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POLÍTICA COMPARADA AULA 3 Profª Karolina Mattos Roeder 2 CONVERSA INICIAL O desenvolvimento da Política Comparada: do surgimento da Ciência Política à Revolução Comportamentalista A Ciência Política como profissão foi institucionalizada nos Estados Unidos ao fim do século XIX e início do XX, quando há o registro dos primeiros departamentos de Ciência Política1 e a sua separação do estudo da História e da Filosofia. Foi também nesse país que se originou a Política Comparada como área institucionalizada, na década de 1950, concomitantemente à revolução comportamentalista. A Ciência Política surgiu junto à ampliação da democracia representativa, inspirada em valores iluministas, liberais, nacionais e científicos, e, até a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), seus analistas viam a democracia como a forma política inevitável do futuro. O fascismo e o comunismo eram vistos como doenças políticas, anomalias e desordens que passariam com o tempo (Almond; Powell, 1972). Os primeiros departamentos de Ciência Política dos EUA se ocuparam, além da teorização, em formar os cidadãos para o republicanismo, e não para uma análise dos fatos e sistemas políticos, como é hoje a Ciência Política. Até aqui se tratava de uma “ciência do Estado”, como Chilcote (1988) coloca, e a teoria era separada da empiria. No entanto, os acontecimentos do século XX fizeram com que os estudiosos conferissem a não inevitabilidade da democracia e a necessidade de se adotar, então, novas perspectivas de análise, para novos contextos. Veremos nesta aula a evolução da Política Comparada tendo como pano de fundo a evolução de paradigmas na Ciência Política do velho institucionalismo para o comportamentalismo. 1 A entrada da Ciência Política na Academia ocorreu em 1857, na Universidade de Columbia, com a nomeação catedrática de Francis Lieber em História e Ciência Política. A criação do primeiro departamento deu-se em 1880, na mesma universidade, e em 1903 há a criação da Associação Americana de Ciência Política (APSA) (Feres Jr., 2000). 3 TEMA 1 – A COMPARAÇÃO ANTES DA REVOLUÇÃO COMPORTAMENTALISTA A Pesquisa Comparada, até 1950, não era ainda uma disciplina sistematizada e os estudos comparados até essa data eram predominantemente formalistas, normativos e concentrados na Europa. O paradigma aqui vigente era o que chamamos de “antigo institucionalismo”, e os temas estudados eram o governo e as instituições políticas formais. A abordagem comparada que dominou até então era baseada em três aspectos: i) sua limitação; ii) preocupação apenas com características de um país específico; iii) atenção limitada sobre instituições governamentais, padrões legais, leis e ideias políticas (Almond; Powell, 1972). A noção de inevitabilidade da democracia tornou-se insustentável com os desdobramentos da segunda grande guerra. Alguns aspectos foram fundamentais para a mudança de posição da Ciência Política, de um otimismo exacerbado para um clima de dúvida e a adoção então de uma nova abordagem. São eles: maior número de sistemas políticos, a manifestação nacional de outras nações no Oriente Médio, África e Ásia, a perda de influência e domínio de países da Europa ocidental e EUA, difusão de ex-colônias e semicolônias, o surgimento do comunismo como uma concorrente na estruturação dos sistemas nacionais e do sistema político internacional e o surgimento de agências paraestatais, como partidos políticos, movimentos sociais e grupos de interesse (Almond; Powell, 1972; Caramani, 2008). TEMA 2 – A POLÍTICA COMPARADA COMO ÁREA DE PESQUISA NO PÓS- COMPORTAMENTALISMO Esse ceticismo e hesitação na política no mundo ocidental pós-guerra estimulou o surgimento de novos esforços e abordagens para a criação de uma nova ordem intelectual sob novo paradigma na Ciência Política, a fim de possibilitar a análise dessa nova realidade. As categorias antigas, institucionais (centradas no Estado), não se encaixavam mais nos novos casos a serem estudados. Também tornou-se evidente que os conceitos ocidentais não tinham o mesmo significado nos países do mundo não ocidental. 4 Influenciada pela metodologia weberiana e positivista da ciência social, a Política Comparada surge após a Segunda Guerra Mundial, ao mesmo tempo que a Revolução Comportamentalista. A Política Comparada se torna uma disciplina e subárea da Ciência Política nos EUA na década de 1950, com a migração de intelectuais europeus para aquele país e a ampliação do escopo de análise, unindo abordagens de outras disciplinas, tais como a sociologia, a psicologia e a antropologia, o que ocasionou uma redefinição de paradigma, de institucionalista, fixada em análises formais, para a comportamentalista, preocupada em inserir a análise do comportamento dos atores nos estudos políticos. Gabriel Almond, depois de passar algum tempo no Instituto de Estudos Internacionais da Universidade de Yale, cria o Comitê de Política Comparada no Conselho de Pesquisa em Ciências Sociais nos EUA, em 1954, com o apoio de várias fundações de fomento, no intuito de expandir a gama de análises comparativas, agora com a abordagem comportamental, formar pesquisadores com novas perspectivas da sociologia, antropologia e psicologia na análise de sistemas políticos e incluir o mundo não ocidental, os novos sistemas que haviam acabado de sair do regime colonial. TEMA 3 – OS OBJETIVOS DA POLÍTICA COMPARADA COMO ÁREA Almond e Powell Jr. (1972) elencam quatro objetivos iniciais da Política Comparada: i. A busca de análises mais amplas, ir além do que os antigos estudos comparados realizavam, sobre as estruturas do governo comparado, levando em conta as análises sobre o mundo não ocidental. ii. A busca do realismo, ir além da preocupação com as leis, instituições e ideias (prática em vez de princípio). Os autores colocam que a obtenção de profundidade e realismo no estudo dos sistemas políticos nos permite localizar as forças propulsoras da política onde quer que possam existir – nas classes sociais, na cultura, na transformação econômica e social, nas elites políticas ou grupos dirigentes, ou no ambiente internacional. (Almond; Powell Jr., 1972) Trata-se de uma nova abordagem e paradigma, a política comparada e o comportamentalismo. 5 i. A busca de precisão – ou tentativa de – nas análises com base em estudos empíricos. ii. A busca da nova ordem intelectual, em contraponto ao paradigma existente anteriormente, que se baseava em conceitos tradicionais como “Estado”, “representação” e “constituição” em suas análises para, com o estabelecimento da Política Comparada, valer-se de novos conceitos: “cultura política, papel político, socialização política”, para analisar uma realidade então mais complexa, recém-modificada pela política e comunicação de massas (Almond; Powell Jr., 1972). TEMA 4 – O FUNCIONALISMO SISTÊMICO: A ABORDAGEM ESTRUTURAL- FUNCIONALISTA O estrutural-funcionalismo na teoria política surge nos antigos conceitos, na antiga “Ciência do Estado”, com as teorias que buscavam compreender o processo político, com a distinção de cada fase de ação e decisão políticas. O desenvolvimento da teoria da separação dos poderes, com os Federalist Papers, é um exemplo disso, pois surgiu para solucionar problemas de diputa de poder e das funções sistêmicas de cada um. A principal preocupação desses autores (Alexander Hamilton, James Madison e John Jay) era a existência de um sistema equilibrado de freiose contrapesos para balancear as relações entre os três poderes. As funções de um não poderiam se sobrepor à dos outros. A expansão do sufrágio e inclusão de outras classes na política, partidos políticos de massas, o surgimento da comunicação de massas e a maior complexidade da representação e das instituições políticas criaram assim novas funções do sistema político que devem ser acrescentadas àquelas anteriores (de legislar, administrar e adjudiciar). Gabriel Almond as denominou: articulação de interesses, agregação de interesses e comunicação. A política é então pensada na Política Comparada em termos de sistema político, que é visto como um indivíduo e seus ambientes (que pode moldar e ser moldado), e suas funções passam a ser as seis citadas acima (Almond; Powell Jr., 1972). Vemos então a mudança, por meio do comportamentalismo, sobre a política comparada e a inclusão de novos conceitos frutos das funções do sistema político – grupos de pressão, partidos políticos, comunicação de massa, cultura política e socialização política –, que passaram a ser a chave para a 6 explicação do sistema político em qualquer contexto e que resultam em teorias com base na empiria comparada. A teoria de fundo utilizada durante a era do comportamentalismo nos estudos comparados era, portanto, predominantemente a Estrutural- funcionalista, e, além disso, a Política Comparada criou e se valeu de teorias de médio alcance sobre partes do funcionalismo do sistema político, quais sejam: grupos de interesse, partidos políticos, cultura política, democratização e estabilidade democrática (Munck, 2006). TEMA 5 – DE ESTADO PARA SISTEMA POLÍTICO Portanto, desde a revolução comportamentalista não falamos mais em Estado, mas sim sobre o sistema político. O conceito de Sistema Político foi criado por David Easton (1968), cientista político que pegou emprestadas ideias de sistemas de outras áreas, como a biologia e a cibernética, e criou uma estrutura de sistema para a política que busca a manutenção de suas funções vitais, considerando as novas configurações políticas dos países e a pergunta de fundo: por que algumas democracias sobreviveram ao longo do século e outras colapsaram? Almond e Verba (1989), por exemplo, analisaram sob uma perspectiva cultural e cívica dos países, trabalho que virou um marco no uso desse tipo de abordagem nos estudos comparados. Os autores identificaram que há condições culturais específicas favoráveis ou desfavoráveis à estabilidade da democracia. O conceito de sistema político substituiu o antigo conceito formal de Estado e ampliou assim o campo da política comparada. A estrutura desenvolvida por Easton de seus sistemas de componentes conceituais, pode ser conferida abaixo: 7 Figura 1 – O sistema político Fonte: Easton, 1968. Com base nesse modelo foi possível realizar o estudo de organizações complexas, que muitas vezes estão conectadas entre si, e também a análise de processos políticos. As entradas das demandas (inputs), os processos de formulação de políticas, as decisões políticas, o comportamento político, seus resultados e impactos podem agora ser estudados e comparados. Com a revolução comportamentalista, a política comparada passou a analisar então os sistemas políticos de forma comparada, conforme organizou Daniele Caramani: Tabela 1 – Política Comparada antes e depois da Revolução Comportamentalista Dimensão de análise Antes Depois Unidade Estado Sistema Político Assunto Regimes e suas intituições formais. Expansão para todos os atores envolvidos no processo de tomada de decisão política. Casos Principais democracias: EUA, Grã-Bretanha, França, análise de colaspo democrático na Alemanha e Itália, autoritarismo na Espanha. Objetiva extensão dos casos (descolonização) e subjetiva extensão com o desenvolvimento da disciplina em vários países. Aparecimento de novas democracias. Indicadores/variáveis Eurocêntricas, categorias qualitativas, tipologias. Novos conceitos abstratos capazes de ser replicados (funcionalismo), empiria e variáveis quantitativas. Método Narrativas e justaposição de casos. Desenvolvimento de banco de dados e inteligência para 8 tanto, método comparativo quase experimental. Dados Constituições e textos legais. Dados individuais e agregados. Teoria Normativa: elitismo institucional Empírico: estrutural- funcionalismo, teoria de sistemas neo-institucionalista e teoria da escolha racional. Fonte: Caramani, 2008, p. 8, tradução livre. NA PRÁTICA Veja trechos de dois estudos de Política Comparada das duas épocas distintas que trabalhamos nesta aula. O primeiro é Alexis de Tocqueville, A Democracia na América (2004), e o segundo, do período após a revolução comportamentalista e o estabelecimento da área de Política Comparada, de Gabriel Almond e Sidney Verba (1989), com o estudo sobre A Cultura Civil e confira suas principais diferenças: Quando estudamos com atenção as leis que foram promulgadas durante essa primeira era das repúblicas americanas, surpreende-nos a inteligência governamental e as teorias avançadas do legislador. (Tocqueville, 2004, p. 49) A Democracia na América foi escrito em 1935 por Aléxis de Tocqueville e representa, apesar de trazer algumas novidades, um exemplo de estudo de caso típico das análises comparadas do período anterior à revolução comportamentalista. Há uma comparação apenas implícita quando o autor analisa a democracia nos Estados Unidos, comparando-a com a França. O processo de democratização, para Tocqueville, tinha um caráter universal, inevitável e providencial, já que seria fruto da igualdade entre os homens. Mas a novidade reside em que cada país teria seu próprio processo de democratização de acordo com suas características específicas (inserção de aspectos sociais e culturais). Os EUA, por exemplo, tiveram condições sociais e geográficas favoráveis, em sua análise. Nossos dados mostraram que a educação é a determinante mais importante da ação política; e também a mais manipulável. A grande vantagem da educação é que as habilidades que podem demorar anos para se desenvolver podem ser transmitidas muito mais facilmente, quando há quem as possua. (Almond; Verba, 1989, p. 370)2 2 Traduzido do original: “Our data have shown education to be most important determinant of political attitudes; and it is also the most manipulatable. The great advantage of education is that 9 O livro de Almond e Verba foi a primeira tentativa de sistematizar dados coletados comparativamente por meio de técnicas de pesquisa (Caramani, 2008). Os autores coletaram dados dos EUA, Reino Unido, Itália, Alemanha e México e, por meio do paradigma comportamentalista, analisam a função da cultura política nos sistemas políticos, mais especificamente o papel da “cultura cívica” na continuidade ou colapso dos sistemas democráticos. FINALIZANDO Nesta aula estudamos a evolução da Política Comparada desde sua gênese, quando ela surge como disciplina, e o método comparativo se torna mais sistemático e orientado por uma teoria, e não pela normatividade. Vimos a importância da revolução comportamentalista para os rumos da Política Comparada e como a análise mudou de uma legal, ligada ao Estado e suas instituições, para o Sistema Político e seus processos, ambiente e cultura. skills that may take years to develop for the first time can be passed on much moreeasily once there are some who posses them.” 10 REFERÊNCIAS ALMOND, G. A.; POWELL JÚNIOR, G. B. Uma teoria de política comparada. Rio de Janeiro: Zahar, 1972. ALMOND, G. A.; VERBA, S. The civil culture. Sage Publications, 1989. CARAMANI, D. Comparative politcs. Oxford, 2008. CHILCOTE, R. H. Perspectivas alternativas de política comparada. R. C. Política, 31(2), 52-65, 1988. EASTON, D. Uma teoria de análise política. Biblioteca de Ciências Sociais. Sociologia e Política, 1968. MUNCK, G. L. The past and present of comparative politics. Passion, craft and method. Comparative Politics, 7 (October 2006), 1-44. Disponível em: <http://matthewcharleswilson.com/Munck%202006.pdf>. Acesso em: 6 jun. 2018. TOCQUEVILLE, A. de. A democracia na América. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2004. v. 2.
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