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137 COMO RESOLVER PROBLEMAS DE MATEMÁTICA: UMA REFLEXÃO PESSOAL Sérgio Carrazedo Dantas (Unespar) Como resolver problemas de Matemática? Há algumas boas respostas para essa pergunta na literatura de Educação Matemá- tica, em especial em A arte de resolver problemas, de Polya (1978). Inspirado nesse livro e baseado em sua experiência em competições internacionais de Matemática, Terence Tao, aos 15 anos de idade, escreveu um livro cujo título é Como resolver problemas matemáticos: uma perspectiva pessoal. Ao longo de quatro capítulos, distribuídos em 144 páginas, ele compartilha de um modo próprio de resolver problemas relacionados à Teoria dos Números, à Álgebra e Análise, à Geometria Euclidiana e à Geometria Analítica. No primeiro capítulo, o autor apresenta alguns princípios orientadores de resolução de problemas seguidos de exemplos. Segundo Tao, para resolver um problema de Matemática, é neces- sário seguir alguns princípios e regras: “compreender o problema, compreender os dados e o objetivo do problema, escolher símbolos adequados, escrever o que se sabe, modificar o problema, ir provando alguma coisa, etc.” (TAO, 2013, p. 11). A experiência de Terence Tao na resolução de problemas e suas contribuições em campos diversos da Matemática fizeram com que, em 22 de agosto de 2006, 16 anos mais velho em relação ao momento de escrita do livro, ele recebesse a Medalha Fields. Essa medalha representava o reconhecimento por sua habilidade de resolver problemas persistentes de Matemática e de Matemática Aplicada. Além disso, o que chama muito minha atenção é que Tao geralmente trabalha em parceria ou em colaboração com outros Luca Nota \za\sxa Luca Realce Luca Realce 138 REGINA DA SILVA PINA NEVES | RAQUEL CARNEIRO DÖRR (ORG.) matemáticos ou profissionais reconhecidamente especialistas das áreas em que ajuda a resolver problemas. Para abordar alguns passos de resolução de um problema, indicados por Terence Tao, considere o seguinte enunciado: Enunciado 1 Quadrados iguais são recortados de cada canto de um pedaço retangular de papelão medindo 18 cm de comprimento por 15 cm de largura, e uma caixa sem tampa é cons- truída virando os lados para cima. Determine o comprimento x dos lados dos quadrados que devem ser recortados para a produção de uma caixa de volume máximo. O primeiro passo indicado por Tao consiste em compreender o problema constituído a partir do enunciado. Para mim, o enunciado acima descreve um problema do tipo “calcule”, ou seja, o enunciado descreve uma situação com certos dados que me sugerem estabele- cer uma sentença matemática, manipulá-la e encontrar uma única resposta. Embora um esboço (um desenho) ajude-me a pensar em uma estratégia de resolução, a abordagem não é geométrica, mas algébrica, pois devo relacionar o volume de uma caixa obtida após o recorte de quatro quadrados de lados de medidas desconhecidas de um retângulo de medidas 18 cm e 15 cm. E, desse modo, também acabo abordando o segundo passo apontado por Tao, que é “com- preender os dados e o objetivo do problema”. FIGURA 1 – CAIXA OBTIDA APÓS O RECORTE DE QUATRO QUADRADOS FONTE: autoria própria Luca Realce Luca Realce Luca Realce 139 FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE MATEMÁTICA: DESAFIOS E PERSPECTIVAS Quais são os dados do problema? Usualmente, a questão é acerca de uns tantos objetos com certas propriedades específicas. Para entender- mos os dados do problema, precisamos saber como interagem esses objetos com tais propriedades. Isto é importante para focarmos a atenção nas técnicas e notações apropriadas ao problema. (TAO, 2013, p. 3). O passo seguinte consiste em “escolher uma boa notação” (TAO, 2013, p. 4). Conforme indicado na Figura 1 e já afirmado anteriormente, indiquei por x o comprimento do corte ou do lado dos quadrados. A partir daí, obtenho uma expressão para o cálculo do volume: V(x) = (18 – 2x).(15 – 2x).x Expandindo essa função por meio de alguns cálculos algé- bricos, obtenho: V(x) = 4x3 – 66x2 + 270x O próximo passo é “estabelecer resultados sobre o problema”, o que é realizado por meio do cálculo da derivada primeira de V(x): V’(x) = 12x2 – 132x + 270 Escrevo uma equação igualando V’(x) a zero. Com isso, obtenho os pontos críticos de V(x): V’(x) = 0 x1 = 2,72 e x2 = 8,28 Por fim, são obtidos os valores x1 e x2, dos quais x2 é descar- tado por não ser possível realizar os quatro cortes com essa medida, dadas as medidas de 18 cm por 15 cm do papelão. Como V”(2,72) < 0, concluo que V(2,72) = 326,6 cm3 é o volume máximo obtido para a situação descrita pelo enunciado. Luca Realce Luca Realce Luca Realce Luca Realce 140 REGINA DA SILVA PINA NEVES | RAQUEL CARNEIRO DÖRR (ORG.) PRESSUPOSTOS TEÓRICOS DE UMA NOVA PERSPECTIVA Para explicitar minha perspectiva de resolução de problemas e, em especial, utilizando o GeoGebra, é necessário apresentar alguns pressupostos teóricos e, entre eles, algumas noções da Teo- ria da Atividade de Leontiev (1978) e algumas noções do Modelo dos Campos Semânticos (MCS) de Lins (1997, 1999, 2004, 2012a, 2012b). Segundo Leontiev (1978), uma atividade é composta por três elementos estruturais: necessidade, objeto e motivo. A necessidade é o princípio da atividade, é o que “dirige e regula a atividade do sujeito” (ASBAHR, 2005, p. 29). Porém uma necessidade por si só não é suficiente para mobilizar ações do sujeito, é necessário que um objeto corresponda à necessidade. Em outras palavras, é necessário que um objeto satisfaça a necessidade. Por exemplo, ao ler o Enunciado 1, um professor de Mate- mática questiona-se: “Qual é a medida exata do corte que deve ser realizado no papelão?”. Nesse momento, o enunciado torna-se para esse leitor um problema e essa pergunta que ele faz a si próprio indica uma necessidade, ou seja, conhecer a solução do problema. O resultado correto passa a ser o objetivo, o objeto dessa atividade. Tendo explicitado a necessidade e o objeto de uma atividade, posso afirmar que ela tem um motivo; pois, segundo Leontiev (1978): Uma vez que a necessidade encontra a sua deter- minação no objeto (se ‘objetiva’ nele), o dito objeto torna-se motivo da atividade aquilo que o estimula (LEONTIEV, 1978, p. 107-108). É possível que você, leitor deste capítulo, faça a seguinte inda- gação após ler sobre essa breve exposição sobre noções da Teoria da Atividade: por que essas noções são úteis para discutir uma perspectiva de resolução de problemas em que se utiliza um objeto tecnológico (GeoGebra)? Luca Realce Luca Realce Luca Realce Luca Realce 141 FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE MATEMÁTICA: DESAFIOS E PERSPECTIVAS Para responder a essa pergunta, é preciso explicitar que o termo “tecnologia” é compreendido conforme apresentado por Vieira Pinto (2005, p. 294), [...] as técnicas de que os homens de uma sociedade particular, em determinado momento da história se valem para satisfazer os objetivos a eles impos- tos ou que inventam, idealmente ou movidos por necessidades definidas. O que também é sustentado por Asbahr (2005, p. 109) quando afirma que, ao longo de sua história, “os homens construíram infin- dáveis objetos para satisfazerem suas necessidades. Ao fazê-lo, produziram não só objetos, mas também novas necessidades e, com isso, novas atividades”. Em outras palavras, o recurso tecnológico, discutido neste texto, um programa utilizado em um computador, é entendido como um aparato tecnológico inventado por um sujeito, aceito socialmente e que atende a algumas necessidades e pode produzir algumas novas em seus usuários. E, nesse caso, interessa- me compreender como as novas possibilidades de agir de usuários, analisadas na perspectiva de atividades, traduzem-se na produção de novos conhecimentos, de uma nova consciência.A consciência é o produto subjetivo da atividade dos homens com os outros homens e com os obje- tos; assim, a atividade constitui a substância da consciência, e para estudá-la é necessário investigar as particularidades da atividade [...] (ASBAHR, 2005, p. 110). Além de compreender a resolução de problemas como ativi- dades, considero que nossas ações são sempre realizadas e dirigidas a interlocutores que são constituídos no interior de atividades. O interlocutor, segundo Lins (2012), até pode coincidir com alguém que está à minha frente e com quem dialogo, mas não é assim que esse autor refere-se a um interlocutor. Segundo ele, O interlocutor é uma direção na qual se fala. Quando falo na direção de um interlocutor é porque acredito que este interlocutor diria o que estou dizendo e Luca Realce Luca Realce Luca Realce Luca Realce Luca Realce décimo primeiro GRIFO! Luca Realce Luca Riscado 142 REGINA DA SILVA PINA NEVES | RAQUEL CARNEIRO DÖRR (ORG.) aceitaria/adotaria a justificação que me autoriza a dizer o que estou dizendo (LINS, 2012, p. 19). Para exemplificar, retorno a resolução do Enunciado 1, apre- sentada na primeira seção deste capítulo. Ao resolver o problema que constituí como leitor do enunciado, eu me inseri em uma atividade. Tal atividade, como já mencionei, tinha uma necessidade (conhecer a solução de um problema), um objeto (a medida exata) e um motivo. Adotei como método algumas das indicações de Terence Tao em sua perspectiva de resolução de problemas: constituí um problema a partir de um enunciado, compreendi os dados do problema, escolhi uma boa notação e obtive resultados sobre o problema. No interior da atividade “resolução de um problema de Mate- mática”, o que escrevi foi dirigido a um interlocutor que não é você leitor deste capítulo, não é um estudante de uma disciplina de Cál- culo Diferencial e Integral que leciono, pois todos esses sujeitos são seres biológicos. A enunciação foi dirigida a um ser que constituí cognitivamente como possuidor de certas legitimidades que auto- rizaram ou endossaram uma resolução que possui as características descritas no livro de Terence Tao. Em outras palavras, estabeleci um interlocutor, um mate- mático, e a partir do que é legítimo ser feito dentro de uma prática matemática, resolvi um problema. O ser cognitivo que constituí não aceitaria uma resposta, mesmo que correta, obtida por tenta- tiva e erro. Essa não aceitação deve-se ao fato de que tal método de resolução não segue os passos descritos como matematicamente aceitáveis, logo não são legítimos para ele. É importante ressaltar que esse sujeito, por mim constituído, endossaria apenas uma prática matemática conforme a que ele pratica: a Matemática do matemático. Em outras palavras, esse ser cognitivo chamado de interlocutor demarca limites do que pode ser dito e realizado por mim. Essa noção deve-se à concepção do processo de comunicação presente no MCS. Tradicionalmente, a comunicação é pensada como Luca Realce Luca Realce Luca Realce Luca Realce Luca Realce 143 FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE MATEMÁTICA: DESAFIOS E PERSPECTIVAS alguém falando algo para outro alguém. No MCS, o processo de comunicação é pensado como duas pessoas falando em uma mesma direção, ou seja, a comunicação acontece quando ambos comparti- lham de interlocutores, de modos de produção de significado. No MCS a noção de comunicação é substituída pela noção de espaço comunicativo, que é um pro- cesso de interação no qual (dizer isto, para o MCS, é redundante) interlocutores são compartilhados. Numa inversão conceitual, “comunicação” não cor- responde mais a algo do tipo “duas pessoas falando uma para a outra”, e sim a “dois sujeitos cognitivos falando na direção de um mesmo interlocutor”. (LINS, 2012, p. 24). FIGURA 2 – COMUNICAÇÃO OUTRA POSSIBILIDADE DE RESOLUÇÃO DO ENUNCIADO 1 Na Matemática do matemático, um objeto não é “o que ele é” para depois ser examinado e descrito, ele é apenas o que dele se diz; mas na sala de aula – por causa dos modos de produção de significados legítimos na rua e da “resistência” dos alunos ao que não corresponde a esses modos (LINS; GIMENEZ, 1997) –, isso Luca Realce Luca Realce Décimo quarto GRIFO! null 144 REGINA DA SILVA PINA NEVES | RAQUEL CARNEIRO DÖRR (ORG.) não é suficiente. Assim, a Matemática do professor de Matemática é caracterizada por sua aceitação de significados matemáticos e de outros significados para coisas que poderiam ser de outra maneira chamada “Matemática”. E com a finalidade de abordar outras pos- sibilidades de produção de significado, apresento a resolução do problema do Enunciado 1 no GeoGebra. O primeiro passo foi construir três controles deslizantes que permitissem controlar o comprimento do retângulo (comp) e sua largura (larg) e, também, para controlar o comprimento dos lados dos quadrados a serem recortados (xo). Em seguida, obtive uma representação geométrica plana, ou uma planificação, da caixa que se reconfigura ao passo que qualquer um dos controles é modificado. FIGURA 3 – REPRESENTAÇÃO DO PAPEL RETANGULAR COM OS QUA- DRADOS RECORTADOS FONTE: autoria própria Em uma Janela de Visualização 3D, foi obtido um prisma de base retangular que representa a caixa montada. A representação 3D, do mesmo modo que a planificação, é alterada em suas dimen- sões de acordo com as medidas definidas nos controles deslizantes. Luca Realce 145 FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE MATEMÁTICA: DESAFIOS E PERSPECTIVAS FIGURA 4 – MODELO DA CAIXA EM 2D E EM 3D FONTE: autoria própria Para obter o gráfico de uma função volume, exibi uma segunda Janela de Visualização Plana disponibilizada no GeoGebra e digitei no programa uma função que toma como parâmetros os valores dos controles deslizantes: V(x) = (comp – 2x) . (larg – 2x) . x Essa função foi restringida no intervalo de 0 a Mínimo[comp, larg] / 2. Em seguida, utilizando o comando Máximo [<Função>, <Valor de x Inicial>, <Valor de x Final>], obtive o ponto de máximo da função. Por último, construí um ponto de coordenadas (xo, V(xo)) que, conforme se espera, é exibido sobre o gráfico de V(x). 146 REGINA DA SILVA PINA NEVES | RAQUEL CARNEIRO DÖRR (ORG.) FIGURA 5 – REPRESENTAÇÕES GEOMÉTRICAS E GRÁFICAS DA RESOLUÇÃO FONTE: autoria própria O comando que calcula o máximo da função determina qual deve ser o comprimento de cada quadrado recortado do retângulo de dimensões comp x larg. Assim, encontramos a resposta para o problema sem realizar cálculos de derivadas. Porém não está aí o que destaco na resolução do problema com o GeoGebra. A primeira questão que destaco é que, nessa construção, é possível estabelecer conexões entre tópicos distintos de Matemática, tais como: Grandezas e Medidas, Geometria e Álgebra. Na cons- trução realizada no GeoGebra, obtive uma caixa e sua planificação, que são reconfiguradas dinamicamente de acordo com medidas selecionadas. Isso permite analisar o formato da caixa de volume máximo em comparação com caixas obtidas em outros “cortes”, o que se traduz em certo dinamismo em relação às condições impostas pelo enunciado. Luca Realce 147 FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE MATEMÁTICA: DESAFIOS E PERSPECTIVAS FIGURA 6 – JANELAS DE VISUALIZAÇÃO DA RECONFIGURAÇÃO DA CAIXA FONTE: autoria própria Um segundo destaque diz respeito ao fato de que o arquivo construído no GeoGebra permitiu resolver o problema proposto no enunciado e, além disso, permitiu que eu testasse outras hipóteses que surgiram durante a resolução: • E se tivéssemos um papelão também retangular de mesma área com outras medidas, por exemplo, 30 cm x 9 cm ou 27 cm x 10 cm, as soluções seriam as mesmas? • E se o papelão fosse quadrado, a solução seria a mesma? Um terceiro e últimodestaque: essa construção não repre- senta apenas uma forma de resolver um problema proposto em um enunciado, mas uma forma de modelar uma situação e, a partir dela, fazer enunciações relacionadas ao problema e a possibilidades Luca Realce Luca Realce 148 REGINA DA SILVA PINA NEVES | RAQUEL CARNEIRO DÖRR (ORG.) oriundas da construção. Isso, consequentemente, amplia o leque de produções de significado. Em minha perspectiva, abordar o problema dessa forma não consiste apenas em fazer uso de um recurso auxiliar ou fazer um pré- tratamento do problema para, depois, resolvê-lo matematicamente (algebricamente). Consiste em resolver um problema particular e, somado a isso, desenvolver um repertório de experiências quanto ao tratamento de problemas do mesmo tipo. É nesse cenário que a utilização de um dispositivo com o GeoGebra imprime certo ganho qualitativo ao resolver problemas de Matemática. Ele foi inserido em uma atividade de investigação em que possibilidades foram ampliadas. Os recursos do GeoGebra permitiram-me construir elementos visuais e imprimir movimento ao que era visualizado no papel, o que me levou à produção de enunciações e justificações em direções diferentes das que foram possíveis ao resolver o problema conforme fiz na Resolução 1. AMPLIANDO AINDA MAIS ALGUMAS POSSIBLIDADES Nesta seção, amplio a discussão sobre resolução de problemas no interior de certas atividades. Para tanto, considero necessário apresentar outras noções do MCS. A primeira noção diz respeito à produção de significados. No MCS, significado é tudo o que se pode e efetivamente se diz de um objeto em certa atividade (LINS, 1997, 1999, 2004) e objeto é “algo a respeito de que se [diz] algo” (LINS, 2004, p. 114). Assim, nessa perspectiva, produzir significados é falar a respeito de algo e constituir para si um objeto. Conhecimento, no MCS, pode ser entendido como “uma cren- ça-afirmação (enunciação de algo que se acredita ser correto) junto com uma justificação que torna legítimo enunciar aquela crença -afirmação” (LINS, 2002, p. 44). A justificação “Não é justificativa. Não é explicação para o que eu digo. [...]” (LINS, 2012, p. 21), não vem antes nem depois, ela está Luca Realce Luca Realce Luca Realce Luca Realce 149 FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE MATEMÁTICA: DESAFIOS E PERSPECTIVAS junto, e seu papel não é explicar a crença-afirmação, mas sim tornar sua enunciação legítima (LINS, 2002, p. 44), pois, [...] ao produzir significado, minha enunciação é feita na direção de um interlocutor [que “é uma direção na qual se fala”] que, acredito, diria o que estou dizendo com a justificação que estou produzindo. Isto quer dizer que a legitimidade de minha enunciação não é função de algum critério lógico ou empírico que eu pusesse em jogo, e sim do fato de que acredito perten- cer a algum espaço comunicativo. (LINS, 1999, p. 88). Essas noções são suficientes para abordar o que denomino por “conhecimento matemático”, ou por “conhecimento tecnológico”. Antes, porém, considere duas resoluções distintas para o problema proposto no Enunciado 2. Enunciado 2 O triângulo da figura abaixo é equilátero, e seus lados medem 10 cm. Os pontos A, B e C, inicialmente nos vértices do triângulo, deslocam-se sobre seus lados, de um vértice a outro, com a mesma velocidade. Os pontos A e C deslocam-se no sentido horário, e o ponto B desloca-se no sentido anti-horário. Seja x a distância em centímetros percorrida pelos pontos A, B e C, no intervalo 0 ≤ x ≤ 10. Seja f(x) a área do triângulo ABC quando x é tal que A, B e C formam um triângulo e f(x) = 0, caso contrário. a. Calcule f(2). b. Para quais valores de x , 0 ≤ x ≤ 10 , tem-se f(x) = 0? c. Esboce o gráfico de f(x) para 0 ≤ x ≤ 10. Luca Realce Luca Realce 150 REGINA DA SILVA PINA NEVES | RAQUEL CARNEIRO DÖRR (ORG.) Resolução 1 Para resolver o item a, denomino de PQR o triângulo equilátero de lados de medidas 10 cm. Na ilustração abaixo é possível observar que, após transladar os pontos A, B e C na direção e sentido dos vetores PR, QR e RQ respectivamente, obtém-se um triângulo ABC de área f(2) = área do triângulo ABR - área do triângulo ACR. Portanto, f AR RB sen AR RC sen( ) ( ) ( )2 60 2 60 2 8 8 2 3 2 8 2 2 3 2 16 3 4= ⋅ ⋅ − ⋅ ⋅ = ⋅ ⋅ − ⋅ ⋅ = − 33 12 3= Quanto ao item b, quando os pontos A, B e C forem trans- ladados em 5 cm na direção e sentido dos vetores PR, QR e RQ respectivamente, estarão localizados sobre os pontos médios dos lados PR e QR, respectivamente. E, nesse caso, serão colineares. A R B 2 2 2 8 10 6 QP C f(2) 2 8 R C AA B C f(2) R A B 8 8 151 FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE MATEMÁTICA: DESAFIOS E PERSPECTIVAS Quando os pontos A, B e C forem transladados em 10 cm na direção e sentido dos vetores PR, QR e RQ respectivamente, novamente, serão colineares. Para todos os outros valores de x, os pontos A, B e C serão não colineares, logo, vértices de um triângulo. Portanto os valores de x para os quais f(x) = 0, para 0 ≤ x ≤ 10 são x = 5 e x = 10. Por último, para a resolução do item c, encontrarei as expres- sões de f(x) para 0 ≤ x <5 e para 5 ≤ x ≤ 10. Inicio para valores no intervalo [0, 5) e, para isso, tomo PA = QB = RC = x e uso a mesma estratégia do cálculo de f(2); para cada valor de x, os lados do triângulo equilátero ABR têm o comprimento 10 – x e dois lados do triângulo ACR têm comprimento 10 – x e x. A B = C R QP C A = B = R P 152 REGINA DA SILVA PINA NEVES | RAQUEL CARNEIRO DÖRR (ORG.) Assim, f x AR RB sen AR RC sen f x x x ( ) ( ) ( ) ( ) ( ) ( = ⋅ ⋅ − ⋅ ⋅ = − ⋅ − − 60 2 60 2 10 2 3 2 102 )) ( ) ( ) ( ) ( ) ( ) ( ) ⋅ ⋅ = ⋅ − ⋅ − − = ⋅ − ⋅ − x f x x x x f x x x 2 3 2 3 10 10 4 3 10 5 2 Para valores no intervalo [5, 10], tomo PA = QB = x, então, AR = AB = 10 – x. Tenho ainda que BC = QB – QC = x – (10 – x) = 2x – 10. x 10 � x R C AA C f(2) R A B 10 � x 10 � x10 � x x x x QP R B A C B x 2x � 10 10 � x QP R 153 FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE MATEMÁTICA: DESAFIOS E PERSPECTIVAS Assim, f x AB BC sen f x x x f x x ( ) ( ) ( ) ( ) ( ) ( ) ( ) = ⋅ ⋅ = − ⋅ − ⋅ = ⋅ − ⋅ 120 2 10 2 10 2 3 2 3 10 (( )x − 5 2 Logo, f x x x x x x x ( ) ( ) ( ) ( ) ( ) = ⋅ − ⋅ − ≤ < ⋅ − ⋅ − ≤ ≤ 3 10 5 2 0 5 3 10 5 2 5 10 se se Portanto, o gráfico dessa função no intervalo [0, 10] está repre- sentado a seguir. FIGURA 7 – REPRESENTAÇÃO DO GRÁFICO DA FUNÇÃO NO INTER- VALO [0, 10] FONTE: autoria própria 154 REGINA DA SILVA PINA NEVES | RAQUEL CARNEIRO DÖRR (ORG.) Resolução 2 Nesta resolução, construí um arquivo no GeoGebra que me permitiu alterar parâmetros e analisar os pontos deslocando-se sobre os lados do triângulo PQR. Para isso, realizei uma construção atento aos seguintes passos: 1. Construí três pontos: P = (0, 0), Q = (10, 0) e R = Girar(Q, 60°). O ponto R é construído de maneira a ficar dependente de Q. Logo, se Q for redefinido ou movimentado, R é atualizado automaticamente pelo programa. 2. Construí um triângulo PQR utilizando o comando Polígo- no(P, Q, R). 3. Construí um controle deslizante n com valor mínimo zero, valor máximo 10 e incremento 0,1. Esse controle visual per- mite modificar valores de n com o recurso de clicar e arrastar do mouse. Além disso, ao definir os valores mínimo, máximo e incremento, informamos ao programa o escopo e o formato dos valores desejados. 4. Construí três vetores utilizando os seguintes comandos: u = n/10*Vetor(P,R), v = n/10*Vetor(Q,R) e w = n/10*Vetor(R, Q). Esses vetores indicam que os pontos A, B e C, construídos no próximo passo, serão deslocados dos vértices P, Q e R sobre os lados PR e QR. Ao multiplicar cada vetor por n/10, realiza-se uma operação dupla: a primeira (multiplicar por 1/10) consiste em unitarizar cada vetor, pois os pontos que definem cada um deles são extremos de um segmento de comprimento 10 cm. A segunda (multiplicar por n) faz com que tenham o comprimento determinado pelo controle deslizante n. 5. Construí três pontos utilizando os seguintes comandos A = Transladar (P, u), B = Transladar (Q, v) e C = Transladar (R, w). 6. Construí um triângulo ABC com o comando ABC = Polígono (A, B, C). Esse comando obtém um triângulo ancorado nos pontos dinâmicos A, B e C. 7. Exibi a Janela de Visualização 2 e construí um ponto D = (n, ABC). A possibilidade de duas Janelas de Visualização permite realizar a construção dos triângulos na Janela de Visualização 1 e outras 155 FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE MATEMÁTICA: DESAFIOS E PERSPECTIVAS construções na Janela de Visualização 2. Concentrei a construção geométrica dos pontos, dos triângulos e dos vetores na Janela de Visualização 1. Nessa janela, deixei também o controle deslizante que permite controlar os deslocamentos. Na Janela 2, concentrei a função que será construída no próximo passo. 8. Na Janela de Visualização 2, construí um lugar geométrico utili- zando o comando: Lugar Geométrico (D, n). Com isso, obtenho uma função da área de ABC em função do deslocamento x, indicado no enunciado e, na minha construção, pelo controle n. 9. Degenerei o Eixo Y de maneira que o gráfico do lugar geomé- trico pudesse ser visualizado por completo e configurei os dois eixos (X e Y) de forma a exibirem somente valores maiores ou iguais a zero. Após realizar esse procedimento de construção, obtive um arquivo no GeoGebra com a seguinte interface: FIGURA 8 – ARQUIVO OBTIDO NO GEOGEBRA FONTE: autoria própria Como é possível observar na interface do arquivo construído, as respostas para as questões propostas nos itens a, b e c do Enun- 156 REGINA DA SILVA PINA NEVES | RAQUEL CARNEIRO DÖRR (ORG.) ciado 2 estão apresentadas na tela do computador. Para obter a área do triângulo ABC para x = 2, ou seja, f(2), bastou posicionar o con- trole deslizante n em 2, pois os vetores u, v e w foram construídos de maneira a produzir um deslocamento dos pontos A, B e C de n unidades sobre os segmentos PR, QR e RQ, respectivamente. Além de calcular f(2), é possível animar o controle n e obter a área de todas as variações do triângulo ABC no intervalo [0, 10]. Note ainda que, no gráfico exibido na Janela de Visualização 2, obtém-se f(x) = 0 para x = 5 e para x = 10. Esse gráfico, cons- truído utilizando o comando LugarGeométrico( <Ponto do Lugar Geométrico>, <Controle Deslizante> ) permitiu obter a medida da área do triângulo ABC em função do valor do controle deslizante n que, conforme descrito em sua construção, assume valores de 0 a 10. REFLEXÕES SOBRE POSSIBILIDADES Ambas as resoluções permitiram-me responder os três itens propostos no problema que constituí via o Enunciado 2. Porém, em termos de produção de significados, são constituídos objetos distintos em cada uma delas, pois as enunciações partem de cren- ças-afirmações e justificações distintas. Na resolução 1, as enunciações dizem respeito a objetos da Matemática, ou seja, opera-se dentro de uma lógica argumentativa própria da Matemática. No texto da resolução, mencionei pontos, segmentos, triângulos, funções, medidas, translações, que são objetos internalizados por quem resolve o problema e que me permitem obter, por meio de processos de deduções e de induções, respostas objetivas. A esse conhecimento cujas enunciações são feitas a partir de crenças-afirmações e justificações baseadas única e exclusivamente na Matemática, chamo de Conhecimento Matemático. Para exemplificar melhor o que chamo de Conhecimento Matemático, durante a resolução 1, os objetos foram apresentados de forma bem definida, como se fossem “fotografados” estatica- Luca Realce Luca Realce Luca Realce 157 FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE MATEMÁTICA: DESAFIOS E PERSPECTIVAS mente. Sutilmente o termo “deslocamento”, utilizado no Enunciado 2, é substituído por Translação. Esse uso diz respeito à obtenção de uma “cópia” do objeto em que são conservadas suas propriedades originais, alterando apenas sua posição inicial. O cálculo da área do triângulo ABC para x = 2, por exemplo, é realizado por meio da subtração das áreas de dois outros triângu- los, cujas medidas são deduzíveis de uma análise da figura original. A construção do gráfico da função toma como primeiro passo a obtenção da expressão algébrica da função. Essa última foi obtida como uma generalização via um processo indutivo, tomando como caso inicial o cálculo de f(2). Ressalto novamente que, durante a realização da resolução 1, conforme é apresentada, inseri-me em uma atividade em que minhas enunciações e meu modo de agir são legítimos e próprios do horizonte cultural da Matemática. Na resolução 2, as orientações de Terence Tao (2013) são consideradas; mas, além delas, são colocadas em jogo outras pos- sibilidades de análise e outros modos de produzir afirmações em Matemática. Minhas práticas com o GeoGebra possibilitam-me relativizar “o que se faz matematicamente” e colocar em cena outros objetos e outros modos de ação. Por exemplo: vetores são utilizados apenas como objetos que permitem informar a direção e o sentido do deslocamento de um ponto. As operações de unitarização dos vetores PR, QR e RQ, embora necessárias e importantes, permitiram, em conjunto com um controle deslizante (parâmetro multiplicativo n), mover os pontos A, B e C sobre os lados do triângulo PQR e visualizar graficamente a variação de área do triângulo ABC a cada nova configuração dos seus vértices. Não foi obtida uma expressão algébrica para a função f(x) para, em seguida, obter sua representação gráfica. Aliás, tal expres- são algébrica não se fez necessária nessa proposta de resolução do problema. O gráfico é a materialização da interdependência de variáveis que está em jogo: medida do deslocamento dos pontos A, Luca Realce Luca Realce Luca Realce 158 REGINA DA SILVA PINA NEVES | RAQUEL CARNEIRO DÖRR (ORG.) B e C sobre os lados do triângulo PQR (variável independente) e área do triângulo ABC (variável dependente). O recurso de animação do controle deslizante n permite que esse controlador numérico assuma valores de 0 a 10 com razão incremental igual a 0,1. Visualmente, o triângulo ABC reconfi- gura-se a cada incremento de n, pois os pontos A, B e C percorrem por completo os segmentos PR e PQ e, simultaneamente, o ponto D percorre a função f no intervalo de 0 a 10, exibindo a área do triângulo ABC em função do comprimento de x. Isso me permite produzir enunciações sobre o comportamento da função quanto a crescimento e decrescimento, raízes, pontos de máximo, pontos de mínimo, entre outros, sem utilizar as ferramentas tradicionais do Cálculo Diferencial e Integral, por exemplo, derivadas de funções. É importante ressaltar, aqui, que as enunciações dos passos realizados durante o procedimento de construção e as conclusões oriundas da análise das configurações da interface interativa do arquivo dizem respeito a modos de uso do GeoGebra. Embora as ferramentas construídas pelos programadores do GeoGebra “crista- lizem” processos geométricos por traz dos resultados que permitem obter, tais processos não são realizados por mim, o usuário dessas ferramentas, quando executo um comando. Por exemplo, ao digitar Transladar(A, u), obtém-se um ponto A’ que corresponde à translação de A na direção e sentido indicados por u. Assim, ao fazer uso de comandose recursos do programa de maneira isolada ou de forma combinada, minha expectativa é que produzam certos resultados. Tal expectativa deve-se a uma combinação de crenças-afirmações oriundas de leituras sobre o programa, memória de experiências bem-sucedidas com o programa, internalizações de procedimentos realizados anteriormente, o que denomino de conhecimento tec- nológico sobre o GeoGebra. A distinção entre conhecimento matemático e conhecimento tecnológico que apresentei até aqui não tem por objetivo estabelecer qualquer juízo de valor entre um conhecimento e outro. Tampouco Luca Realce Luca Realce Luca Realce Luca Realce Luca Realce 159 FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE MATEMÁTICA: DESAFIOS E PERSPECTIVAS tentei mostrar que uma forma de conhecimento sobrepõe-se a outra em certa atividade. Minha expectativa é que ambos sejam considerados como necessários e complementares durante o pro- cesso de resolução de problemas matemáticos e, sobretudo, sejam considerados como práticas legítimas no processo de formação de professores de Matemática e, também, sejam considerados em suas práticas profissionais. Ademais, mantenho a expectativa de que a integração desses conhecimentos na prática profissional de professores de Matemática possibilite a produção de recursos para o ensino e para a aprendiza- gem de nossa disciplina de trabalho. Além disso, espero que um dos resultados dessa integração de conhecimentos seja uma formação mais completa dos estudantes da Educação Básica no que diz respeito à produção de conhecimentos matemáticos e sua utilização prática. 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