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BIOQUÍMICA APLICADA Débora Guerini de Souza Metabolismo da fenilalanina e da tirosina Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Identificar a estrutura química dos aminoácidos. Reconhecer a via de síntese e de catabolismo da fenilalanina e da tirosina. Analisar as patologias decorrentes de alteração do metabolismo da fenilalanina e da tirosina e sua forma de diagnóstico. Introdução Neste capítulo, você vai conhecer um pouco mais sobre a estrutura química dos aminoácidos. Você vai ver como as características da cadeia lateral desempenham funções específicas nas proteínas em que esses aminoácidos estão inseridos e como isso é importante para a estrutura e a função proteica. Todos os seres vivos, desde os mais simples até os mais complexos, utilizam os mesmos 20 aminoácidos na constituição de suas proteínas e, aqui, dois ganham especial atenção: fenilalanina e tirosina, pois são precursores de diversas moléculas necessárias para o funcionamento do nosso organismo. Esses dois aminoácidos aromáticos têm estrutura química complexa e necessitam de sistemas enzimáticos específicos para sua degradação. Quando há um defeito genético no gene que codifica essas enzimas, o metabolismo da fenilalanina e da tirosina é comprometido, causando acúmulo dos próprios aminoácidos e de metabólitos, os quais são pre- judiciais especialmente ao cérebro. Neste capítulo, vamos entender um pouco mais sobre a importância dos aminoácidos num contexto de aplicação da bioquímica. A estrutura química dos aminoácidos As propriedades químicas de uma molécula nos sistemas biológicos dizem muito sobre a sua função, localização celular e importância para as células. Os aminoácidos são constituintes obrigatórios das proteínas, importantes macromoléculas fi siológicas, e no contexto celular eles são indispensáveis em várias funções, como por exemplo geração de energia, síntese proteica, síntese de nucleotídeos, síntese de antioxidantes, entre outros compostos necessários ao funcionamento celular. Estruturalmente, os aminoácidos são compostos orgânicos que apresentam um átomo de carbono central (carbono α) que está sempre ligado aos três mesmos radicais: um grupo amino, um grupo carboxila e um átomo de hidrogênio (Figura 1). Em todos os aminoácidos que constituem as proteínas, exceto na glicina, a quarta ligação do carbono é a um outro grupo diferente dos já citados (no caso da glicina, a quarta ligação se dá com um hidrogênio). Isso confere à molécula a propriedade de ter isomeria ótica, visto que o carbono α é quiral. Portanto, para todos os aminoácidos (exceto a glicina) existirá a forma D e a forma L, sendo a L a mais comum e, logo, a utilizada pela maquinaria celular para aplicações biológicas dos aminoácidos. Esse aspecto é importante porque as enzimas celulares são estereoespecífi cas, ou seja, reconhecem a conformação das moléculas (NELSON; COX, 2014). Figura 1. Estrutura geral de um aminoácido. O carbono central (car- bono α) é obrigatoriamente ligado a três radicais: um grupo amino, um grupo carboxila e um hidrogênio. O quarto radical (representado na figura por R) varia para cada um dos aminoácidos e confere as características químicas que o aminoácido pode apresentar. Fonte: Nelson e Cox (2014, p. 76). Metabolismo da fenilalanina e da tirosina2 O quarto radical presente nos aminoácidos é frequentemente chamado de cadeia lateral, e suas propriedades são as que ditam as características de toda a molécula. Dessa forma, uma maneira de classificar aminoácidos é por meio das características químicas da sua cadeia lateral, o que gera cinco grupos diferentes (Figura 2), considerando o pH do meio sendo o pH biológico (próximo do pH 7,0). Cadeia lateral apolar e alifática: neste grupo estão os aminoácidos hidrofóbicos, alanina, valina, metionina, prolina, leucina e isoleucina. Neste grupo está também a glicina, apesar de sua cadeia lateral não ser significativamente apolar. Cadeia lateral aromática: grupo composto por fenilalanina, tirosina e triptofano. Os aminoácidos deste grupo são relativamente hidrofóbicos, entretanto, a cadeia lateral da tirosina e do triptofano podem realizar interações polares com outras moléculas. Cadeia lateral polar, não carregada: grupo composto por serina, treonina, cisteína, asparagina e glutamina. Esses aminoácidos têm a habilidade de realizar ligações de hidrogênio com a água. Essa caracte- rística é importante para a estrutura das proteínas e, consequentemente, para a sua função fisiológica. Cadeia lateral carregada positivamente: grupo formado por lisina, arginina e histidina, e tem um grupo amino extra em sua estrutura. São, juntamente com os aminoácidos carregados negativamente, os aminoácidos mais hidrofílicos. Os resíduos desses aminoácidos são muito utilizados em reações catalisadas por enzimas, pois as cadeias laterais funcionam como doadores ou aceptores de prótons. Cadeia lateral carregada negativamente: os aminoácidos glutamato e aspartato apresentam carga negativa em pH fisiológico em razão da presença de um segundo grupo carboxila em sua estrutura (NELSON; COX, 2014). 3Metabolismo da fenilalanina e da tirosina Figura 2. Classificação dos aminoácidos em relação às propriedades da sua cadeia lateral. As fórmulas químicas demonstram o estado de ionização que ocorre em pH 7,0. As porções não sombreadas são aquelas comuns a todos os aminoácidos; a parte da molécula sombreada demonstra sua cadeira lateral. Fonte: Adaptada de Nelson e Cox (2014, p. 79). Metabolismo da fenilalanina e da tirosina4 A fenilalanina, após ser hidroxilada, gera tirosina, precursora de dopamina, no- radrenalina e adrenalina, neurotransmissores no sistema nervoso central (SNC). A tirosina é precursora da melanina, pigmento escuro presente na pele e nos cabelos. Via de síntese e de catabolismo da fenilalanina e tirosina Outra maneira de classifi carmos os aminoácidos é com relação à capacidade que os animais têm de produzi-los ou não. Assim, podemos classifi car os aminoácidos em nutricionalmente essenciais (que precisamos ingerir na dieta) ou nutricionalmente não essenciais (que podemos produzir no nosso organismo) (ver Quadro 1). Todos os aminoácidos derivam de intermedi- ários da glicólise, da via das pentoses fosfato ou do ciclo do ácido cítrico. Seres mais simples, como bactérias e plantas, têm capacidade de sintetizar todos os 20 aminoácidos que compõem as proteínas. Já os mamíferos foram perdendo a capacidade de produção ao longo da evolução, visto que o custo metabólico de produção de vários sistemas enzimáticos não compensaria, considerando a relativa abundância dos aminoácidos na dieta. A fenilala- nina e a tirosina encontram-se no grupo de aminoácidos nutricionalmente essenciais (RODWELL et al., 2018). 5Metabolismo da fenilalanina e da tirosina Fonte: Adaptado de Rodwell et al. (2018, p. 282). Nutricionalmente essenciais Nutricionalmente não essenciais Argininaa Alanina Histidina Asparagina Isoleucina Aspartato Leucina Cisteína Lisina Glutamato Metionina Glutamina Fenilalanina Glicina Treonina Hidroxiprolinab Triptofano Hidroxilisinab Valina Prolina Serina Tirosina a Nutricionalmente “semiessencial”. Sintetizada em taxas inadequadas para sustentar o crescimento de crianças. b Não são necessárias para a síntese de proteína, porém são formadas durante o processamento pós-traducional do colágeno. Quadro 1. Classificação dos aminoácidos em relação à capacidade de síntese pelos animais A via de síntese desses aminoácidos não é simples, visto que sua estrutura química tem um anel aromático. Essa via ocorre em bactérias, fungos e plan- tas e utiliza como precursores a eritrose-4-fosfato (intermediário da via das pentosesfosfato) e o fosfoenolpiruvato (intermediário da via glicolítica). Esses dois precursores, ao longo de sete passos enzimáticos, com emprego de energia na forma de ATP e de poder redutor na forma de NADPH, geram corismato. O corismato é precursor tanto da síntese de fenilalanina e tirosina quanto da síntese de triptofano, outro aminoácido de estrutura complexa. Na síntese de fenilalanina e tirosina, o corismato é transformado em prefenato e pode seguir duas vias, sendo que ambas culminam em uma reação de transaminação com o glutamato (Figura 3), e liberam os aminoácidos fenilalanina e tirosina, e o alfa-cetoglutarato. A tirosina também pode ser produzida a partir de fe- nilalanina pela ação da fenilalanina hidroxilase, que promove a hidroxilação no carbono 4. Por esse motivo, a tirosina é considerada condicionalmente Metabolismo da fenilalanina e da tirosina6 essencial e a necessidade de ingestão de fenilalanina dependerá de quanta tirosina é ingerida, visto que a fenilalanina será desviada para produção de tirosina dependendo da necessidade. Figura 3. Síntese de tirosina e fenilalanina a partir de corismato. Essa via ocorre em plantas, bactérias e fungos e gera os dois aminoácidos que, em animais, são essenciais. Fonte: Nelson e Cox (2014, p. 902). 7Metabolismo da fenilalanina e da tirosina A reação da fenilalanina hidroxilase é também a primeira da via de degra- dação da fenilalanina, portanto, ambas seguem a mesma rota catabólica. A via de degradação da fenilalanina e tirosina culmina na formação de acetoacetato e de fumarato (Figura 4), sendo, portanto, esses aminoácidos tanto glicogênicos (podem gerar intermediários do ciclo de ácido cítrico) quanto cetogênicos (podem gerar corpos cetônicos). Figura 4. Via de degradação da fenilalanina e tirosina. Várias enzimas atuam degradando a fenilalanina e a tirosina até acetoacetato e fumarato. Defeitos genéticos em muitas dessas enzimas causam doenças conhecidas como erros inatos do metabolismo. Fonte: Nelson e Cox (2014, p. 719). Um aspecto notável da via de degradação desses aminoácidos é a quantidade de doenças causada por defeitos genéticos que afetam essas enzimas. Tanto a fenilalanina quanto a tirosina têm nove carbonos e são degradadas em dois fragmentos, sendo que ambos podem ingressar no ciclo do ácido cítrico. Um dos fragmentos gera acetoacetato, que é convertido em acetoacetil-CoA e, posteriormente, em acetil-CoA. O segundo fragmento gera o fumarato e um carbono se perde como dióxido de carbono (CO 2 ) (NELSON; COX, 2014). Metabolismo da fenilalanina e da tirosina8 A reação da fenilalanina hidroxilase utiliza a tetra-hidrobiopterina como coenzima, que tem o papel de transferir elétrons do NADPH ao oxigênio mole- cular, o que permite a hidroxilação do anel aromático do aminoácido, gerando tirosina. A restituição da coenzima é realizada pela enzima di-hidrobiopterina redutase e utiliza NADPH novamente, permitindo que a tetra-hidrobiopterina regenerada participe de outra reação (NELSON; COX, 2014). A sexta etapa na síntese do corismato pode ser inibida competitivamente por glifo- sato, ingrediente ativo do herbicida Roundup. Em relação à essa via, o glifosato seria relativamente atóxico, visto que ela não ocorre em mamíferos. Em relação a outras vias metabólicas, o glifosato já demonstrou ser prejudicial. Patologias decorrentes de alteração do metabolismo da fenilalanina e da tirosina e sua forma de diagnóstico Doenças relacionadas ao metabolismo dos aminoácidos geralmente são muito graves, pois os aminoácidos são precursores de diversos produtos essenciais para o desenvolvimento do organismo, desde a mais tenra idade. Em relação ao metabolismo da fenilalanina e da tirosina, várias doenças já foram identi- fi cadas e, se não forem cuidadosamente controlas, levam a prejuízo cognitivo. O defeito genético da fenilalanina hidroxilase causa fenilcetonúria, levando ao aumento de fenilalanina no sangue a partir de momento do nascimento. A fenilcetonúria pode ocorrer de maneira branda (acima de 3% de atividade enzimática), de maneira moderada (1-3% de atividade) e de maneira grave (atividade enzimática praticamente nula). O acúmulo de fenilalanina no sangue leva à diminuição no uso dos outros aminoácidos pelos tecidos, especialmente no cérebro, que conta com apenas um transportador de aminoácidos neutros, o qual fica saturado de fenilala- nina, impedindo o fornecimento dos outros aminoácidos nutricionalmente essenciais. Esse fato, associado ao aumento de metabólitos tóxicos, como fenilpiruvato, fenilactato e fenilacetato, produzidos por vias alternativas de degradação da fenilalanina, propiciam um quadro de prejuízo mental causado por essa condição, caso não haja diagnóstico e restrição de fenilalanina na dieta. 9Metabolismo da fenilalanina e da tirosina A rota alternativa de degradação inclui transaminação com piruvato, gerando fenilpiruvato, o qual é excretado na urina juntamente com grande quantidade de fenilalanina (NELSON; COX, 2014). A fenilcetonúria foi um dos primeiros erros inatos do metabolismo descritos. Quando ela é descoberta nos primeiros dias de vida da criança, a deficiência intelectual pode ser evitada pelo controle rígido da dieta, que deve ter níveis restritos de fenilalanina e de proteínas de modo geral. A fenilcetonúria também pode ser causada por defeito genético em outra enzima, a di-hidrobiopterina redutase, que regenera a tetra-hidrobiopterina, coenzima que participa da reação da fenilalanina hidroxilase. Esse quadro é mais complexo ainda porque essa coenzima também é utilizada na produção de neurotransmissores, sendo requerida no sistema nervoso central. A suple- mentação de tetra-hidrobiopterina não é completamente eficaz, pois ela não ultrapassa a barreira hematoencefálica. Outra doença hereditária no metabolismo da fenilalanina é a alcaptonúria, em que o defeito está na enzima homogentisato-dioxigenase. Essa doença é menos grave que a fenilcetonúria, porém ocorre o acúmulo do ácido homogen- tísico e seus metabólitos, podendo levar à deposição de manchas enegrecidas em alguns locais do corpo como olhos, orelhas e rosto. A oxidação espontânea do ácido homogentísico torna a urina escura e o enrijecimento das cartilagens torna o indivíduo acometido mais suscetível ao desenvolvimento de artrite (BRANDÃO et al., 2006). Tirosinemia é o nome coletivo dado aos erros inatos que afetam o fun- cionamento das enzimas que degradam a tirosina e causam aumento desse aminoácido nos fluidos biológicos. Existem três tipos de tirosinemias e elas podem ser causadas por deficiência em diferentes enzimas da rota de degra- dação da tirosina (Figura 4 anterior). Dependendo da enzima defeituosa, diferentes órgãos são afetados e dife- rentes sintomas são apresentados. Na tirosinemia do tipo I, a enzima afetada é a fumarilacetoacetato hidrolase. Observa-se o desenvolvimento de hepa- tomegalia e problemas renais e neurológicos. Hepatocarcinoma é uma grave consequência dessa doença. Na tirosinemia do tipo II, a enzima afetada é a tirosina aminotransferase. Nessa doença, os olhos, a pele e o sistema nervoso central são afetados. Na tirosinemia do tipo III, o tipo mais raro, a enzima afetada é a 4-hidroxifenilpiruvato dioxigenase. Nessa doença, são observadas alterações hepáticas, também culminando em hepatomegalia, além de efeitos neuropsiquiátricos. O teste de triagem neonatal, ou teste do pezinho, identifica a presença de grandes quantidades de fenilalanina, podendo contribuir para o diagnóstico Metabolismo da fenilalanina e da tirosina10 de fenilcetonúria. Já as tirosinemias não são identificadas por esse teste. A avaliação de um conjunto de fatores pode ajudar no diagnóstico das tiro- sinemias, como dosagem de tirosina nos fluidos biológicos e dosagem de transaminases hepáticase de succinilacetona (um metabólito alternativo de degradação da tirosina). O teste de triagem neonatal pode identificar níveis aumentados de tirosina plasmática sem que haja necessariamente defeito genético no metabolismo desse aminoácido. Essa condição, conhecida como tirosinemia neonatal transitória, em que os níveis séricos de tirosina se encontram elevados, acomete recém- -nascidos principalmente do sexo masculino, especialmente os prematuros. A causa ainda não está completamente elucidada, mas se relaciona possi- velmente com uma deficiência relativa causada por imaturidade hepática da enzima 4-hidroxifenilpiruvato-dioxigenase. Não houve confirmação se esse evento impacta o desenvolvimento neurológico dos indivíduos acometidos (JARDIM, 1998). As tirosinemias são muito mais raras do que a fenilcetonúria, mas o manejo de ambas as doenças é similar. Devem ser evitados alimentos com alto conteúdo proteico e a quantidade do aminoácido relacionado à patologia deve ser muito bem controlada para evitar excessos e intoxicação. No caso da tirosinemia do tipo I, transplante hepático pode ser necessário. O link a seguir dá acesso para um jogo interativo em que você tem que reconhecer as estruturas dos aminoácidos e destruí-las com sua nave espacial. https://goo.gl/s2YLE7 O aspartame é um exemplo de alimento a ser evitado pelo portador de fenilcetonúria. Esse adoçante é um peptídeo que contém fenilalanina na sua composição e, portanto, não é recomendado para fenilcetonúricos. 11Metabolismo da fenilalanina e da tirosina BRANDÃO L.R. et al. Alcaptonúria (Ocronose): relato de dois casos. Revista Brasileira de Reumatologia, v. 46, n.5, p. 369-372, set./out. 2006. Disponível em: <http://www. scielo.br/scielo.php?pid=S0482-50042006000500014&script=sci_abstract&tlng=pt>. Acesso em: 21 out. 2018. JARDIM, L.B. Tirosinemia neonatal transitória: doença ou variação do normal? Jor- nal de Pediatria, v. 74, n. 6, 1998. Disponível em: <http://www.jped.com.br/con- teudo/98-74-06-431/port.pdf>. Acesso em: 21 out. 2018. NELSON, D. L.; COX, M. M. Princípios de bioquímica de Lehninger. 6. ed. Porto Alegre: Artmed, 2014. RODWELL, V. W. et al. Bioquímica ilustrada de Harper (Lange). 30. ed. Porto Alegre: Penso, 2018. Leitura recomendada VOET, D.; VOET, J. G. Bioquímica. 4. ed. Porto Alegre: Artmed, 2013. Metabolismo da fenilalanina e da tirosina12 Conteúdo:
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