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Vinte anos de crise 2

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Vinte anos de crise: 1919-1939 – Carr
Capitulo 4: A Harmonia de Interesses
A síntese Utópica
Nenhuma sociedade política, nacional ou internacional, pode existir a menos que o povo se submeta a certas regras de condutas;
Os que defendem a primazia da ética sobre a política sustentam ser um dever do indivíduo submeter-se pelo bem da comunidade como um todo, sacrificando seus próprios interesses em prol do interesse de outros, que são mais numerosos ou, de alguma forma, mais merecedores;
Os que sustentam a primazia da política sobre a ética defenderão que o governante governa porque é mais forte, e os súditos se submetem porque são mais fracos. Este princípio é tão facilmente aplicável à democracia, quando a qualquer outra forma de governo;
O realista tem uma resposta perfeitamente racional à questão de por que o indivíduo deve submeter-se. Ele deve submeter-se porque, caso contrário, o mais forte o obrigará; e os resultados desta ação compulsória são muito mais desagradáveis do que os da submissão voluntária;
Todas as respostas são passiveis de objeção;
O utópico, partindo da primazia da ética, crê necessariamente numa obrigação ética e no caráter, independente do direito do mais forte;
O utópico sustenta que o mais elevado interesse do indivíduo e o mais elevado interesse da comunidade naturalmente coincidem. Ao visar seu interesse próprio, o individuo visa o da comunidade e, promovendo o interesse da comunidade, promove o seu próprio interesse. Esta é a famosa doutrina da harmonia de interesses;
O paraíso do “laissez-faire”
O laissez-faire foi o principal responsável pela popularização da doutrina da harmonia de interesses;
O objetivo da escola era remover o estado das questões econômicas e, para justificar esta política, buscou demonstrar que se podia confiar no indivíduo, sem controle externo, para promover os interesses da comunidade, pelo único motivo de que esses interesses eram iguais aos seus próprios;
A harmonia é real mesmo se os envolvidos não estiverem conscientes disso;
O individuo visa apenas o seu próprio ganho, e é levado, neste e em muitos outros casos, por uma “mão invisível” a promover um fim que não constava de seu objetivo;
A teoria da harmonia da sociedade pressupõe uma sociedade de pequenos produtores e comerciantes, interessados na maximização da produção e da troca, infinitamente móveis e adaptáveis, e despreocupados com o problema da distribuição de riquezas;
Uma vez que o capitalismo industrial e o sistema de classe tornaram-se a estrutura reconhecida da sociedade, a doutrina da harmonia de interesses se tornou a ideologia de um grupo dominante, interessados na manutenção da sua posição por meio da tentativa de identificar seus interesses com os da comunidade como um todo;
A sobrevivência da crença na harmonia de interesses tornou-se possível pela nunca igualada expansão da produção, da população e da prosperidade, que marcou os cem anos seguintes à publicação de “A Riqueza das Nações” e à invenção da máquina a vapor;
Foi o continuo alargamento do campo da demanda que, por meio século, fez o capitalismo operar como se fora uma utopia liberal;
O que era verdade sobre os indivíduos, presumiu-se que fosse igualmente verdade para as nações. 
O comércio universal livre justificava-se em termos de que o interesses econômico máximo de casa nação identificava-se com o interesse econômico máximo do mundo inteiro;
Mazzini acreditava numa certa divisão (especialização) de trabalho entre as nações, o que levaria ao aumento da produção mundial e ao aumento do bem-estar d humanidade como um todo;
Wilson e muitos outros negociadores dos tratados de paz da primeira guerra mundial viram na autodeterminação nacional a chave da paz mundial, mas isso se devia ao fato que não havia a identificação de muitas nacionalidades e para essas havia mais do que espaço suficiente;
Darwinismo na política
Friedrich List começou a pregar a uma audiência alemã a doutrina de que, enquanto o livre comércio era a política correta para uma nação industrialmente dominante como a Grã-Bretanha, somente o protecionismo poderia permitir às nações mais fracas romper o estrangulamento britânico.
As indústrias alemãs e americanas, construídas por trás de tarifas protetoras, logo estavam atacando seriamente o monopólio industrial britânico mundial;
O nacionalismo começou a assumir um aspecto sinistro e a se degenerar em imperialismo;
Marx materializou o conflito hegeliano (conflito de ideia) numa luta de classes de grupos de interesses econômicos;
Darwin propôs e popularizou uma doutrina biológica da evolução através de uma perpétua luta pela sobrevivência e a eliminação dos inaptos;
A doutrina da evolução somada ao laissez-faire permitiu que essa resistisse às novas tendências do pensamento;
A doutrina da harmonia de interesses passou a ser o bem dos povos que sobrevivessem;
No final do século XIX, o problema básico das relações internacionais era o de quem iria destruir as vítimas;
A harmonia de interesses foi estabelecida através do sacrifício de africanos e asiáticos “inaptos”;
Por mais que a doutrina da harmonia de interesses proporcionasse uma base racional para a moral e uma justificativa para a aniquilação dos menos “aptos” na prática, quase todos os estados se levantaram contra a doutrina clássica, e introduziram uma legislação social para proteger o economicamente fraco contra o economicamente forte;
Antes de 1914, embora a política do livre comércio internacional ainda fosse apoiada pelo eleitorado e pelos economistas britânicos, o postulado ético, que outrora formara a base da filosofia do laissez-faire, não mais atraía nenhum pensador sério;
A harmonia internacional
Em assuntos internos, é claramente função do estado criar harmonia se não existe harmonia natural. 
Em política internacional, não há nenhum poder organizado encarregado da tarefa de criar a harmonia e a tentação de presumir uma harmonia natural torna-se particularmente forte.
Fazer da harmonização de interesses o objetivo da ação política não é o mesmo que postular que a natural harmonia de interesses existe;
O interesse comum na paz
Politicamente, a doutrina da identidade de interesses em geral tomou a forma de um pressuposto de que as nações possuem um interesse idêntico na paz, e que toda nação que deseje perturbar a paz é, portanto, irracional e imoral;
Essa ideia não foi absorvida pelos alemães e pelos italianos, uma vez que haviam se beneficiado das guerras entre 1866 e 1870, e que atribuíam seus mais recentes sofrimentos, não à guerra de 1914, mas ao fato de a terem perdido;
Mas esses povos, felizmente, tinham pouca influência na formação das atuais teorias das relações internacionais, que emanaram quase exclusivamente dos países de fala inglesa.
Mas como Lenin observara há muito tempo, a paz por si só é um fim sem sentido. "Absolutamente todos são a favor da paz em geral";
O interesse comum na paz mascara o fato de que algumas nações desejam manter o status quo sem terem de lutar por ele, e outras, mudar o status quo sem precisarem lutar para isso;
O pressuposto utópico de que existe um mundo interessado na paz, que é identificável ao interesse individual de cada nação, ajudou os políticos e escritores políticos de toda parte a fugirem do fato intragável da existência de divergências fundamentais de interesses entre as nações desejosas de manterem o status quo, e as nações desejosas de mudá-lo.
O fato da existência de interesses divergentes foi disfarçado e falsificado pelo lugar-comum de um desejo geral de evitar o conflito.
A harmonia econômica internacional
Quando o liberal do século dezenove falou sobre o maior bem para o maior número, tacitamente presumiu que o bem da minoria devesse ser sacrificado em prol do da maioria.
O pensamento utópico era expresso na ideia de que todo conflito internacional é, portanto, desnecessário e ilusório. Basta descobrir o bem comum, que é, ao mesmo tempo, o maior bem para todos os conflitantes e somente a loucura dos estadistas se interpõe à suadescoberta.
Todos os estadistas do mundo eram culpados de incrível cegueira quanto ao interesse daqueles que deveriam representar.
É por esta razão que encontramos, na época moderna, uma extraordinária divergência entre as teorias dos especialistas econômicos, e a prática dos responsáveis pelas políticas econômicas de seus respectivos países.
A vida econômica e social é complicada demais para permitir uma solução através de uma única fórmula; ela exige soluções complicadas. Deveremos levar em conta as muitas variedades de condições geográficas, políticas, sociais e outras que existam.
A crise de 1929 atingiu a maior parte do mundo e trouxe inúmeras consequências negativas, no entanto permitiu que muitos países se libertassem do duplo imperialismo mental e financeiro das nações que controlavam as políticas e os mercados internacionais. 
Muitas nações aprenderam a confiar menos na cordialidade internacional e a buscar uma vida autônoma, cheia de obstáculos iniciais, mas que, entretanto, criaram fortes atrativos dentro de um curto período;
Tanto a declaração iugoslava, quanto à colombiana, foram desafios poderosos à doutrina da harmonia de interesses. É falacioso supor que, porque a Grã-Bretanha e os Estados Unidos tenham interesse em remover as barreiras comerciais, isto também seja do interesse da Iugoslávia e da Colômbia.
Dr. Schacht falaria, um pouco mais tarde, sobre os "fanáticos adeptos da política das nações em posição mais vantajosa no exterior, que, pela abundância de suas riquezas, não conseguem entender que uma nação pobre tenha, apesar de tudo, a coragem de viver sob suas próprias leis, ao invés de sofrer sob as prescrições do que deva fazer”;
A harmonia quebrada
Devemos, portanto, rejeitar como inadequada e errônea a tentativa de basear a moral internacional numa pretensa harmonia de interesses, que identifica o interesse da totalidade da comunidade das nações, com o interesse de cada membro individual dela.
No século dezenove, esta tentativa encontrou amplo sucesso, graças à economia em contínua expansão em que foi feita.
Contudo, com as duas grandes guerras do século XX destruíram essas ideias;
Uma das razões para o caráter vingativo sem precedentes dos tratados de paz, particularmente de suas cláusulas econômicas, foi o fato de que os homens práticos não mais acreditavam - como faziam cinquenta ou cem anos antes - numa subjacente harmonia de interesses entre vencedores e vencidos.
O complexo fenômeno conhecido como nacionalismo econômico passou a dominar o mundo.
Revelava-se a inconsistência do belo, porém falso, lugar-comum do século dezenove, de que ninguém se beneficia com o que prejudica o próximo.
A síntese da moral e da razão, pelo menos sob a forma crua do liberalismo do século dezenove, é insustentável. 
O real significado da atual crise internacional é o colapso de toda a estrutura utópica, baseada no conceito da harmonia de interesses.

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