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Dramaturgia por
Airton Lacerda
MAURíCIO
 
Dramaturgia por
Airton Lacerda
 
 
 
 
 
 MAURíCIO
(4º Tratamento)
Cuiabá, dezembro/2018 
1 
APRESENTAÇÃO
Esta peça é fruto do processo de
criação colaborativa desenvolvido
pelos aprendizes da MT Escola de
Teatro/UNEMAT, a partir das
provocações pedagógicas dessa
instituição. Tendo como material de
pesquisa o Etarismo (preconceito de
idade), com foco na estereotipificação
do velho e da velhice, MAURÍCIO parte
de entrevistas e relatos coletados,
muitos da própria equipe
participante deste projeto, para
propor ao público uma viagem pelos
dogmas sociais que fazem do
envelhecer algo ruim e assustador
para grande parte das pessoas.
Viagem essa da qual esperamos um
dia escapar.
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SINOPSE
A pintura já descasca. Esfarela ao
toque. Já se ouve a marcha. É o
tempo que compõe os acordes. O
velho Maurício e o infinito. Um
mergulho em círculos que
esperava-se não mais existir mas que
ninguém sabe por que ainda estão lá.
A brisa. Registros extremos, opostos.
Uns encaram os traços, outros
dançam a melancolia da vida. O velho
Maurício precisa chegar ao mar. Você
tem medo da velhice ​? 
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QUEM ESTÁ AQUI
MAURÍCIO ​- é só mais um corpo entre
muitos. De passos lentos, coluna
arqueada e olhar cansado. Rugas. A mão
esquerda que já não toca qualquer
acorde. No bolso uns poucos trocados, o
cartão do SUS, uma cartela de remédios,
óculos de sol, duas balas de menta. O
que acontece tem que acontecer. Alguém
que vive como se tivesse dezoito ainda
que acorde, no outro dia, se dando conta
que não. Os olhos, esses não mudam,
brilhantes. Alguém de sorte. Os pés na
água e a brisa - ​BEATRIZ ​​​.
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À margem do último portal existe um
BARQUEIRO que ensinou sua avó a ler, mas
que guarda consigo uma carta que
nunca foi até o mar entregar.
OUTROS. Na espera.. Espera no canto
escuro. Amanhã ou mais um ano. Até a
casa reformar. Até alguém vir buscar (...).
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MAURÍCIO
Peça para dois corações e o mar.
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PRÓLOGO
Da beira do infinito e da canção.
- A pintura já descasca. Esfarela ao toque.
Já se ouve a marcha. É o tempo que
compõe os acordes. Registros extremos,
opostos. O último dos três portais se ergue
e nele toda a esperança se esvai. Uns
encaram os traços, disfarçam as marcas,
tentam retardar o contar das horas.
Outros absorvem as notas e dançam a
melancolia da vida. Passos rasos que se
dissolvem ao vento. Desprende-se.
À margem, um barqueiro. 
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CÍRCULO 3
Do horizonte e travessia. Ecoa.
MAURÍCIO/ BEATRIZ - Maurício é só mais
um corpo entre muitos. De passos lentos,
coluna arqueada e olhar cansado. Rugas.
Quando criança queria crescer, muito
rápido, o suficiente para poder escolher
pra onde ir ou quando seria sua hora de
dormir. Eu pensava que me orgulharia.
Que colecionaria grandes feitos e o mundo
me ofereceria todos os tesouros. Setenta e
dois anos coletando pedras e conchas e,
enfim, o deserto. Nada além.
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BARQUEIRO - Este é o seu lugar? O que
faz aqui?
MAURÍCIO/ BEATRIZ - O mesmo que você.
BARQUEIRO - De fato. A tudo cabe um
tempo, um espaço e, acima de tudo, um
valor. Carimbado no momento que se
nasce. Gasto passo a passo e se desfazendo
em pó ao sabor do vento. Quanto ainda
vale?
MAURÍCIO/ BEATRIZ - Não muito. A mão
esquerda já não toca qualquer acorde. No
bolso uns poucos trocados, o cartão do
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SUS, uma cartela de remédios. Óculos de
sol. Duas balas de menta. A gente não pode
reclamar da vida. O que acontece tem que
acontecer.
BARQUEIRO - Os olhos sempre revelam.
Tão logo o corpo padece, os primeiros
sinais se tornam visíveis. Ignorar é
possível, se conseguir ser surdo ou cego,
mas logo será ridículo. No entanto, os seus
olhos carregam alguma coisa...
MAURÍCIO/ BEATRIZ - Uma brisa.
DAGMAR - Vejo fracassos...
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CLÁUDIA - Vitórias…
JULIANA - Fracassos...
TAINARA - Fracassos e vitórias...
BARQUEIRO - Tomara que sejam mais
vitórias. Você tem medo da velhice?
MAURÍCIO/ BEATRIZ - Talvez. Não quero
forçar ninguém a cuidar de mim. Não
quero ser um encosto, um problema.
BARQUEIRO - Eu tenho medo dos efeitos.
Os efeitos que a velhice pode trazer.
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MAURÍCIO/ BEATRIZ - Qual a diferença?
BARQUEIRO - Conheci alguém uma vez.
Era mais um quase velho, desses cujo valor
ainda se mantém. Desde os quatorze vivia
de cimento, tijolo e areia, carregando no
dorso metros de corredores, escadas,
túneis e porões. Do alto dos edifícios,
fixava o olhar em dias sem fome. Era o
primeiro madrugando, antes da aurora,
com seus pés calejados sobre a ponte.
CLÁUDIA - Querer é poder.
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DAGMAR - A gravidade é consequência.
Uma história rompida.
BARQUEIRO - Tornou-se devidamente
estático, como uma peça de arte. Acima de
tudo, enclausurado. Para eventualmente,
ser revisto e revisitado, sem qualquer risco
de fugir. Se pudesse escolher, se ficasse
incapaz, ainda seguiria?
Responda.
BARQUEIRO - Não sei se ainda vejo em
você a brisa. Pretendo viver, até quando eu
conseguir me locomover sozinho, fazer as
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coisas sozinho. Guardo comigo um tesouro
e isso me mantém.
MAURÍCIO/ BEATRIZ - Assim permanece
protegido?
TAINARA - O que é único é protegido, é
contemplado. A ameaça da extinção é a
mais alta revaloração.
JULIANA - O mais famoso fóssil humano
foi descoberto na Etiópia em mil
novecentos e setenta e quatro. Tido como
extinto, acumulou mais de três milhões e
duzentos mil anos sob a areia para então
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ser resgatado pela ciência e ser
contemplado. Valoração alta.
BARQUEIRO - Duração ínfima…
MAURÍCIO/ BEATRIZ - Acredita que seja
assim?
BARQUEIRO - Até logo ser esquecido e
então descartado…
MAURÍCIO/ BEATRIZ - E se não for?
BARQUEIRO - Ou tornar-se pó, entregue
às chamas…
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MAURÍCIO/ BEATRIZ - Como qualquer
sonho guardado.
BARQUEIRO - Eu conheço muito!
MAURÍCIO/ BEATRIZ - As canções nem
sempre são tão claras.
BARQUEIRO - Eu ensinei minha avó a ler.
Ela era a mais velha numa sala cheia de
crianças. Os outros lá fora. Esqueça. Deixe
isso. Já não é seu tempo... Ela permaneceu.
Ficou lá até o final. Não desistiu. Acho que
conheço muito.
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MAURÍCIO/ BEATRIZ - Espera.
BARQUEIRO - Esperança. Poucos
suportam a imensidão, o zumbir da noite e
o céu sem luar. Espero... Espero não me
enganar.
Um passaporte e o infinito.
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CÍRCULO 2
Da solidão por opção. Cabelos brancos, rugas nos olhos, no
canto da boca.
CLÁUDIA - Eu nunca vou envelhecer. Só o
meu corpo. Minha alma será sempre
jovem. Hoje me preparo para uma velhice
saudável. Vou pular de paraquedas, andar
de bicicleta, vou correr...
MAURÍCIO/ BEATRIZ - Parece muito
minha mãe.
JULIANA - Não envelheça. Porque
envelhecer é um pecado. Você vai ser
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criticada e humilhada. A autoestima não é
grande coisa não.
CLÁUDIA - Vou fazer as cirurgias que eu
quiser, não é a minha idade que vai definir
isso. Eu sou linda...
MAURÍCIO/ BEATRIZ - Já não sei se isso
vale a pena...
CLÁUDIA - O meu corpo está
envelhecendo mas a minha essência não.
Eu escolho correr, andar,caminhar. Eu sou
dona da minha vida. Eu faço as minhas
escolhas. A minha velhice é só física. O
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meu corpo está envelhecendo mas a minha
essência continua jovem.
JULIANA - Para a mulher envelhecida são
proibidas a sedução e a sexualidade. A
mulher velha não é mais mulher, pois seu
corpo não é mais objeto de desejo.
DAGMAR - As minhas pernas estão ficando
lentas. Maso meu espírito continua jovem.
JULIANA - Eu vejo uma mulher que
ressignificou a velhice, brava.Eu acho que
é raiva.A raiva acumulou. Talvez um pouco
de tristeza (vê a brisa ).
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MAURÍCIO/ BEATRIZ - Eu acho que é
poesia.
JULIANA - Vai pra puta que te pariu. Aos
homens tudo é permitido. Sucesso, fama...
Pra vocês o tempo não é tão severo.
MAURÍCIO/ BEATRIZ - O que posso
responder?
TAINARA - Onde está sua coragem?
DAGMAR - Se lhe imputassem uma
pergunta para cada dia de vida, quantas
perguntas acha que ainda lhe restariam
hoje?
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TAINARA - Quantas você listou para si?
Ele vê um homem que tem medo da velhice. Canta.
MAURÍCIO/ BEATRIZ - Quem é esse velho
que me tornei? Um velho ranzinza,
solitário. De que forma o tempo fluiu e eu
não vi? Parece mesmo que eu não estive
nunca em mim e não observei o escoar dos
dias e nem o esvair das horas. Eu perdi a
aurora e agora mergulho no crepúsculo,
nessa beira de abismo sem volta que é o
fluir da vida. Rugas. Com olhos do meu pai.
Os olhos do seu pai. Muita covardia. Dores que
alimentam e atormentam o corpo e que tornam sua
alma jovem.
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MAURÍCIO/ BEATRIZ - Quem é esse velho
que o tempo me transformou? Eu serei o
retrato da alegria quando envelhecer? (​Ou
serei o retrato de uma tristeza​). Talvez um
pouquinho de alegria. (​Estarei menor?​)
Será que eu vou ser um velhinho louco que
pensa que é um palhaço jovem? Quem é
esse velho que está aqui na minha frente?
Tanto sonho por sonhar, pouco tempo pra sorrir.
TAINARA - De quem é sua última chamada
perdida?
MAURÍCIO/ BEATRIZ - Beatriz.
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JULIANA/ DAGMAR/ TAINARA - Essa é a
brisa.
O horizonte.
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CÍRCULO 1
Do rastro de flores e canção.
MAURÍCIO/ BEATRIZ - Um amor antigo.
De quando eu pensava que rodaria o
mundo num avião vermelho. Um tempo de
todos os mares. Antes dos mundos se
dividirem.
CLÁUDIA - E onde está essa brisa que
enche seu olhar?
MAURÍCIO/ BEATRIZ - Há muito tempo
longe, onde poucos barcos alcançam. Os
pés na água e um castelo à beira mar.
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Alguém que vive como se tivesse dezoito
ainda que acorde, no outro dia, se dando
conta que não. Os olhos, esses não mudam,
brilhantes. Acho que o tempo a fez muito
bem. Alguém que tem seu próprio planeta.
Uma galáxia toda para si. Alguém de sorte.
Um amor perdido... mas recentemente
encontrado.
JULIANA - O que você faz neste lugar?
MAURÍCIO/ BEATRIZ - Tempo passado.
Setenta e dois para ser exato. Foi-se a
memória, beleza e autonomia. Só resta a
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solidão e o fim. Não é isso que se espera do
que é velho?
TAINARA - Só espera. Não atrapalha...
DAGMAR - Invisível para todos os outros.
Tudo que se teve e tudo que fez, foi por
outros…
JULIANA - Espera no canto escuro...
DAGMAR - A luz que penetra pela frestada
janela percorre a sala, de um canto ao
outro, até que alguém apareça…
JULIANA - Amanhã ou mais um ano...
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DAGMAR - Até a casa reformar.Até alguém
vir buscar.
CLAUDIA - O maior amor que poderia ter,
ou o maior amor que julgava merecer.
Eu te ouço, mas só agora me vejo. Dilacera-se.
JULIANA - Eu vejo uma puta de uma
velha...
TAINARA - Mulher negra e velha, pois ser
velho é um direito…
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JULIANA - Nada a impedirá de fazer o que
quer. Ela terá seus compromissos, cada um
tem os seus.
TAINARA - Poucas mulheres negras
conseguem se tornar velhas. Por acaso eu
não morri. Serei uma velha que acredita no
poder de salvar vidas. Com amor. Uma
velha que não tem medo de envelhecer.
MAURÍCIO/ BEATRIZ - E de viver? Vocês
acham mesmo que isso cabe a algum de
nós? Todos os contos de amor são sobre
jovens. Repletos de paixão e da fúria de
quem tem um futuro certo pela frente.
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Fácil falar, mas até onde chega um velho?
Algo além nos cabe?
TAINARA - Quantos círculos estaria
disposto a atravessar?
JULIANA - O caminho do fim pode ser
apenas o recomeço. Muito além de metros
de corredores, escadas…
JULIANA/ CLÁUDIA - Túneis…
JULIANA/ CLÁUDIA/ DAGMAR - Pontes e
porões…
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CLÁUDIA/ DAGMAR/ JULIANA/ TAINARA -
À margem do último portal...
TAINARA - Existe um barqueiro que
ensinou sua avó a ler, mas que guarda
consigo uma carta que nunca foi até o mar
entregar.
JULIANA - O mesmo medo e espera do fim.
Acha que isso lhe cabe?
DAGMAR - Alí, onde peças centenárias
ainda valem, pode encontrar seu
passaporte.
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CLÁUDIA - Poucos aqui tem uma chance.
Este lugar não é para você.
CLÁUDIA/ DAGMAR/ JULIANA/ TAINARA -
É preciso festejar. Como cada idade nova.
(SEM RECEIOS!) Tem que celebrar com
vontade! Nada de esconder o dia do
aniversário, ter vergonha que descubram
que está fazendo 26, 37, 43, 51, 75…
JULIANA - Tem gente que não consegue
envelhecer. Eu fui num velório de um bebê
que viveu 50 dias.
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TAINARA - O rapaz que usava esta
camiseta decidiu se matar aos 29 anos,
(pulando) ​ do 7º andar.
CLÁUDIA/ DAGMAR - Orgulhe-se!
CLÁUDIA - Pelos amigos que não podem,
que se foram com 22, 17, 16 anos. Ganhe
mais uma idade.
CLÁUDIA/ DAGMAR/ JULIANA/ TAINARA -
O importante é celebrar a vida.
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Nada de clima mórbido. Um sorriso no canto da
boca. Pois nenhum de nós será livre até que todos
sejamos. 
 
 
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EPÍLOGO
Da beira da canção e do infinito azul.
- A pintura já descasca. Esfarela ao toque.
Já se ouve a marcha. É o tempo que
compõe os acordes. Registros extremos,
opostos. O último dos três portais se ergue
e nele toda a esperança se esvai. Uns
encaram os traços, disfarçam as marcas,
tentam retardar o contar das horas.
Outros absorvem as notas e dançam a
melancolia da vida. Passos rasos que se
dissolvem ao vento. Desprende-se.
À margem, um barqueiro. Dois corações. Um beijo
de amor verdadeiro.
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A pintura 
j á d e s c a s c a . 
Esfarela ao toque. Já se 
ouve a marcha. É o tempo 
que compõe os acordes. 
Círculos que esperava-se não 
mais existir. Uns encaram os 
traços, outros dançam a 
melancolia da vida. O velho 
Maurício precisa chegar ao 
mar. Você tem medo da 
v e l h i c e ?
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