevância de se reconhecer, por meio desse instrumento normativo internacional, os imperativos dos valores endógenos, da valorização do pluralismo, do reconhecimento de minorias, dos direitos à diferença e, sobretudo, da obrigação de zelarmos pela proteção dos atributos socioculturais identitários. 52 Disponível em: <http://unesdoc.unesco.org/images/0015/001502/150224POR.pdf>. Acesso em:10 ago. 2013. 53 LIMA, Antonio Augusto Dayrell de. Por que uma Convenção sobre a Proteção da Diversidade Cultural? Estudos Avançados 19 (54), 2005. p. 452-453. 15 Na órbita do patrimônio cultural regional, o ritual yaokwa do povo indígena Enawene Nawe, que habita a região noroeste do estado de Mato Grosso, foi inserido em 2010 no Livro de Registro das Celebrações54 mantido pelo Iphan, e inscrito na Lista de Patrimônio Cultural Imaterial em Necessidade de Salvaguarda Urgente em 23 de novembro de 2011. A decisão foi tomada durante a 6ª Reunião do Comitê Intergovernamental para Salvaguarda do Patrimônio Imaterial, em Bali, Indonésia, que acolheu a justificativa de que o yaokwa representa um ecossistema extremamente delicado e frágil, cuja continuidade depende diretamente da sua conservação. O ritual é a celebração mais importante realizada por esse povo indígena, com duração de sete meses, marcando o início do calendário ecológico-ritual Enawene que abrange as estações seca e chuvosa. No ciclo anual, o grupo realiza mais três rituais, o Lerohi, o Salomã e o Kateokõ. Uma das principais fases do ritual é quando os homens saem para a chamada pesca de barragem, construindo armações que são dispostas de uma margem a outra do rio. Este ponto do ritual começa em janeiro, com a coleta das matérias-primas para a construção das barragens e com a colheita da mandioca. A população é composta de aproximadamente 540 indivíduos que vivem em uma única aldeia, na terra Enawene Nawe, localizada numa região de transição entre o cerrado e a floresta Amazônica, no estado do Mato Grosso. Por se tratar de um ritual regulado pelos ciclos da natureza, a preservação do ecossistema é indispensável para sua continuidade, pois envolve determinadas condições ambientais para garantir a obtenção dos produtos animais e vegetais necessários à execução do rito, notadamente o peixe. Engloba também um repertório de tradições orais, danças, cantos, instrumentos e outros conhecimentos tradicionais, que constituem o traço emblemático da etnia daquele povo. A indicação do ritual para a Lista de Patrimônio Cultural Imaterial em Necessidade de Salvaguarda contou com a anuência da comunidade Enawene Nawe e sua inclusão na Lista confere à celebração não apenas a proteção brasileira, mas também a proteção internacional. CONSIDERAÇÕES FINAIS A Convenção relativa à Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural, adotada em Paris, em 1972, sob a égide da UNESCO, tem por objetivo definir e proteger os bens pertencentes ao patrimônio mundial, composto de bens naturais e culturais, conhecido como Patrimônio Cultural da Humanidade. Ao subscrever a Convenção, o Brasil assumiu um compromisso internacional de proteção e salvaguarda dos bens integrantes do patrimônio cultural nacional. Os bens protegidos são aqueles de excepcional valor universal, que devem ser preservados para as atuais e futuras gerações. A inclusão de bens brasileiros na Lista do Patrimônio Mundial, criada pela Convenção de 1972, e na Lista de Patrimônio Cultural Imaterial, introduzida pela Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial de 2003, pode contribuir com eficácia para preservação da natureza desses bens culturais, 54 O dossiê Iphan sobre o ritual Yokwa pode ser acessado em: <http://portal.iphan.gov.br/portal/baixaFcdAnexo.do?id=3228>. Trata-se de um documento elaborado por uma equipe multidisciplinar com registros detalhados do território e das práticas culturais do Povo Enawene Nawe. 16 especialmente pela prestação de assistência internacional de ordem técnica, educativa e, até mesmo, financeira, através dos recursos do Fundo do Patrimônio Mundial criado pela UNESCO. A Constituição brasileira de 1988, seguindo a tendência internacional, adotou uma concepção ampla de patrimônio cultural, de orientação pluralista e multicultural, que valoriza a sociodiversidade brasileira e protege as manifestações culturais dos diferentes grupos sociais e étnicos, incluindo indígenas e outras comunidades tradicionais, como formas de concretizar os direitos à cidadania e garantir a continuidade de suas tradições, por meio da interação harmônica da ação humana com os espaços da natureza. Dessa integração entre cultura e natureza, exsurge a noção de meio ambiente cultural permeada pela necessidade de harmonização do homem com o meio ambiente que o cerca, cuja degradação crescente pode afetar sua própria existência. A legislação brasileira estabelece diversos instrumentos jurídicos, tais como o tombamento de bens imóveis, a chancela de paisagens culturais e o registro de bens culturais imateriais, que devem ser utilizados de forma integrada, por meio da atuação conjunta dos poderes públicos e dos grupos sociais envolvidos, para dar efetividade à tutela do meio ambiente, assim como fortalecer a identidade cultural brasileira. REFERÊNCIAS BOSH, Queli Mewius. Responsabilidade Civil por danos causados ao Patrimônio Ambiental Cultural. Direito Ambiental e Sociedade. v. 1, n. 1, jan./jun. 2011. KRETZMANN, Carolina Giordani. Multiculturalismo e diversidade cultural: Comunidades Tradicionais e a Proteção do Patrimônio Comum da Humanidade. Caxias do Sul: 2007. Disponível em: <http://tede.ucs.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=93>. Acesso em: 29 jul. 2013. LIMA, Antonio A. Dayrell de. Por que uma Convenção sobre a Proteção da Diversidade Cultural? Estudos Avançados 19 (54), 2005. 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