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WEBER, KELSEN, HABERMAS E O PROBLEMA DA LEGITIMIDADE José Renato Gaziero Cella Introdução O presente trabalho, que trata de formulações sociológicas de Estado, não tem e nem poderia ter a pretensão de abarcar todo o assunto, o que tornou necessária a opção dos tópicos abordados. Neste sentido, dentro de uma discussão contemporânea acerca do assunto, em especial no que tange ao problema da legitimidade do poder estatal, será abordado como os pensadores Weber, Kelsen e Habermas enfrentaram essa questão à luz do Direito. 1. Designações básicas para a compreensão dos pensamentos de Weber e Habermas Max Weber definiu o poder como a possibilidade de impor a própria vontade a comportamento alheio, partindo do modelo teleológico da ação: um sujeito individual (ou um grupo, que pode ser considerado como um indivíduo) se propõe um objetivo e escolhe os meios apropriados para realizá-lo. O sucesso da ação consiste em provocar no mundo um estado de coisas que corresponda ao objetivo proposto. Na medida em que tal sucesso depende do comportamento de outro sujeito, deve ter o ator à sua disposição meios que induzem no outro o comportamento desejado. É essa capacidade de disposição sobre meios que permitem influenciar a vontade de outrem que Max Weber chama de poder. Numa visão mais moderna, Hannah Arendt e posteriormente Habermas apropriou-se deste conceito, reservando para tal caso o conceito de violência. Por que o sujeito de ações instrumentais, interessado exclusivamente no êxito de sua ação, deve dispor de meios graças aos quais pode forçar um sujeito com capacidade decisória, seja pela ameaça de sanções, seja pela persuasão, seja por uma manipulação hábil das alternativas de ação? Segundo Arendt o “poder significa aquela probabilidade de realizar a própria vontade, dentro de uma relação social, mesmo em face de resistência”. Weber analisa o poder como potencial para a realização de fins, ao nível da teoria da ação. O modelo teleológico da ação do qual Weber considera atores orientados para o próprio sucesso e não para o entendimento em que os participantes os vêem como funcionalmente necessários ao próprio sucesso. Segundo Habermas, tal entendimento, buscando de forma unilateral sob a reserva da instrumentalização para o próprio êxito, não pode ser levado a sério: não preenche as condições de um consenso alcançado de forma não- coercitiva. Em suma, Hannah Arendt e Habermas concebem o poder como faculdade de alcançar um acordo quanto à ação comum, no contexto da comunicação livre da violência. Habermas e Arendt partem também de outro modelo de ação — o comunicativo. Segundo Arendt “o poder resulta da capacidade humana, não somente de agir ou de fazer algo, como de unir-se a outros e atuar em concordância “com eles”. O fenômeno fundamental do poder não consiste na instrumentalização de uma vontade alheia para os próprios fins, mas na formação de uma vontade comum, numa comunicação orientada para o entendimento recíproco. Para Habermas o “poder” significaria, então, o assentimento dos participantes mobilizados para fins coletivos e, portanto, sua disposição de apoiar e liderança política; a “violência” significaria a faculdade de dispor sobre os recursos e meios de coação, graças aos quais uma liderança política toma decisões obrigatórias e as executa, a fim de realizar objetivos coletivos. Com grande ironia, Weber e os teóricos críticos da primeira geração concluíram que a prisão em que o homem contemporâneo leva sua monótona existência, despojado de todo sentido cósmico e dignidade moral, submetido aos caprichos impessoais da burocracia, era nada menos do que a trágica realização de uma aspiração nascida nos tempos em que a razão ainda era considerada fiadora universal de um mundo de sujeitos autônomos. O que parece escandaloso nesse diagnóstico tem menos relação com sua rejeição liminar do “progresso cientifico” — quimera que de qualquer forma já deveríamos ter abandonado — do que com a condenação abrangente de tudo o que é racional. Weber usa o conceito de racionalidade numa ampla variedade de contextos para se referir a certos aspectos da ação, decisão e visão do mundo sintetizadas. Como característica da ação, a racionalidade pode se referir tanto ao cálculo racional-propositado dos fins, com respeito a determinadas preferências (racionalidade da decisão) e meios eficientes (racionalidade instrumental) como à racionalidade do valor – “formulação de valores últimos governando a ação e a orientação consistentemente planejada dos pormenores do seu rumo até atingir esses valores”. Algumas vezes, Weber justapõe o formalismo frio da pura racionalidade propositada, que envolve sempre um cálculo impessoal e em larga medida quantifícavel das conseqüências, e a obrigação substantiva, altamente pessoal e racional em termos de valor. Contudo, quando Weber discute o potencial legitimizador das ações racionais pelo valor, distintas das ações afetivas (motivadas pela emoção) e tradicionais (motivadas pelo hábito), ele implica incisivamente que a racionalidade de valor consiste na dedução de máximas práticas dos princípios universais — e nessa medida formalizáveis ou processuais — de eqüidade e de justiça do tipo articulado, p. ex., no direito natural. Ou mesmo quando aborda “o número infinito das possíveis escalas de valor”, com respeito à “racionalidade dos objetivos substantivos”. Vale notar, naturalmente, que Weber nunca chegou ao ponto de igualar o direito natural ou ética dos objetivos últimos com formas de racionalidade puramente processuais – nem poderia fazê-lo, dada sua crença firme no status subjetivo dos compromissos com os valores, de modo geral. A racionalidade só se torna uma característica da ação depois de incorporada às estruturas de personalidades, interpretações culturais e instituições sociais. Racionalização é o termo utilizado por Weber para designar o processo pelo qual essa transformação é efetuada, ou seja, racionalização cultural denota um conjunto complexo de eventos abrangendo a progressiva fixação, diferenciação e formalização das esferas de atividade relacionadas com o valor, a mais fundamental das quais gravita em torno da tríade Kantiana da verdade (conhecimento), legalidade ou bem (direito e moralidade) e beleza (arte e gosto). No ocidente a racionalização cultural era sinônimo da secularização da perspectiva judaico-cristã. Weber assinala o ”desencantamento” da natureza, que passou a ser vista como o contexto puramente objetivo da redenção da humanidade em função de divindade ética transcedente. Portanto o “desencantamento”, ou a secularização devem ser interpretados como a grande força libertória que preparou o caminho para a sociedade moderna, emancipada. Para Weber, o evento singular decisivo a preparar o caminho para a sociedade moderna foi sem dúvida a separação da ética e do direito - separação entre si e de ambos com relação ao costume religioso. Na sociedade moderna - que para Weber quer dizer sociedade capitalista - a economia, o Estado e as famílias se encontram segregados em domínios relativamente autônomos, com seus próprios valores. Com a institucionalização da propriedade privada e o direito contratual, surge uma economia de mercado. O núcleo organizacional do Estado moderno, a administração burocrática, utiliza as mesmas técnicas que as empresas privadas para garantir seu monopólio do emprego da força na manutenção da lei e da ordem. A teoria da racionalização, para Habermas, está na descentralização racional da consciência que permite aos atores adotar atitudes diferentes com respeito a diferentes domínios da realidade dando a Habermas os pontos de referêncianecessários para construir um modelo não-seletivo da racionalização social. Este modelo descreve os sistemas de ação racionalizável que não devem ser "subordinados a leis intrínsecas às ordens de vida heterogêneas" se a institucionalização das três esferas de valor visar prosseguir em direção ao equilíbrio saudável. Em contraste, há um modo de racionalização seletivo quando pelo menos um dos três elementos constitutivos da tradição cultural não é cultivado sistematicamente, ou quando pelo menos uma esfera de valor cultural é insuficientemente institucionalizada sem um efeito estruturador para o conjunto da sociedade, ou quando pelo menos uma esfera de vida prevalece a tal ponto que subordina outras ordens de vida sob sua forma estranha de racionalidade. Considerações de natureza política desempenham papel decisivo no pensamento weberiano, mesmo em suas elaborações teóricas mais abstratas. O seu esquema analítico é reconstruível com base na íntima associação entre a categoria básica de sujeito agente e a idéia de soberania. O tema de soberania é nuclear em Weber, de modo geral. Ela dá conteúdo à sua ênfase nas idéias complementares e decisivas de luta entre portadores de interesses e valores incompatíveis e de dominação, como uma relação estabilizadora de formas de sociabilidade num contexto de apropriação diferencial de recursos materiais e simbólicos escassos. Ela informa também a ênfase weberiana no agente, este não é visto como já dado mas como constituído (no plano substantivo) e construído (no plano metodológico, como objeto de análise). No que diz respeito à constituição efetiva do agente social, trata-se essencialmente de um processo específico de luta - agentes capazes de dar início a processos de ação. Reaparece a idéia de soberania mencionada antes: analogamente ao que ocorre no plano internacional, no processo de efetivação do Estado Nacional (grande preocupação substantiva de Weber no contexto alemão) a sociedade, concebida pelo viés político, é a arena da constituição conflitiva e problemática de agentes sociais capazes de tomar e implementar decisões e de definir linhas de conduta. Essa luta pela constituição de sujeitos vincula-se à dominação e condução de outros, mediante a apropriação diferencial de recursos materiais e simbólicos escassos e pela sua legitimação - é a capacidade de levar a bom termo um processo de formação de identidade, e de sustentá-la. Em “Faticidade e Validade” Habermas esclarece como a tensão entre os fatos sociais e sua validade normativa se desenvolve no campo do direito e do poder, incluindo-se suas formas de institucionalização na sociedade e no Estado de direito. Na era do pensamento pós-metafísico, fatos históricos ou sociologicamente constituídos são constantemente repensados e reconstruídos normativamente com auxilio das constituições, das leis e das sentenças dos tribunais, que deste modo interferem na prática cotidiana. Ao lado da "normatividade" do Legislativo e do Judiciário, o poder executivo aplica (bem ou mal) as leis em vigor, estruturando a realidade social. A normatividade da lei, internalizada pelos atores, gera expectativas sociais, que se traduzem em ações sociais. Essas, longe de serem espontâneas ou resultantes de processos comunicativos autênticos, resultam da legalidade do poder racional instituído. A complicada dialética entre “faticidade” e “validade” subverteu a relação entre “legitimidade” e “legalidade”, claramente distinguido por Weber. Para Weber, a “legitimidade” de uma ordem social podia alimentar-se de várias fontes (a afetividade, a tradição, o uso, o direito), fornecendo o fundamento indispensável para a “legalidade”. Esta, por sua vez, dependia da lei escrita, bem como de instituições competentes para implementá-la, através de quadros administrativos, policiais e militares. Em Weber há uma seqüência natural e lógica entre os antecedentes (legitimidade) e os conseqüentes (legalidade). Habermas dá um giro de 180º, uma espécie de normative turn, e argumentará que a ordem institucional legal (legalidade) cria, em sociedades modernas, a legitimidade da ordem, desde que atendidos certos critérios democráticos, a legitimidade depende da ordem legal, do direito discursivo e do poder democrático institucionalizado. Para que essa ordem tenha “validade” social e seja efetivamente “legítima” ela precisa ter elaborado as suas leis (constituição, legislação comum), as normas de sua aplicação (administração pública) e as formas de seu controle (judiciário), pelas vias argumentativas, que caracterizem os “discursos” teóricos, éticos e práticos. Assim, a tensão entre “faticidade” e “validade” se complica porque Habermas não inverte simplesmente a relação entre “legitimidade” e “legalidade”, postulado por Weber. Habermas substitui esses conceitos mais complexos, ligados um ao outro por relações igualmente complicadas e nem sempre transparentes. A “faticidade” de uma ordem social como o nazismo alemão, por exemplo, pode significar simultaneamente que esta ordem seja “legítima” (no sentido weberiano), por se tratar de uma ordem em que houve a adesão “afetiva” da maioria dos alemães ao regime de Hitler e sua submissão incondicional ao “Führer”. Mas faticidade também significa, neste caso, “legalidade” da ordem social estabelecida com a do partido nazista na eleição de 1933, porque o regime nazista reformulou as leis da República de Weimar (por exemplo, a legislação anti-semita), baseando-se em um sistema jurídico, fixado em lei e garantido pelo governo, democraticamente eleito. Weber não teria argumentos “racionais” para contestar a ordem social nazista. Em contrapartida, Habermas tem esses argumentos. A ordem social nazista pode até mesmo ter sido “factual” (legal e legítima), mas ela jamais seria “válida”. Pois válida somente pode ser uma ordem social cujas normas e leis foram elaboradas democraticamente, envolvendo todos os “atingidos” e interessados. Esta mesma ordem social ainda não seria considerada “válida”, porque suas normas e leis não podiam - do ponto de vista moral e racional - ser consideradas “justas” e corretas para todos e por todos. Além disso, não foram elaboradas por vias argumentativas, criando uma nova normatividade, baseada na razão comunicativa. Tampouco, alemães e judeus residentes na Alemanha tiveram o direito de participar da elaboração das leis, como não lhes foi concedido o direito de escolher os temas que estavam em debate: p. ex., rejeitar a guerra ou exigir um tratado de paz depois de Stalingrado. Para assegurar a “validade” de uma ordem social tais critérios discursivos precisam ser atendidos, respeitados. Em suma, “faticidade” refere-se a uma realidade social oriunda simultaneamente de duas fontes: (a) de processos históricos e sociais “espontâneos”, cuja normatividade pode ser atribuída ao sentimento comunitarista e à tradição; e (b) de práticas normativas, deduzidas da legislação vigente. Tal faticidade somente teria “validade”, ética e jurídica, se as normas e leis que a regem tivessem sido elaboradas segundo normas e critérios discursivos. Habermas reconhece que ainda não existe hoje em dia nenhuma ordem social efetiva que tenha “validade”, no sentido discursivo que lhe atribui o autor. Ou seja, as sociedades democráticas vigentes, que sem dúvida têm “faticidade”, ainda não atendem a todos os critérios democráticos, a todos os princípios discursivos e racionais exigidos para constituir uma ordem normativa. Esta ordem normativa alimenta-se, contudo, de elementos históricos e empíricos, na medida em que, por um lado, origina-se do "mundo vivido", do qual deduz seus princípios e, por outro,nele interfere, remodelando-o à base de seus elementos normativos, jurídicos. Por isso Habermas é até certo ponto otimista: acretida que as sociedades ocidentais (leia-se européias e norte-americanas) já se aproximam bastante da norma ideal. Habermas no seu livro “Faticidade e Validade” introduz no último capitulo a questão feminina, como ela é tratada hoje nos EUA, como exemplo prático. A igualdade e a justiça entre os gêneros nos campos da educação, da profissionalização, no mercado de trabalho, no exercício da sexualidade, etc.; estão longe de ser realidades factuais. Mas graças a uma institucionalização crescente dos direitos humanos, de leis igualitárias para homens e mulheres, implementadas graças à luta cotidiana das mulheres, a realidade factual da discriminação vem se transformando em uma realidade factual da equiparação em todos os campos e arenas sociais. Esse fato novo está se transformando em realidade graças à existência de leis justas e igualitárias, discursivamente construídas. Produz-se, desta forma, uma “faticidade” nova, que corrige as distorções históricas e sociológicas seculares que desprivilegiavam as mulheres. O mesmo estaria ocorrendo com os negros, os latino-americanos, os gays e outros grupos sociais outrora discriminados. Em todos esses casos, a legalidade discursiva estaria tornando possível a legitimidade das reivindicações das antigas minorias. Entre os assuntos mais abordados por Habermas, estão as teorias sociológicas, teorias do direito, teorias lingüísticas, teorias do Estado (em particular do Estado de direito), sociologia política, sociologia da comunicação, a dialética do público e do privado, questões da formação do povo, o direito das minorias, a ação da sociedade civil, o poder do príncipe e o poder das massas, jurisprudência e jurisdição. O que une todos esses assuntos, com vistas à reconstrução de uma teoria discursiva do direito, é a própria categoria do “direito” (Recht). Trata-se de uma força integradora que reunifica e harmoniza o “mundo vivido” com a esfera “sistêmica” da economia e da administração, impedindo que essa esfera ameace a integridade do mundo vivido, colonizando- o. Em sua função integradora, o direito regulamenta ainda os excessos da economia e do poder, instrumentalizando-se para ordenar o que os mecanismos de integração sistêmica já não conseguem mais controlar: a motivação e a disposição interna dos atores em contextos políticos, sociais e cotidianos. Assim como o direito atua de forma ordenada nos subsistemas do poder e da economia das modernas sociedades, ele também regulamenta, equilibra e ordena as emoções e expectativas dos atores em contextos cotidianos do “mundo vivido”. As expectativas de ação e integração entre os atores passam a ser formas internalizadas de sistemas normativos e legais, introduzidos por vias argumentativas, e aos quais os atores aderem por convicção e convencimento. Em suma, o direito assume um estatuto comparável ao do “Espírito” (Geist) na obra de Hegel. O direito ainda é a categoria que aproxima a “faticidade” da “validade”, como o autor procura demonstrar no caso da luta feminista norte-americana. O direito redefine e remodela histórica e normativamente a relação complicada entre “faticidade” e “validade”, entre os fatos e normas, aproximando essas duas categorias fundamentais. Barbara Freitag, num artigo da “Folha de São Paulo”, “caderno mais!” de 30.ABR.95 faz a seguinte crítica ao discurso teórico de Habermas: “A insistência de Habermas em manter a distinção e forma entre “valores” e “normas” nem sempre é convincente. Enquanto as normas, segundo o autor, devem ser submetidas a um procedimento discursivo para adquirirem sua validade, os “valores” ficam relegados ao campo do “mundo vivido”, no subsistema cultural, de onde não têm condições de se desprender para “validação universal”. Os valores pertencem ao campo dos particulares culturais. Fica difícil compreender porque os procedimentos formais de argumentação (“discursos”) são possíveis em torno da questão da justiça, sem que o próprio “valor” da justiça e da igualdade de tratamento para todos possa ser submetido a uma "validação discursiva", a uma “universalização”, parecendo tão artificial e estéril quanto a distinção entre forma e conteúdo. Uma análise e crítica semelhante recai na questão em que Habermas procura defender um “conceito processual de democracia” contra um “conceito empírico”, sem contudo tocar na questão do “valor da democracia” em seus últimos trabalhos, que mereceria uma análise discursiva, no sentido específico que Habermas dá a este conceito. A questão da democracia remete à questão da origem da norma. Seriam as normas um “produto” cultivado no chão do mundo vivido, das relações cotidianas, das práticas habituais, com o caráter de “regras nomotéticas” (como diria Weber)? Ou seriam elas o resultado de processos racionais (monológicos ou dialógicos) que emergirem da reflexão de um Rousseau, Kant ou da cabeça de especialistas contemporâneos em direito constitucional?" Habermas situa a tensão entre “faticidade” e “validade”, ou entre fatos e normas, no contexto da linguagem e da ação comunicativa. Os dois conceitos coexistem sem atrito, enquanto nos movimentamos no “mundo vivido”, ou seja, enquanto as relações sociais e comunicativas que caracterizam nossa vivência cotidiana não forem problematizadas. As diferentes implicações sociológicas e políticas que um e outro conceito podem ter somente vêm à tona quando os atores põem em questão “as pretensões de validade” implícitas em qualquer ato da fala, a saber: a veracidade (autenticidade) do locutor, a verdade das afirmações feitas e a correção das normas até agora seguidas. Quando um destes questionamentos “perturba” a ação comunicativa, suspendendo as relações comunicativas “habituais” até então aceitas sem questionamento, inaugura-se uma nova forma comunicativa, que Habermas chama de “discurso”. Por vias discursivas, isto é, com base num diálogo empenhado na argumentação racional, convincente, visando o entendimento e isento de qualquer forma de violência interna e externa, a comunicação pode ser restabelecida no cotidiano desde que as “pretensões de validade” postas em questão tenham sido reafirmadas e revalidadas discursivamente. Em outras palavras: 1.) os locutores convencem seus parceiros da veracidade de sua fala, fazendo-a coincidir com suas ações; 2.) os argumentos verdadeiros passam a prevalecer, quando eles fundamentam, de forma plausível, as proposições enunciadas; e 3.) as normas são revalidadas, quando compreendidas, respeitadas e aceitas por todos os integrantes de uma situação dialógica. 2. Crítica de Habermas ao conceito positivista de legalidade Após as considerações preliminares acima, já é possível tecer alguns apontamentos sobre o tema da “legitimidade”, o qual sempre tem atraído a atenção de juristas, filósofos, sociólogos e cientistas políticos, o que, se por um lado denota as suas múltiplas facetas, por outro, exige uma definição mais precisa do objeto do presente estudo. Aqui pretendo discorrer sobre a legitimidade do direito positivo moderno. A preocupação fundamental do trabalho é levantar algumas questões sobre o fundamento, nas sociedades modernas, da legitimidade de uma legalidade em constante mutação. Para levantar tais questões escolhi três autores que abordaram o tema em sua obras: Max Weber, Hans Kelsen e Jürgen Habermas. A escolha não é, de forma alguma, aleatória. Weber construiu um conceito positivista de legitimidade que permeia todas as discussões sobre o tema até os dias de hoje. Tanto é assim, que é com base nele que Kelsen examinaa legitimidade na sua Teoria Pura do Direito. Já Habermas representa o contraponto dessa teoria, abrindo a cela hermética em que Weber e Kelsen haviam trancado o sistema jurídico ao se utilizarem de um conceito positivista de legitimidade, para reafirmar a conexão entre direito, moral e política. Tendo isso em vista, partirei de uma análise do conceito de legitimidade que Max Weber desenvolve na sua tipologia da dominação legítima e de sua aplicação no que diz respeito à “dominação legal-racional” (I), prosseguirei apontando sinteticamente a capa jurídica que Kelsen dá a este conceito (II), para, em seguida, analisar a crítica central que Habermas faz a ele na sua Teoria da Ação Comunicativa (III). Buscarei então descrever em largos traços e proposta de Habermas para uma leitura do fundamento de legitimidade do direito positivo moderno (IV), finalizando com breves apontamentos de algumas implicações que traz consigo esta releitura (V). É preciso ainda deixar claro que não tenho a pretensão de realizar aqui uma análise detalhada do tema, o que demandaria profundas incursões dentro dos ramos da filosofia política, moral e jurídica. Pretendo tão somente esboçar algumas idéias dos autores acima elencados que permitam a discussão de certos problemas centrais deste tema já clássico, que diz respeito a concepções sociológicas de Estado. 2.1 Max Weber e a dominação legal: construção da legitimidade positivista Em sua obra “Economia e Sociedade”, Max Weber utiliza-se do conceito de legitimidade para diferenciar os tipos puros de dominação. Weber parte então da premissa de que, em função da classe de legitimidade em que funda uma determinada dominação, as suas características básicas, como o seu quadro administrativo e o seu próprio modo de exercício, alteram-se. Vê-se então que a legitimidade é tomada como um critério chave para diferenciar os tipos puros de dominação. Entendendo por dominação a “probabilidade de obediência a um determinado mandato” (Weber, Max, 1997, pág. 171), Weber cunha o seguinte conceito de legitimidade: “probabilidade [de uma dominação] ser tratada praticamente como tal e mantida em uma proporção importante” (Weber, Max, 1979, pág. 128). Portanto, é pela crença na sua legitimidade que uma dominação se mantém independentemente do motivo especifico e subjetivo de cada um dos dominados para obedecer aos mandatos que lhe são impostos, é a crença genérica em sua legitimidade que repousa a estabilidade de uma dominação. Weber, ao desenvolver a sua tipologia, identifica três possíveis fundamentos para a legitimidade da dominação política: a) fundamento racional que descansa na crença na legalidade; b) fundamento tradicional que repousa na crença na tradição; c) fundamento carismático que se baseia na crença em qualidades especiais de uma pessoa. O fundamento racional identificado por Weber é de especial importância para este trabalho, pois é nele em que o autor acredita resistir a estabilidade da dominação legal característica de nosso tempo. Seria a crença na legalidad3e que levaria à submissão dos dominados a esta forma de dominação caracterizada pela positivação do direito e por um quadro administrativo predominantemente burocrático. Com efeito, a idéia básica da dominação legal-racional é de que “qualquer direito pode ser criado e modificado mediante um estatuto sancionado corretamente quanto à forma” (Weber Max, 1979, pág. 128). Vemos aqui que Weber, ao fundar a legitimidade da dominação legal na crença na legalidade e, portanto, na possibilidade de criação e modificação do direito, está nos remetendo a um novo problema: o que é legal? Ora, esta questão de reconhecimento do que seja ou não legal torna-se chave para a legitimidade de fundamento racional. Com isto Weber desloca o problema da legitimidade do direito positivo para a questão do procedimento pelo qual o direito é produzido e modificado. É o “procedimento formal concreto” que vai permitir uma identificação do que é ou não legal e, por sua vez, é a crença naquilo identificado como legal que residirá a legitimidade deste tipo de dominação. Portanto, em última análise, a pedra fundamental da legitimidade do edifício jurídico moderno, no pensamento weberiano, passa a ser a crença em um determinado procedimento que permita a identificação do direito. Cabe observar neste ponto que a construção descrita acima traz a legitimidade para o interior da legalidade. Na medida em que o direito se auto-legitima por um procedimento jurídico formal próprio, dispensa qualquer fundamentação externa a ele mesmo. É exatamente sua construção que vai permitir a afirmação da autonomia do direito, que está subjacente a toda discussão jusfilosófica do nosso século. De fato, é essa autonomia que é muitas vezes invocada para diferenciar o direito moderno do direito antigo e é ela também que pode ser apontada como uma das diferenças primordiais entre a dominação legal-racional e os outros dois tipos de dominação, tradicional e carismática, ambas dependentes de fatores externos ao direito, a tradição e o carisma respectivamente. Justamente esta transformação do problema da legitimidade em um problema de procedimento e a conseqüente absorção da legitimidade pela legalidade que vão dar a base teórica para que Kelsen dê uma roupagem mais acabada à teoria weberiana. Vejamos como isso ocorre. 2.2 A legitimidade positivista na Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen Hans Kelsen procura em sua obra Teoria Pura do Direito desenvolver uma teoria jurídica “purificada de toda a ideologia política e de todos os elementos de ciência natural” e elevar a Jurisprudência a uma “genuína ciência, uma ciência de espírito” (Kelsen, Hans,1984, prefácio à primeira edição). Nesta sua busca de uma ciência pura, circunscreve o seu objeto de estudo, qual seja o Direito, isolando-o de quaisquer influências externas. O Direito que Kelsen analisa é então um direito completamente separado da moral e da política e, portanto clama por uma autonomia absoluta. Neste sentido o conceito de legitimidade construído por Weber cai como uma luva na teoria pura do direito. Ele, ao mesmo tempo, confere autonomia ao seu objeto de estudo e possibilita explicar e justificar o dinamismo deste objeto. A teoria positivista de Kelsen leva ao extremo a proposta weberiana, acabando por demostrar algumas distorções. Kelsen define o princípio da legitimidade como “o princípio de que a norma de uma ordem jurídica é valida até a sua validade terminar por um modo determinando através desta mesma ordem jurídica, ou até ser substituída pela validade de uma outra norma desta mesma ordem jurídica (Kelsen , Hans, 1984, pág. 290). Assim, vemos que, novamente, o problema da legitimidade de um ordenamento jurídico se coloca na questão do procedimento. Mais ainda, na definição de Kelsen o procedimento encontra-se claramente no interior da ordem jurídica, pois ele deve necessariamente ser determinando por ela própria. Observa-se que a legitimidade fica equiparada à legalidade: tudo que é legal, isto é, que cumpre o procedimento determinado pela ordem jurídica, é também legítimo. Kelsen percebe, contudo, que este conceito de legitimidade só se aplica em uma ordem jurídica estável1, o que o leva a examinar a situação limite de uma revolução, em que o poder instituído é subjugado e substituído pelo poder revolucionário, podendo este modificar a Constituição, ou mesmo substituí-la. Nesta situação, observa o autor, a norma fundamental, que serve de fundamento de validade para todas as outras é substituída por uma nova, modificando portanto o fundamento de validade de toda a ordem jurídica. Se a nova Constituição modificao procedimento pelo qual se dá a produção de normas válidas, surge então a questão das normas que haviam sido produzidas sob a égide da antiga Constituição, mas continuam sendo válidas, pois, como acontece em geral nestas revoluções, grande parte do edifício jurídico fica intacto. A resposta a esta pergunta é dada da seguinte forma: há apenas uma mudança no fundamento de validade, as normas antigas continuam com o mesmo conteúdo mas sob um fundamento de validade novo, a nova Constituição. Ao constatar a possibilidade de coexistirem normas produzidas sob procedimentos diferentes (sob fundamentos de validade distintos) e a possibilidade de extinção de normas pelo modo determinado por uma ordem jurídica diversa da que havia instituído as mesmas normas, torna-se impossível sustentar que a legitimidade está exclusivamente ligada ao procedimento. Kelsen acaba então vendo-se obrigado a introduzir um elemento novo, limitante do princípio da legitimidade acima descrito: a efetividade do governo. Daí a afirmação de que “o 1 Devemos observar aqui uma inversão do problema inicial que Weber se propunha a resolver ao definir a legitimidade como a probabilidade de conversação de um determinado tipo de dominação. Com o deslocamento do problema para a questão do procedimento, Kelsen acaba sendo levado a afirmar que o seu conceito de legitimidade só se aplica a uma ordem jurídica estável. Vemos assim que o conceito weberiano começa a enfrentar problemas. governo efetivo, que com base numa constituição eficaz, estabelece normas gerais e individuais eficazes, é o governo legítimo do Estado” (Kelsen, Hans, ob. cit., pág. 291). A dominação legítima, nesta concepção, passa então a ser aquela efetiva e, conseqüentemente, o procedimento só vai exercer o seu papel legitimador da ordem jurídica a partir do momento em que estiver fundado num poder efetivo (legítimo e eficaz). O que se pode constatar da construção Kelseniana do conceito de legitimidade é uma inversão do problema proposto por Weber. Este propunha uma tipologia da dominação que utilizava como critério básico as diferentes classes de legitimidade, sendo esta a probabilidade de manutenção de um determinado tipo de dominação. No caso da dominação legal, o fundamento da legitimidade é apontado como sendo de ordem racional e identificado como “a crença na legalidade”. Para que exista esta crença é necessário, por sua vez, um procedimento que identifique o que é e o que não é legal. A partir de então o problema do que é legitimo é deslocado para a questão do procedimento que permite fazer esta identificação. Kelsen parte dessa noção para poder afirmar a legitimidade de um sistema jurídico autônomo. Contudo, quando leva este raciocínio a uma situação limite (uma revolução), o procedimento não serve mais como fator de legitimação. Neste exato momento o fator de legitimação passa a ser a efetividade do poder fundante e é desta efetividade que decorre a legitimidade do novo poder e a posterior restauração da legalidade2. É importante notar que a legitimidade, no sentido procedimental formal que lhe dá Weber, deixa de ser o fator gerador de estabilidade da dominação para ser uma conseqüência desta estabilidade que, em última instância, é fruto da efetividade do poder político. Com essa distorção o conceito de legitimidade concebido por Weber e reafirmando por Kelsen torna-se por demais estreito para compreender o fenômeno jurídico que 2 Tércio Sampaio Ferraz Jr. assume, na sua teoria pragmática da validade, uma mudança do padrão de validade descrevendo uma oscilação entre o padrão-legalidade e o padrão- efetividade: “o padrão-efetividade está em uso no momento em que aparece uma nova norma- origem. Daí para a frente volta o padrão legalidade” (Ferraz Jr., 1993). Esta mudança de padrão é análoga à questão levantada por Kelsen acima. Contudo, Kelsen não admite uma mudança de padrão, apenas uma limitação do princípio de legitimidade. caracteriza a modernidade. É preciso buscar um conceito mais largo que seja capaz de realizar esta tarefa. É exatamente isto que busca Habermas. Passarei então a analisar a crítica fundamental que Habermas faz a este conceito weberiano em sua “Teoria da Ação Comunicativa” (Habermas, Jürgen, 1987) para, a partir daí, tentar esboçar o conceito de legitimidade deste filósofo contemporâneo. 2.3 A Crítica de Habermas ao conceito de legitimidade positivista Habermas, em sua “Teoria da Ação Comunicativa”, faz uma análise profunda do pensamento weberiano, enfocando a sua obra como um todo e tendo como fio condutor a teoria da racionalização social. Mais que uma análise, o capítulo dedicado ao pensamento de Max Weber é um “diálogo” em que Habermas identifica certas deficiências e incongruências na obra do teórico da ação social. Dentro deste intricado “diálogo” encontramos uma crítica veemente de Habermas ao conceito de legitimidade que Weber atribui à dominação legal. Este conceito que, como colocamos acima, é fundamental na crença na legalidade, acaba dando origem à concepção de que a legitimação do direito moderno se dá mediante o procedimento, concepção esta sobrevivente até os dias de hoje. Habermas aponta um paradoxo nesta concepção: “La fe en la legalidad sólo puede crear legitimidad si se supone ya la legitimidad del orden jurídico que determina qué es legal” (Habermas, Jürgen, ob. cit., pág. 343). Ao apontar esta contradição, Habermas está questionando a legitimidade do próprio procedimento, pois “la fe en la legalidad de un procedimento no puede engendrar legitimidad per se, por la sola virtud de la correccion procedimental del proprio estabelecimiento positivo” (Habermas, Jürgen, Ob. cit., pág. 344). Ora, este questionamento é perfeitamente plausível, pois assentar a legitimidade do direito no procedimento não resolve o problema, apenas desloca-o para o próprio procedimento. Persiste então a indagação do que confere a legitimidade ao “procedimento Legitimador”3. Eis aí a questão fundamental com que se depara Habermas ao se propor a analisar a questão da legitimidade do Direito moderno. Tentando identificar o que leva Weber a cometer este equívoco, Habermas só encontra uma possibilidade: Weber apela para uma tradicionalização secundária do procedimento, desconsiderando os pressupostos racionais materializados nas instituições. Apesar de ter consciência de que existam fundamentos racionais na instituição do procedimento, Weber põe estes fundamentos entre parênteses, acreditando que, uma vez existente o procedimento, as pessoas não mais se preocupam com o seu fundamento racional e ele transforma-se então numa espécie de tradição. Para Habermas, mesmo nestes casos em que o procedimento sofre um efeito de tradicionalização, o que dá o caráter legítimo a uma decisão legal é a confiança nos fundamentos racionais subjacentes ao ordenamento jurídico como um todo. Assim, permanece a questão da fundamentação racional que, para o teórico da ação comunicativa, permeia todo o direito moderno. É justamente repensando a questão da fundamentação racional que Habermas vai tentar construir um novo conceito de legitimidade. Um conceito mais largo, capaz de compreender a totalidade do fenômeno, deixando de lado os vícios e preconceitos positivistas que acabaram levando, acredita ele, a interpretações equivocadas que os justificassem. 2.4 A Legitimidade no pensamento de Habermas: uma releitura do fenômeno jurídico Habermas esboça o seu conceito de legitimidade, ainda que de forma inacabada, num trabalho intitulado “como es posible la legitimidad por via de la legalidad?” (publicado na revista DOXAde 1988), em que defende a tese de que o direito moderno não se 3 Na realidade este é o problema enfrentado por Kelsen na situação limite exposta acima. Numa revolução, o que se coloca em cheque é o próprio procedimento. A questão aí é a mesma: o que legitima o procedimento? Ou, se formularmos de outra forma: qual procedimento pode ser considerado legítimo? Kelsen não responde a esta pergunta. Ao invés disso ele introduz o princípio da efetividade como limitante do princípio da legitimidade. Assim, o problema continua sem resposta. encontra desconectado da moral e da política. Ao revés, é na relação com moral, limitada pela sua relação com a política, que reside a legitimidade do direito positivo característico da nossa sociedade. Para construir este complexo de relações, Habermas parte de uma análise do direito pré-moderno, em que identifica a coexistência de um direito sacro com um direito profano. O direito sacro é o fator que legitima as decisões. Portanto, o príncipe só pode agir dentro do âmbito em que está legitimado pelo direito sacro. Este, por sua vez, era incondicionado e baseado na crença nas imagens religiosas do mundo que dominavam as estruturas de consciência pré-modernas. Esta coexistência do direito profano com o direito sagrado demostra uma tensão interna ao direito que persiste até os dias de hoje: aquela entre o seu caráter instrumental e o seu caráter não instrumental. O caráter instrumental do direito dizia respeito ao direito profano, burocrático e utilizado como meio para atingir objetivos políticos. Já o caráter não instrumental era encontrado na incondicionalidade do direito sacro, pressuposto na regulação judicial dos conflitos pelo direito burocrático. Contudo, no momento em que ocorre o fenômeno da positivação do direito, as imagens religiosas do mundo já estão reduzidas a convicções de ordem subjetiva. Isto faz com que o direito sacro não mais sirva como suporte de um direito profano, cada vez mais complexo e, a partir de então, em constante mutação. O direito fica desprovido daquele caráter de incondicionalidade que conferia legitimidade ao poder político responsável por instituí-lo. Nesta situação, para que o direito não fique reduzido à imposição de mandatos de um soberano (redução defendida por todos os seguidores de Hobbes, dos quais Austin é o maior expoente), o que levaria a sua absorção pela política e a conseqüente decomposição do próprio conceito de política, cumpre buscar um outro fundamento de legitimidade que seja capaz de assegurar aquele momento de incondicionalidade antes existente. Esta é a busca que Habermas se propõe a fazer. Só assim o direito pode manter o caráter de obrigação que antes lhe era conferido pela autoridade do direito sacro. Habermas começa a sua busca de um fundamento para o direito moderno observando que, só no momento em que surge uma moral convencional, no sentido que lhe da Kohlderg (em que as normas jurídicas são prévias, independentes da situação e vinculantes para todos), torna-se possível o surgimento de um poder político organizado por meio de um direito coercitivo. Isto porque, acredita Habermas, só no momento em que o poder de fato recebe uma autoridade normativa conferida por uma norma jurídica e que tenha este caráter moral e convencional (e é neste momento que passa a ser legítimo) pode impor politicamente normas jurídicas. Esta constatação leva Habermas a concluir que o fundamento do direito moderno só pode estar na sua relação com a moral: “aquel momento de incondicionalidad que incluso en el derecho moderno constituye un contrapeso a la instrumentalización política del medio que es el derecho, se debe al entrelazamiento de la política y el derecho com la moral” (Habermas, Jürgen, 1988, pág.25). Não se trata aqui de uma moral tradicional, fundada em uma interpretação mítica do mundo, mas de uma moral convencional, autônoma, que apresenta uma racionalidade própria. Nesse sentido, o Direito Natural Racional, superado no século passado devido a tamanha complexidade que a sociedade moderna atingiu, foi a primeira tentativa de construir este entrelaçamento entre uma moral pós-tradicional4 e o direito, ligando este a princípios daquela e colocando-o sobre o pano de fundo de uma racionalidade procedimental (o contrato social nada mais é que um procedimento hipotético que justifica moralmente o poder exercido através do direito positivo). Aí reside a chave do conceito de legitimidade habermasiano na racionalidade procedimental de uma razão prático-moral: “Esta exige que distingamos entre normas y 4 O que Habermas considera como moral pós-tradicional é a moral autônoma, regida por um critério de racionalidade próprio e fruto do desencantamento das imagens do mundo descrito na teoria da racionalização social de Weber. Segundo este autor a evolução das imagens religiosas do mundo leva à autonomização de três esferas de racionalidade regidas por critérios independentes: a esfera cognitivo-instrumental, a esfera prático-moral e a esfera estético-expressiva. Sobre isto ver a análise que Habermas faz de Weber na Teoria da Ação Comunicativa. princípios y procedimentos justificatórios, procedimentos conforme a los quales podamos examinar si las normas, a la luz de los princípios válidos, puedem contar com el asentimiento de todos” (Habermas, Jürgen, 1988, pág.29). Esta razão prática tem como núcleo a idéia de imparcialidade. Desta forma, a legitimidade do direito só pode ser obtida por meio de procedimentos que assegurem a imparcialidade dos juízos (no caso da aplicação das normas) e da vontade (no caso da sua produção) por via de uma argumentação que justifique e fundamente as normas5. Estes procedimentos devem ser institucionalizados dentro do direito positivo permitindo que este comporte discursos morais. Cabe neste ponto a seguinte questão: supondo a aplicação desta justiça procedimental para que haja a produção de normas segundo o critério da imparcialidade, o que faria com que estas normas precisassem ser institucionalizadas na forma de normas jurídicas, impedindo que elas fossem apenas normas morais? Habermas responde a esta pergunta com a afirmação de que a moral pós-tradicional possui um déficit motivacional. Isto é, a moral autônoma carece daquela conexão com a eticidade concreta característica da moral tradicional. Assim, os agentes de uma dada sociedade podem identificar racionalmente (sempre segundo uma razão prática) as normas que seguem o procedimento, mas estas não têm aquela força motivacional de outrora que os impelia a realizar na prática os seus juízos morais. As normas passam a ser exigíveis somente na medida em que aqueles que as cumpram possam esperar que todos os outros também ajam na sua conformidade. Aí reside a necessidade da institucionalização jurídica. Para garantir a aplicação geral e num prazo fixo das normas relativas a problemas funcionais importantes, resolução de conflitos e matérias de maior importância social, faz-se necessária a positivação desta norma por um poder político capaz de assegurá-la coercitivamente. Só por esta via pode- se evitar os problemas de insegurança gerados num complexo de normas puramente morais. 5 Quanto à questão da elaboração deste procedimento apontado como o fundamento da legitimidade das normas, Habermas aponta as teorias da justiça de John Rawls 1. Kohlber e de K-O. Apel e dele como exemplos de propostas sérias de um procedimento que permita analisar questões práticas de um ponto de vista moral. Estas são as teorias procedimentais da justiça (Habermas, Jürgen, 1988, pág. 39).Neste sentido, o direito complementa a moral, corrigindo a sua debilidade motivacional por meio da coerção. Exigindo um poder político que o institua, o direito mostra a sua outra face: o seu caráter instrumental. O poder político se utiliza de normas jurídicas, justificadas e fundamentadas por meio de um discurso que mescla argumentos morais e políticos, para atingir objetivos políticos. Por isso, Habermas afirma que “el derecho se situa entre la política y la moral” (Habermas, Jürgen, 1988, pág. 42). Como já ficou esboçado, mais que uma mera complementação da moral com o direito, Habermas defende um “entrelaçamento” entre os dois. Este se verifica pela observação de que existe uma abertura do direito positivo para argumentações morais que o justifique e fundamente. Há aí a migração de uma moral puramente procedimental (despida de conteúdo normativo) para o interior do direito. Nesse contexto, ambos (direito e moral) se limitam por meio de procedimentos mútuos. Os procedimentos jurídicos deixam um certo espaço para que seja realizado o discurso moral (efetuado à luz de princípios válidos que justificam e fundamentam as normas), fundamental para a sua legitimação. Contudo, este espaço é modelado pela política. São as lutas políticas que determinam quanto deste espaço é ocupado por um discurso moral e quanto é ocupado por imperativos funcionais que põem entre parêntesis os princípios morais. Enfim, a relação legitimadora entre direito e moral é regulada pela política, que, por sua vez, acaba também dependendo desta relação, pois é dela que o poder político extrai a sua legitimidade. Com esta intrincada relação entre moral, direito e política que aqui pudemos só esboçar, o que Habermas aponta é, segundo as suas próprias palavras, ”la idéia de un Estado de Derecho, con división de poderes, que extrae su legitimidade de una racionalidad que garantice la imparcialidad de los procedimentos legislativos e judiciais”. Esta idéia funciona como um standard crítico que permite avaliar a realidade constitucional. E continua de forma incisiva: “esa idea no se limita a oponerse abstractamente (en un impotente deber-ser) a una realidad que tan poco corresponde a ella. Antes bien, la racionalidad procedimental (...) constituye (...) la única dimensión que queda en que puede asegurarse al derecho positivo un momento de incondicionalidad y una estructura sustraída a ataques contingentes” (Habermas, Jürgen, 1988, pág. 37). 2.5 Algumas implicações decorrentes da proposta de Habermas A releitura que Habermas faz da questão da legitimidade engrandece de forma fenomenal a complexidade do direito moderno. Ao encarar o direito como um sistema aberto a questões procedimentais de cunho moral e influenciado profundamente pela política, Habermas acaba por trazer para o centro da problemática jurídica questões que os juristas positivistas acreditavam não ser da sua alçada. E ainda vai além, recoloca questões que os positivistas pensavam ter resolvido. A intenção desse último ponto do trabalho e justamente delinear três das questões que a proposta de Habermas traz à tona: a questão da justiça, a questão da democracia e a questão da autonomia do direito. A questão da justiça, desde o advento do positivismo, foi relegada à filosofia moral e posta entre parênteses pelo conceito positivista, é trazida para o seio da questão da legitimidade, tal como posta por Habermas. É por meio de uma justiça procedimental de caráter moral, com o seu núcleo fundado na idéia de imparcialidade, que Habermas acredita ser possível garantir ao direito moderno a sua autoridade e, conseqüentemente, o seu caráter de obrigação. Assim sendo, o jurista moderno, ao estar envolvido com a aplicação e produção de normas deverá, sob pena de tornar o direito suscetível a ataques contingentes, estar sempre preocupado com a realização deste procedimento de “toma imparcial de decisiones colectivas” (Habermas, Jürgen, 1988, pág. 39). Tendo em vista as dificuldades, num primeiro plano, de conceber teoricamente um procedimento que assegure esta imparcialidade nas sociedades complexas de hoje em dia e, num segundo plano, de aplicá-lo nestas mesmas sociedades, está aí um grande desafio para o jurista de hoje: estar sempre questionando o procedimento racional pelo qual se dá a fundamentação e justificação das normas. Este procedimento permanece sempre aberto a uma crítica racional por meio do discurso e, portanto, ele está continuamente sendo reconstruído pelos participantes do discurso. Aqui se apresenta uma segunda questão para a qual a releitura de Habermas chama a atenção do jurista moderno: quem são os participantes do discurso? Esta é a questão da democracia. Quando o teórico da ação comunicativa coloca numa moral procedimental o fundamento da legitimidade moderna, exige conseqüentemente a participação, de alguma forma a ser definida pelo procedimento, daqueles que serão atingidos pelas normas criadas ou aplicadas. Mais do que isto, “la question de si se ha en juiciado algo desde un ponto de vista moral es algo que sólo puede decirse desde la perspectiva de los participantes, pues aqui no hay criterios previos” (Ob. cit., pág. 40). Só com a participação de todos no discurso poderá ser garantida a imparcialidade que a razão prática exige. Sob este enfoque cabe então a seguinte questão: até que ponto o procedimento democrático moderno, fundado em pilares como a regra da maioria e a representação política, consegue cumprir o pressuposto de legitimidade apresentado por Weber? Isto nos leva a repensar a forma de participação dos indivíduos em uma democracia. Como garantir esta “formação discursiva da vontade coletiva”? Estas duas primeiras questões representam bem uma gama de problemas muito complexos que surgem ao estabelecer-se uma conexão entre direito, política e moral. Além disso, elas recolocam o problema da autonomia do direito em outros termos. Se não se pode mais caracterizar o direito como um sistema fechado, cai por terra o conceito de autonomia do sistema jurídico defendido pelos positivistas, que estipulava uma independência absoluta do Direito a qualquer fator externo a ele. Onde está então a autonomia do direito? Ou deixaria ele de ser autônomo? A proposta de Habermas é de que a autonomia do Direito está justamente no seu entrelaçamento com a moral e a política. É esta relação entre os três campos que confere ao Direito a possibilidade de ser autônomo. É ela que impede que o fenômeno jurídico se dissolva ou em puras considerações morais, ou em pura imposição política. Por isso, diz Habermas, “autônomo es un sistema jurídico, sólo en la medida en que los procedimentos institucionalizados para la legislación y la administración de justicia garantizan una formación imparcial de la voluntad y del juicio y por esta via permiten que penetre, tanto en el derecho como en la política, una racionalidad procedimental de tipo ético. No puede haber derecho autônomo sin democracia realizada” (Ob. cit., pág. 45). Vemos assim que a releitura de Habermas sobre o fenômeno da legitimidade, incluída aí a do poder estatal, traz novas e profundas preocupações para o jurista moderno, aqui somente esboçadas nas três questões levantadas acima. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica. decisão. dominação. São Paulo: Ática, 1993. HABERMAS, Jürgen. Teoria de la acción comunicativa. Madrid: Taurus, 1987. ______. Como es posible la legitimidad por via de legalidad. in Revista Doxa nº 5, 1988 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. in Coleção “Stvdivm”, Coimbra: Armenio Amado Editora, 1984. WEBER, Max. Economia y sociedad. Bogotá:Fondo de Cultura Econômica, 1977. ______. Os três tipos puros de dominação legítima. in Weber - Sociologia, vol.13, org. Gabriel Cohn, São Paulo: Ática, 1979. 2. Crítica de Habermas ao conceito positivista de legalidade 2.2 A legitimidade positivista na Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen 2.3 A Crítica de Habermas ao conceito de legitimidade positivista 2.5 Algumas implicações decorrentes da proposta de Habermas
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