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N? 0389 PAULO NADER Professor da Universidade Federal de Juiz de Fora. Expositor da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro. Juiz de Direito aposentado do Estado do Rio de Janeiro. Membro da Association Internationale de Philosophie du Droit et de Philosophie Sociale. Membro da Association Internationale de Méthodologie Juridique. Membro do Instituto Brasileiro de Filosofia. Membro Correspondente da Academia Brasileira de Letras Jurídicas. Endereço eletrônico: pnader@powerline.com.br CURSO DE DIREITO CIVIL PARTE GERAL E D I T O R A F O R E N S E Rio de Janeiro 2003 apítulo XX DEFEITOS DOS NEGÓCIOS JURÍDICOS Sumário: 133. Vícios de consentimento e vícios sociais. 134. Erro. 135. Dolo. 136. Coação. 137. Estado de perigo. 138. Lesão. 139. Simula ção. 140. Fraude contra credores. 133. Vícios de consentimento e vícios sociais 133.1. Aspectos gerais. Entre os elementos essenciais dos negócios jurídicos, destaca-se a declaração de vontade, que deve corresponder à vontade real, verdadeira, dos agentes, sob pena de comprometer a regulari dade do ato. Não basta que a declaração corresponda à vontade, pois é in dispensável que esta se tenha formado livre, consciente, isenta de pressões ou constrangimentos. Na palavra de Orosimbo Nonato, a vontade é “ele mento ontológico do ato jurídico, o seu princípio de eficácia e de vida ” e, conforme Trabucchi, constitui <(per accèlenza Velemento dinâmico dei mondo giuridico,\ x A vontade que vincula é apenas a manifestada seria mente, descartando-se, pois, as per iocuni, iocandi causa, emitidas em ato de puro gracejo. 1 • Os negócios jurídicos, especialmente os contratos, são recursos técni cos que a ordem jurídica disponibiliza visando a composição dos interes ses. Quando a vontade declarada não corresponde à intenção ou ao querer espontâneo do agente não se pode afirmar que os interesses foram satisfei- 1 Cf. in Orosimbo Nonato, Da Coação como Defeito do Ato Jurídico, Rio de Janeiro, Editora Forense, 1957, p. 99. 470 Piulb Nader Se há uma declaração de vontade e se o agente é capaz, a forma é líci ta ou não vedada em lei, haver & existência e validade do negócio jurídico. A eficácia diz respeito aos efeitos jurídicos dos atos negociais. Um testa mento firmado por agente, que se encontra em pleno gozo de sua capacida de de fato e manifesta a sua declaração de vontade em sintonia com a lei, constitui negócio jurídico existente e válido. A sua eficácia se encontra condicionada ao evento morte do declarante. Os negócios jurídicos realiza dos na forma da lei tratam-se de negócios jurídicos existentes e válidos, mas, se submetidos à condição suspensiva, somente alcançarão a eficácia se o evento futuro e incerto realizar-se.7 Eficácia do ato, portanto, consiste na produção dos efeitos jurídicos correspondentes à natureza dos negócios jurídicos concretos. Ao considerar inconfundíveis os planos do existir, do valer e do ser eficaz nos negócios jurídicos, Pontes de Miranda exercita algumas combi nações conceptuais: "... o fato jurídico pode ser, valer e não ser eficaz, ou ser, não valer e ser eficaz. As próprias normas jurídicas podem ser, valer e não ter eficácia. O que se não pode dar é valer e ser eficaz, ou valer, ou ser eficaz, sem ser; porque não há validade, ou eficácia do que não é Relativamente aos efeitos dos atos negociais, três situações podem ocorrer na prática: A vontade declarada discrimina todos os efeitos; as par tes estabelecem o vínculo jurídico e não acrescentam ou restringem os efei tos previstos no ordenamento; os efeitos podem emanar tanto de cláusulas do negócio jurídico quanto da previsão legal. 133.3. Saneamento dos atos anuláveis. A caracterização dos vícios de consentimento faz anuláveis os atos praticados, todavia há dois modos de saná-los: pela ratificação e mediante a prescrição. Pela ratificação as partes confirmam o ato negociai, reconhecendo o vício que maculou o ne gócio. Tal iniciativa não se confunde com a providência prevista no art. 144 da Lei Civil, pela qual o declarante que não incorreu em erro se oferece para retificar o ato praticado, colocando-o em conformidade com a vontade real da outra parte, visando a garantir a prática do negócio de fato. O segun do modo de sanar o vício de consentimento, se processa pela decadência (art. 178, CC). No dizer de Vicente Ráo: “O Direito repele o conceito de 7 Sobre esta matéria v. a obra de Antônio Junqueira de Azevedo, Negócio Jurídico - Existência, Validade e Eficácia, ed. cit., p. 23/5. 8 In Tratado de Direito Privado, vol. 4, ed. cit., p. 15. Ctirno do D ireito C iv il - Parte Gerol 471 perpetuidade do tempo do conflito entre os elementos volitívos e a declara ção, e o repele a bem da segurança do comércio jurídico "\} 134. E rro 134.1. Conceito. Erro consiste na falsa representação intelectual da realidade. O erro pode ocorrer no processo de formação da vontade ou di zer respeito à declaração. No primeiro caso, a vontade se forma em premis sas falsas; no segundo o equívoco reside de declaração, A vontade do agente é “A” e este declara “B”. Conforme Orlando Gomes, “Aos dois ti pos dá-se modernamente igual trato”} 0 Quando o erro se dá na formação da vontade, tem-se o chamado erro vício; quando ocorre na declaração da vontade configura o chamado erro obstáculo, também denominado erro obstativo. Manuel A. Domingues de Andrade exemplifica o erro vício: “A compra a B o prédio C, na crença de existirem nele águas subterrâneas que pretende explorar, mas verifica depois que essas águas não existem”.1 O erro vício se forma antes da declaração mas é com ela que se substanciali- za. Nele não há desconformidade entre a vontade e a declaração. O erro obstáculo se dá na comunicação. O agente quer “A” e diz “B”. Nosso orde namento não distingue uma espécie da outra. A lei brasileira não distingue as duas espccies de erro. O conceito vulgar de erro é mais amplo do que o jurídico, porque en quanto aquele pode originar-se em não-correspondências irrelevantes na ótica dos interesses, o erro jurídico pressupõe a não-correspondência signi ficativa, que importa, considerando-se o interesse geral das pessoas ou contemplada a situação concreta do agente emissor da vontade. Para a vali dade do negócio jurídico é preciso que a natureza do ato e o objeto corres pondam à convicção de seus agentes. Em certos casos é essencial ainda a identidade e as qualidades essenciais à pessoa com quem o agente pratica o ato negociai. Erro é vício de consentimento que se forma sem induzimento inten cional de pessoa interessada. É o próprio declarante quem interpreta equi- vocadamente uma situação fática ou a lei e, fundado em sua cognição falsa, manifesta a vontade, criando, modificando ou extinguindo vínculos jurídi- 9 ln Ato Jurídico, ed. cit., p. 286. 10 In Introdução ao Direito Civil, ed. cit., p. 417. 11 Op. cit., vol. II, p. 233. 472 Paulo Nader cos. A lei brasileira, para efeitos jurídicos, equipara o erro à ignorância, mas ambos expressam situações distintas. Enquanto no erro a vontade se forma com base na falsa convicção do agente, na ignorância não se registra distorção entre o pensamento e a realidade, pois o agente sequer tomara ciência da realidade dos fatos ou da lei. Ignorância é ausência de conheci mento, enquanto erro é conhecimento divorciado da realidade. Da mesma forma que o erro pode induzir à prática de ato negociai não correspondente à vontade íntima do agente, pode também levá-lo a abster-se da prática de negócio jurídico, que se realizaria não fora o equívoco no conhecimento. Na opinião de Mazeaud et Mazeaud o erro constitui um fato jurídico e como tal é passível de prova por todos os meios, inclusive por presun- ções. Assim, se alguém paga elevado preço por uma pintura presume-se que a crença dodeclarante fosse a de adquirir o quadro de um mestre e não uma simples cópia. A prova do erro é de quem o afirma, pois o ônus da pro va cabe a quem alega.1 Segundo a Lei Civil brasileira o declarante deverá provar não apenas a ocorrência de um erro essencial e que este seria per ceptível no padrão vir medius, ou simplesmente que a outra parte tinha co nhecimento do erro e nada fez para impedir que o ato negociai se realizasse naquelas condições. A reserva mental não exerce qualquer influência quanto à validade dos atos negociais, salvo se a outra parte dela tiver conhecimento. Configu ra um divórcio entre a vontade real e a declarada, mas não constitui um ví cio de consentimento uma vez que o agente atua com plena consciência. Se alguém faz promessa de recompensa e intimamente está decidido a não cumpri-la, tem-se um caso de divórcio entre o querer e a declaração, confi gurando a chamada reserva mental (§ 116). Conforme o grau de intensidade do erro, Planiol distinguiu três espé cies: a) erro radical - o que impede a formação do ato; b) erro de gravidade média — o que não impede a realização do ato, mas provoca a sua nulidade; c) erro leve - que é indiferente e, malgrado a sua realização, o ato é válido*. Para o antigo professor da Faculdade de Direito de Paris, “Il est impossible de déterminer d ’une manière générale la distinction à faire entre les er reurs qui rentrent dans la deuxième et celles qui rentrent dans la troisième classe”} As soluções seriam variáveis de acordo com a matéria discipli- 12 Mazeaud et Mazeaud, in Lições de Direito Civil, Parte Segunda, Buenos Aires, Edicio- nes Jurídicas Europa-América, 1960, vol. I, p. 199. 13 Mareei Planiol e Georges Ripert, op. cit.y vol. I, p. 108. Curso de Direito Civil ~ Pnrte Geral 473 nada. Tais observações de Planiol, indiretamente questionam a posição do legislador brasileiro, que estabeleceu para os negócios jurídicos em geral algumas regras sobre este vício de consentimento, não obstante as diversas normas específicas atreladas aos institutos a que se referem. Nossos Códi gos, tanto o revogado quanto o vigente, seguem, todavia, a tendência do Direito Comparado.1 134.2. Erro principal ou essencial e erro acidental 134.2.1. Conceito. Também denominado substancial, erro essencial é o que incide sobre qualquer dos dados fundamentais do ato negociai, sobre a sua essência ou substância, deturpando de tal forma a vontade do agente que se este tomasse ciência da realidade não teria celebrado o negócio ju rídico ou pelo menos do modo com que o praticou. Erro acidental é o que diz respeito a aspectos secundários do ato e que não funcionaria como obstáculo ao negócio se não houvesse a falsa representação intelectual da realidade. 134.2.2. Espécies de erro acidental ou essencial Confomie Roberto de Ruggiero o erro essencial caracteriza-se por uma das seguintes modalidades: error in negotio\ error in corpore; error in substantia e error in persona. 134.2.2.1. Error in negotio. Neste tipo a falsa representação intelec tual diz respeito à natureza jurídica do ato praticado. Pensa o agente que o imóvel lhe está sendo entregue a título de comodato e na realidade se trata de contrato locàtício. 134.2.2.2. Error in corpore. O dissenso entre a vontade real e a decla rada refere-se à identidade do objeto do negócio. Indica-se “A”, pensando tratar-se de “B”. 134.2.2.3. Error in substantia. O agente identifica corretamente a na tureza do vínculo estabelecido, bem como o objeto em função do qual ope- ra-se o ato negociai, todavia desconhece algumas de suas características 14 Não se tem conhecimento, com precisão, do pensamento romano dos períodos clássico e pós-clássico, sobre a figura do erro, uma vez que o texto do Corpus Juris Civilis foi alterado por seu compiladores, sendo difícil apurar o pensamento original. Conforme expõe o Min. José Carlos Moreira Alves, a invalidade do negócio jurídico exigia dois requisitos: a) escusabilidade; b) essencialidade. O erro não poderia ser grosseiro, nem de gravidade que implicasse, sem ele, a realização do ato. In Direito Romano, vol. I, ed. cit., p. 174. 474 Paulo Nader essenciais. Exemplo: alguém adquire um aparelho televisor na crença de ser a cores, verificando depois que o seu funcionamento é em preto e bran co. As partes, conforme observa Enneccerus, notadamente no comércio de antigüidades, às vezes não se sentem seguras quanto à qualidade de um ob jeto e resolvem, mediante cláusula contratual, assumirem o risco.15 Ocor rendo tal hipótese, não se caracterizará a figura do erro e o ato não será passível de anulação. 134.2.2.4. Error inpersona. Esta espécie diz respeito à identidade da pessoa com quem o agente pratica o ato negociai ou a alguma de suas quali- dades. A empresa contrata fulano, pensando ser beltrano (quanto à identi dade). Alguém contrata os serviços profissionais de uma pessoa para a manutenção de seu equipamento, pensando tratar-se de técnico profissio nal, mas depois constata que se trata de estagiário. Coviello adverte que nao há como se confundir o error in persona com o error in nomine} Às vezes o declarante erra tão-somente quanto ao nome da pessoa em sua de claração, fato este que não leva à nulidade do ato desde que se possa apurar, objetivamente, a identidade verdadeira. 134.2.3. Espécies de erro acidental. Tal modalidade, conforme assi nalado, recai sobre elementos meramente circunstanciais. Na análise de Roberto de Ruggiero, pode referir-se in qualitate, ou seja, sobre qualidades secundárias; in quantitate, relativa aos bens que devem ser numerados, pe sados ou medidos. O erro acidental pode incidir sobre termo, condição e encargo. Relevante a destacar-se é que incidindo o erro sobre qualquer um desses elementos poderá qualificar-se como essencial, se os interessados assim estipularam em sua declaração de vontade. 134.2.4. Erro de fato e erro de Direito. Como as próprias denomina ções revelam, o erro de fato diz respeito ao objeto, à natureza da relação formada e às condições do ato negociai. Erro de Direito consiste no desco nhecimento das implicações jurídicas trazidas pelo negócio jurídico. Con figura também a espécie o conhecimento desvirtuado, errôneo, que não corresponde à interpretação corrente das leis aplicáveis ao caso concreto. J 5 In Direito Civil- Parte Geral, 39a ed., Ia ed. espanhola, Barcelona, Bosch, Casa Edito- H rial, 1944, vol. 2o, p. 195. 16 Nicolas Coviello, in Doctrina General dei Derecho Civil, trad, da 4a ed. italiana, Méxi co, Union Tipográfica Editorial Hispano-Americana, 1938, p. 425. Curso cii Direito Civil - Pnrto Ooral 47S Segundo a lição de Mazeaud et Mazeaud, tal erro há de ser substancial e não recair sobre ponto controvertido e que enseja interpretação divergente dos tribunais.17 134 2.5. Efeitos do erro segundo a doutrina. Entre os autores latinos, conforme assinala A. Ferrer Correia, predomina o entendimento de que o erro essencial deve levar à nulidade, enquanto que o erro acidental, apenas à anulabilidade. O primeiro, então, constitui um verdadeiro obstáculo, que supera, inclusive, a vontade do agente que incidiu em erro. Ainda que este queira, a nulidade prevalece. Conforme o antigo professor da Faculdade de Direito de Coimbra: “O enganado não tem um direito de escolha entre manter o negócio jurídico de conteúdo inicialmente não querido e promo ver a sua anulação: pois o ser o negócio nulo (não apenas anulável) è uma pura conseqüência ex lege”.18 Tal posição se me afigura extremamente radical e contrária aos prin cípios que regem o Direito Privado, uma vez que a vontade das partes deve prevalecer sempre que não contrariar a lei, a ordem pública e os bons costu mes. A par deste argumento de fundo , há que se atentar para as dificuldades que se teria para a efetivação de tal teoria no campoprático. À revelia das partes, como o judiciário tomaria conhecimento do ato negociai è como im por a solução de uma sentença coercitivamente? 134.2.6. Erro e vício redibitório. Erro, como vício de consentimento, não se confunde com os chamados vícios redibitórios, que se acham regu lados entre os arts. 441 e 446 da Lei Civil, junto aos contratos. Conforme Colin et Capitant, erro "consiste em crer na existência de uma qualidade, de um fato, de um acontecimento, que em realidade não existem”, 9 en quanto que vício redibitório é defeito específico dos contratos comutativos e se refere apenas aos vícios ocultos da coisa, tomando-a imprópria ao uso a que se destina ou reduzindo-lhe o valor. A distinção fundamental entre ambos, para o jurista Francisco Amaral, consiste no fato de que o erro é fe 17 Mazeaud et Mazeaud, op. cit., Parte Segunda, vol. I, p. 198. 18 In Erro e Interpretação na Teoria do Negócio Jurídico, 2a ed., Coimbra, Biblioteca Ju rídica Atlântica, 1968, p. 35. Entre os autores que seguem tal entendimento, na França e Itália, A. Ferrer Correia aponta os seguintes: Scialoja, Giorgi, Paciflci-Manzoni, Co- viello, Dante Caporali, Chironi e Abello, Ferrara, Messineo, Stolfi, Dusi, Butera, entre outros. Op.cit., p. 35. 19 Ambrosio Colin e H. Capitant, in Curso Elementar de Direito Civil, Madrid, Instituto Editorial Reus, 1952, Tomo Io, p. 180. 476 Paulo Näder nômeno de natureza subjetiva, enquanto que o vício redibitório é de natureza objetiva “constituindo-se concretamente na ausência de qualidades que a coisa deveria ter”. É inequívoco, porém, que ao se constatar a existência do vício redibitório se estará constatando, também, que uma ou ambas as partes incidiram em erro. A matéria pertinente aos vícios redibitórios deve ser estudada na teoria dos contratos, que integra a parte das obrigações. 134,2.7. O erro no Direito Civil brasileiro. A Lei Civil dispõe sobre a matéria entre os arts. 138 e 144 e sob a epígrafe Do erro ou ignorância. Em tal capítulo as referências são apenas para a figura do erro, mas a interpreta ção da epígrafe deixa claro que, para todos efeitos, deve-se tomar as regras como extensivas à ignorância. Conforme as circunstâncias em que os fatos se desenrolam, o erro substancial poderá induzir à anulação do ato negociai. E para que isto ocor ra caberá à parte prejudicada ingressar em juízo com a ação própria, Não basta que o ato tenha sido praticado sob impulso de erro essencial. A lei exige que o erro em questão seja perceptível pelo homem médio. Assim, nos atos bilaterais, se a parte que não cometeu o erro pôde notar que o dé clarante estava laborando em equívoco, e não interveio, fazendo o esclare cimento devido, certamente terá faltado com a boa-fè em detrimento do declarante. O que a lei deseja saber é se o erro poderia ser evitado por inici ativa de quem não o estava cometendo. O art. 138 do Código Civil optou por empregar uma presunção, que a meu ver é meramente relativa. Se uma pessoa, de mediana capacidade de compreensão, pudesse interpretar na conduta do declarante e nas circunstâncias gerais, que o mesmo estava inci dindo em erro essencial, ter-se-ia o ato como anulável. Caso contrário, não. Este é o primeiro requisito imposto para que o ato seja considerado anulá vel (art. 138, ÇC). É de se atentar para o fato de que não basta a ocorrência do erro subs tancial para que o negócio jurídico seja anulável. O Código Civil de 2002 inovou ao instituir um co-requisito. O legislador teve por mira não apenas a01proteção do declarante, como fizera o Código Beviláqua (art. 86), que se limitou a declarar a anulabilidade dos atos praticados com erro substancial. Como esta solução simples poderia representar uma punição para a outra 20 In op. cit.y p. 484. 21 Era do seguinte teor o art. 86 do Código Civil de 1916: "São anuláveis os atos jurídi cos, quando as declarações de vontade emanarem de erro substancial ”. Curso do Direito Civil - Parte Geral 477 parte, o legislador impôs um segundo requisito, o qual envolve a participa ção deste último. Se o erro era perceptível pelo homem médio e mesmo as sim o negócio realizou-se, presume a lei que a outra parte agiu de má-fé, merecendo, destarte, sofrer os efeitos da anulação do ato. A solução foi sá bia, mas a sua aplicação prática é de todo complexa, pois não bastará ao re querente desenvolver a prova de seu erro, devendo produzir uma outra, a fim de convencer ao juiz de que o ex adverso poderia ter impedido o seu erro e se omitiu. A sensibilidade e a experiência do magistrado serão im portantes na avaliação da perceptividade do padrão vir medius. A redação do referido art. 138 levou alguns autores à interpretação equivocada do co-requisito, entendendo que “a pessoa de diligência nor mal” se refere à pessoa que errou, quando na realidade, conforme assinala mos, trata-se do agente que participou do ato com a pessoa que errou. Tal dispositivo se inspirou no art. 1.428 do Código Civil italiano, que dispõe: O erro é causa de anulação do contrato quando fo r essencial e reconhecí vel pelo outro contraente”. Sílvio Rodrigues, com a acuidade de sempre, deu ao dispositivo a sua verdadeira inteligência: "... para que o erro possa ser proveitosamente alegado, mister se faz a demonstração de que a pes soa que contratou com a vítima do engano estava ao corrente de tal cir cunstância, ou poderia, com diligência normal, ter-se posto ao corrente do erro . Em igual sentido é a interpretação de Maria Helena Diniz: “O ne gócio só será anulado se presumível ou possível o reconhecimento do erro pelo outro contratante. Uma das partes não pode beneficiar-se com o erro de outra. Deve ser real, palpável e reconhecível pela outra parte, impor- tando efetivo prejuízo para o interessado ”. Entre os requisitos básicos do erro a doutrina se refere à escusabilida- de, ou seja, o erro não pode ser grosseiro (error intolerabilis) e perceptível ao padrão vir medius. O erro há de ser escusável, desculpável. Diante da inovação trazida em nossa sistemática pelo art. 138, tal requisito se tomou irrelevante. Em se tratando de erro crasso e não acusado pela parte contrá ria, implicará a anulabilidade do ato, salvo se a parte que não errou se dis puser a refazer o ato em conformidade com a vontade real do agente.24 22 In Direito Civil, vol. 1, ed. cit., p. 192. 23 In Curso de Direito Civil Brasileiro, Io vol., ed. cit., p. 383. 24 Tal entendimento parece implícito na lição de Luis Díez-Picazo e Antonio Gullón: "... um erro inescusável deve possuir transcendência anulatória do negócio jurídico quando, dadas suas circunstâncias, fo i reconhecido ou pôde sê-lo pela outra parte em- 478 Pftltlo Nader O erro substancial, do ponto de vista legal, configura-se nas modali dades seguintes, já consideradas neste capítulo: a) error in negotio; b) error in corpore; c) error in persona?5 d) error in substantia. Relativamente ao error in persona, seja quanto à identidade ou à qualidade essencial, exige a lei que a falsa representação intelectual da realidade tenha sido decisiva para a realização do ato. Se o agente contrata os serviços de uma pessoa, pensando tratar-se de outra, que é especialista, caracteriza-se uma das hi póteses. Se “A”, após breve namoro, casa-se com “B”, convencido de que se trata de pessoa de reputação ilibada, mas logo descobre antecedentes cri minais, verifica-se igualmente error in persona quanto à qualidade essen cial. Nos dois exemplos, o agente não teria praticado o negócio jurídico se conhecesse, respectivamente, a identidade da pessoa contratada e o passa do comprometedor da pessoa com quem convolou núpcias. Para que o error iuris se caracterize como substancial, caracterizan do, destarte, a anulabilidade, impõe a lei dois requisitos: a) não constituir recusa à aplicação da lei; b) for o único motivoou a razão principal do ne- gócio jurídico. O conhecimento da lei, especialmente por parte de quem mantém práticas negociais, constitui um dever jurídico e social, destacado no art. 3° da Lei de Introdução ao Código Civil: “Ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece ”. E foi em razão de tal princípio que o Código Bevilaqua não previu o error iuris}1 A doutrina distingue, to davia, ignorância de erro de Direito. Desnecessária, por outro lado, a res salva do dispositivo quanto a possível propósito de recusa à aplicação da lei, pois, havendo esta, não pode existir erro. Na prática o error iuris pode pregando uma diligência normal. O contrário levaria à solução iniqua de que é licito aproveitar-se do erro sofrido por outro”. Op. cit., vol. II, p. 54. 25 Relativamente à qualidade essencial da pessoa, a Revista dos Tribunais, 676/149, re produz o seguinte acórdão: “Anula-se o casamento por erro essencial de pessoas, se comprovado ficou que a mulher, no casamento, desconhecia ser, o marido, portador de esquizofrenia transmissível por herança genética à descendência ”. Cf. in Nélson G. Bassil Dower, op. cit., vol. 1, p. 236. 26 O Código Civil de 1916 não previa o error iuris, fato que ensejou divergências doutri nárias. Enquanto Clóvis Beviláqua não admitia a figura, Carvalho Santos e Caio Mário da Silva Pereira se posicionavam diferentemente. 27 O Código Civil paraguaio, por seu art. 285, nivela o erro de direito nas declarações de vontade à ignorância da lei, não considerando-o motivo de anulação de negócio jurídi co. No mesmo sentido é o art. 1.270 do Código Civil uruguaio. Curso do Direito Civil - Pune Geral 47« caracterizar-se de vários modos. O agente que pratica o ato negociai partin do do conhecimento de uma regra geral, mas desconhecendo a existônoin de uma específica, interpreta erroneamente o jus positum, O erro há de ler significado especial para o agente que nele incorre, constituindo o único motivo ou na razão principal da prática negociai. Para a caracterização de um erro essencial, a Lei Civil não exige que as partes façam declaração neste sentido. Relativamente ao erro acidental, este somente inquinará o negócio jurídico se expresso como razão determi nante daquela prática. De ordinário, o erro acidental não leva à anulaçSo, isto porque diz respeito apenas a componentes secundários do ato. Se al guém, por exemplo, encomenda um quadro de Portinari e a vontade decla rada não coincide com a vontade real quanto à cor da moldura, ter-se-á tão-somente um erro acidental, incapaz, por si só, de invalidar o ato de compra, salvo se a cor tenha sido objeto de cláusula contratual. Uma vez caracterizado o erro, essencial ou acidental, produzirá os efeitos de lei, não importando se a declaração de vontade tenha sido mani festada diretamente ou por núncio, carta convencional, telegrama, e-niail ou por outros meios similares e a mensagem, por equívoco, tenha chegado truncada ao destinatário. É a previsão do art. 141 da Lei Civil: “A transmis são errônea da vontade por meios interpostos é anulável nos mesmos ca sos em que o é a declaração direta”.2* É preciso que o divórcio entre a vontade real e a declaração de vontade seja decorrência de mero acaso na transmissão por parte do núncio ou dos meios mecânicos, não configuran do se o intermediário propositadamente altera os dados da declaração.29 A figura prevista no art. 140 da Lei Civil corresponde à da pressupo sição, que foi objeto de estudo no capítulo anterior. Refere-se ao motivo determinante da vontade real. Esta se formou pressupondo verdadeira uma determinada realidade falsa. Como regra geral a pressuposição não integra o rol dos vícios de consentimento e somente pode ser causa de anulação de negócio jurídico se o motivo ficou consignado como razão de ser do negó cio jurídico. O art. 142 é típico de interpretação de ato negociai. Indiretamente dis põe que é possível apurar-se a vontade real dos declarantes desprezando-se a 28 Note-se a imperfeição do texto, que situa a "transmissão errônea da vontade por meios interpostos ", como anulável, quando na realidade anulável é o ato praticado naquelas condições. 29 Conforme pensamento de Eduardo Espínola, apudFrancisco Amaral, op. cit., p. 487. 480 Paulo Nader literalidade em prol do contexto e das circunstâncias do ato. À lei se refere apenas à identificação da pessoa e da coisa, mas é possível aplicar-se tal cri tério hermenêutico na exegese plena da declaração de vontade das partes. Após figurar em vários anteprojetos que antecederam o Código Bevi- láqua, este não incluiu o chamado erro de conta ou de cálculo, que é aci dental, vindo a figurar em nosso ordenairiento apenas com o Código Civil de 2002, ex vi de seu art. 143: “O erro de cálculo apenas autoriza a retifi cação da declaração de vontade”: Por ele, o agente que laborou em erro poderá retificar a sua declaração. A retificação unilateral de conta ou de cálculo, todavia, deve ocorrer apenas em situações de erro ostensivo. No Direito Comparado tal disposição se acha no art. 24 do Código Civil suíço e art. 249 do Código Civil português.31 Pelo art. 144, importante inovação foi introduzida no instituto dos ne gócios jurídicos e que obstaculiza a anulação do ato. Se a parte que não in cidiu em erro se oferecer para realizar o negócio jurídico de acordo com a vontade real de quem errou, o ato negociai defeituoso deixa de ser anulá- vel. Observe-se que para ocorrer a perda de anulabilidade o ato negociai não precisa chegar a ser refeito, bastando que o interessado tenha se ofere cido para a sua realização. Se a oferta não for aceita o ato negociai perma necerá válido. Discute-se, doutrinariamente, se o contratante, prejudicado pela anula ção do negócio jurídico por erro da outra parte, teria direito à indenização. A opinião prevalente, segundo Enneccerus, é no sentido positivo, ainda que o • • • •# T ' • tdeclarante haja incorrido em culpa in contrahendo. A vista da inovação trazida ao nosso Direito pelo art. 138 do Código Civil, tal indenização não te ria qualquer cabimento, pois a anulação depende de culpa da parte que não incorreu em erro. E como é cediço em Direito, ninguém pode tirar vantagem de sua própria torpeza (nemo auditur propriam turpitudinem allegans). Além de formular as regras gerais aplicáveis em matéria de erro e ig norância, o Código Civil considerou a incidência deste vício em alguns ins 30 V. in Clóvis Beviláqua, Comentários ao Código Civil, vol. 1, ed. cit., p. 272. 31 No Código Civil suíço: " Art. 25... Os simples erros de cálculo não impedem a valida de do contrato; devem, porém, ser corrigidos. ” E no Código Civil português: "Art. 249. O simples erro de cálculo ou de escrita, revelado no próprio contexto da declara ção ou através das circunstâncias em que a declaração é feita, apenas dá o direito à retificação desta u. No Código Seabra tal disposição constava do art. 665. 32 Ludwig Enneccerus, op. cit., vol. 2o, p. 205. Curso de Direilo Civil •** Parto Ocrai 481 titutos jurídicos. Assim é que, após considerar anulável o casamento celebrado em que houve erro essencial na declaração quanto à pessoa do outro cônjuge (art. 1.556 do CG), o Código Civil enumera as hipóteses ca- racterizadoras.33 Pelo art. 1.903 o diploma legal declara anulável a disposi ção do testamento em que houve erro na designação do beneficiário ou na indicação do bem. No mesmo artigo orienta o intérprete quanto à interpre tação do ato negociai, visando a revelação da vontade real do declarante. O art. 1.909 declara anulável a disposição testamentária decorrente de erro, dolo e coação. Ao dispor sobre a prova dos negócios jurídicos, a Lei Civil (art. 214) prevê que a confissão é irrevogável, mas considera anulável se decorrente de erro de fato ou de coação. A transação é passívelde anulação, entre ou tros motivos, por erro essencial quanto à pessoa ou coisa controversa. E a disposição do art. 849, cujo parág. único veda a anulação por erro de direito quanto a “questões que foram objeto de controvérsia entre as partes ”. O art. 869 não considera relevante o erro em que incide o gestor de negócios ao dar as contas a outra pessoa, subsistindo os seus direitos se o negócio foi utilmente administrado. 135. Dolo 135.1. Conceito. Consiste o dolo em artifícios ou manobras de uma pessoa visando a induzir outra em erro a fim de tirar proveito para si ou para terceiro. E prática desonesta de que se vale maliciosamente alguém preten dendo a realização de um ato negociai vantajoso. Ao declarar a sua vontade sob o efeito de dolo o agente incide em erro, o qual, por si só, constitui vício de consentimento, mas na classificação do fato prevalece o dolo que abran ge, conceptualmente, o erro; é a sua causa. As duas espécies - erro e dolo - , todavia, não se confundem, pois enquanto no erro o equívoco se forma es pontaneamente, no dolo ele é induzido. Dolo é ardil para provocar o erro de alguém na formação de sua vontade ou na declaração. Pode acontecer de o agente atuar, dolosamente, visando a formar a consciência da parte, "a sua cabeça ”, levando-a a erro. Na palavra de Colin et Capitant “dolo supõe manobras fraudulentas, manipulações, afirmações falazes empregadas para provocarem o erro em uma pessoa e determiná-la a executar um ato 4 33 A disposição do art. 1.556 do CC é despicienda, à vista do disposto no art. 171, II. 34 Colin et Capitant, op. cit., p. 182. 482 Paulo Nader Para a plena caracterização do dolo como vício é essencial que o agente que incide em erro desconheça o fato no momento em que declara o seu consentimento. Se antes de assinar o termo de contrato o deceptus vem a se cientificar da ocorrência e, não obstante, manifesta a sua vontade, des caracteriza-se o dolo como vício de consentimento. O declarante não pode rá alegar tal fato, posteriormente, como causa para anulação do negócio jurídico. O dolo invalidante deve ser anterior à declaração. Se posterior, não terá o condão de anular o ato negociai, pois a vontade declarada já é in- tangível. Pontes de Miranda retrata a hipótese de dolo posterior, mas como novo fato jurídico capaz de ensejar reparação por danos: “Dolo pos terior ou é ato ilícito relativo (e.g. arts. 1.057 e 1.060), ou absoluto (art. 159), com a conseqüente irradiação de efeitos (prestação de perdas; repa ração de danos) ”.36 Marcos Bemardes de Mello exemplifica dolo poste rior. "... se aquele que contratou vender a casa mobiliada lhe retira parte ou todos os móveis... ”.37 Não apenas os atos bilaterais são suscetíveis de tal vício de consenti- 9 mento. E possível a sua ocorrência também nos atos unilaterais, como nos testamentos, e ainda nos plurilaterais. Quanto a estes, há distinções a se rem feitas. O negócio jurídico poderá ser, total ou parcialmente, defeituoso. Se apenas uma das partes, ou um terceiro em seu favor, agiu maquiavelica mente, deturpando a vontade, ou a declaração desta, de tal forma que o agente não praticaria o ato em seu todo em condições normais, o negócio jurídico estará contaminado por inteiro, salvo quanto a possíveis outras re lações jurídicas independentes e relativas às demais partes entre si.38 O pensamento de Emílio Betti é também neste sentido: ‘No contratoplurila- teral, o dolo adquire transcendência jurídica entre as partes do ato ilícito, mas não em relação à outra ou outras partes que têm permanecido estra nhas... ”.39 35 Neste sentido, v. Marcos Bemardes de Mello, in Teoria do Fato Jurídico - Plano da Validade, 5a ed., Editora Saraiva, 2001, p. 133. 36 In Tratado de Direito Privado, ed. cit., p. 327. 37 Op. cit., p. 133. 38 O art. 1.420 do Código Civil italiano prevê a hipótese de anulabilidade no contrato plu- rilateral: “...a nulidade que ferir o vinculo de uma só das partes não importa em nuli dade do contrato, a não ser que a participação desta seja, de acordo com as circunstâncias, considerada essencial ”. O art. 1.446 também contém disposição perti nente à matéria. 39 Emílio Betti, op. cit., p. 342. Curio do Direito Civil - Parto Geral Para a exata compreensão do conceito é necessária a distinção entre o dolus bonus e o malus. O primeiro é inofensivo e já incorporado às práticas do comércio em geral. É o vezo de supervalorizar a coisa colocada à venda ou às condições do negócio. A publicidade, especialmente a veiculada pe los canais de televisão, enaltecendo a qualidade do produto, tem o poder de induzir o ato de compra. O exagero na propaganda, todavia, tem o seu limi te, podendo configurar a chamada publicidade enganosa, quando transmite dados falsos, por inteiro ou parcialmente, quanto à natureza, característi cas, qualidade, quantidade, propriedades, origem, preço, entre outros. A publicidade enganosa pode caracterizar-se também por omissão de infor mações relevantes sobre os produtos ou serviços. É o que dispõe o art. 37 do Código de Proteção do Consumidor (Lei n° 8.078/90). O dolus bonus não compromete a validade do ato jurídico-negocial, uma vez que geral mente corresponde às expectativas do consumidor. A distinção entre o do lus bonus e o malus deriva do Direito Romano.40 O dolo capaz de invalidar o negócio jurídico é o malus, que se reveste de gravidade, pois o agente não se limita a valorizar o seu produto ou servi ço, mas desenvolve argumentações, dissimula, vale-se de informações não verdadeiras e às vezes de sutilezas para surpreender o incauto, levando-o a participar de um ato negociai que, em circunstâncias normais, não o prati caria. Se, do ponto de vista teórico, não há dificuldade na distinção entre ambas classes, os casos concretos podem oferecer dúvidas quanto à classi ficação, devendo o julgador analisar as peculiaridades do fato, bem como os usos e costumes da região. Para Emílio Betti o critério de delimitação entre o dolo ilícito e a picardia lícita “se deduz das idéias dominantes, para uma sociedade como a atual, na prática comum do comércio O critério é contingente e variável, pois depende da consciência social41 Penso que, não obstante o esforço do juiz, se a dúvida persistir, haverá de se reconhe cer a presença do dolus bonus, uma vez que dolo não se presume, devendo ser devidamente comprovado para prevalecer na decisão. Conforme Aubry et Rau, o dolo “doit être clairement établV\ pois é sempre suscetível de ser provado por todos meios de prova juridicamente permitidos.42 40 V. in José Carlos Moreira Alves, Direito Romano, vol. I, ed. cit., p. 176. 41 Emilio Betti, Teoria General dei Negocio Jurídico, Madrid, Editorial Revista de Dere- cho Privado, s/d, p. 339. 42 C. Aubry et C. Rau, in Cours de Droit Civil Français, 4a ed., Paris, Marchai, Billard et Cie., Imprimeurs-Éditeurs, 1871, tome quatrième, p. 304. O art. 1.116, in fine, do Có digo Napoleão dispõe que: "O dolo não se presume e deve ser provado 4 Paulo Nudcr 135.2. Dados contingentes na definição de dolo invalidante« Para alcançar o preciso conceito de dolo invalidante, o jurista Marcos Bemar- 58 de Mello 3 relaciona alguns dados realmente desinfluentes à caracteri- çflò daquela espécie de vício de consentimento: I 135.2.1. Parte do ato em que o erro recai. Se o erro se refere a todo o ígôçio ou a parte dele isto é irrelevante à caracterização do dolo invalida- !p pois 0 importante a constatar é se o ato seria realizado se o agente não s$e .enganado. 135.2.2. Meios utilizados. Não é significativo o recurso empregado vi ndo a iludir, o importante é que o meio adotado seja eficaz, levando o agente )raticar o negócio jurídico com uma falsa representação da realidade. 135.2.3. Esçusabilidade. Não se exige que o erro seja escusável, isto que não possa ser percebidofacilmente no padrão vir medius. O relevan- é que tenha havido nexo de causa e efeito entre a manobra do declaratá- a e o erro cometido pelo deceptus. 135.2.4. Capacidade delitual. O autor da ação dolosa pode ou não ser nalmente capaz. jjj, 135.2. 5. Autoria pelo diretamente beneficiado. Não é essencial que a ir).obra ardilosa tenha sido aplicada por quem participa do ato. Basta que lha sido por terceiro e que um participante do negócio dela tivesse prévio líhecimento e se omitido. O negócio não será anulável, mas o terceiro 'á, passível de ser acionado por perdas e danos. ' 135:2.6. Intenção de causar dano e a ocorrência de dano. O essencial arácterização do vício de consentimento é a intenção de induzir em erro, Ò a ae causar prejuízo. Também não é necessário que haja prejuízo para o ieptUs. Neste sentido é o pensamento de Carvalho Santos, para quem 2$ta que o artifício tenha sido empregado para induzir a pessoa a efe- i r urh negócio jurídico, o que não seria conseguido, na convicção do ente do dolot de outra maneira Clóvis Beviláqua inclui um duplo ípósito do autor do dolo: o de prejudicar o que incide em erro e ao mes- > tempo de beneficiar-se. 5 In op. cit., p. 133. hl, Código Civil Brasileiro Interpretado, ed. cit., vol. II, p. 329. In Comentários ao Código Civil, ed. cit., vol. 1, p. 273. Curso de Direito Civil - Parte Oeral 485 135.3. Induzimento a erro sem dolo. A figura em estudo pressupõe intenção, má-fé, que induz o declarante à pratica do ato. Pode ocofrer, toda via, que tal induzimento pelo declaratário do ato ou por terceiro, ciente o primeiro, não tenha ocorrido maliciosa e astuciosamente, mas incidindo concomitantemente em erro. Assim, um marchand, na crença de que um quadro é de autoria de Di Cavalcanti, convence o cliente a adquiri-lo è, pos teriormente, ambos verificam que se tratava de falsificação. Tal fato não caracteriza dolo, mas apenas erro. O negócio jurídico é passível de anula ção tanto quanto ocorresse por dolo. Se fora este o vício caberia ainda uma ação de indenização por perdas e danos. Esta é a diferença de natureza prática quanto aos efeitos jurídicos de ambas espécies. Nota-se, portan to, maior gravidade no dolo em relação ao erro. Neste mesmo sentido a ob servação de Carlos Alberto da Mota Pinto: “Só existirá dolo, quando se verifique o emprego de qualquer sugestão ou artifício com a intenção ou consciência de induzir ou manter em erro o autor da declaração...”,4 Entre outros elementos que considera essenciais à caracterização do dolo invalidante, Marcos Bemardes de Mello inclui “A intenção de induzir, re forçar ou manter o outro figurante em erro. Não há dolo se não há intenção de provocar ou estimular o engano ”. 135.4. Dolo principal ou essencial e dolo acidental. Diz-se princi pal ou essencial o dolo (<dolus dans causam contratuí) que é a razão deter minante da prática do ato negociai. Se o agente não fosse enganado, estando ciente, pois, da realidade dos fatos, não teria declarado o seu con sentimento ou, se o tivesse, não seria com igual conteúdo. Para a caracterização da espécie são necessários quatro requisitos: a) que a intencional forma de atuação sobre a vontade do declarante, visando a enganá-lo, tenha sido a causa que o levou à prática do ato negociai; b) que a ação enganosa tenha sido desenvolvida pelo parceiro do negócio jurídico ou por terceiro, desde que aquele tivesse ciência e se omitido; c) gravidade do método empregado, seja pelo enredo ou pelos artifícios empregados; d) re lação de causalidade entre a manobra enganosa e a declaração de vontade.48 Bem ilustrativo é o acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, que reconheceu a presença de dolo essencial 46 Op. cit., p. 397. 47 Op. cit., p. 132. 48 Cf. Antônio Chaves, in Enciclopédia Saraiva de Direito, vol. 29, p. 276. 486 Paulo Nader cm uma prática bancária: “Se a parte, em confiança, firma com estabeleci mento bancário contrato visando a liquidar dívida de terceiro, a tanto con vencido pelo gerente da própria instituição que não informa as exatas conseqüências do negócio, emerge o dolo civil, caracterizado pelo erro em quo induziu o contratante que, ciente da amplitude da relação, não assinaria o contrato”.49 No enunciado do acórdão encontram-se todos os elementos ne cessários à caracterização do vício de consentimento: a) Desinformação inten cional, em lugar de esclarecimentos sobre a largueza das responsabilidades assumidas pelo declarante; b) erro em que incidiu o declarante; c) não fora a desinformação e o declarante não teria praticado o ato; d) relação de causa e efeito entre a desinformação intencional e a declaração de vontade. 0 O dolo chamado acidental (dolus accidens) também atua diretamente na formação da vontade, mas para determinar apenas certas condições do ato. O agente se utiliza de expedientes escusos, a fim de obter vantagem ou simplesmente para prejudicar o declarante, induzindo-o a aceitar determi nadas cláusulas secundárias do negócio jurídico. Embora não tenha o con dão de anular o ato, pode ensejar ação dc reparação de danos sofridos.51 O denominador comum entre o dolo principal e o acidental, conforme Trabucchi, “é que em ambos casos se requer uma relação de causalidade entre o engano e o consentimento ”.52 135.5. Dolo comissivo e dolo negativo. O vício de consentimento, ora em estudo, pode caracterizar-se mediante ação (dolo comissivo ou posi tivo) ou por omissão do agente (dolo negativo ou omissivo). 49 Apelação cível n° 599398096, em que foi relator o Des. Ilton Carlos Dellandrea. Julga mento realizado em 04.11.99. 50 Em recente acórdão o Superior Tribunal de Justiça anulou contrato de cessão de direi tos hereditários, reconhecendo que os cedentes, analfabetos, foram induzidos a erro: "Caso em que irmãos analfabetos foram induzidos à celebração do negócio jurídico > através de maquinações, expedientes astuciosos, engendrados pelo inventarian- te-cessionário. Manobras insidiosas levaram a engano os irmãos cedentes que não ti nham, de qualquer forma, compreensão da desproporção entre o preço e o valor da coisa. Ocorrência de dolo, vício de consentimento ”, 4a Turma do STJ, Rei. Min. Bar- ros Monteiro, RESP 107961/RS, julgamento em 13.03.2001. 51 V. in Amoldo Wald, op. cit., p. 203. 52 Apud Luis Rojo Ajuria, El Dolo en los Contratos, Ia ed., Madrid, Editorial Civitas, S. A., 1994, p. 159. Curco dc Direito Civil » Parto Geral 487 135.6. Regras do Direito Civil sobre o dolo 135.6.1. Anulabilidade do ato negociai por doloso induzimento a erro. O dolo essencial toma o negócio jurídico anulável, a teor do art 145 do diploma legal. A solução legal é justa e se acha em harmonia com a dou trina e o Direito Comparado. A lei deixa ao critério do declarante a iniciati va para a invalidação do ato. Pode ser que este, consultando os seus interesses, prefira reconhecer o ato e deixar escoar o prazo decadencial de quatro anos. No desenrolar da ação judicial o declarante deverá provar: a) a má-fé do declaratário, ao induzi-lo em erro; b) que praticou o ato com falsa representação da realidade; c) que não praticaria o ato sob aquelas condi ções se não agisse com erro; d) que o erro em que incidiu foi causado pela ação ou omissão enganosa do declaratário. 135.6.2. Dolo acidental e seus efeitos jurídicos. Do latim accidenta- lis9 a palavra é empregada em oposição a substancialis. A primeira se refe re a dado meramente contingente, enquanto que a segunda diz respeito ao conteúdo essencial da coisa. Dolo acidental (dolus incidens) é o que recai sobre aspectos secundários, acessórios do negócio e que, por não se reves tir dc gravidade, não levaria o agente a desistir do ato negociai se conheces se previamente a realidade, embora pudesse fazê-lo de modo diverso. O art. 146 da Lei Civil dispõea respeito, estabelecendo não a invalidade do ato, mas o direito de indenização por perdas e danos. “A” adquire de “B” uma empresa de elevado valor e constata, posteriormente, que um dos veículos não pertencia ao patrimônio como “B” asseverara, mas a terceiro. In casu, constatada a prática de dolo acidental o negócio jurídico não será anulável, mas ao adquirente assistirá o direito de postular em juízo o ressarcimento do dano material. O dolo acidental não é considerado vício de consenti mento e nem o fato motivador do contrato. 135.6.3. Silêncio intencional. O legislador não confiou à doutrina o conceito de dolo negativo ou por omissão, dispondo a respeito ex vi do art. 147 do Código Civil. Enquanto que no dolo positivo ou comissivo a inten ção de enganar se consubstancia em ações objetivas, quando se utilizam de argumentos, mentiras, no dolo negativo ou omissivo o seu autor deixa de prestar informações relevantes sobre o negócio, fazendo o deceptus, ao de clarar o seu consentimento, crer em uma situação que não confere com a re alidade. O autor da ação dolosa omite um dado relevante do negócio. A Lei situa o silêncio intencional em negócio jurídico bilateral, quando a mano bra se dá por parte do declaratário em face do declarante. A previsão é para o dolo principal, quando o agente enganado possui o ônus de provar, por todos os meios juridicamente permitidos, que o ato não se realizaria se lhe fosse dado conhecer a realidade. 488 Paulo Nader 135.6.4. Dolo de terceiro. Quando o declarante é induzido por tercei ro a erro ao praticar o ato negociai, prevê o art. 148 do Código Civil duas si tuações distintas e que produzem efeitos jurídicos também distintos. Se o declaratário tinha conhecimento da ação dolosa ou pelo menos deveria co nhecê-la, o negócio jurídico assim praticado é anulável. Pensamos, toda via, que é indispensável ccrtificar-se sobre a natureza do dolo: se principal òu Se acidental. A conseqüência legal se refere apenas à primeira espécie. Se o dolo for acidental o efeito jurídico deverá ser apenas o de ressarcimen to por perdas e danos. Estando o declaratário isento de culpa em relação à manobra enganosa de terceiro, prevê a Lei Civil ação de perdas e danos contra o terceiro, caso o negócio jurídico não seja espontaneamente desfei to pelas partes. 135.6.5. Dolo por representante de parte. Quando a ação dolosa é praticada por representante, a Lei distingue as duas espécies de representa ção: a legal e a convencional, prevendo efeitos distintos para ambas. Em se tratando de dolo praticado por tutor, curador, pais, o representado só res ponde civilmente até o valor correspondente ao seu proveito. Na hipótese de representante convencional, diz o art. 149 da Lei Civil que o representa do responderá solidariamente com o autor por perdas e danos. 135.6.6. Dolo recíproco. Cogita a Lei Civil, finalmente, sobre a pos sibilidade de ambas as partes atuarem dolosamente na prática negociai, uma induzindo a outra em erro. Prevê o art. 150 que nenhuma poderá alegar o dolo da parte contrária visando a anulação do ato, nem pretender indeni zação por perdas e danos. A Lei não é expressa, mas a doutrina entende que a prescrição abrange tanto o dolo positivo quanto o negativo, o dolo princi pal e o acidental. Havendo reciprocidade, dá-se, portanto, uma compensa ção entre as ações dolosas (dolus inter utramque partem compensãtur). A solução brasileira para o dolo bilateral diverge da estabelecida no Código Civil de Portugal, de 1966, ex vi de seu art. 254: "... a anulabilidade não é excluída pelo facto de o dolo ser bilateral 135.7. Dolo e figuras jurídicas semelhantes. A palavra dolo é em pregada em várias acepções na linguagem jurídica. É um termo análogo ou analógico, pois se refere a sentidos que guardam entre si alguns pontos de contato: O principal deles é a má-fé que rege a conduta de quem exercita a dòlosidade, seja no âmbito civil ou criminal. Na primeira esfera é emprega do como vício de consentimento, què tem por conseqüência a anulabilida de do ato negociai. Nesta acepção é referido por dolo principal ou Curso de Direito Civil - Parte Geral 489 essencial. Ainda no âmbito civil dolo significa ato ilícito, que é praticado visando a induzir a erro o declarante de ato negociai, relativamente a dados secundários do negócio e por isto mesmo provoca apenas o ressarcimento por perdas e danos. O dolo pode estar presente também na prática do ato ilí cito em sentido estrito, previsto no art. 186 do Código Civil. Tal espécie de fato jurídico pode ser praticado também com culpa stricto sensu, que com preende a imprudência, a imperícia e a negligência. O elemento objetivo consiste em violar direito e causar dano a outrem. Genericamente, no campo do Direito Penal, dolo é elemento subjeti vo da ação criminosa. Na definição do art. 18 do Código Penal, age dolosa mente quem pratica uma conduta com vontade de praticar o crime ou assume o risco de produzi-lo. Conforme Miguel Reale Júnior enfatiza, "... relevante para o Direito Penal é a vontade da ação típica, pois a lesão ao bem jurídico pode ocorrer e o fato ser indiferente O dolo, presente na figura típica do estelionato, se assemelha ao dolo civil. A fraude é pratica da com intencionalidade, visando a tirar proveito para si ou para outrem. Como no dolus malus, a conduta do agente é maliciosa, visando a induzir ou a manter a vítima em erro. No estelionato faz parte do tipo a intenção de se obter vantagem ilícita em prejuízo de alguém, enquanto que no dolo o nú cleo conceptual consiste em induzir alguém em erro a fim de declarar o con sentimento em ato negociai que em condições normais não praticaria.54 135.8. Direito Comparado. O Código Napoleão conceitua o dolo principal, de acordo com a doutrina atual, em seu art. 1.116 e prevê, no dis positivo seguinte, a sua anulabilidade.55 A legislação alemã - BGB - tam bém dispôs apenas sobre o dolo principal e, concentradamente no art. 123, prevendo igual conseqüência à do Código Civil francês: a anulabilidade do ato negociai.56 O Código Federal suíço, èx vi de seu art. 28, vai mais longe e 53 In Instituições de Direito Penal, Parte Geral, Ia ed., Rio de Janeiro, Cia. Editora Foren se, 2002, vol. I, p. 218. 54 V. Marcos Bemardes de Mello, op. cit.f p. 139 55 Dispõe o art. 1.116: "O dolo é causa de nulidade da convenção quando os artifícios praticados por uma das partes forem tais que é evidente que, sem esses artifícios, a ou tra parte não teria contratado. O dolo não se presume e deve ser provado ”. 56 Diz a primeira parte do extenso dispositivo do Código Civil alemão: "Quem fo r levado a enunciar uma declaração de vontade por engano doloso ou, antijuridicamente, por ameaça, poderá impugnar a declaração... ”. 490 Paulo Nader para considerar anulável o ato negociai ainda na ocorrência do dolo aciden tal: “Se um contratante, por parte do outro, fo r induzido à conclusão de um contrato por engano intencional, não será o contrato, para ele, obrigató rio, mesmo quando o erro resultante não fosse essencial”. Tanto o Código alemão quanto o suíço se referem ainda a hipótese de a ação dolosa partir de terceiro. O critério de anulabilidade está em harmonia com a previsão do Código Civil brasileiro. O Código Civil português, ao conceituar a figura do dolo, não distingue o principal do acidental (art. 253), apresentando a solução genérica de anulabilidade do ato, aplicável também para os casos de dolo recíproco (art. 254). O Código Civil italiano se mostra também har mônico com o Direito brasileiro: a) distingue dolo principal (art. 1.439) de dolo acidental (art. 1.440); b) prevê a anulabilidade para o dolo principal e reparação por perdas e danos em relação ao dolo acidental. 135.9. Avaliação crítica dos sistemas. Prima facie , o critério brasi leiro de estabelecer diferentesefeitos jurídicos para dois níveis de gravida de se apresenta como justo e ao mesmo tempo prático. De fato, a previsão de anulabilidade para o dolo principal e de indenização por perdas e danos em face do dolo acidental se apresenta, em princípio, como solução equâ nime. No primeiro caso, o declarante que incorreu em erro é quem avaliará da conveniência ou não de requerer a anulação do ato negociai. No segun do, cabível tão-somente a reparação por perdas e danos. Embora o sistema pátrio não se manifeste neste sentido, penso que ao deceptus não se poderá negar, havendo o dolo principal, a opção pela repa ração por perdas e danos, mantido o vínculo existente, pois, no caso con creto, a anulação poderá apresentar efeito penalizador. Outro aspecto que ressalta é a dificuldade, em muitos casos, de se distinguir, na espécie, se ocorreu o dolo principal ou o acidental. Se o pedido judicial for o de desfa- zimento do negócio e o juiz se convencer que a ocorrência foi a de dolo aci dental ou vice-versa? Há que se permitir o pedido alternativo ou a fungibilidade das ações. Conforme observa Luis Rojo Ajuria, há situações am bíguas e de difícil definição. Razão assiste a Josserand, quando conclui que: “por força das coisas, a distinção do dolo determinante e do acidental toma o aspecto de uma questão de fato, submetida à apreciação dos juizes”?1 57 Cf. in Luis Rojo Ajuria, El Dolo nos Contratos, op. cit., p. 177. Curso do Direito Civil ~ Fârto Geral 491 136. Coação A coação prevista como vício de consentimento é a moral, vis com pulsiva, e não a coação física ou vis absoluta, pois esta simplesmente anula a vontade e um ato praticado nesta última circunstância é ato inexistente, radicalmente nulo. Se alguém, por exemplo, manu militari, apõe a impres são digital de uma pessoa em termo de contrato ou segurando a sua mão a faz assinar, ter-se-á coação física. Entre os artigos 151 e 155 o Código Civil dispôs sobre a coação moral como vício de consentimento. 136.1. Conceito. Coação é pressão de ordem moral, psicológica, que se faz mediante ameaça de mal sério e grave, que poderá atingir o agente, a membro da família ou à pessoa a ele ligada ou, ainda, ao patrimônio, para que a pessoa pratique determinado negócio jurídico. Em termos simples “é constrangimento injusto para a obtenção de um ato ”, conforme expõe Tito Fulgêncio. Tal animus inquina o ato negociai de vício de consentimento, tomando-o anulável, uma vez que a vontade declarada não corresponde à vontade real ou verdadeira. A declaração é expressa sem convicção, apenas por temor e para que o agente se livre do forte constrangimento. A hipótese não é de medo, porque este, por mais forte que seja, não configura vício de consentimento. Conforme o civilista Orosimbo Nonato, “O medo, em si, por intenso que seja, desconstitui defeito do ato jurídico se não deriva de pressão brutal e injusta desenvolvida por vontade estranha armada para tomar o consentimento do agente ”.5 Na comparação de Flour e Jean-Luc Aubert, enquanto o erro e o dolo atingem o consentimento em seu elemen to intelectual, a vis compulsiva atinge o consentimento em seu elemento de liberdade...”.60 Em Roma, o Jus Civile não considerava a coação um vício de consen timento, partindo da presunção de que se o coato praticou o negócio foi porque assim o quis, do contrário teria resistido (quamvis si liberum essea noluissem, tamen coactus voluit), daí o entendimento generalizado de que os negócios jurídicos assim realizados não seriam suscetíveis de anulação. A coação, tanto quanto o dolo, não teria relevância na formação dos atos negociais. Foi o Direito pretoriano quem reconheceu a invalidade dos atos 58 Apud Orosimbo Nonato, Da Coação como Defeito do Ato Jurídico, ed. cit., p. 111. 59 In Da Coação como Defeito do Ato Jurídico, op. cit., p. 119. 60 Jacques Flour et Jean-Luc Aubert, in Les Obligations - L 'acte juridique, 8a ed., Paris, ArmandColin, 1998, vol. l ,p . 149. obediência não é força irresistível, capaz de violentar a vontade. Se al guém, todavia, valendo-se desta relação acrescenta ainda ameaça de um mal grave, o negócio jurídico fica maculado e passível de anulação. Nicolas Coviello questiona a hipótese de alguém, necessitando de ajuda em face de perigo criado por acontecimentos naturais, como incên dio, inundação, ou por ação de pessoas, como um bando de ladrões, con sente em praticar ato negociai com quem lhe presta socorro. Se a matéria for analisada em face do Direito pátrio pode gerar duplo posicionamento. O art. 151, que define o vício de consentimento, tem por núcleo a coação como fator que incute temor de dano. Nas hipóteses conjeturadas não há um elemento coator impondo a prática do negócio jurídico. O homo juridi- cus formalista, adepto do pensamento positivista, certamente excluirá a ca racterização, uma vez que o fato não possui a tipicidade da lei. É indubitável que o declarante não expressou a sua vontade real e que, em condições normais, não realizaria o ato negociai. O declaratário, ciente das condições psicológicas do declarante, foi nada escrupuloso, benefician- do-se do infortúnio e assumindo atitude contrária à moral. O negócio jurí dico será inválido, à vista do disposto no art. 104, II, da Lei Civil, uma vez que é contrário a moral. É de se notar que a hipótese apresentada não se en quadra nas figuras do estado de perigo e nem da lesão, que são dois novos vícios de consentimentos trazidos pelo Código Civil de 2002. 136.2.2. O bem ameaçado. Este deve ser relevante. Se de ordem pa trimonial, logicamente o bem ameaçado deverá ser de valor superior ao do negócio a ser feito. Assim, se “A” propõe obter um empréstimo junto a “B” por valor determinado e sob a ameaça de desaparecer com o carro de “B”, que se acha em seu poder e corresponde à metade do valor pretendido, não se poderá qualificar como grave a ameaça. O alvo da ameaça pode ser a pessoa do declarante ou algum membro de sua família ou, ainda, indiyíduo de sua ligação. Creio que o bem ameaçado pode ser qualquer um, desde que tenha importante significado para o declarante. Se este possui uma devoção profunda por uma determinada imagem religiosa e o elemento coator explo ra tal fato, impondo ao coato a prática do ato negociai sob pena de destruir aquele bem, ter-se-á a vis compulsiva. Ao praticar o ato o declarante estará premido por uma forte ameaça. Ao pleitear judicialmente a anulação o coato terá o ônus de provar: a) a ameaça; b) o significado da imagem em sua vida; c) que a única causa da declaração de vontade foi a ameaça sofrida. 67 Op. cit.y p. 429. Curso de Direito Civil > Parto Gcrul 49S 136.2.3. Declaração de consentimento em ato negociai. A declara ção, sob coação moral, é um ato viciado de vontade. Esta não se expressa espontânea, livre, acorde com a vontade real, verdadeira, do declarantc, Este declara o que não quer, mas por se achar premido diante de uma alter nativa que lhe parece mais grave. Ao declarar, o agente opta pelo sacrifício que lhe parece menor. Na palavra do jurista Massimo Bianca “La violenza è la piü grave forma di lesione delia libertà negoziale , 136.2.4. A grave ameaça como única causa para a declaração de consentimento. A caracterização do vício de consentimento exige que a grave ameaça seja a única causa da realização do ato negociai. A relação entre a ameaça e a declaração deve ser de causa e efeito. Se, independente da ameaça, o ato fosse realizar-se nas mesmas con dições, ocorrendo, com a coação moral, apenas a antecipação do aconteci mento, ainda assim a vontade foi viciada, porque naquele momento o agente não queria praticá-la. Em situação como esta, todavia, a solução mais equânime seria a de se abrir uma alternativa para o declarante: a anu lação do ato ou o pleito indenizatório. Ambas situações, todavia, devem ser justificadas.Para a anulação o declarante haverá de patentear a inconve niência da prática do ato negociai no momento em que foi realizado contra à sua verdadeira vontade. Se a opção for a de ressarcimento por perdas c danos, estes deverão ser comprovados igualmente. Teixeira de Freitas adverte que não poderá ser considerada coação moral a ameaça que se refere a “um mal impossível, quimérico, ou difícil de realizar-se” e também aquela que anuncia a retirada de uma vantagem que apenas fora prometida e não chegou a consumar-se.69 136.3. As regras do Código Civil de 2002. O conceito de coação moral como vício dc consentimento não se reveste de simplicidade que o faça encaixar-se, de modo suficiente, em uma definição doutrinária ou le- gal. Os cinco dispositivos de nossa Lei Civil cuidam, em última analise, 68 C. Massimo Bianca, in Diritto Civile, 3 ,11 Contratto, seconda edizione, Milano, Giuf- frè editore, 2001, p. 173. 69 In Esboço, vol. I, ed. cit., p. 173. 70 O Esboço de Teixeira de Freitas constitui valioso subsídio para a melhor compreensão da coação moral como defeito dos atos negociais. O notável civilista pormenorizou as hipóteses, enumerando tanto as situações fáticas que a caracterizam, quanto as que a excluem. A matéria é tratada entre os arts. 487 e 500. In Esboço, ed. cit., vol. I, p. 172. 496 Paulo Nader de dizer em que consiste a vis compulsiva como defeito de negócio jurídico capaz de anulá-lo. Estão dispostos entre os arts. 151 e 155. 136.3.1. A ação do coator. Não importam os meios utilizados concre- tamente pelo coator, pois o relevante é que os recursos empregados tenham sido idôneos, o suficiente, para incutirem fundado receio na consciência do agente coato. Se o coator quis brincar, mas provocou a comoção no coato, levando-o a crer que se encontrava, por si ou por outra pessoa, sob grave ameaça, tal circunstância não deixa de caracterizar a vis compulsiva e o ato praticado se toma passível de anulação. Por outro lado, se o propósito do agente coato era mesmo o de praticar o ato negociai nas condições e época em que se realizou, não terá havido ví cio de consentimento, não obstante toda a ação desenvolvida pelo coator, que terá praticado o delito de constrangimento ilegal, tipificado no art. 146 do Código Penal.71 136.3.2. O coato. Na esfera judicial e no campo da prova, o importan te a ser apurado, em primeiro lugar, é se o ato negociai foi praticado sob efeito e motivação de temor. Para tanto o julgador não terá de considerar o padrão vir rnedius, mas a pessoa que foi coagida. Para simples referência o legislador orienta o juiz no sentido de levar em conta o sexo, a idade, a con dição, a saúde, o temperamento da vítima e demais circunstâncias (art. 152). Nesta hora valerá a maior experiência de vida do julgador, sabedoria esta que os compêndios não passam, apenas alertam. Todos os meios de prova permitidos em lei deverão ser considerados para a diagnose de fato. Peça da maior importância deverá ser a oitiva do declarante pelo juiz, mo mento em que este perceberá o nível das reações do autor da ação. Para aferir a gravidade do temor o juiz haverá de pesquisar todos os dados que os autos subministrem, seja ouvindo as partes envolvidas, seja colhendo depoimentos e estudando as demais provas carreadas aos autos. Deverá o julgador sopesar os meios utilizados, a fim de concluir por sua eficácia ou não na conduta do coato. Em se tratando de simples temor reve- rencial, quando o agente segue a orientação de pais, patrão, professor, mi nistro religioso, ou qualquer outra pessoa que lhe tenha ascendência, não 71 Dispõe o art. 146 do Código Penal brasileiro: “Constranger alguém, mediante violên cia ou grave ameaça, ou depois de lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a ca pacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda: Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, ou multa ”. G u m do Direito Civil PÜ fl Cerni haverá a figura da coação moral, à vista do que dispõe o art. 153 da Lei Ci- vil. Roberto dc Ruggiero, todavia, adverte no sentido de não sc excluir a possibilidade de ocorrer a conjugação do temor reverenciais a vis compul siva:: "não pode excluir-se a priori que o metus reverentialispossa às vezes assumir a importância e a gravidade da verdadeira e própria vis e, assim invalidar o consentimento ”.72 Ocorrendo tal situação, penso, o intérprete haverá de reconhecer o vicio de vontade, não em razão do temor reveren ciai, mas da coação moral que antecedeu a prática do ato negociai, Não se deve considerar, para efeitos legais, conforme Roberto de Ruggiero73 o te mor que se origina de um perigo natural ou por um fato humano extraordi nário, tais como naufrágio, terremoto, guerra. Na coação moral é essencial que a ameaça vise a extorquir a declaração de vontade. 136.3.3. A iminência do dano. O dano que ameaça a segurança da pessoa ou de patrimônio há de ser iminente, segundo a Lei Civil, não com portando qualquer providência que possa impedir a ação criminosa, como a de pedir socorro policial ou a de impetrar ordem de habeas corpUs, A iminência do mal a ser suportado não faz parte, todavia, do concei to puro de coação moral. Vejamos: O Código Civil italiano, por exemplo, não faz menção ao momento em que a ameaça promete consumar-se daí Roberto de Ruggiero, notável civilista italiano, assevere que “Não é, po rém, necessário que se trate de mal iminente ou atual, podendo ser futu ro ”.74 Para o Código Civil brasileiro de 2002 a iminência do mal ameaçado faz parte do conceito de coação moral: "A coação, para viciar a declara ção da vontade, há de ser tal que incuta à vítima fundado temor de dano iminente e considerável à sua pessoa, à sua família, ou aos seus bens”. Não se admite a futuridade do mal, uma vez que, em tal condição, o coato tem possibilidade de buscar o amparo da lei. Excepcionalmente po derá ocorrer uma hipótese em que a ameaça seja atual e o dano futuro mas incontrolável. Neste caso, penso admissível a caracterização da coação moral. Exemplo: A filha de um magnata é seqüestrada e o pai induzido à prática de um ato negociai sob a ameaça de que, dali a dois meses, quando o chefe do grupo sair da penitenciária, a filha será executada. 72 Op. cit., p. 338. 73 Op. cit., p. 338. 74 Op. cit., p. 337. 498 Paulo Nader 136.3.4. Ameaça e exercício regular de direito. Aquele que age nos li mites de seus direitos subjetivos não pratica coação moral. Assim, para in duzir o devedor a lhe pagar, o credor ameaça-o de levar o título a protesto. Premido pelo receio de ver abalado o seu crédito na praça, o devedor efetua o pagamento. O credor não exerceu ato algum de coação moral, apenas exercitou o seu direito. Se, todavia, extrapolou nas ameaças, poderá tanto responder criminalmente pela prática do crime de ameaça (art. 147 do CP) e civilmente por danos morais. 136.3.5. Presunção relativa. Em relação ao bem ameaçado, a Lei Ci vil, por seu art. 151, refere-se ao próprio agente coato, à sua família, aos seus bens, a qualquer outra pessoa. A única observação que a Lei faz é quando a pessoa ameaçada não for o declarante, membro de sua família, mas qualquer outra pessoa. A orientação é no sentido de que o juiz, consi derando as circunstâncias, concluirá se ocorreu coação. Tal diretriz é des necessária, pois qualquer que seja o entendimento do magistrado forçosamente deverá levar em conta todos os dados pertinentes ao enredo. Depreende-se que o propósito da mencionada disposição é a de se tomar por presunção relativa o nexo de afetividade que liga o coato ao membro ameaçado de sua família, capaz de emocioná-lo a ponto de praticar um ne gócio jurídico forçado pela gravidade da ameaça. Não se tratando de mem bro da família tal presunção inexistirá. Relevante a destacar-se é que o parág. único do art. 151faculta ao juiz a decisão por eqüidade quanto à existência ou não de coação. 136.3.6. A coação por terceiro. Sob a vigência do Código Beviláqua a coação por terceiro tomava o negócio jurídico anulável incondicionalmen te. Com o Código Civil de 2002 a coação por terceiro pode levar à anulação do ato, desde que o declaratário tivesse ou devesse dela tomar conhecimen to. A Lei atual optou por proteger o declaratário de boa-fé em detrimento do agente coato. Ao referir-se ao declaratário, a Lei impropriamente o trata como “a parte a que aproveite ”, quando se sabe que é irrelevante à carac terização do vício tenha o declaratário proveito ou não. Quer dizer, se o de claratário não tomou ciência da violência moral, nem dela deveria conhecer, o negócio jurídico não será anulável. É o que dispõe o art. 154. Com tal iniciativa o legislador pátrio rompe com uma regra secular, já pre conizada por Pothier: "Quando a violência exercida contra mim para obri gar-me a contratar fo i exercida por um terceiro, sem a participação daquele com quem eu contratei, nem por isso o Direito Civil deixa de vir em meu auxílio, pois rescinde todas as obrigações contratadas por violên Cumo do Direito Civil Furto Ocrttl cia, venha ela de quem vier... A convenção não será, po is, menos viciosa, mesmo quando aquele com quem me vi obrigado a celebrá-la não lenha participado da violência. Pois, mesmo não tendo ele participado, meu cotb sentimento não se torna por isso menos imperfeito...”? Havendo ação de indenização por perdas e danos, o declaratário res ponderá solidariamente com o coator, desde que ciente d a coação ou dela devesse ter conhecimento na celebração do negócio jurídico. Nestas condi ções o declaratário estará passível de responder criminalmente como partí cipe no delito de constrangimento ilegal, por perdas e danos em ação ele ressarcimento e ser penalizado com a anulação do ato negociai. 0 terceiro deverá responder penal e civilmente em ação de indenização por eventuais prejuízos causados à vítima. 136.3.7. Sugestão hipnótica. Discute-se, no campo doutrinário, da conveniência de se prever conseqüência jurídica para o a to negociai prati cado sob sugestão hipnótica. Nem o Código revogado, nem o atual, rele rem-se à hipótese, mas esta foi prevista no art. 115, parág. único, do Projeto Beviláqua: “Entre os meios de coação moral compreendem-se as suges tões hipnóticas ”. A não inclusão de qualquer preceito sofcre a matéria nik) deve ser entendida como exclusão de possibilidade, conforme entende Orosimbo Nonato: ‘‘Se a sugestão hipnótica tolhe aquela liberdade ou al tera a normalidade da determinação, caracteriza-se defeito cuja qualifica ção depende das circunstâncias ”.7 , 137. Estado de perigo 137.1. Conceito. Dá-se o estado de perigo quando alguém, premido pela forte necessidade de livrar-se de grave dano à pessoa,77 realiza negó cio jurídico com outrem, sabedor da situação, em condições excessivamen te onerosas. O agente pratica o ato fortemente influenciado pelas circunstâncias que lhe são adversas. Embora a figura em estudo não sc con funda com o vício coação, o declarante expressa a sua vontade sob efeito de forte pressão psicológica. Há urgência na realização d o negócio, que 6 75 Op. cit., pp. 48 e 49. 76 In Da Coação como Defeito do Ato Jurídico, ed. cit, p. 122. 77 O Código Civil brasileiro não especifica tratar-se de dano à pessoa, mas dúvida não há neste sentido. O Código Civil italiano, por seu art. 1.447 é explícito, ao enunciar: "... perigo atual de um dano grave àpessoa... ”. 500 P&ulo Nader feito a fim de livrar o agente, membro de sua família ou pessoa de sua rela ção, do perigo em que se encontra. Sob a vigência do Código Beviláqua, o estado de perigo era tratado como coação por ato de terceiro, desde que o beneficiado tivesse ciência do ato coativo.78 137.2. Requisitos. A vista do disposto no art. 156 do Código Civil - único que regula a matéria - , são elementos essenciais à caracterização do vício de consentimento, que é inovação em nosso jus positum: 137.2.1. Perigo. O defeito em questão pressupõe estado de perigo, que se revela quando o agente, membro de sua família ou pessoa de sua li gação, necessita salvar-se de grave dano, que pode ser atual ou iminente. Exemplo: um indivíduo que necessita pagar um resgate para salvar a vida de seu filho que se encontra em poder de seqüestradores, pratica ato negociai excessivamente oneroso. Alguém, para se livrar de forte dor de dente, por falta de opção aceita as condições excessivamente onerosas do cirur- gião-dentista. O perigo pode decorrer de um fato humano, como no primeiro exemplo, ou de fato natural, como no segundo. Importante c que o ato nego ciai tenha sido praticado pendente o perigo. Se logo após, já não se poderá fa lar em estado de perigo, assim, qualquer promessa que tenha sido feita nestas condições não configura o vício de consentimento aqui abordado. O perigo, segundo Maria Helena Diniz, não precisa ser real, bastando que o declarante tenha praticado o ato na suposição de se encontrar em tal es tado. Para tanto é preciso que o declaratário também incida em igual erro.9 Ocorrendo situação contrária, ou seja, o perigo é real e o declarante supõe não se tratar de situação grave, não se caracterizará o estado de perigo. Se a pessoa-alvo da proteção não é o próprio agente do ato negociai, nem qualquer membro de sua família, dispõe o parágrafo único do art. 156 que o juiz decidirá conforme as circunstâncias. Há de haver um elo de forte significado entre o declarante e a pessoa-alvo, para justificar o ato. Tal lia me quase sempre é afetivo, emocional, quando se trata, por exemplo, de mãe de criação, afilhado, amigo fraternal, ou de outra natureza, como o elo profissional. A pessoa-alvo pode ser um funcionário imprescindível, ele- mento-chave na empresa do declarante. 137.2.2. Obrigação excessivamente onerosa. O ato negociai há de ter sido firmado em condições acentuadamente desvantajosas para o agente e 78 Cf. in Sílvio Rodrigues, op. cit., p. 217. 79 In Curso de Direito Civil, Io vol, ed. cit., p. 401. Curso do Direito Civil - Pnrla Üerttl 501 apenas justificáveis diante de sua premente necessidade. As condições hão de ter sido impostas pelo declaratário e abusivamente, visando tirar provei to da situação do declarante. A hipótese será outra se as condições impostas pelo declaratário não decorreram da necessidade urgente da parte onerada. Se um piloto de helicóptero, de longa data, anuncia viagens por valores bastante elevados, quem se utiliza de tais serviços em estado de premência, visando a salvar a vida de seu filho, conduzindo-o para hospital em outra cidade, não revela intenção de tirar proveito. Por este exemplo não se con figura, tecnicamente, o estado de perigo. Com fundamentos outros, que não o do art. 156 do Código Civil, o declarante poderá pleitear a redução dos valores de tarifa que lhe foram cobrados. 137.2.3. Vilania do declaratário. Não basta que o declaratário tenha conhecimento da premente necessidade da outra parte. O fundamental é que tenha se aproveitado da situação, impondo condições que lhe são bem vantajosas e muito prejudiciais ao declarante. O declaratário age de má-fé tão-somente ao fixar as condições do negócio, pois não teve qualquer inter ferência no estado de necessidade em que se encontrava o declarante. Nem é preciso que tenha induzido a outra parte a realizar o negócio. 137.3. Efeitos jurídicos. Por força do disposto no art. 171, II, do Có digo Civil, o negócio jurídico realizado com vício resultante de estado de perigo é anulável. O rigor da lei advém, conforme Carlos Alberto Bittar, da circunstância de que a outra parte possuía conhecimento do estado de ne cessidade por que passava o declarante. O legislador, justamente porque houve má-fé, não
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