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UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E JURÍDICAS - CEJURPS CURSO DE DIREITO RESPONSABILIDADE CIVIL POR ABANDONO AFETIVO NA RELAÇÃO PATERNO-FILIAL: UMA ANÁLISE SOBRE A POSSIBILIDADE DE SUA INCIDÊNCIA FRENTE AO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO RAFAEL SIZINO SEBASTIÃO Itajaí/SC, novembro de 2009 UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E JURÍDICAS - CEJURPS CURSO DE DIREITO RESPONSABILIDADE CIVIL POR ABANDONO AFETIVO NA RELAÇÃO PATERNO-FILIAL: UMA ANÁLISE SOBRE A POSSIBILIDADE DE SUA INCIDÊNCIA FRENTE AO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO RAFAEL SIZINO SEBASTIÃO Monografia submetida à Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI, como requisito parcial à obtenção do grau de Bacharel em Direito. Orientadora: Professora Mestra Ana Lúcia Pedroni Itajaí/SC, novembro de 2009 AGRADECIMENTOS Agradeço a todas as pessoas que estão e já passaram pela minha história, as quais, com sua atitude, de um ou de outro modo, mostram-me a essência da vida. A Deus, que se apresenta através das coisas mais simples que acontecem no meu cotidiano. A meu pai, em especial, cuja presença física não mais está aqui, mas que, no meu coração, vive, e à minha querida mãe, sempre tão bondosa para com todos, a eles, minha eterna gratidão. Aos meus irmãos, muito obrigado pela presença sempre especial e pelos sobrinhos que me deram, pelos quais eu nutro grande afeição. Aos amigos, esses verdadeiros irmãos adotados ao longo do caminho. São poucos, mas únicos. Sem eles, a vida não teria o mesmo significado. Aos professores da faculdade de Direito da Univali, em especial à professora Ana Lúcia Pedroni, obrigado pelo conhecimento compartilhado. DEDICATÓRIA A meus pais, João e Elvira, que, com sua vida, ensinaram-me caminhos do bem. TERMO DE ISENÇÃO DE RESPONSABILIDADE Declaro, para todos os fins de direito, que assumo total responsabilidade pelo aporte ideológico conferido ao presente trabalho, isentando a Universidade do Vale do Itajaí, a coordenação do Curso de Direito, a Banca Examinadora e a Orientadora de toda e qualquer responsabilidade acerca do mesmo. Itajaí/SC, novembro de 2009 Rafael Sizino Sebastião Graduando PÁGINA DE APROVAÇÃO A presente monografia de conclusão do Curso de Direito da Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI, elaborada pelo graduando Rafael Sizino Sebastião, sob o título Responsabilidade Civil por Abandono Afetivo, foi submetida em 19 de novembro de 2009 à banca examinadora composta pelas seguintes professoras: Ana Lúcia Pedroni e Maria Fernanda Gugelmin Girardi, e aprovada com a nota _______ (_________________). Itajaí/SC, 19 de novembro de 2009 Professora Mestra Ana Lúcia Pedroni Orientadora e Presidente da Banca Professor Antônio Augusto Lapa Coordenação da Monografia ROL DE ABREVIATURAS E SIGLAS CC/1916 Código Civil Brasileiro de 1916 CC/2002 Código Civil Brasileiro de 2002 CRFB/1988 Constituição da República Federativa do Brasil se 1.988 ECA Estatuto da Criança e do Adolescente STF Supremo Tribunal Federal STJ Superior Tribunal de Justiça ROL DE CATEGORIAS Rol de categorias que o Autor considera estratégicas à compreensão do seu trabalho, com seus respectivos conceitos operacionais. Afetividade A afetividade é uma condição necessária na constituição do mundo interior. (Ela) envolve o vasto mundo de uma subjetividade decisiva na estrutura psíquica da pessoa, não podendo ser desligada de seu crescimento e formação. (...) Desde o nascimento, o carinho, a atenção, a envolvente presença física são indispensáveis para o crescimento e o desenvolvimento sadio e normal do ser humano. (...) O tratamento afetivo, carinhoso, amoroso, atencioso, cuidadoso, de constante presença e acompanhamento, é indispensável para a personalidade normal e ajustada, para a adaptação ao meio social, e para a integração no campo das atividades.1 Dano Moral O dano é o pressuposto central da responsabilidade civil (...). Em definição de Gabba, lembrada por Agostinho Avim, dano moral ou não-patrimonial é o dano causado injustamente a outrem, que não atinja ou diminua o seu patrimônio (...). Para Wilson Melo da Silva, “danos morais são as lesões sofridas pelo sujeito físico ou pessoa natural de direito em seu patrimônio ideal, entendendo-se por patrimônio ideal, em contraposição ao patrimônio material, o conjunto de tudo aquilo que não seja suscetível de valor econômico”.2 Direito de Família Ramo do direito civil atinente às relações entre pessoas unidas pelo matrimônio, pela união estável ou pelo parentesco e aos ramos complementares do direito protetivo e assistencial.3 Filiação 1 RIZZARDO, Arnaldo. Responsabilidade civil: Lei nº 10.406, de 10.01.2002. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 685. 2 RIZZARDO, Arnaldo. Responsabilidade civil: Lei nº 10.406, de 10.01.2002. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 15, 18 e 19. 3 DINIZ, Maria Helena. Código Civil Anotado. V. I. 15ª ed. São Paulo: Saraiva, p. 7. É a relação jurídica que liga o filho a seus pais. (...) A Constituição de 1988 (Art. 227, § 6º) estabeleceu absoluta igualdade entre todos os filhos, não admitindo mais a retrógrada distinção entre filiação legítima e ilegítima, segundo os pais fossem casados ou não, e adotiva, que existia no Código Civil de 1916.4 Poder familiar É o conjunto de direitos e deveres atribuídos aos pais, no tocante à pessoa e aos bens dos filhos menores. Segundo SILVIO RODRIGUES, “é o conjunto de direitos e deveres atribuídos aos pais, em relação à pessoa e aos bens dos filhos não emancipados, tendo em vista a proteção destes”.5 Responsabilidade Civil (A responsabilidade civil), no seu conteúdo, corresponde às obrigações decorrentes da conduta da pessoa. Pode-se dizer sem temor que em cada ramo do direito está inerente considerável parcela tratando da responsabilidade (...) Entende-se que a responsabilidade civil decorre da falta de cumprimento das leis civis e dos contratos (...).6 4 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 285. 5 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 372. 6 RIZZARDO, Arnaldo. Responsabilidade civil: Lei nº 10.406, de 10.01.2002. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 27 e 47. SUMÁRIO RESUMO .......................................................................................... XII INTRODUÇÃO ................................................................................... 1 CAPÍTULO 1 ...................................................................................... 6 PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DO DIREITO DE FAMÍLIA E A FILIAÇÃO .................................................................................... 6 1.1 PRINCÍPIOS GERAIS DO DIREITO ................................................................. 6 1.1.1 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS E PRINCÍPIOS GERAIS DE DIREITO ......................... 6 1.1.2 PRINCÍPIOS E REGRAS: UMA DISTINÇÃO NECESSÁRIA .......................................... 8 1.1.3 COLISÃO DE PRINCÍPIOS ....................................................................................9 1.2 FAMÍLIA E ANTECEDENTES HISTÓRICOS ................................................. 10 1.2.1 BREVE RELATO SOBRE A ORIGEM E EVOLUÇÃO DA FAMÍLIA ................................ 10 1.2.2 A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO DE FAMÍLIA ........................................... 14 1.2.3 CONCEITUAÇÃO DA FAMÍLIA CONTEMPORÂNEA ................................................. 16 1.3 OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS NO DIREITO DE FAMÍLIA ................ 19 1.3.1 PRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA .................................................................. 19 1.3.2 PRINCÍPIO DA LIBERDADE ................................................................................ 22 1.3.3 PRINCÍPIO DA IGUALDADE ................................................................................ 24 1.4 FILIAÇÃO ....................................................................................................... 28 1.4.1 DEFINIÇÃO E CLASSIFICAÇÃO .......................................................................... 28 1.4.1.1 Definição ............................................................................................................ 28 1.4.1.2 Classificação ..................................................................................................... 29 1.4.1.2.1 Origem genética/biológica e estado de filiação ...................................... 30 1.4.1.2.2 Origem assistida .................................................................................... 31 1.4.1.2.3 Origem socioafetiva................................................................................ 32 1.4.1.2.4 Origem homoparental ............................................................................. 33 1.5 PODER FAMILIAR ......................................................................................... 34 1.5.1 CONCEITO ...................................................................................................... 34 1.5.2 TITULARIDADE ................................................................................................ 34 CAPÍTULO 2 .................................................................................... 36 RESPONSABILIDADE CIVIL ........................................................... 36 2.1 ORIGEM E EVOLUÇÃO DA RESPONSABILIDADE CIVIL ........................... 36 2.2 CONCEITUAÇÃO ........................................................................................... 40 2.3 RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA ...................................................... 41 2.4 RESPONSABILIDADE CIVIL SUBJETIVA .................................................... 44 2.5 ELEMENTOS FUNDAMENTAIS DA RESPONSABILIDADE CIVIL .............. 45 2.5.1 CONDUTA ....................................................................................................... 45 2.5.2 CULPA ........................................................................................................... 47 2.5.3 DANO ............................................................................................................ 50 2.5.3.1 DANO MATERIAL .............................................................................................. 52 2.5.3.2 DANO MORAL .................................................................................................... 52 2.5.4 NEXO DE CAUSALIDADE ................................................................................... 56 CAPÍTULO 3 .................................................................................... 58 O AFETO COMO VALOR E PRINCÍPIO JURÍDICO FRENTE A POSSIBILIDADE DO RECONHECIMENTO DO DANO MORAL POR ABANDONO AFETIVO .................................................................... 58 3.1 O CUIDADO E O PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE E A DOUTRINA DA PROTEÇÃO INTEGRAL ................... 58 3.1.1 CONCEITO DE CUIDADO ................................................................................... 58 3.1.2 PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE ................... 60 3.1.3 DOUTRINA DA PROTEÇÃO INTEGRAL ................................................................. 61 3.2 PRINCÍPIO DA AFETIVIDADE ....................................................................... 62 3.3 PRINCÍPIO DA SOLIDARIEDADE FAMILIAR ............................................... 65 3.4 . RESPONSABILIZAÇÃO CIVIL PELO ABANDONO AFETIVO ................... 69 3.5 VISÃO DOS TRIBUNAIS PÁTRIOS SOBRE O RECONHECIMENTO DA INCIDÊNCIA DE DANO MORAL POR ABANDONO AFETIVO .......................... 78 CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................. 91 REFERÊNCIA DAS FONTES CITADAS ........................................ 103 ANEXO ........................................................................................... 106 RESUMO O presente trabalho é resultado de um estudo realizado na legislação, na doutrina e nos julgados recentes dos tribunais pátrios sobre a Responsabilidade Civil por Abandono Afetivo, objetivando averiguar a admissibilidade de indenização civil por dano moral em decorrência de tal abandono. O método utilizado para a realização da pesquisa foi o indutivo, através do qual, no primeiro capítulo a) efetuou-se um estudo sobre os princípios fundamentais do direito de família, com abordagem sobre os princípios gerais do direito e os princípios constitucionais, fazendo-se uma distinção entre princípios e regras e, ainda, uma análise sobre colisão de princípios; b) apresentou-se um breve relato sobre a origem e evolução da família, discorreu-se acerca da constitucionalização do direito de família e conceituou-se a família contemporânea; c) apresentaram-se os princípios constitucionais no direito de família, quais sejam: o da dignidade da pessoa humana, o da liberdade e o da igualdade; e d) em seguida, foi apresentada a definição e classificação da filiação, esta consistente em origem genética/biológica, origem assistida, origem socioafetiva e origem homoparental; e, por fim, e) procedeu-se à conceituação do poder familiar e discorreu-se acerca de sua titularidade. Já o segundo capítulo trouxe como tema a responsabilidade civil, momento em que foi apresentada sua origem e evolução, bem como procedeu-se à sua conceituação. Abordou ainda a responsabilidade civil objetiva e a subjetiva, e demonstrou os elementos fundamentais da responsabilidade civil, que são a conduta, a culpa, o dano e o nexo de causalidade. O terceiro e último capítulo destinou-se a abordar especificamente a possibilidade do reconhecimento do dano moral por abandono afetivo, o que se deu, inicialmente, através do estudo dos seguintes tópicos: a) o cuidado e o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente e a doutrina da proteção integral; b) o princípio da afetividade; e c) o princípio da solidariedade familiar. Depois, demonstrou-se o entendimento doutrinário sobre a responsabilidade civil pelo abandono afetivo e, por último, a visão dos tribunais do país sobre a matéria objeto da presente monografia. INTRODUÇÃO A presente pesquisa tem como Objeto7, investigar sobre a possibilidade de se responsabilizar civilmente o pai que abandona afetivamente o filho e imputar-lhe o pagamento de uma indenização pecuniária, frente à legislação brasileira e, como Objetivos8: institucional, produzir uma monografia consistente em requisito parcial à obtenção do grau de Bacharel em Direito pela pela Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI; geral, pesquisar acerca da Responsabilidade Civil por Abandono Afetivo; específicos, realizar um estudo sobre: a) o histórico da família e da filiação; b) a definição de filiação e os tipos de filiação; b) os princípios geraisdo direito e os princípios formadores do direito de família; c) os princípios que norteiam a relação paterno-filial; e d) a responsabilidade civil sob a ótica da doutrina e, por fim, a visão dos tribunais pátrios sobre o assunto. O Método9 investigatório adotado para efetuar a pesquisa relativa ao tema foi o Indutivo10, operacionalizado com as técnicas11 da Categoria12, e dos Fichamentos Temáticos13, relativos à pesquisa bibliográfica. O interesse do autor pelo tema advém do fato de se tratar de um assunto que tem forte conseqüência na formação estrutural da sociedade, 7 “Objeto é o motivo temático (ou a causa cognitiva, vale dizer, o conhecimento que se deseja suprir e/ou aprofundar) determinador da realização da investigação”. In: PASOLD, Cesar Luiz. Prática da pesquisa Jurídica – Idéias e ferramentas úteis para o pesquisador do direito, p.77. 8 “Objetivo é a meta que se deseja alcançar como desiderato da Pesquisa”. In: PASOLD, Cesar Luiz. Prática da pesquisa Jurídica – Idéias e ferramentas úteis para o pesquisador do direito, p.77. 9 “Método: é a base lógica da dinâmica da pesquisa Científica, ou seja, é a forma lógico- comportamental-investigatória na qual se baseia o pesquisador para buscar os resultados que pretende alcançar”. In: PASOLD, Cesar Luiz. Prática da pesquisa Jurídica – Idéias e ferramentas úteis para o pesquisador do direito, p.104]. 10 [...] pesquisar e identificar as partes de um fenômeno e coleciona-las de modo a ter uma percepção ou conclusão geral: este é o denominado Método Indutivo. 11 “Técnica é um conjunto diferenciado de informações, reunidas e acionadas em forma instrumental, para realizar operações intelectuais ou ou físicas, sob o comando de uma ou mais bases lógicas de pesquisa”. In: PASOLD, Cesar Luiz. Prática da pesquisa Jurídica – Idéias e ferramentas úteis para o pesquisador do direito, p.107. 12 “Categoria é a palavra ou expressão estratégica à elaboração e/ou a expressão de uma idéia”. ”. In: PASOLD, Cesar Luiz. Prática da pesquisa Jurídica – Idéias e ferramentas úteis para o pesquisador do direito, p.40. 13 Conceito p. 147 2 porém muito controverso, que tem suscitado grande discussão no meio jurídico, havendo, necessidade de aprofundamento, a fim de que se possa aferir suas conseqüências jurídicas. O produto científico, ora apresentado, divide-se em três capítulos; no primeiro abordar-se-á, inicialmente, os princípios fundamentais no direito de família a partir dos princípios gerais do direito e daqueles contidos na CRFB/88; demonstrar-se-ão as diferenças entre princípios e regras e discorrer-se- á sobre o fenômeno inevitável da colisão de princípios. Tal estrutura, onde os princípios são estudados em primeiro lugar é justificada pelo fato de que estes, cada vez mais, têm-se tornado uma das mais importantes fontes de direito, sendo imprescindível para a realização daquilo que se entende como ideal de justiça. Em seguida, apresenta-se um breve relato sobre a origem e evolução da família, a partir das primeiras civilizações, onde a família era uma entidade ampla e hierarquizada, até os dias atuais, quando a família passa a ser o agrupamento social restrito aos pais e filhos, com suas diferentes configurações; depois, discorre-se sobre o que se chama de constitucionalização do direito de família e conceitua-se a família contemporânea; após, apresentam-se os princípios constitucionais da dignidade humana, da liberdade e da igualdade como princípios estruturantes do direito de família; e, por fim, define-se o que seja poder familiar e discorre-se sobre sua titularidade, a partir de uma rápida apresentação de seu histórico no âmbito da evolução da legislação brasileira. O segundo capítulo trará delineamentos da origem e evolução da responsabilidade civil, quando se registra que, nos primórdios da humanidade, dominava a vingança privada, segundo a qual qualquer dano causado a outrem era revidado imediatamente, não se cogitando do fator culpa, ao contrário do que se verifica da teoria clássica, segundo a qual a responsabilidade civil tem como pressuposto um dano, a culpa do autor do dano e a relação da causalidade entre o fato culposo e o dano em si. Prosseguir-se-á o estudo discorrendo sobre a época das XII Tábuas, onde a vítima já não podia fazer justiça pelas próprias mãos e, ato contínuo, sobre o período histórico romano, no qual surgiu uma diferenciação entre pena e reparação, com a separação entre os delitos públicos e os privados, quando o Estado passou a 3 assumir, só ele, a função de punir e, depois, o surgimento da Lei Aquiliana, quando ampliou-se o campo da reparabilidade do dano moral, cujas idéias foram sendo aperfeiçoadas pelo direito francês, que estabeleceu um princípio geral da responsabilidade civil, “abandonando o critério de enumerar os casos de composição obrigatória” (Carlos Roberto Gonçalves, Responsabilidade Civil, 9ª ed, 2005, p. 5 e 6), até ser abarcado por vários países e, no Brasil, especificamente a partir da CRFB/88. Em seguida, conceituar-se-á a responsabilidade civil, distinguir-se-á a responsabilidade civil objetiva da subjetiva e, por fim, demonstrar-se-ão os elementos fundamentais da responsabilidade civil, consistentes em conduta, culpa, dano e nexo de causalidade. Tratar-se-á no terceiro e último capítulo sobre o afeto como valor e princípio jurídico frente a possibilidade do reconhecimento do dano moral por abandono afetivo, trazendo para tanto, inicialmente, os conceitos e reflexões sobre o Cuidado, o Princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, a Doutrina da Proteção Integral, o Princípio da Afetividade e, também, a Solidariedade Familiar, como pressupostos a serem observados na relação paterno-filial. Para finalizar o capítulo, apresentar-se-ão as posições doutrinárias que dão conta das possibilidades reais de indenização por dano moral frente à incidência de dano moral por abandono afetivo e, para finalizar, mostrar-se-á a visão dos tribunais pátrios sobre a matéria. Para o desenvolvimento da presente pesquisa foram criados os seguintes problemas: 1 O princípio da solidariedade familiar se revela indispensável para formação saudável, tanto no campo material quanto emocional, de crianças e adolescentes? 2 O ECA e o CC/2002 dispõem sobre as normas relativas à filiação e a CRFB/88 elenca os princípios fundamentais norteadores do direito de família. Assim, ao interpretar a legislação citada e, sob a ótica do princípio do melhor interesse dos filhos, sejam eles criança ou adolescente, seria possível afirmar que os interesses desses devem prevalecer sobre qualquer outro interesse dos pais. 4 3 A afetividade como valor e princípio jurídico tem se revelado em fator indispensável à constituição da família contemporânea. Assim, na atual conjuntura social e, também, sob o prisma da igualdade de direitos e da solidariedade familiar, seria possível o reconhecimento jurídico do dano moral causado em razão do abandono afetivo dos filhos? Em resposta aos problemas, foram levantadas as seguintes hipóteses: 1 A solidariedade, consoante ensinamento de Maria Celina Bodin de Moraes14 “[...] é a expressão mais profunda da sociabilidade que caracteriza a pessoa humana [...].” e “[...] a construção de uma sociedade livre, justa e solidária cabe a todos e a cada um de nós [...]”, em razão do que, é possível afirmar que, em relação aos filhos, a família, de maneira mais decisiva, deve comportar-se solidariamente, exercendo importante papel no que se refere a uma formação saudável, tanto no campomaterial, quanto emocional, sendo dever da família, estar presente, acompanhar, ajudar e apoiar o ser humano em formação. 2 Os interesses dos filhos devem estar acima de qualquer interesse dos pais, devendo ser alvo de absoluta prioridade e proteção integral, nos termos do art. 3º do ECA e art. 227 da CRFB/8), eis que, conforme Rodrigo da Cunha Pereira, esses “[...] encontram-se em situação especial de maior fragilidade e vulnerabilidade, que autoriza atribuir-lhes um regime especial de proteção, para que consigam se estruturar enquanto pessoa humana e se autogovernar[...], constatação essa contida expressamente no artigo 6º do ECA. (Princípios Fundamentais Norteadores para o Direito de Família, p. 132) 3 Considerando o cenário atual, onde a família é o lugar do afeto, em que se comunga o amor, e não mais uma instituição com fins meramente econômicos e que a CRFB/88 privilegiou a dignidade da pessoa humana como o princípio dos princípios, é procedente afirmar que o pai pode vir a 14 In: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=9925. 5 ser responsabilizado civilmente por negar ao filho a possibilidade da construção de afeto, através da convivência e proximidade paterna. As categorias, consideradas estratégicas para elaboração do presente trabalho, encontram-se indicadas em rol separado do texto, aparecendo no desenvolver do texto com a primeira letra maiúscula. Por último, apresentar-se-ão as considerações finais, nas quais se fará breve síntese de cada capítulo, buscando demonstrar se as hipóteses básicas da pesquisa foram confirmadas. Na seqüência, serão indicadas as referências bibliográficas utilizadas. CAPÍTULO 1 PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DO DIREITO DE FAMÍLIA E A FILIAÇÃO 1.1 PRINCÍPIOS GERAIS DO DIREITO Os princípios gerais do direito, de uso corrente nos ordenamentos jurídicos, consoante leciona Rodrigo da Cunha Pereira15, estão expressos na maioria dos códigos civis e de processo civil do mundo ocidental. Segundo o mesmo autor, considerando a crescente constitucionalização do Direito Civil, (os princípios gerais do direito) estariam para muito além de uma supletividade do Direito, transformando-se cada vez mais numa de suas mais importantes fontes, revestindo-se de força normativa imprescindível para a aproximação do ideal de justiça. Assim, equivocada seria então a idéia e o pensamento de que os princípios vêm por último no ato interpretativo integrativo. “Ao contrário, os princípios, como normas que são, vêm em primeiro lugar e são a porta de entrada para qualquer leitura interpretativa do Direito”, enfatiza Rodrigo da Cunha Pereira. 1.1.1 Princípios Constitucionais e Princípios Gerais de direito Os ordenamentos jurídicos, na opinião de Rodrigo da Cunha Pereira16, têm buscado cada vez mais o seu ideal de justiça em uma base principiológica. A expressão princípios gerais do direito, como fonte do direito, em conformidade com o que menciona referido autor, está inscrita na 15 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios fundamentais norteadores para o direito de família. Belo Horizonte: Editora Del Rey Ltda, 2005, p. 22. 16 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios fundamentais norteadores para o direito de família. Belo Horizonte: Editora Del Rey Ltda, 2005, p. 20 7 concepção estrutural dos ordenamentos jurídicos, dentre os quais, e de maior relevância, nas Constituições dos Estados Democráticos, na medida em que estas vêm renovando e absorvendo a moderna noção de cidadania, declarando expressamente, dessa forma, a importância dos princípios gerais como norteadores do Direito. Na CRFB/88, por exemplo, os princípios têm destaque nas suas disposições onde, no Título 1, preconiza: Dos Princípios Fundamentais: Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se um Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I – a soberania; II – a cidadania; III – a dignidade da pessoa humana; IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V – o pluralismo político. Destarte, conforme o autor em destaque17, os princípios gerais significam o alicerce, os pontos básicos e vitais para a sustentação do Direito, inclusive, conforme seu entendimento, “são eles que traçam as regras ou preceitos, para toda espécie de operação jurídica e têm um sentido mais relevante que o da própria regra jurídica”. Ou seja, são mais que os fundamentos jurídicos instituídos legalmente, é todo o axioma jurídico derivado da cultura universal. E referido professor vai além, ao afirmar que: os princípios fundamentais expressos na Carta Magna são os princípios gerais a partir dos quais todo ordenamento jurídico deve irradiar, e nenhuma lei ou texto normativo podem ter nota dissonante da deles. Eles são os orientadores da nossa ordem jurídica e traduzem o mais cristalino e alto espírito do Direito. 17 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios fundamentais norteadores para o direito de família. Belo Horizonte: Editora Del Rey Ltda, 2005, p. 24. 8 1.1.2 Princípios e regras: Uma distinção necessária Citando Robert Alexy, Rodrigo da Cunha Pereira18 menciona que a diferença entre princípios e regras estaria além da questão do grau de generalização de cada uma dessas normas, segundo o que essas seriam de generalidade relativamente baixa e aquelas de generalidade relativamente alta. A diferença passaria, antes, por um critério mais qualitativo que quantitativo, o que consistiria em “uma distinção mais precisa e mais correta”: El punto decisivo para la distincíon entre reglas e principios es que los principios son normas que ordenan que algo sea realizado em la mayor medida posible, dentro de las posibilidades jurídicas y reales existentes. Por lo tanto, los principios son mandatos de optimização, que están caracterizados por el hecho de que de que pueden ser cumplidos em diferente grado y que La medida debida de su cumplimiento no sólo depende de las posibilidades reales sino también de las juridicas. El ámbito de las posibilidades juridicas es determinado por los principios y reglas opuestos. En cambio, las reglas son normas que sólo pueden ser cumplidas o no. Si una regla es válida, entonces de hacerce exactamente lo que ella exige, ni más ni menos. Por lo tanto, las reglas contienen determinaciones em el ámbito de lá fáctica y jurídicamente posible. Esto significa que la diferencia entre reglas y principios es cualitativa y no de grado. Toda norma es o bien uma regla o un principio. Portanto: as regras devem ser aplicadas na forma do tudo ou nada, por serem formas mais herméticas, fechadas, de dizer o Direito. Já os princípios são mandados de otimização, que devem ser aplicados na maior medida possível. (...) Princípios são mandados prima facie e não definitivos, ao passo que as regras são mandados que se aplicam ou não.19 18 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios fundamentais norteadores para o direito de família. Belo Horizonte: Editora Del Rey Ltda, 2005, p. 32 19 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios fundamentais norteadores para o direito de família. Belo Horizonte: Editora Del Rey Ltda, 2005, p. 34. 9 1.1.3 Colisão de princípios No que tange à incidência de eventual colisão de princípios numa relação jurídica, Ronald Dworkin, mencionado em Rodrigo da Cunha Pereira20, explica que a solução para o caso não seria graduar osprincípios, mas escolher o mais adequado ao caso concreto, através de uma escolha racional, para atender, assim, aos ditames de justiça, moralidade e equidade, de modo a atribuir legitimidade ao Direito. Acerca do assunto, Rodrigo da Cunha Pereira21 afirma que, na colisão entre princípios de direitos ou de deveres fundamentais, a saída é recorrer à ponderação dos bens jurídicos em jogo. Diz ele que não se trata de absolutizar a hierarquia entre princípios, mas de se considerar a prevalência do sujeito em detrimento do objeto nas relações jurídicas, decorrente da ascensão da dignidade humana na ordem jurídica. Em conclusão, referido autor pondera que: Não há como se evitar que, em uma colisão de princípios, o intérprete busque a melhor forma de alcançar a dignidade da pessoa humana, ou seja, a dignidade deverá sempre preponderar. Por conseguinte, é impossível negar a existência de uma primazia ou, como preferem alguns autores, de uma hierarquia deste princípio sobre os outros. Afinal, se verificarmos a disposição topográfica da Carta Constitucional, a dignidade da pessoa humana, que se encontra em seu art. 1º, III, juntamente com os demais objetivos da República Federativa do Brasil, deve informar todo o sistema jurídico, que nos leva a uma inevitável hierarquia principiológica. Devemos examinar, por conseguinte, em um caso de colisão, qual princípio deve ceder ao outro, de modo que se alcance e se garanta, de forma indubitável, a dignidade da pessoa humana. 22 20 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios fundamentais norteadores para o direito de família. Belo Horizonte: Editora Del Rey Ltda, 2005, pp. 34 e 35. 21 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios fundamentais norteadores para o direito de família. Belo Horizonte: Editora Del Rey Ltda, 2005, p. 35. 22 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios fundamentais norteadores para o direito de família. Belo Horizonte: Editora Del Rey Ltda, 2005, p. 35. 10 1.2 FAMÍLIA E ANTECEDENTES HISTÓRICOS 1.2.1 Breve relato sobre a origem e evolução da família Para Sílvio de Salvo Venosa23, a evolução da família, como uma entidade orgânica, deve ser examinada, essencialmente, sob o ponto de vista exclusivamente sociológico, antes de o ser como fenômeno jurídico. No decorrer das primeiras civilizações de importância, tais como a assíria, hindu, egípcia, grega e romana, diz o autor, “o conceito de família foi de uma entidade ampla e hierarquizada, retraindo-se, hoje, fundamentalmente, para o âmbito quase exclusivo de pais e filhos menores, que vivem no mesmo lar”. Invocando obra de Friedrich Engels, sobre a origem da família, editada no século XIX, Sílvio de Salvo Venosa explica que: No estado primitivo das civilizações o grupo familiar não se assentava em relações individuais. As relações sexuais ocorriam entre todos os membros que integravam a tribo (endogamia). Disso decorria que sempre a mãe era conhecida, mas se desconhecia o pai, o que permite afirmar que a família teve de início um caráter matriarcal, porque a criança ficava sempre junto à mãe, que a alimentava e a educava. Seguindo seu raciocínio, Sílvio de Salvo Venosa24 cita Caio Mário da Silva Pereira para esclarecer que: (...) essa posição antropológica que sustenta a promiscuidade não é isenta de dúvidas, entendendo ser pouco provável que essa estrutura fosse homogênea em todos os povos. Posteriormente, na vida primitiva, as guerras, a carência de mulheres e talvez uma inclinação natural levaram os homens a buscar relações com mulheres de outras tribos, antes do que em seu próprio grupo. Os historiadores fixam nesse fenômeno a primeira manifestação contra o incesto no meio social (exogamia). Nesse diapasão, no curso da história, o homem marcha para relações individuais, com caráter de exclusividade, embora algumas civilizações mantivessem concomitantemente situações de poligamia, como 23 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: direito de família. 8ª ed., v.6. São Paulo: Atlas, 2008, p. 3. 11 ocorre até o presente. Desse modo, atinge-se a organização atual de inspiração monogâmica (Caio Mário da Silva Pereira -1996:17). A monogamia, consoante entendimento de Sílvio de Salvo Venosa, “desempenhou um papel de impulso social em benefício da prole, ensejando o exercício do poder paterno”, convertendo-se, a família, portanto, em um fator econômico de produção, “pois esta se restringe quase exclusivamente ao interior dos lares, nos quais existem pequenas oficinas”. Na mesma direção, Maria Berenice Dias25 leciona que: A família tinha uma formação extensiva, verdadeira comunidade rural, integrada por todos os parentes, formando unidade de produção, com amplo incentivo à procriação. Sendo entidade patrimonializada, seus membros eram força de trabalho. O crescimento da família ensejava melhores condições de sobrevivência a todos. O núcleo familiar dispunha de perfil hierarquizado e patriarcal. Entretanto, com a Revolução Industrial, surge novo modelo de família, assim descrita por Sílvio de Salvo Venosa26: Com a industrialização, a família perde sua característica de unidade de produção. Perdendo seu papel econômico, sua função relevante transfere-se ao âmbito espiritual, fazendo-se da família a instituição na qual mais se desenvolvem os valores morais, afetivos, espirituais e de assistência recíproca entre seus membros (Bossert-Zannoni, 1996:5). Maria Berenice Dias27, acerca da feição da família nesse período pós-revolução industrial, assinala que: (...) a mulher ingressou no mercado de trabalho, deixando o homem de ser a única fonte de subsistência da família, que se tornou nuclear, restrita ao casal e sua prole. Acabou a prevalência 25 DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 4ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 28. 26 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: direito de família. 8ª ed., v.6. São Paulo: Atlas, 2008, p. 3. 27 DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 4ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 28. 12 do caráter produtivo e reprodutivo da família, que migrou para as cidades e passou a conviver em espaços menores. Isso levou à aproximação dos seus membros, sendo mais prestigiado o vínculo afetivo que envolve seus integrantes. Existe uma nova concepção de família, formada por laços afetivos de carinho, de amor. (Cristiano Chaves de Farias, Redesenhando os contornos da dissolução do casamento, p. 113). A valorização do afeto nas relações familiares não se cinge apenas ao momento de celebração do casamento, devendo perdurar por toda a relação. Disso resulta que, cessado o afeto, está ruída a base de sustentação da família, e a dissolução do vínculo é o único modo de garantir a dignidade da pessoa. De novo sobre o casamento na antiguidade, Sílvio de Salvo Venosa28 afirma que, por exemplo, na Babilônia, a regra era o casamento monogâmico, mas o direito, por influência semítica, autorizava esposas secundárias. “O marido podia, por exemplo, procurar uma segunda esposa, se a primeira não pudesse conceber um filho ou em caso de doença grave”. (...) Os pais, nessa época, diz o jurista, têm papel importante no casamento. “Geralmente, são eles que dão a noiva em núpcias, como ainda ocorre em algumas culturas do planeta”. Em seu esforço para esboçar lineamentos históricos da conceituação da família, respeitável doutrinador supra mencionado prossegue relatando que: Em Roma, o poder do pater exercido sobre amulher, os filhos e os escravos é quase absoluto. A família como grupo é essencial para a perpetuação do culto familiar. No Direito Romano, assim como no grego, o afeto natural, embora pudesse existir, não era o elo de ligação entre os membros da família. Nem o nascimento nem a afeição foram fundamento da família romana. O pater podia nutrir o mais profundo sentimento por sua filha, mas bem algum de seu patrimônio lhe poderia legar (Coulanges, 1958, v.1:54). A instituição funda-se no poder paterno ou no poder marital. Essa situação deriva do culto familiar. Os membros da família antiga eram unidos por vínculo mais poderoso que o nascimento: a religião doméstica e o culto dos antepassados. Esse culto era 28 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: direito de família. 8ª ed., v.6. São Paulo: Atlas, 2008, p. 4. 13 dirigido pelo pater. A mulher, ao se casar, abandonava o culto do lar de seu pai e passava a cultuar os deuses e antepassados do marido, a quem passava a fazer oferendas. Por esse largo período da Antiguidade, família era um grupo de pessoas sob o mesmo lar, que invocava os mesmos antepassados. Por essa razão, havia necessidade de que nunca desaparecesse, sob pena de não mais serem cultuados os antepassados, que cairiam em desgraça. Por isso, era sempre necessário que um descendente homem continuasse o culto familiar. Daí a importância da adoção no velho direito, como forma de perpetuar o culto, na impossibilidade de assim fazer o filho de sangue. Da mesma forma, o celibato era considerado uma desgraça, porque o celibatário colocava em risco a continuidade do culto. Não bastava, porém, gerar um filho: este deveria ser fruto de um casamento religioso. O filho bastardo ou natural não poderia ser o continuador da religião doméstica. As uniões livres não possuíam o status de casamento, embora se lhes atribuísse certo reconhecimento jurídico. O Cristianismo condenou as uniões livres e instituiu o casamento como sacramento, pondo em relevo a comunhão espiritual entre os nubentes, cercando-a de solenidades perante a autoridade religiosa. O casamento, por muito tempo na história, inclusive durante a Idade Média, era um dogma da religião doméstica e estava livre de qualquer conotação afetiva. Em conformidade com ensinamento de Sílvio de Salvo Venosa29, “várias civilizações do passado incentivavam o casamento da viúva, sem filhos, com o parente mais próximo de seu marido, e o filho dessa união era considerado filho do falecido”, sendo que o nascimento de filha, porque não poderia continuar o culto de seu pai quando contraísse núpcias, não preenchia essa necessidade. “Reside nesse aspecto a origem histórica dos direitos mais amplos, inclusive em legislações mais modernas, atribuídos ao filho e em especial ao primogênito, a quem incumbiria manter unido o patrimônio em prol da unidade religioso-familiar”. Concisamente, de acordo com lição de Coulanges, mencionado na obra de Sílvio de Salvo Venosa ora apresentada: 29 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: direito de família. 8ª ed., v.6. São Paulo: Atlas, 2008, p. 4. 14 O casamento era assim obrigatório. Não tinha por fim o prazer; o seu objeto principal não estava na união de dois seres mutuamente simpatizantes um com o outro e querendo associarem-se para a felicidade e para as canseiras da vida. O efeito do casamento, à face da religião e das leis, estaria na união de dois seres no mesmo culto doméstico, fazendo deles nascer um terceiro, apto para continuador desse culto. Por derradeiro, tem-se que30: Desaparecida a família pagã, a cristã guardou esse caráter de unidade de culto, que na verdade nunca desapareceu por completo, apesar de o casamento ser tratado na história mais recente apenas sob o prisma jurídico e não mais ligado à religião oficial do Estado. A família sempre foi considerada como a celular básica da Igreja. Recorda Diogo Leite Campos que a família se mostrou como a própria Igreja em miniatura, com sua hierarquia, seu local destinado ao culto, uma pequena capela, uma imagem ou um crucifixo ainda encontráveis em muitos lares (Teixeira, 1993:16). A ciência do direito demonstrou nos últimos séculos o caráter temporal do casamento, que passou a ser regulamentado pelo Estado, que o inseriu nas codificações a partir do século XIX como baluarte da família. 1.2.2 A Constitucionalização do direito de família Relativamente ao direito de família, a CRFB/8831: Impulsionada pelas expressivas modificações do contexto político, econômico e social do país, tratou de forma mais pontual a família, provocando uma verdadeira revolução no Direito de Família. Afinal, “o direito é produto dos círculos sociais, é fórmula da coexistência entre eles” (Francisco Pontes de Miranda. Tratado de direito privado, v.7, p. 170). Era imperioso que a norma constitucional entrasse em compasso com os fatos sociais e os sentidos axiológicos dados por seus destinatários, sob pena de nascer velha e tornar-se ineficaz. Neste sentido, houve o rompimento com a premissa de que o casamento era o único instituto formador e legitimador da família brasileira, e do modelo 30 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: direito de família. 8ª ed., v.6. São Paulo: Atlas, 2008, p. 5. 31 CUNHA PEREIRA, Rodrigo da. Princípios fundamentais norteadores para o direito de família. Belo Horizonte: Editora Del Rey Ltda, 2005, p. 165. 15 de família hierarquizada, patriarcal, impessoal e, necessariamente, heterossexual, em que os interesses individuais cediam espaço à manutenção do vínculo. Esta Constituição trouxe, além de novos preceitos para as famílias, princípios norteadores e determinantes para a compreensão e legitimação de todas as formas de família. Arnoldo Wald32 demonstra que a CRFB/88 tem capítulo específico (Capítulo VII do Título VIII) que trata da família, da criança, do adolescente e do idoso, trazendo inovações marcantes. Entre essas mudanças, em conformidade com o autor, compõem-se do reconhecimento da união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, o estabelecimento da igualdade do homem e da mulher no exercício dos direitos e deveres referentes à sociedade conjugal, a redução do prazo para o divórcio, a concessão dos mesmos direitos e qualificações aos filhos havidos ou não das relações de casamento ou por adoção, com a proibição de qualquer designação discriminatória relativa à filiação e, por fim, a imposição do dever de os filhos maiores ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidades. Ainda discorrendo sobre os efeitos da Carta Constitucional de 1988, Arnold Wald.33 relata que: Tais cláusulas, de largo sentido social e de direito justo, repercutiram extensa e intensamente no Código Civil de 2002, em todo o texto sobre a família. As regras pertinentes à sociedade conjugal tiveram que ser ajustadas, com rigor maior, ao princípio de igualdade entre o homem e a mulher. Acentuou-se que o casamento estabelece comunhão plena de vida, com base na igualdade dos cônjuges, e institui a família (art. 1.509). Afastou-se, por emenda, a qualificação „legítima‟, como também no art. 1.567, pois, sem casamento, a Constituição reconhece na união estável uma „entidade familiar‟. Fortalece-se o princípio de que „a direção da sociedade conjugal será exercida, em colaboração, pelo marido e pela mulher‟, no interesse da família (art. 1.569). Em função do sistema ditado pela Constituição, substituiu-se pátrio32 WALD, Arnoldo. O Novo Direito de Família. São Paulo: Saraiva, 2002, pp. 24 e 25. 33 WALD, Arnoldo. O Novo Direito de Família. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 32. 16 poder por poder familiar (arts. 1.658 a 1.666 e outros) – fórmula sugerida em comentário do Prof. Miguel Reale. Eliminou-se toda referência a filiação legítima, legitimada, adulterina, incestuosa ou adotiva, visto que, a partir do novo ordenamento constitucional, a filiação é uma só, sem discriminações (arts. 1.602 a 1.635 e outros). Varreu-se do texto o capítulo da legitimação (arts. 1.618 a 1.620). No art. 1.567 modificado já não se diz que o „casamento legitima os filhos comuns, antes dele nascidos ou concebidos‟, mas que „importa o reconhecimento‟ deles. Em conseqüência natural dessa alteração, no art. 1.618 também revisto, e absorvendo os arts. 1.619 e 1.620, são „equiparados aos nascidos no casamento, para todos os efeitos legais, os filhos concebidos ou havidos de pais que posteriormente casaram‟. 1.2.3 Conceituação da família contemporânea “A família brasileira não é mais a de antigamente”. A afirmação é de Priscila Goldenberg34 e retrata muito bem a transformação da família e, consequentemente, de seu conceito na sociedade brasileira. Mais adiante, em sua obra, a autora observa que: A antiga família “legítima”, como conhecíamos, era formada apenas pelo casamento. Estima-se hoje que metade das famílias brasileiras já não segue o modelo tradicional de pai, mãe e filhos de um único casamento. A sociedade se transformou e as pessoas começaram a se valorizar como indivíduos, não apenas como partes de uma estrutura familiar. Atualmente, a família decorre tanto do casamento quanto da união estável. Novos conceitos foram introduzidos, como famílias desconstituídas, uniões homoafetivas, guarda compartilhada, famílias monoparentais. Essa ruptura na estrutura da família no Brasil também é alvo de estudo do jurista Cristiano Chaves de Farias (Apresentação de Temas atuais 34 GOLDENBERG, Priscila. Eles não foram felizes para sempre. Esclarecendo dúvidas sobre separação e divórcio. São Paulo: Editora Quartier Latin do Brasil, 2007, pp. 15 e 16. 17 de Direito e Processo de Família, IBDFAM, 2004), mencionado por Semy Glanz.35: O Direito de Família no Brasil atravessa um período de efervescência. Está em plena ebulição, mais aceso do que nunca. (...) A família deixa de ser percebida como mera instituição jurídica para assumir feição de instrumento para a promoção da personalidade humana, mais contemporânea e afinada com o tom constitucional da dignidade da pessoa humana. Na mesma direção, Semy Glanz36, apresentando concepção de Paulo Luiz Netto Lôbo acerca do tema, sustenta que: Pela atual Constituição Federal, não há limitação para as espécies de família, pois todas são protegidas, sejam heterossexuais, com ou sem casamento, homoxessuais, de companheiros, de um dos pais com filho ou filhos, biológicos ou adotivos, concubinárias se há impedimento para casar, e até a comunidade afetiva formada com “filhos de criação”, segundo generosa e solidária tradição brasileira, na visão do autor.37 De todo modo, conclui o autor que a Constituição não limita as espécies de família, estendendo a proteção a todas as que apresentem afetividade, estabilidade e ostensibilidade, “tutelando-se os efeitos jurídicos pelos Direito de Família e jamais pelo Direito das Obrigações”. Chaves de Farias, de novo citado por Semy Glanz38, contemporiza ao afirmar que “a entidade familiar deve ser entendida, hoje, como grupo social fundado, essencialmente, por laços de afetividade, pois à outra conclusão não se pode chegar à luz do texto constitucional”. 35 GLANZ, Semy. A Família Mutante. Sociologia e Direito Comparado. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 665. 36 GLANZ, Semy. A Família Mutante. Sociologia e Direito Comparado. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 666. 37 GLANZ, Semy. A Família Mutante. Sociologia e Direito Comparado. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 666. Sobre a última espécie, a família com filhos pobres que acolhem crianças órfãs ou abandonadas; e famílias ricas, ou de classe média, que aceitam tais crianças. Algumas são generosas; outras apenas exploram tais crianças infelizes , como narrou Monteiro Lobato, no conto Negrinha, ou o filme Mammy Dearest, sobre conhecida atriz americana que adotara vários filmes. 38 GLANZ, Semy. A Família Mutante. Sociologia e Direito Comparado. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 666. 18 Por sua vez, Rodrigo da Cunha Pereira39 faz a mesma leitura sobre o assunto ao afirmar que a CRFB/88 inovou ao elencar outras formas de família, como a união estável e família monoparental, rompendo com o modelo familiar fundado unicamente no casamento. Aprofundando o assunto, mencionado autor examina o art. 226 da CRFB/88, que enumera as espécies familiares objetos da proteção estatal, e afirma que é improcedente a argumentação de que esta seria uma “norma de clausura”, posto que “várias outras entidades familiares existem além daquelas ali previstas, e independentemente do Direito. A vida como ela é vem antes da lei jurídica”. “A exclusão (neste caso) não está na Constituição (de 1988), mas na interpretação”, informa Paulo Luiz Netto Lôbo, citado em Cunha Pereira40 e, assim, de acordo com este, em que pese a Carta Magna de 1988 não ter designado todas as espécies de família, estas ficaram sob sua proteção a partir do momento em que da CRFB/88 foi suprimida a locução “constituída pelo casamento”, que esteve presente nas antecedentes Constituições (1967 e 1969), sendo então, a existente na CRFB/88, uma enumeração apenas exemplificativa. Por fim, com o fito de ainda melhor revelar as nuanças do tema objeto da presente elucubração, pode-se dizer que: Diante da hermenêutica do texto constitucional e, sobretudo, da aplicação do princípio da pluralidade das formas de família, sem o qual estar-se-ia dando um lugar de indignidade aos sujeitos da relação que se pretende seja família, tornou-se imperioso o tratamento tutelar a todo grupamento que, pelo elo do afeto, apresente-se como família, já que ela não é um fato da natureza, mas da cultura (...). Por tratamento tutelar entenda-se o reconhecimento pelo Estado de que tais grupamentos não são ilegítimos e, portanto, não estarão excluídos do laço social.41 39 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios fundamentais norteadores para o direito de família. Belo Horizonte: Editora Del Rey Ltda, 2005, p. 165. 40 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios fundamentais norteadores para o direito de família. Belo Horizonte: Editora Del Rey Ltda, 2005, p. 166. 41 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios fundamentais norteadores para o direito de família. Belo Horizonte: Editora Del Rey Ltda, 2005, pp. 167 e 168. 19 1.3 OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS NO DIREITO DE FAMÍLIA 1.3.1 Princípio da Dignidade Humana De acordo com Rodrigo da Cunha Pereira42, “na organização jurídica contemporânea da família não é mais possível prescindir de normas que não estejam assentadas ou não levem em consideração a dignidade da pessoa humana”. E dignidade, em conformidade com o mesmo autor, “é um princípio ético que paira, norteia e pressupõe vários outros princípios, já que não é possível pensar em ser humano sem dignidade”. Por sua vez, o jurista Alexandre dos Santos Cunha, mencionado na obra de Rodrigo da Cunha Pereira43 assevera que, atualmente, a dignidade é um dos esteios de sustentação dos ordenamentos jurídicos:Não é mais possível pensar em direitos desatrelados da idéia e conceito de dignidade. Embora essa noção esteja vinculada à evolução histórica do Direito Privado, ela tornou-se também um dos pilares do Direito Público, na medida em que é o fundamento primeiro da ordem constitucional e, portanto, o vértice do Estado de Direito. E ainda, Rodrigo da Cunha Pereira descreve a dignidade como sendo um macroprincípio, a partir do qual se irradiam e no qual estão contidos outros princípios e valores essenciais tais como a liberdade, autonomia privada, cidadania, igualdade, alteridade e solidariedade, formando, dessa maneira, uma coleção de princípios éticos. “Essas inscrições constitucionais são resultado e conseqüência de lutas e conquistas políticas associadas à evolução do pensamento, desenvolvimento das ciências e das novas tecnologias”, explica o autor. 42 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios fundamentais norteadores para o direito de família. Belo Horizonte: Editora Del Rey Ltda, 2005, p. 93. 43 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios fundamentais norteadores para o direito de família. Belo Horizonte: Editora Del Rey Ltda, 2005, p. 94. 20 A doutrinadora Carmem Lúcia Antunes Rocha, segundo Rodrigo da Cunha Pereira44, foi uma das primeiras a destacar a dignidade como um superprincípio constitucional, entranhando-se de tal forma no constitucionalismo contemporâneo, que estabeleceu uma nova forma de pensar o sistema jurídico, passando, assim, a ser um princípio e fim do Direito: Dignidade é o pressuposto da idéia de justiça humana, porque ela é que dita a condição superior do homem como ser de razão e sentimento. Por isso é que a dignidade humana independe de merecimento pessoal ou social. Não se há de ser mister ter de fazer por merecê-la, pois ela é inerente à vida e, nessa contingência, é um direito pré-estatal. A origem da expressão “dignidade da pessoa humana”, na nossa legislação e na de outros países, tem, na opinião do jurista ora destacado45, uma fonte muito precisa na filosofia de Immanuel Kant, não sendo, entretanto, diretamente, uma criação de dele. Mas, diz o autor, que Kant, em sua Fundamentação da metafísica dos costumes (1785), empregou a expressão “dignidade da natureza humana” ao afirmar que havia em cada homem um mesmo valor por causa da sua razão, expressão essa “mais apropriada para indicar o que está em questão quando se busca uma compreensão ética – ou seja, da natureza – do ser humano”, de modo que: As coisas têm preço e as pessoas, dignidade. Isto significa dizer que no reino dos fins tudo tem um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, podemos substituí-la por qualquer outra como equivalente; mas o homem, superior à coisa, está acima de todo preço, portanto não permite equivalente, pois ele tem dignidade. O que se relaciona com as inclinações e necessidades gerais do homem tem um preço venal; aquilo que, mesmo sem pressupor uma necessidade, é conforme a um certo gosto, isto é, a uma satisfação no jogo livre e sem finalidade das nossas faculdades anímicas, tem um preço de afeição ou de sentimento; aquilo, porém, que constitui a condição, graças a qual qualquer coisa, pode ser um fim em si mesmo, não tem somente 44 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios fundamentais norteadores para o direito de família. Belo Horizonte: Editora Del Rey Ltda, 2005, pp. 94 e 95. 45 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios fundamentais norteadores para o direito de família. Belo Horizonte: Editora Del Rey Ltda, 2005, p. 96. 21 um valor relativo, isto é, um preço, mas um valor íntimo, ou seja, a dignidade. (KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. São Paulo: Abril Cultural, 1980, v. 1, p. 140. Coleção Os Pensadores.) A expressão “dignidade da pessoa humana” é, então, em essência, a mesma empregada por Immanuel Kant como sendo “dignidade da natureza humana”, e: (...) é, e sempre será um valor idêntico que todo ser humano tem porque é racional. Não há relatividade da capacidade que permita eliminar a razão de um ser humano; é por isso que, do ponto de vista ético, no Direito todo ser humano tem o mesmo valor. Se a dignidade é hoje um princípio constitucional, isso é resultado de uma conquista histórica. É o reconhecimento de que não importa quais sejam as circunstâncias ou qual o regime político, todo ser humano deve ter reconhecido pelo Estado o seu valor como pessoa, a garantia, na prática, de uma personalidade que não deve ser menosprezada ou desdenhada por nenhum poder. Exigir, por meio de preceito constitucional que o Estado reconheça a dignidade da pessoa humana, é exigir que ele garanta a todos direitos que podem ser considerados válidos para um ser humano capaz de compreender o que é o bem.46 Por fim, tem-se que a dignidade da pessoa humana é mais que um direito, é um princípio ético, a partir do que deve haver certos direitos de atribuição universal, sendo, por isso, um princípio geral do direito e “uma Carta de Direitos que não reconheça essa idéia ou que seja incompatível com ela é incompleta ou ilegítima, pois se tornou um valor e uma necessidade da própria democracia”.47 46 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios fundamentais norteadores para o direito de família. Belo Horizonte: Editora Del Rey Ltda, 2005, p. 98. 47 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios fundamentais norteadores para o direito de família. Belo Horizonte: Editora Del Rey Ltda, 2005, pp. 98 e 99. 22 1.3.2 Princípio da Liberdade Maria Berenice Dias48, em seu Manual de Direito das Famílias, discorrendo sobre o princípio da liberdade, explica que este, correlacionado com o princípio da igualdade, “foram os primeiros princípios reconhecidos como direitos humanos fundamentais, integrando a primeira geração de direitos a garantir o respeito à dignidade da pessoa humana”. Fazendo referência a Érica Verícia de Oliveira Canuto, referida jurista enfoca essa correlação entre os princípios da liberdade e o da igualdade ao dizer que: O papel do direito – que tem como finalidade assegurar a liberdade – é coordenar, organizar e limitar as liberdades, justamente para garantir a liberdade individual. Parece um paradoxo. No entanto, só existe liberdade se houver, em igual proporção e concomitância, igualdade. Inexistindo o pressuposto da igualdade, haverá dominação e sujeição, não liberdade. Aprofundando o tema, Maria Berenice Dias, servindo-se de reflexão de Claudia Lima Marques, anota que: A Constituição, ao instaurar o regime democrático, revelou grande preocupação em banir discriminações de qualquer ordem, deferindo à igualdade e à liberdade especial atenção. Os princípios da liberdade e da igualdade, no âmbito familiar, são consagrados em sede constitucional. Todos têm a liberdade de escolher o seu par, seja do sexo que for, bem como o tipo de entidade que quiser para constituir sua família. A isonomia de tratamento jurídico permite que se considerem iguais marido e mulher em relação ao papel que desempenham na chefia da sociedade conjugal. Também, na união estável, é a isonomia que protege o patrimônio entre personagens que disponham do mesmo status familiae. 48 DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 4ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 60. 23 Alguns casos fáticos e outras previsões contidas no ordenamento jurídico pátrio dão-nos a ideia da aplicabilidade e importância do princípio da liberdadenas relações jurídicas: A liberdade floresceu na relação familiar e redimensionou o conteúdo da autoridade parental ao consagrar os laços de solidariedade entre pais e filhos, bem como a igualdade entre os cônjuges no exercício conjunto do poder familiar voltada ao melhor interesse do filho. Em face do primado da liberdade, é assegurado o direito de constituir uma relação conjugal, uma união estável hétero ou homossexual. Há a liberdade de extinguir ou dissolver o casamento e a união estável, bem como o direito de recompor novas estruturas de convívio. A possibilidade de alteração do regime de bens na vigência do casamento (CC 1.639 § 2º) sinala que a liberdade, cada vez mais, vem marcando as relações familiares. 49 A CRFB/88, explica Maria Berenice Dias, no rol dos direitos da criança e do adolescente, assegura o direito à liberdade (CF 227). Assenta-se neste direito tanto a necessidade de o adotado, desde os 12 anos de idade, concordar com a adoção (EC 45 § 2º), como a possibilidade do filho de impugnar o reconhecimento levado a efeito enquanto era menor de idade (CC 1.614). Igualmente o ECA consagra como direito fundamental a liberdade de opinião e de expressão (ECA 16 II) e a liberdade de participar da vida familiar e comunitária sem discriminação (ECA 16 V). Sobre o assunto, a autora50 demonstra que certas previsões legais se chocam com o princípio da liberdade ao afirmar que: Algumas inconstitucionalidades no Código Civil decorrem da afronta ao princípio da liberdade, tais como a imposição de prazo de vigência de um ano de casamento para a separação consensual (CC 1.574), bem como a exigência da separação por dois anos para a busca do divórcio (CC 1580 § 2º). Infringe o princípio da liberdade juntamente com o da privacidade e o da intimidade a necessidade de imputar culpa ao cônjuge para a 49 DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 4ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 61. 50 DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 4ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, pp. 61 e 62. 24 obtenção da separação antes do decurso de um ano da cessação da vida em comum. Também a imposição coacta do regime de separação de bens aos maiores de 60 anos (CC 1.641 II) e a possibilidade de ver negada a separação pretendida pelos cônjuges (CC 1.754 parágrafo único) são alguns dos exemplos mais flagrantes da afronta ao princípio da liberdade, pondera Berenice Dias. 1.3.3 Princípio da Igualdade Ao tratar da igualdade, Rodrigo da Cunha Pereira51 afirma que, sem ela, não há dignidade do sujeito de direito e, em consequência não há justiça, e o discurso da igualdade está intrinsecamente vinculado à cidadania, “uma outra categoria da contemporaneidade, que pressupõe também o respeito às diferenças. Se todos são iguais perante à lei, todos estão incluídos no laço social”. Ainda discorrendo sobre o tema, informa o autor que o discurso da igualdade traz consigo um paradoxo, consistente no fato de que: Quanto mais se declara a universalidade da igualdade de direitos, mais abstrato se torna a categoria desses direitos. Quanto mais abstrato, mais se ocultam as diferenças geradas pela ordem social. Para se produzir um discurso ético, respeitar a dignidade humana e atribuir cidadania é preciso ir além da igualdade genérica. Para isso devemos inserir no discurso da igualdade o respeito às diferenças. Necessário desfazer o equívoco de que as diferenças significam necessariamente a hegemonia ou superioridade de um sobre o outro. Por fim, o mesmo doutrinador conclui que a verdadeira cidadania só é possível na diversidade, ou seja, a identidade só é formada e construída a partir da existência de um outro, de um diferente, posto que, se fôssemos todos iguais desnecessário seria falar de igualdade. “Portanto, é a partir 51 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios fundamentais norteadores para o direito de família. Belo Horizonte: Editora Del Rey Ltda, 2005, pp. 140 e 141. 25 da diferença, da alteridade, que se torna possível existir um sujeito. Enfim, é a alteridade que prescreve e inscreve o direito a ser humano”. Por sua vez, acerca do assunto, Maria Berenice Dias52 leciona que: Falar em igualdade sempre lembra a célebre frase de Rui Barbosa: tratar a iguais com desigualdade ou a desiguais com igualdade não é igualdade real, mas flagrante desigualdade (Oração aos moços, p. 27). O princípio da igualdade é um dos sustentáculos do Estado Democrático de Direito. É imprescindível que a lei em si considere todos igualmente, ressalvadas as desigualdades que devem ser sopesadas para prevalecer a igualdade material em detrimento da obtusa igualdade formal53. É necessária a igualdade na própria lei, ou seja, não basta que a lei seja aplicada igualmente para todos. Todos os cidadãos têm assegurado, por força do sistema jurídico, tratamento isonômico e proteção igualitária no âmbito social, pois, consoante a autora referida, “a idéia central é garantir a igualdade, o que interessa particularmente ao direito, pois está ligada à idéia de justiça”. Os conceitos de igualdade e de justiça, continua Maria Berenice Dias54, evoluíram, sendo que: Justiça formal identifica-se com igualdade formal, consistindo em conceder aos seres de uma mesma categoria idêntico tratamento. Aspira-se à igualdade material precisamente porque existem desigualdades. Segundo José Afonso da Silva (Curso de direito constitucional positivo, p. 216), justiça material ou concreta pode ser entendida como a especificação da igualdade formal no sentido de conceder a cada um segundo a sua necessidade; a cada um segundo os seus méritos; a cada um a mesma coisa. Portanto, é a questão da justiça que permite pensar a igualdade. Na presença de vazios legais, o reconhecimento de direitos deve 52 DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 4ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 62. 53 LIMA, Paulo Roberto de Oliveira. Isonomia entre os sexos no sistema jurídico nacional, p. 16. In: DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 4ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 62. 54 DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 4ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 62. 26 ser implementado pela identificação da semelhança significativa, ou seja, por meio da analogia, que se funda no princípio da igualdade (Rodrigo da Cunha Pereira. Direito de família: uma abordagem psicanalítica, p. 92). Além de, no seu preâmbulo, proclamar o princípio da igualdade, a Constituição Federal, de acordo com Maria Berenice Dias55, reafirmou o direito à igualdade ao dizer (CF 5º): todos são iguais perante a lei. “E (a CF) foi além. De modo enfático, foi até repetitiva ao afirmar que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações (CF 5º I), decantando mais uma vez a igualdade de direitos e deveres de ambos no referente à sociedade conjugal (CF 226 § 5º)”. Assim, diz a mencionada jurista, que a carta constitucional é a grande artífice do princípio da isonomia no direito de filiação, posto que proibiu qualquer designação discriminatória quanto aos filhos havidos ou não da relação de casamento ou por adoção (CF 227 § 6º), resultando daí, na extinção de abominável hipocrisia que rotulava a prole pela condição dos pais. A decisão do casal sobre o planejamento familiar (CC 1.565 § 2º e CF 226 § 7º), também é exemplar dessa transformação porque passouo direito das famílias em face do respeito ao princípio da igualdade, limitando-se a interferência do Estado a propiciar os recursos educacionais e financeiros para o exercício desse direito.56 Ao explicar sobre a interferência do princípio da igualdade no ordenamento jurídico brasileiro, Maria Berenice Dias57 cita Mônica Guazzelli Estrougo (O princípio da igualdade aplicado à família, p. 335), afirmando que: Atendendo à ordem constitucional, o Código Civil consagra o princípio da igualdade no âmbito do direito das famílias. A relação de igualdade nas relações familiares deve ser pautada não pela pura e simples igualdade entre iguais, mas pela solidariedade entre seus membros, caracterizada da mesma forma pelo afeto e amor. A organização e a própria direção da família repousam no 55 DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 4ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 62. 56 DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 4ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 63. 57 DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 4ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 63. 27 princípio da igualdade de direitos e deveres dos cônjuges (CC 1.511), tanto que compete a ambos a direção da sociedade conjugal em mútua colaboração (CC 1.567). São estabelecidos deveres recíprocos e atribuídos igualitariamente tanto ao marido quanto à mulher (CC 1.566). Também em nome da igualdade é permitido a qualquer dos nubentes acrescer ao seu o sobrenome do outro (CC 1.565 § 1º). É acentuada a paridade de direitos e deveres do pai e da mãe no respeitante à pessoa (CC 1.631) e bens dos filhos (CC 1.690). Assim, não havendo acordo, não prevalece a vontade de nenhum deles. Devem socorrer-se do juiz para a solução dos desacordos. Com relação à guarda dos filhos, ninguém tem preferência (CC 1.584), sendo conferida de forma indistinta a quem revelar melhores condições para a exercer: ou ao pai ou à mãe. Para Paulo Luiz Netto, citado por Maria Berenice Dias58, “da mesma forma, a desigualdade de gêneros foi banida, e, depois de séculos de tratamento discriminatório, as distâncias vêm diminuindo.” Entretanto, a igualdade não apaga as diferenças entre os gêneros, fato este que não pode ser ignorado pelo direito. “O desafio é considerar as saudáveis e naturais diferenças entre homens e mulheres dentro do princípio da igualdade”, afirma ilustre jurista. Concluindo sua reflexão relativamente ao princípio da igualdade aplicado ao direito das famílias, Maria Berenice Dias59 assevera que: Já está superado o entendimento de que a forma de implementar a igualdade é conceder à mulher o tratamento diferenciado que os homens sempre desfrutaram. O modelo não é o masculino, e é preciso reconhecer as diferenças, sob pena de ocorrer a eliminação das características femininas. Em nome do princípio da igualdade é necessário reconhecer direitos a quem a lei ignora. Preconceitos e posturas discriminatórias, que tornam silenciosos os legisladores, não podem levar também o juiz a se calar. Imperioso que, em nome da isonomia, ele reconheça direitos às situações merecedoras de tutela. O princípio da igualdade não vincula somente o legislador. O intérprete também tem de observar suas regras. Assim como a lei não pode conter normas 58 DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 4ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 63. 59 DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 4ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 63. 28 que arbitrariamente estabeleçam privilégios, o juiz não deve aplicar a lei de modo a gerar desigualdades. 1.4 FILIAÇÃO 1.4.1 Definição e classificação 1.4.1.1 Definição Em sua obra, ao tecer considerações acerca da filiação, Sílvio de Salvo Venosa60 inicia dizendo que “todo ser humano possui pai e mãe”. Depois, continua, afirmando que “mesmo a inseminação artificial ou as modalidades de fertilização assistida não dispensam o progenitor, o doador, ainda que essa forma de paternidade não seja imediata. Desse modo, o Direito não se pode afastar da verdade científica”. E, em seguida, mesmo doutrinador61 conclui que: A procriação é, portanto, um fato natural. Sob o aspecto do Direito, a filiação é um fato jurídico do qual decorrem inúmeros efeitos. Sob perspectiva ampla, a filiação compreende todas as relações, e respectivamente sua constituição, modificação e extinção, que têm como sujeitos os pais com relação aos filhos. Portanto, sob esse prisma, o direito de filiação abrange também o pátrio poder, atualmente denominado poder familiar, que os pais exercem em relação aos filhos menores, bem como os direitos protetivos e assistenciais em geral. (...) A filiação é, destarte, um estado, o status familiae, tal como concebido pelo antigo direito. Todas as ações que visam a seu reconhecimento, modificação ou negação são, portanto, ações de estado. O termo filiação exprime a relação entre os filhos e seus pais, aqueles que o geraram ou o adotaram. A adoção, sob novas vestes e para finalidades diversas, volta a ganhar a importância social que teve no Direito Romano. Visto sob o prisma dos ascendentes, o estado de filiação traduz-se na paternidade ou maternidade. Utiliza-se o termo paternidade de forma genérica para expressar a relação do pai e da mãe com relação aos filhos. 60 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: direito de família. 8ª ed., v.6. São Paulo: Atlas, 2008, p. 211. 61 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: direito de família. 8. ed., v.6. São Paulo: Atlas, 2008, pp. 211 e 212. 29 Por fim, arremata62, dizendo que: O Código Civil de 1916 centrava suas normas e dava proeminência à família legítima, isto é, aquela derivada do casamento (...). A partir de meados do século XX, porém, nossa legislação, embarcando em tendência universal, foi sendo alterada para, timidamente a princípio, serem introduzidos direitos familiares e sucessórios aos filhos provindos de relações extramatrimoniais. A Constituição de 1988 culminou por vedar qualquer qualificação relativa à filiação. Desse modo, a terminologia do Código de 1916, filiação legítima, ilegítima e adotiva, de vital importância para o conhecimento do fenômeno, passa a ter conotação e compreensão didática e textual e não mais essencialmente jurídica. 1.4.1.2 Classificação Em seu Manual de Direito das Famílias, a professora Maria Berenice Dias63 registra que “a necessidade de preservação do núcleo familiar – leia-se, preservação do patrimônio da família – autorizava que os filhos fossem catalogados de forma absolutamente cruel”, e que: Fazendo uso de uma terminologia plena de discriminação, os filhos se classificavam em legítimos, legitimados e ilegítimos. Os ilegítimos, por sua vez, eram divididos em naturais ou espúrios. Os filhos espúrios se subdividiam em incestuosos e adulterinos. Essa classificação tinha como único critério a circunstância de o filho ter sido gerado dentro ou fora do casamento, isto é, a prole proceder ou não de genitores casados entre si. Assim, a situação conjugal do pai e da mãe refletia-se na identificação dos filhos: conferia-lhes ou subtraía-lhes não só o direito à identidade, mas também o direito à sobrevivência. Mais adiante, na mesma obra, a autora demonstra uma classificação mais aberta e mais correspondente à realidade da família atual, levando em consideração, além da origem biológica, também o estado
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