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C a r o l i n e M ü l l e r B i t e n c o u r t J a n r i ê R o d r i g u e s R e c k os novos caminhos científicos do Direito Administrativo no Brasil POLÍTICAS PÚBLICAS E MATRIZ PRAGMÁTICO-SISTÊMICA: C a r o l i n e M ü l l e r B i t e n c o u r t J a n r i ê R o d r i g u e s R e c k os novos caminhos científicos do Direito Administrativo no Brasil POLÍTICAS PÚBLICAS E MATRIZ PRAGMÁTICO-SISTÊMICA: 1ª edição CONSELHO EDITORIAL Prof. Dr. Alexandre Morais da Rosa – Direito – UFSC e UNIVALI/Brasil Prof. Dr. Alvaro Sanchez Bravo – Direito – Universidad de Sevilla/Espanha Prof. Dr. Argemiro Luís Brum –Economia – UNIJUI/Brasil Prof. Dr. Carlos M. Carcova – Direito – UBA/Argentina Profª. Drª. Caroline Müller Bitencourt – Direito – UNISC/Brasil Prof. Dr. Demétrio de Azeredo Soster – Ciências da Comunicação – UNISC/Brasil Prof. Dr. Eduardo Devés – Direito e Filosofia – USACH/Chile Prof. Dr. Eligio Resta – Direito – Roma Tre/Itália Profª. Drª. Gabriela Maia Rebouças – Direito – UNIT/SE/Brasil Prof. Dr. Gilmar Antonio Bedin – Direito – UNIJUI/Brasil Prof. Dr. Giuseppe Ricotta – Sociologia – SAPIENZA Università di Roma/Itália Prof. Dr. Humberto Dalla Bernardina de Pinho – Direito – UERJ/UNESA/Brasil Prof. Dr. Ingo Wolfgang Sarlet – Direito – PUCRS/Brasil Prof. Dr. Janriê Rodrigues Reck – Direito – UNISC/Brasil Prof. Dr. João Pedro Schmidt – Ciência Política – UNISC/Brasil Prof. Dr. Jose Luis Bolzan de Morais – Direito – UNISINOS/Brasil Profª. Drª. Kathrin Lerrer Rosenfield – Filosofia, Literatura e Artes – UFRGS/Brasil Profª. Drª. Katia Ballacchino – Antropologia Cultural – Università del Molise/Itália Profª. Drª. Lilia Maia de Morais Sales – Direito – UNIFOR/Brasil Prof. Dr. Luís Manuel Teles de Menezes Leitão – Direito – Universidade de Lisboa/Portugal Prof. Dr. Luiz Rodrigues Wambier – Direito – UNIPAR/Brasil Profª. Drª. Nuria Belloso Martín – Direito – Universidade de Burgos/Espanha Prof. Dr. Sidney César Silva Guerra – Direito – UFRJ/Brasil Profª. Drª. Silvia Virginia Coutinho Areosa – Psicologia Social – UNISC/Brasil Prof. Dr. Ulises Cano-Castillo – Energia e Materiais Avançados – IIE/México Profª. Drª Verônica Teixeira Marques de Souza – Ciências Sociais – UNIT/Brasil Profª. Drª. Virgínia Appleyard – Biomedicina – University of Dundee/ Escócia COMITÊ EDITORIAL Profª. Drª. Fabiana Marion Spengler – Direito – UNISC/Brasil Prof. Me. Theobaldo Spengler Neto – Direito – UNISC/Brasil Essere nel Mondo Rua Borges de Medeiros, 76 Cep: 96810-034 - Santa Cruz do Sul Fones: (51) 3711.3958 e 9994. 7269 www.esserenelmondo.com.br www.facebook.com/esserenelmondo Todos os direitos são reservados. Nenhuma parte deste livro poderá ser reproduzida por qualquer meio impresso, eletrônico ou que venha a ser criado, sem o prévio e expresso consentimento da Editora. A utilização de citações do texto deverá obedecer as regras editadas pela ABNT. As ideias, conceitos e/ou comentários expressos na presente obra são criação e elaboração exclusiva do(s) autor(es), não cabendo nenhuma responsabilidade à Editora. Bibliotecária responsável: Fabiana Lorenzon Prates - CRB 10/1406 Catalogação: Fabiana Lorenzon Prates Revisão gramatical: Aila Corrent Diagramação: Aila Corrent e Marco Aurélio de Souza Carneiro Esta obra contém uma sistematização fruto dos estudos dos autores sobre o conteúdo aqui apresentado. Estes artigos também podem ser encontrados em periódicos ou livros que tratam desta temática. B624p Bitencourt, Caroline Müller Políticas públicas e matriz pragmático-sistêmica: os novos caminhos científicos do Direito Administrativo no Brasil [recurso eletrônico] / Caroline Müller Bitencourt, Janriê Rodrigues Reck. – Santa Cruz do Sul: Essere nel Mondo, 2018. 135 p. Texto eletrônico. Modo de acesso: World Wide Web. 1. Política pública. 2. Direito administrativo. 3. Corrupção. 4. Administração pública. 5. Serviço público. 6 Controle social. 7 Teoria dos sistemas. 8. Pragmática. I. Reck, Janriê Rodrigues. II. Título. CDD-Dir: 341.3 Prefixo Editorial: 5479 Número ISBN: 978-85-5479-007-3 PREFÁCIO A presente obra traz o resultado de pesquisas sobre as patologias corruptivas da Administração Pública, competências federativas, serviços públicos e políticas públicas, todos à luz da matriz pragmático-sistêmica, ou seja, uma abordagem científica sofisticada a um problema (cultural), social e jurídico que afeta estruturalmente a relação estado-so- ciedade-mercado. Se uma pesquisa científica carece de relevância tanto social quanto científica para se justificar, certamente isso torna a presente obra um grande destaque à contemporaneidade da República Federativa do Brasil. Em tempos de abordagens tão superficiais sobre os dilemas da (faticidade da) política e a amplitude e profundidade dos problemas ligados à corrupção, que encobrem as possibilidades de compreensão sobre a densa complexidade das questões atinentes ao tema, tende-se a tornar as discussões sobre fatos (e versões) do universo político um mero fla-flu, para os gaúchos um grenal, no partidarismo o petismo-antipetismo, sob uma rela- ção pautada na paupérrima e binária perspectiva do amigo-inimigo, que gera uma nuvem de fumaça às possibilidades de se discernir o “joio do trigo”. Nesse difícil contexto, o livro de Janriê e Caroline sobrepaira a pequenez desses debates para lançar luzes à com- plexidade que circunda o assunto corrupção. Além do objeto em enfoque, a adoção de uma matriz teórica, no caso a pragmá- tico-sistêmica, é importante mérito da obra. Lamentavelmente, boa parte da produção da literatura jurídica tem pouco de científica, na medida em que realiza, em grande parte, mera exegese (oitocentista) ou um sincretismo teórico. A presente obra vale como objeto de estudos sobre como referenciar uma pesquisa jurídica em Direito, sob o prisma de uma matriz teórica – o que exige noções consistentes sobre debates filosóficos (sobre o conhe- cimento em si e sobre o Direito) e sociológicos, o que não falta aos autores. Desse modo, a obra Políticas públicas e matriz pragmático-sistêmica: os novos caminhos científicos do Direito Administrativo no Brasil, de Janriê Rodrigues Reck e Caroline Bitencourt, vem contribuir para a Administração Pública e a formação jurí- dica brasileira no Direito Administrativo, ao abordar problemas atinentes às patologias corruptivas, conforme designam os autores, e conceitos relativos à probidade do serviço público a partir de uma matriz teórica consistente, abordada com coerência ao longo do trabalho, além do tema das competências, serviços públicos e políticas públicas. Quanto àquilo que a obra diz a espeito dos autores – de densa formação e que já têm se expresso em consistentes publicações –, o presente livro reforça o entendimento deles sobre o papel do Direito na transformação social e seu compromisso por um sistema jurídico que colabora com a probidade da Administração Pública, capaz de enfrentar as patologias sociais e culturais envoltas nas práticas corruptivas. Certamente, a (re)construção de um serviço público probo, calcado na integrida- de, honestidade, ética, passa necessariamente por uma reconstrução da cidadania, e não apenas de um setor da sociedade encarregada do sistema público estatal, razão pela qual o papel do controle social evidencia em parte o próprio sentido da esfera pública, em uma relação que pode compor a formação de uma espiral ascendente, num círculo virtuoso ca- paz de permitir o ajuste sistemático e sistêmico das desfuncionalidades da Administração Pública. Por fim, cabe-nos, congratular os autores pela consistência da obra e indicar a todas e todos o esforço e o prazer leitura, que certamente valerá a pena. Gustavo Oliveira Vieira Bacharel (UNISC), mestre (UNISC) e doutor em Direito (Unisinos, com períodosanduíche na University of Manitoba, Canadá). Professor Adjunto e Reitor pro tempore da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA) em Foz do Iguaçu, Paraná. Autor de livros, como A Formação do Estado Democrático de Direito e Consti- tucionalismo na Mundialização. SUMÁRIO INTRODUÇÃO ................................................................................................................. 8 CONSTRUÇÃO PRAGMÁTICO-SISTÊMICA DOS CONCEITOS BÁSICOS DO DIREITO CORRUPTIVO: OBSERVAÇÕES SOBRE A POSSIBILIDADE DO TRATAMENTO DA CORRUPÇÃO COMO UM RAMO AUTÔNOMO DO DIREITO .................................................................................................................... 9 RESGATE DO DIREITO ADMINISTRATIVO: EXTENSÃO DAS OBRIGAÇÕES DE MORALIDADE ADMINISTRATIVA AO DIREITO PRIVADO ...........................21 OBSERVAÇÃO PRAGMÁTICO-SISTÊMICA DA COMPETÊNCIA COMO DECISÃO COORDENADORA DE AÇÕES .................................................... 32 OBSERVAÇÃO PRAGMÁTICO-SISTÊMICA DA PERSONALIZAÇÃO DOS ENTES FEDERATIVOS E SUAS COMPETÊNCIAS EM POLÍTICAS PÚBLICAS ...................................................................................................................... 52 CONSTRUÇÃO DE CATEGORIAS DE OBSERVAÇÃO DO CONTRATO PÚBLICO E SUAS RELAÇÕES COM A CORRUPÇÃO A PARTIR DE UMA PERSPECTIVA PROCESSUALISTA ....................................................................................................... 70 CONTROLE DO NEPOTISMO NA CONTRATAÇÃO PÚBLICA A PARTIR DA INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL DOS CRITÉRIOS DE ACESSO A CARGOS PÚBLICOS NO BRASIL: ABORDAGEM CRÍTICA DA JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL ............................................................................. 88 OBSERVAÇÃO PRAGMÁTICO-SISTÊMICA DAS POLÍTICAS PÚBLICAS E SUA RELAÇÃO COM OS SERVIÇOS PÚBLICOS .................................................114 CONCLUSÕES DA OBRA ...........................................................................................133 SOBRE OS AUTORES ................................................................................................ 134 8 INTRODUÇÃO Este livro é fruto da produção conjunta dos professores em projetos de pesquisa financiados pela Universidade de Santa Cruz do Sul e pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Os projetos são, nomeadamente, O resgate do Direito Administrativo: o controle social das parcerias entre o Poder Público e Particulares, Elementos pragmáti- cos dos atos de fala e sua aplicabilidade ao controle social da Administração Pública, O controle social e administrativo de políticas públicas e Projeto interinstitucional de redes de grupos de pesquisa sobre o tema Patologias Corruptivas nas relações entre Estado, Administração Pública e Sociedade: causas, consequências e tratamentos. Desses projetos, surgiram os artigos que compõem esta obra. Os trabalhos orbi- tam em torno das políticas públicas, seu controle e suas conexões com o fenômeno das patologias corruptivas. A partir dos elementos teóricos que a matriz pragmático-sistêmica oferece para análise, como operações comunicativas, acoplamentos operativos, sistemas, ação comunicativa, entre outros conceitos, foi possível descrever, de modo complexo, as formas pelas quais as ações se acoplam umas às outras, formando as teias sociais que permitem a existência do Direito. Na centralidade, a decisão. A decisão, nos dizeres de Luhmann, é uma unidade formada pela geração de alternativas, a escolha da alternativa, seu teste e justificação, tudo em um processo no tempo. A decisão pode ser abranger atuação no campo da Administração Pública, pode ser uma decisão que envolve a competência, no controle social e na corrupção. A matriz pragmático-sistêmica une-se, assim, em torno do conceito de decisão. A decisão jurídica será o eixo a partir do qual este livro se desenvolverá. Em um primeiro momento, conceitua-se o Direito corruptivo, com auxílio da teo- ria dos sistemas. Defende-se que, por conta do desenvolvimento, seria possível já se falar em ramo autônomo do Direito. Já o segundo artigo reflete a necessidade de extensão de obrigações de Direito Administrativo às parcerias. De fato, o regime jurídico das parcerias é muito frouxo em matéria de proteção da moralidade. A lida com recursos públicos impõe construções her- menêuticas que façam essa ponte. Um dos elementos fundamentais conectados com a realização dos direitos funda- mentais e com as políticas públicas é a competência. Ela é observada de modo complexo, a partir da matriz pragmático-sistêmica, o que também ocorre com as políticas públicas, as quais só adquirem sentido se observadas em conjunto com as competências e os direitos fundamentais, bem como os serviços públicos – instrumentos que são das políticas públicas. Novamente, a mesma matriz ajuda na construção de uma perspectiva processua- lista de observação da contratação pública. O nepotismo e a construção jurisprudencial empreendida pelo STF seguem a linha do exame da honestidade da Administração Públi- ca via matriz pragmático-sistêmica. Com os votos de uma boa leitura, os autores. 9 CONSTRUÇÃO PRAGMÁTICO-SISTÊMICA DOS CONCEITOS BÁSICOS DO DIREITO CORRUPTIVO: OBSERVAÇÕES SOBRE A POSSIBILIDADE DO TRATAMENTO DA CORRUPÇÃO COMO UM RAMO AUTÔNOMO DO DIREITO Caroline Müller Bitencourt Janriê Rodrigues Reck Introdução O tema deste ensaio é a identidade do Direito Corruptivo. Esta pesquisa se justifi- ca pelo problema que emerge no seio da social e que tem colocado a prova temas tão ricos para o direito, como a lisura, a ética e o interesse público. Não é obviamente um tema novo, contudo, o que talvez se inove se refere aos meios com os quais a sociedade vem buscando construir respostas ao seu enfrentamento. Conceito-chave para essas breves reflexões é o de identidade para a teoria prag- mático-sistêmica. A adoção de uma teoria oferece contornos para observar algo no mun- do, cuja eleição se justifica pela forma com que se ocupa da complexidade. Por identi- dade, entendem-se as diferenças que fazem a diferença para a comunicação sobre algo (LUHMANN, 2001). O problema é precisamente, então, o de como formar e quais são as diferenças relevantes sobre o Direito Corruptivo em relação aos demais ramos do Direito ou, dito de outra forma, pretende-se verificar se o Direito Corruptivo é capaz de formar importantes diferenças capazes de propiciar certa autonomia a fim de tratá-lo como um ramo do direito com intuito de dar a ele um tratamento mais complexo. Como hipótese, evidencia-se que a matriz pragmático-sistêmica pode lançar luzes por sobre a questão, es- tabelecendo categorias úteis à resolução do problema, como as de operação, comunicação e sistema, que, ao aplicá-las, o presente trabalho inclina-se para a tese de que a produção de complexidade na observação do problema da corrupção tende a propiciar respostas mais produtivas aos problemas apresentados na sociedade contemporânea. Logo, uma observação sobre a questão do enfrentamento da corrupção com certa autonomia ultrapassa os problemas da faticidade e validade que se encontrará ao obser- vá-la sobre a ótica do direito administrativo, do direito penal, da responsabilidade civil, entre outros. Os objetivos deste ensaio são modestos e se resumem à especulação sobre os fundamentos da identidade do Direito Corruptivo. Ainda, justifica-se em termos introdutórios a terminologia utilizada referente a Direito Corruptivo. Diga-se que não há essências ou verdades sobre a nomenclatura dos ramos do direito, logo há uma escolha, que já é uma comunicação, pela qual se buscará estabelecer outras comunicações. Nesse caso, especificadamente, optou-se pelo Direito Caroline Müller Bitencourt • Janriê Rodrigues Reck 10 Corruptivo por questões estéticas e sociais, especialmente porque acorrupção indiscuti- velmente tornou-se temática cotidiana no mundo das relações sociais. Se bem que talvez a expressão Direito da Probidade fosse mais adequada, já que esse ramo do Direito busca preservar a probidade, porém se correria o risco de uma aproximação muito forte do Di- reito Administrativo e já se partiria de determinados prejuízos, ou seja, talvez se repetiria o acionado quando se pensa no Direito Administrativo, ainda, obviamente, que estes e muitos outros deverão estar presentes quando da observação desse novo ramo que se propõe. O fato é que o termo corrupção está generalizado na sociedade brasileira, sendo mais representativo das funções do presente Direito. 2. Noções preliminares sobre identidade A identidade é formada por um consenso linguístico acerca de diferenças. So- cializa-se, por meio de um processo, como algo espontâneo e incontrolável, expectativas sociais sobre diferenças com relação a algo. Não existe uma distinção “natural”, como querem fazer crer determinadas variantes do jusnaturalismo, em busca de essências do conceito de corrupção ou probidade. Existem diferenças – peculiaridades socialmente generalizadas, aderidas e reforçadas mediante consenso. Por outro lado, também parece implausível a perspectiva nominalista e positivista de criação de uma linguagem artificial e pura, desvinculada de qualquer ideologia ou pré-juízo, uma vez que qualquer linguagem só pode ser entendida e remetida à outra linguagem; portanto, a toda teia de significações possíveis. Assim, é ingênua a tentativa de criação de graus zero de significação, com ilusão de desnecessidade de acesso à tradição da comunidade. Daí a razão pela qual foi utilizado o termo corrupção, já que ele genericamente reúne as expectativas sociais sobre o tema. Assim, o processo da construção da identidade de um ramo do Direito necessa- riamente será uma explicitação reconstrutiva dos usos linguísticos de dada comunidade (LUHMANN, 2002). Falar sobre a identidade do Direito Corruptivo é discorrer acerca de diferenças que compõem esse ramo em relação aos demais ramos, as quais não são “criadas a partir de um grau zero” e tampouco existem em um mundo puro de ideias. Os ramos do Direito podem ser observados como unidades operativas. Significa dizer que o “ramo” é um conjunto de operações que provoca outras observações dentro do Direito (LUHMANN, 2002). Como os sentidos não existem per se, mas sempre como observações, a análise de um fenômeno a partir de uma ou outra perspectiva gera sentidos particulares. Assim, o Código Civil adquirirá um sentido a partir do Direito Administra- tivo e outro a partir do Direito do Trabalho. Logo, existir um ramo do Direito significa uma unidade operativa de programas de observação. Os ramos permitem significações diferenciadas a enunciados normativos que estão à espera de significação. Assim, o Direito Corruptivo será uma estrutura opera- tiva do Direito, ou um conjunto de programas, cuja função será unificar diferentes pers- pectivas sobre corrupção em um regime próprio, o qual conterá programas de observação peculiares que caracterizam o Direito Corruptivo (LUHMANN, 1985). 11 Políticas públicas e matriz pragmático-sistêmica: os novos caminhos científicos do Direito Administrativo no Brasil Com a autonomia da corrupção, ganha-se justamente a possibilidade de constitui- ção de um novo regime jurídico em relação aos demais ramos, o que não significa que não haja uma inter-relação necessária, mas uma gama de prejuízos já predispostos quando se observa questões sobre a ótica do Direito Administrativo, do Direito Penal ou do Direito Civil, por exemplo. Ao produzir uma identidade própria, ela ganhará mais sentidos e con- tornos toda vez que se interligar aos demais ramos, o que obviamente é rico e inevitável. Observar os programas normativos (LUHMANN, 1985) a partir do Direito Cor- ruptivo será ressignificar uma série de tradições, a partir de algumas estruturas básicas – que compõem o centro do Direito Corruptivo – que cumprem determinadas funções ao Direito, conforme o tópico a seguir. 3. Funções do Direito Corruptivo A diferença que caracterizará o Direito Corruptivo residirá na função que cumpre para o Direito. Se conseguir identificar funções peculiares, com utilidade para o Direi- to, então o Direito Corruptivo merecerá generalização. Note-se que a função vem antes mesmo do conceito, haja vista que o conceito se estabiliza e desestabiliza a partir das funções que produz. Assim, se for possível produzir funções para o Direito Corruptivo justificadas sob a ótica de outras formas de comunicação já existentes, então também o conceito de corrupção poderá ser mais bem produzido e comunicado no sistema jurídico (LUHMANN, 2001). De fato, uma série de normas vem surgindo e se agregando à tradição das normas que envolvem corrupção, de maneira que se pode verificar um problema (e a necessidade de se resolvê-lo) dentro do sistema jurídico. Assim, são funções do Direito Corruptivo: a. criar conexões possíveis entre os diversos ramos do Direito que tratam do problema da corrupção – exemplifica-se como um ato de praticado por um chefe do Poder Executivo, junto com seus secretários de estado e deputados de seu partido, que “compra, negocia” o voto de outros deputados, buscando beneficiar uma votação par- lamentar, cuja destinação da verba é uma emenda parlamentar que indica a construção de uma obra que beneficia uma empreiteira que a superfatura, porque contribuiu para a campanha eleitoral do partido político do chefe do Poder Executivo, que sequer declarou tal doação em sua prestação de contas. Esse simples e não tão “bizarro” exemplo envolve uma série de dispositivos, em diferentes ramos do Direito (LUHMANN, 2002), que segue diferentes lógicas quanto à natureza jurídica de eventual condenação por ilicitudes come- tidas. Certamente se discutiriam o problema da improbidade administrativa, o problema do crime de responsabilidade, o tráfego de influências e a corrupção ativa e passiva, a responsabilidade da empresa, o problema das contas não prestadas sob a ótica eleitoral, a questão do vício formal da votação legislativa, entre tantos outros aspectos. Pensar na corrupção como um ramo envolveria, de acordo com tantas perspectivas distintas, produ- zir uma percepção mais holística sobre o enfrentamento do fenômeno, basta compreender Caroline Müller Bitencourt • Janriê Rodrigues Reck 12 que a prova produzida teria diferentes pesos e medidas, dependendo do ramo que estaria sendo empregada. b. servir de espaço para o debate doutrinário acerca de elementos de conexão – observa-se o quão a doutrina é fragmentada, falar-se em corrupção em uma doutrina administrativista terá concepção distinta de uma doutrina do direito penal, começando pelos diferentes princípios informados em cada uma delas, pelas distintas penas que se produzem, bem como sobre a lógica da inter-relação ou não das condutas dos agentes. Não há como exigir que a doutrina de diferentes ramos tenha os mesmos domínios, daí se ganha quando, ao observar a constituição como um ramo autônomo, a preocupação dessas inter-relações seja a priori dessa doutrina. c. elaborar, trabalhar e categorizar conceitos que envolvam corrupção – por tudo que já foi dito, a autonomia do Direito Corruptivo propiciará o que, em termos luhmanianos, chama-se de reentrada da forma na forma, ou seja, permitiria que a obser- vação sobre a observação do conceito de corrupção trouxesse a crítica para que houvesse a necessária complexidade em seu trato, inclusive na distinção do quão a sociedade refuta quando praticada sob a ótica pública ou privada – daí, discutir-se sob diferentes óticas o “bem jurídico” que a sociedade busca proteger. Algumas reflexões preliminares sobre o signo da corrupção levam à compreensão de que esse termo será elemento de agregação do DireitoCorruptivo. De fato, se cabe ao Direito Corruptivo estabelecer uma rede de significações em que se agreguem diferentes programas normativos (LUHMANN, 1985) dos distintos ramos, então há de se ter um elemento capaz uni-los. Se bem que a honestidade e a probidade sejam símbolos e objeti- vos a serem alcançados pelo Direito Corruptivo, é importante lembrar que, dado o caráter negativo de boa parte das normas jurídicas (punição de certas condutas que não deveriam ter sido praticadas), a corrupção é muito mais tratada no ordenamento do que a honesti- dade e a probidade. De fato, se seguir o Direito é ser honesto, em um primeiro momento pelo menos, então, conforme boa parte das ações sociais possíveis de serem descritas, ser honesto será evitar certas condutas que o Direito sanciona, muito embora existam normas no ordenamento jurídico brasileiro que trabalhem certa noção de honestidade. Como estabelecido, o termo corrupção é empregado de forma generalizada no Brasil para as condutas que denotam falta de cuidado para com a coisa pública realizadas por particulares ou agentes públicos. No ordenamento jurídico brasileiro, o termo apare- ce apenas em dois tipos penais. Intenta-se, contudo, a partir do Direito Corruptivo, não só alargar o uso do vocábulo corrupção para o conectar com a figura do peculato, por exemplo, mas também com ilícitos, como a improbidade administrativa e os atos lesivos perpetrados por empresas contra a Administração Pública, por exemplo. É evidente que a corrupção será caracterizada como um ilícito; entretanto, não cumprir um contrato civil também o é. A ilicitude não é algo fora do Direito; pelo con- trário, o Direito se preocupa, às vezes, muito mais com a ilicitude do que com a licitude, estabelecendo suas consequências. Quando se trata de uma conduta que é de algum modo sancionada (ou, ao contrário, premiada), então é claro que se pretende, em termos de 13 Políticas públicas e matriz pragmático-sistêmica: os novos caminhos científicos do Direito Administrativo no Brasil coordenação da ação, a realização de outra ação social. Assim, entendendo-se o Direito tanto na perspectiva habermasiana, de coordenação da ação, como na luhmanniana, de manutenção de expectativas normativas, o ilícito será uma espécie de programa que, ao mesmo tempo, coordenará ações, indicando que a conduta presente na norma não deve realizada, e deflagrará as consequências para quem as realizou e os comportamentos possíveis/necessários por parte das autoridades administrativas e demais cidadãos. Além disso, com base em Luhmann, poderá manter a expectativa social de que algo é errado, mesmo que continuamente realizado pelos atores sociais. Entretanto, o Direito Corruptivo terá de ir além do mero foco na ilicitude, haja vista que tem de ser preocupar com os meios administrativos de controle, manejo e pre- venção da corrupção. A corrupção é um sentido cuja fronteira é cruzada quando há presença do patrimô- nio público em sentido amplo e a produção de uma desigualdade entre as pessoas a partir da obtenção do patrimônio. Somente tais elementos reunidos e conectados caracterizam a corrupção. Por patrimônio público, entendem-se não só os bens públicos, mas também os bens e serviços que garantem os direitos dos cidadãos (florestas em áreas de preservação permanente), serviços (como o de saúde), poder de polícia (polícia sanitária) e a própria imagem do poder público, entre outros. Para configuração da corrupção, é necessário que algum valor administrativo seja atingido – suponha-se, um particular que sonega tributos –, o que viola a igualdade entre os cidadãos – configurando-se a injustiça corruptiva. Unificando e diferenciando a corrupção Ao mesmo tempo que unifica sob o signo da corrupção e de seus princípios diver- sos ramos, o Direito Corruptivo também dialoga com eles, respeitando seus postulados básicos. Assim, se o tema dos crimes relacionados com corrupção for tratado pelo Direito Corruptivo, é evidente que terá muito a contribuir com conceitos e regime jurídico; por outro lado, não poderá subverter os princípios dos demais ramos, como o Direito Penal, tais como a legalidade, a subsidiariedade e a fragmentariedade. d. estabelecer princípios – o estabelecimento de princípios próprios do Direito Corruptivo permitiria que não fosse necessário se fazer uma verdadeira “ginástica jurí- dica” em relação ao enquadramento de condutas que envolvam o problema da corrupção. Como exemplo, basta pensar em como se espera a produção de provas em uma negocia- ção pública que envolva a violação de interesses públicos; não se fornece “recibo” de uma troca de favores entre partidos políticos que pudesse configurar um “nepotismo cruzado” ou mesmo um dispositivo em um edital que acabe beneficiando determinada marca na aquisição de automóvel, ou na contratação de uma empresa, ou no envio de cartas-con- vites para um processo licitatório. Nem todos os crimes contra a administração pública terão, por exemplo, pena de reclusão e, portanto, a prova de escutas telefônicas não po- derá ser meio eficaz para combater ou provar crimes de improbidade, embora o resultado Caroline Müller Bitencourt • Janriê Rodrigues Reck 14 prático possa ser devastador ao interesse público. Esse singelo exemplo demonstra que os princípios do Direito Penal e do Direito Administrativo sob a ótica do direito corruptivo não dão conta de responder ao problema da complexidade da corrupção, especialmente quando praticada por quem deveria cuidar e zelar pelo interesse público. Entendem-se por princípios unidades simbólicas (LUHMANN, 2002). Eles ser- vem reunir programas (normas) diversos e, com isso, dar novo significado à união de pro- gramas em um processo de retroalimentação. Pode-se dizer que são princípios específicos do Direito Corruptivo os que estão apresentados no Quadro 1, a seguir. PRINCÍPIOS DO DIREITO CORRUPTIVO Princípio Descrição Da cumulatividade As punições de diferentes ordens podem ser cumuladas. Da probidade Na interpretação de qualquer norma, se estabelece um parâmetro de comparação com um comportamento devido, o que geralmente é construído a partir de expec- tativas sociais, e não somente pelas pistas contidas no enunciado linguístico; assim, para se interpretar as normas relacionadas com corrupção, é necessário imaginar que o comportamento devido é o honesto – não é uma constatação trivial, já que pessoas honestas não contratam parentes, a des- peito da abertura do texto constitucional poder eventualmente levar à impressão de que é um comportamento permitido. Da titularidade ampla do direito de ação decorrente do direito difuso Uma vez que a probidade na Administra- ção Pública é um direito de todos, no cam- po do Direito Corruptivo, as ações podem ser manejadas ou por qualquer pessoa, no caso da ação popular, ou com amplo rol de legitimados, no caso das ações civis públi- cas. Da legalidade A taxatividade de penas e condutas é mais aberta do que a consagrada no campo pe- nal, para a abertura à moralidade e às nor- mas administrativas. 15 Políticas públicas e matriz pragmático-sistêmica: os novos caminhos científicos do Direito Administrativo no Brasil Do interesse público É expandido para abranger diversos inte- resses, como o patrimônio moral, histórico e ambiental da comunidade. Da humanidade das penas Não só as penas de caráter penal, mas tam- bém as de caráter administrativo devem manter a racionalidade do devido processo legal e evitar que eventuais corruptos se- jam crucificados em nome da vingança de sangue popular. e. descrever os regimes jurídicos – novamente aqui um regime jurídico próprio permitiria que se ultrapassassem algumas barreiras impostas pela natureza jurídica que atualmente envolvem os crimes de corrupção quando praticados e observados sob a ótica de ramos distintos.Por script, entende-se todo esquema socialmente generalizado de “isto causa aqui- lo”. Os scripts estão generalizados na sociedade e no Direito (LUHMANN, 2007). Dado o caráter na rede do Direito, as relações de causa e efeito nunca são isoladas e impunes, mas sempre sistêmicas, isto é, relacionadas com o todo e com as demais operações. As normas podem ser observadas a partir dessa perspectiva. Os scripts são relações sociais. Assim, há uma expectativa socialmente generalizada de, ao se encontrar algum amigo na rua, dar-lhe bom dia. O mesmo vale, desde modo, para o Direito: ao se deparar com a palavra “recurso”, sabe-se que é algo ligado a uma rediscussão de uma decisão. Assim, as expectativas podem ser frustradas; recurso pode então significar, em dado contexto, outra coisa que uma rediscussão (LUHMANN, 1983). O fato é que a ordem gerada pela contínua satisfação das expectativas, ou esperança em satisfazê-las, possibilita cadeias programadas de comportamento – e não resta dúvidas de que o Direito se especializou na linguagem dessas cadeias programadas de comportamento (LUHMANN, 1985). O regime jurídico é uma espécie complexa de script. Como é evidente, o regime jurídico não é imanente, mas construído a partir de um esforço conjunto e contínuo da doutrina e da jurisprudência no tempo, passando por processos de aprendizagens. Quan- do alguém fala em contrato, há o processamento social de um script, que leva a uma teia construída de determinadas relações. O uso da palavra contrato, ou ato administrativo proporciona uma série de outras normas e conceitos (liberdade contratual, interesse pú- blico, função social, validade, eficácia, etc.). É importante notar que essa atividade de conexão entre o fenômeno e o consequente regime jurídico raramente é dada pela lei. Assim, é uma atividade normativa das mais relevantes a conexão entre, por exemplo, a concessão/não concessão de um diploma de uma entidade privada de ensino com o ato administrativo e, consequentemente, com o regime jurídico. Com o regime jurídico, o sistema jurídico mantém certa abertura para a evolução, visto que se torna possível recombinar os diversos elementos que conformam determina- do regime jurídico a todo instante. Assim, um desafio do Direito Corruptivo é construir o regime jurídico da corrupção. Caroline Müller Bitencourt • Janriê Rodrigues Reck 16 Uma nota importante do regime jurídico do Direito Corruptivo é o da superação da dicotomia público-privado, principalmente das dicotomias penal/administrativo judi- cial e administrativo servidor. Os princípios, conceitos unificadores e conceitos adicionais permitem a formação de um novo regime jurídico que ultrapasse as convenções estabelecidas sobre as nature- zas jurídicas. De fato, ainda é uma dificuldade para o Direito classificar os chamados “crimes de improbidade administrativa”, a aplicação simultânea de sanções por parte dos tribu- nais de contas e da Administração Pública, a aplicação de uma sanção penal, a ação civil pública, a ação popular e a lei da corrupção privada. Todos esses institutos foram criados casuisticamente, por sobreposição e na tentativa de tratamento dos atos corruptivos, antes mesmo da existência dessa categoria. Sob os signos de controle financeiro ou controle da Administração Pública, é momento de se reunir todos os institutos sob um mesmo regime jurídico. Esse regime jurídico não faz distinção entre instâncias, dado o princípio da cumu- latividade. Assim, emergem do regime jurídico, do Direito Corruptivo, uma regra de ine- xistência de bis in idem e a necessidade de pensar em outras classificações que a natureza do tratamento do ato corruptivo. De fato, melhor é se pensar em um regime jurídico que trabalhe em uma pers- pectiva de sanção e tratamento do interesse público atingido pelo ato corruptivo. Assim, fazem parte da teia de significações do Direito Corruptivo tratamento e recuperação leva- dos a cabo tanto dentro do Poder Judiciário, com as múltiplas ações possíveis, quanto da Administração Pública. Implica superar a metafísica da natureza jurídica para se entender que a improbidade administrativa é uma nova categoria, não se confundindo com o Di- reito penal; necessário dizer que é possível dois processos administrativos e que o simples fato de serem processos administrativos não gera bis in idem. f. preparar decisões no campo da corrupção – discutir a possibilidade de de- cisão é discutir a capacidade de produção de razões justificadores (LUHMANN, 1983) e, consequentemente, de controle; por meio da contribuição da ética discursiva, busca-se preencher os “espaços em branco” ou, ao menos, clarificar a estrutura dos argumentos a partir da sua aceitabilidade racional e qualitativa, o que faz a crítica ser possível. Apesar de reconhecer que o Poder Judiciário se valerá mais dos discursos de aplicação, não signi- fica que a fundamentação e a aplicação são discursos que possam ser lidos separadamen- te, pois andam lado a lado (haja vista a interdependência desses discursos). Muito mais em se tratando de decisões sobre a corrupção, que requer retorno às razões justificadoras, ou seja, retorno à fundamentação como forma de produzir o que a sociedade (LUHMANN, 2007) em si busca refutar, ou melhor, os bens jurídicos materiais e imateriais que pretende proteger, somando ao problema das múltiplas variantes e conhecimentos que a solução de tal problema exigirá do julgador. Assim, ao se pensar na autonomia e observar a função, o regime jurídico, a produção de doutrina própria se estará munindo a julgador da devida 17 Políticas públicas e matriz pragmático-sistêmica: os novos caminhos científicos do Direito Administrativo no Brasil complexidade para produção de seus discursos de aplicação e fundamentação. Lembra-se de Luhmann, para quem “one can answer de question ´how knowledge is possible´ with the ´by the introduction of a distinction´” (LUHMANN, 2002, p. 130). Assim, a identidade do Direito Corruptivo pode ser caracterizada pela função que cumpre esse ramo para o Direito –unificar diferentes normas sob o conceito de corrup- ção, estabelecendo princípios, conceitos auxiliares e regimes jurídicos. 4. Unidade da pluralidade A noção de unidade da (ou na) pluralidade é um conceito fundamental para se es- capar da metafísica. Paradoxalmente, apresenta certa raiz na metafísica da trindade sagra- da. Tudo aquilo que pode ser observado e gerar sentido tem identidade, a qual, contudo, ao contrário da perspectiva das filosofias do sujeito, não reside em uma essência, mas em diferenças (socialmente observadas, evidentemente). Essas distinções geram formas duais (ou é ou não é – unidade), motivadas por uma série de diferenças. No pensamento meta- físico, existe um elemento que caracteriza definitivamente algo; sem ele, algo não é algo. Daí a busca incessante pelas “naturezas” (jurídicas) e assemelhados. Ocorre que, sim, as identidades são duras, mas o que faz que algo seja ou não algo é múltiplo; por exemplo, na prática cotidiana, não há “meio” relógio; ou algo é relógio ou não (assim como não há “meio” direito, ou parte tem ou não tem, ou determinado sentido é inconstitucional ou não é). Então, por exemplo, pode-se dizer que ter ponteiros, marcar horas, que um dia marcou horas, ter a forma de relógio, estar na parede, estar no pulso são múltiplas diferenças que, em potência, podem ser utilizadas para marcar a diferença relógio/não relógio. Nem todas as diferenças possíveis de serem utilizadas necessariamente precisam ser invocadas para se identificar um relógio na prática comunicativa cotidiana. Assim, um relógio pintado em obra de Salvador Dalí ou um relógio no pulso de algum caractere de um game nunca marcou alguma hora, mas é identificado como tal. Na matriz pragmático-sistêmica, as unidades são possibilidades que marcam diferenças motivadas por uma série de distin-ções possíveis. Apenas falar-se em ato voluntário não designa um contrato; é necessário, ainda, adicionar mais diferenças, como uma descrição de vontades convergentes, interes- ses divergentes e não exclusão dogmática (como no casamento, considerado por muitos “instituição”, e não “contrato”) para alcançar um consenso mínimo acerca da identida- de de uma operação social como contrato. Tem-se, no Direito, infindáveis e infrutíferas discussões motivadas sobre o elemento essencial para que se cruze a fronteira da forma, indicando a identidade, uma vez que não se tem consciência da unidade da multiplicidade. Mesmo que se considerem os “interesses divergentes” uma diferença que, junto a outras diferenças, forme a diferença contrato/não contrato, os referidos termos são unidades da multiplicidade de outras diferenças, que estão conectadas com outras diferenças até o infinito de possibilidades. Desse modo, é inegável o caráter em rede e sistêmico do co- nhecimento (LUHMANN, 1983). Caroline Müller Bitencourt • Janriê Rodrigues Reck 18 5. Classificações jurídicas Também há uma constelação interessante de script, conceito e unidade da dife- rença. É semelhante ao regime jurídico, mas diz respeito a uma operação com um per- fil distinto. Refere-se a um conceito que sofreu fortes influências da metafísica, a qual considera que a categorização é um processo real (as palavras conteriam uma conexão com uma realidade). As categorias referem-se a grupos, são unidades da diferença. Cada grupo conterá diversas diferenças, as quais possibilitam cruzar a fronteira de outra for- ma. Assim, a palavra “cavalo” pode levar tanto ao conceito quanto à categoria cavalo. No caso, a categoria pode envolver todas aquelas operações comunicativas que contiverem diferenças relacionadas a cavalo (um cavalo em um livro, um cavalo correndo, um ca- valo que já existiu ou vai existir, etc.). A metafísica estipula para certas categorias, por exemplo, mamíferos, um caráter de definitividade e verdade; por exemplo, se poderia utilizar qualquer outra categoria para agrupar animais, como os animas de cor branca e os coloridos, ou os mordedores ou não mordedores. Se, na biologia, se refere apenas a classificações, no Direito o problema das categorias se conecta com a natureza jurídica e com os respectivos regimes jurídicos. A despeito da existência de classificações mera- mente acadêmicas, a inserção (o que os juristas chamam de natureza jurídica, mas que de “natural” não tem nada) de um dado jogo de linguagem em uma ou outra categoria leva a um ou outro regime jurídico. Por exemplo, primeiramente, é criada a classificação tri- butos reais/pessoais; depois, são estipulados regimes jurídicos para cada lado desta forma (por exemplo, pode incidir a progressividade tributária ou não). As classificações, desse modo, são uma maneira de a doutrina e a jurisprudência realizarem certo controle do ordenamento quanto ao que venham dizer as normas formalmente estatuídas. Trata-se de um grande poder e de uma grande responsabilidade. As classificações e as conexões com os respectivos regimes jurídicos são, assim, formas de redução da complexidade. Logo, o sistema ganha em capacidade de operação. No Direito Corruptivo, será necessário construir classificações primárias, visan- do a sistematização do conhecimento. Em um ensaio preliminar, pode-se pensar, como unidades da diferença, os sujeitos atingidos (quem sofreu o prejuízo), o ramo do direito de apoio (Direito Penal, com os crimes corruptivos, ou Direito Constitucional, com os crimes de responsabilidade, ou o Direito Administrativo, com os crimes de improbidade administrativa, entre outras figuras espalhadas pelo ordenamento). 6. Conceitos adicionais Todo ramo do Direito envolve conceitos-chave ou adicionais aos princípios. Esses conceitos servem como elementos de transformação de complexidade estruturada em operativa. Assim, por exemplo, “trabalho” é um elemento para o Direito do Trabalho. Os conceitos adicionais orbitam em torno dos princípios e servem para a constituição da identidade do Direito Corruptivo. 19 Políticas públicas e matriz pragmático-sistêmica: os novos caminhos científicos do Direito Administrativo no Brasil Os conceitos adicionais podem ser tomados de outros ramos e, no processo des- crito, adquirir outras cores quando colocados na teia de significações que forma o regime jurídico do Direito Corruptivo. São conceitos emprestados, por exemplo, os de servidor público, subsídio, peculato, particular, tipo penal e empresa, entre outras centenas. No Direito, os conceitos são importante porque, como anteriormente, são estru- turas que geram outras estruturas. Assim, quando se fala em servidor público, logo há conexão com outros conceitos, como estatuto e processo disciplinar. Eles servem, por- tanto, como elementos de aumento de complexidade, dada a capacidade de conexão, e de diminuição de complexidade, pois a teia pode ser oculta quando necessário. São conceitos adicionais específicos e que, portanto, demandam um processo de ressignificação quando os signos são utilizados os de corrupção, como já visto, improbi- dade, vantagem ilícita e patrimônio público, entre outros. Conclusão A temática da corrupção não é nova; contudo, observar esse tema com a devida autonomia que exige faz com que o direito seja capaz de uma percepção mais sistêmica e, portanto, mais complexa que a comunicação sobre a corrupção tem requerido da socieda- de contemporânea (LUHMANN, 2007). Propôs-se, aqui, observar a identidade, a função (de categorizar, de regime pró- prio, de produção de princípios, de preparar as decisões), a classificação e outros concei- tos adicionais que podem ser emprestados de outros ramos do Direito, a fim de se discutir se o Direito Corruptivo é ou não capaz de produzir unidades de pluralidades a partir de suas diferenças que contribuam para demarcá-lo e limitá-lo como um ramo do Direito. A partir deste ensaio foi possível verificar que o empreendimento de construção de um Direito Corruptivo vale a pena, sobretudo porque, a partir das contribuições das “categorias” da teoria pragmático-sistêmica, pode-se brevemente demonstrar os benefí- cios de seu tratamento como observação autônoma dos demais ramos do Direito, com especial atenção no que toca à função de se estudar o Direito Corruptivo. De fato, há uma complexidade de relações sociais ricas que pode ser observada e formalizada. Assim, o Direito ganhará em complexidade para o enfrentamento de contingências sobre o tema, que emerge e exige um processo de intelecção no trato das questões de facticidade e va- lidade. Caroline Müller Bitencourt • Janriê Rodrigues Reck 20 Referências LUHMANN, N. A improbabilidade da Comunicação. 3ª ed. Lisboa: Vega, 2001. __________. El Derecho de la sociedad. Universidad Iberoamericana: México, 2002. __________. La sociedad de la sociedad. México: Herder, 2007. __________. Sistema Juridico y Dogmatica Juridica. Centro de Estudios Constitucio- nales: Madrid, 1983. __________. Sociologia do Direito II. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1985. __________. Theories of Distinction. Stanford University Press: Stanford, 2002. 21 RESGATE DO DIREITO ADMINISTRATIVO: EXTENSÃO DAS OBRIGAÇÕES DE MORALIDADE ADMINISTRATIVA AO DIREITO PRIVADO Janriê Rodrigues Reck Introdução Este artigo é uma construção doutrinária inicial sobre a reconstrução do regime jurídico dos parceiros privados do poder público. Está delimitado espacialmente na ex- periência ocidental, notadamente latino-americana, de gestão de interesses públicos por privados – um fenômeno antigo, porém crescente. Temporalmente, situa-se na contem- poraneidade, eis que a intensificação das privatizações é recente. Disciplinarmente, o trabalho transita pela Teoria do Direito, Teoria Geral do Direito, Direito Constitucional e pelo Direito Administrativo.As menções legais e considerações estão conectadas com o ordenamento jurídico brasileiro, mas podem ser generalizadas aos demais países da América Latina, uma vez que comungam do mesmo momento político/administrativo. O problema orientador deste trabalho é verificar em que medida o regime jurídico privado é insuficiente para atender às obrigações de moralidade decorrentes da função administrativa e se é justificável a aplicação das regras de Direito Administrativo aos en- tes privados. Supõe-se que a dicotomia direito público/privado deve ser superada, de for- ma a romper com uma pretensa pureza metafísica, para obrigar o cumprimento de deveres jurídicos baseados no princípio da moralidade administrativa às entidades privadas que se ocupam de uma função pública ou um serviço econômico de utilidade pública – como tratamento preventivo das patologias corruptivas. Uma vez que se refere a um ensaio, não há pretensão de esgotar os objetivos, que são: • desconstruir o caráter canônico da divisão público/privado; • estabelecer fenômenos contemporâneos de fuga do Direito Administrativo no Brasil, privatização e consequente abertura a eventos corruptivos; • delimitar as bases epistemológicas do Direito Administrativo a partir da teoria dos sistemas; • enumerar e fundamentar algumas obrigações de Direito Administrativo decor- rentes da função pública, interesse público e função pública aplicáveis ao antigo regime privado. Se prescindirá de uma explicação da matriz de fundo utilizada para a confecção deste ensaio – a pragmático-sistêmica. Em termos de metodologia científica, essa matriz, uma vez supera o paradigma da filosofia da consciência, não se utiliza do conceito de método ou passos de pensamento, razão pela qual sua aplicação ocorre pela utilização dos conceitos peculiares, explicados na medida do possível. Caroline Müller Bitencourt • Janriê Rodrigues Reck 22 2. O caráter canônico e metafísico da divisão público/privado Quando se fala em “caráter canônico”, faz-se referência a uma verdade indiscutí- vel porque foi posta por uma autoridade monárquica. De fato, poucos se atrevem a colocar em questão a utilidade, a fundamentação e a praticidade da divisão do Direito em públi- co e em privado. Kelsen é uma dessas pessoas. Para o autor, todas as normas, inclusive as advindas de um contrato, emanam do Estado (no caso do contrato entre privados, o Estado autorizaria a produção daquela mesma norma) (KELSEN, 1986). Assim, Kelsen nega a divisão clássica. Para Teubner (2005), contudo, a categorização possui caráter “ca- maleônico”, já que sobrevive às sucessivas gerações. De fato, mesmo que Kelsen negue a partir de sua lógica, a divisão é um fato social incontestável. Teubner opera a partir da Teoria dos Sistemas, a qual possui fundação na Sociologia. Então, há de se observar um fenômeno sociológico – que é a divisão público/privado – e, a partir dele, construir obser- vações mais complexas acerca do fenômeno. Para os juristas que creem em um Direito imanente – ou um Direito não positi- vo, que não tenha sido posto por decisão –, a divisão público/privado é vista como um mistério eleusiano, ou seja, existiria um critério de distinção entre o público e o privado que residiria na mesma essência das coisas. Essa é a observação da fase metafísica do conhecimento, nos dizeres de Habermas, e é típica do conhecimento a partir da filosofia do sujeito, ou seja, daqueles esquemas de pensamento que desconhecem a historicidade das instituições sociais. Quem acredita no Direito imanente tem um pesado fardo argu- mentativo de provar cientificamente a existência de um Direito das essências – tarefa já há muito abandonada por ser impossível. A mesma crítica de solipcismo (individualismo) metafísico é dirigida aqueles que tentam dividir o Direito em público e privado a partir de um primeiro positivismo. Ima- ginam que poderão inaugurar, a partir de um método científico, em uma linguagem pura e isenta de contradições e ideologias, a referida divisão. Novamente, esse tipo de pensa- mento cai na conhecida falácia naturalista. Trata-se de processo falacioso de observar o Direito como se fosse uma ciência da natureza sem levar em conta a realidade de que o Direito é uma construção social (WARAT, 1977). Uma vez que o Direito é uma criação da sociedade, suas disfuncionalidades, contradições e, principalmente, historicidade são projetadas a esse mesmo conhecimento produzido comunicativamente (MORIN, 2007). Além disso, depois do segundo Wittgenstein, sabe-se do caráter social e linguístico de qualquer conhecimento. Conhece-se e se experiencia o mundo por meio de uma lingua- gem que só é possível graças a um jogo de aprendizado que reflete as contradições do mundo (WITTGENSTEIN, 2004). Essas conquistas da filosofia, quando aplicadas ao Direito, refletem a necessidade de sua reconstrução epistemológica e o reconhecimento do seu caráter histórico. Mais propriamente para o debate em questão, significa o abandono de critérios últimos ou ló- gicos de divisão e o fim de uma vã esperança de alguma essência. Como os operadores jurídicos operam com essa lógica de divisão em ramos do Di- 23 Políticas públicas e matriz pragmático-sistêmica: os novos caminhos científicos do Direito Administrativo no Brasil reito, cabe ao cientista reconstruir racionalmente o fenômeno. Uma conquista da episte- mologia moderna foi o esclarecimento sobre o sentido de observação. Observa-se a partir de determinada perspectiva, que constrói o fenômeno observado. Um conceito luhmania- no de unidade operativa pode ajudar nesse debate. Unidade operativa seria um conjunto de operações significativas (exemplo: teo- rias, descrições) que provoca outras operações dentro do Direito, proporcionando opera- cionalidade a seus elementos (LUHMANN, 1996). Como exemplo de informações que possibilitam comunicações no Direito, cita-se um corpo legislativo, tal como o Código Civil. O Código Civil adquirirá um sentido a partir do Direito Administrativo e outro a partir do Direito do Trabalho –observado a partir de unidades operativas diferente. Os ramos permitem significações diferenciadas a enunciados normativos que estão à espera de significação. Os ramos permitem a existência de determinada estrutura de observações. No caso do Direito Administrativo, por exemplo, uma operação do tipo: “sempre que alguma pessoa da Administração Pública estiver envolvida aplica-se o Direito Administrativo, que é composto pelo corpo x de normas, com as exceções y”. A jurisprudência e a doutri- na, em seu trabalho de interpretação das normas legais, criam novas redes de princípios e critérios de observação (LUHMANN, 1995). Essas novas estruturas proporcionam senti- do diferenciado para o material que existe no ordenamento. Pode-se dizer, assim, que, a depender da evolução dos problemas sociais, as uni- dades operativas acabarão sendo reorganizadas pelo trabalho da doutrina e da jurispru- dência (já que não há divisão dos ramos absoluta ou no mundo das essências). A sua re- organização implicará fundamentar novos princípios, regime jurídico e talvez até mesmo novos ramos para o Direito. 3. Fuga do Direito Administrativo no Brasil O Brasil não passou imune às sucessivas ondas de liberalização econômica, com evidentes reflexos no campo do Direito Administrativo. O perfil do Estado brasileiro mu- dou, e não só o modelo do Estado empresário foi abandonado, mas também o do próprio Estado prestador de serviços. É importante dizer que o Direito Administrativo como legislação não foi revogado ou diminuído, mas foram observados o crescimento da assunção de serviços públicos por entidades de Direito Privado e a criação de novas figuras regidas pelo Direito Privado especializadas na realização de atividades antes tidas como públicas. Essas entidades de Direito Privado continuaram regidas, em suas estruturasinternas, pelo Direito Privado legislado – no Brasil, uma mistura de Código Napoleônico com Direito Comercial italia- no dos anos 1950 e algumas pitadas de Direito de Defesa do Consumidor. Note-se, con- tudo, que se desenvolveram impressionantes contribuições da doutrina e da jurisprudên- cia, além de alguns avanços legislativos pontuais, naqueles subramos do Direito Privado. Entretanto, os avanços se deram, notadamente, nas missões daqueles ramos, quais sejam, Caroline Müller Bitencourt • Janriê Rodrigues Reck 24 precisamente, reger de forma ética e justa a relação entre particulares que estão buscando realizar trocas econômicas ou normatizar relações afetivas. Assim, não se pode creditar falta de normas éticas no que se refere à prestação de serviços de relevância pública à pouca preocupação moral de seus cientistas, já que esse tipo de reflexão simplesmente não se põe para aqueles operadores. Apontar as falhas que o modelo de Administração Pública brasileiro e latino-a- mericano acabaram causando em matéria de moralidade administrativa é um dever dos administrativistas, mesmo que redunde um Direito policontexturalizado, nos dizeres de Günther e Teubner – ou melhor, um “Direito misturado”, ou que desrespeita as lógicas canônicas de divisão de disciplinas. A evolução legislativa brasileira das duas últimas décadas é demonstrativa do fe- nômeno de fuga do Direito Administrativo via transferência a pessoas jurídicas de Direito Privado (GUIMARÃES, 2010). Além disto, há projetos de lei e de políticas públicas que visam intensificar o fenômeno. Pode-se estabelecer, cronologicamente: • instrumentos tradicionais e sua intensificação, como delegação, permissão e concessão; • venda de empresas estatais; • intensificação da terceirização das atividades-meio no campo da Administração Pública e trâmites de projeto de lei oficializando para a atividade-fim; • surgimento da lei das organizações sociais (Lei nº 9.637), que permite a trans- ferência de pessoal, bens e recursos públicos sem licitação a organizações privadas, e sua consequente declaração de constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal, e sua posterior aplicação em âmbitos essenciais como a educação; • surgimento da lei das organizações de interesse público da sociedade civil (Lei nº 9.790), com possibilidade de entrega de recursos e atividades públicas sem licitação; • lei das parcerias públicas (Lei nº 11.079), com possibilidade de a Administração Pública contratar serviços em atividades-fim para si mesma (e não prestando a serviços a terceiros, como no caso das concessões). Essas normas, uma vez que permitem gestão interna da organização ou do ser- viço em caráter privado, tem provocado (ou pelo menos dão abertura) o seguinte tipo de comportamento, visto como legítimo, já que não há norma expressa que contrarie essas práticas: • emprego de parentes dos dirigentes em empresas prestadoras de serviços de utilidade pública; • demissão ou perseguição de funcionários por motivos ideológicos e partidários; • contratação de funcionários com base em critérios subjetivos ou ideológicos e partidários; • impossibilidade de acompanhamento da evolução patrimonial dos dirigentes; • aquisição de bens e serviços de terceiros com base em critérios subjetivos, de amizade ou partidários; 25 Políticas públicas e matriz pragmático-sistêmica: os novos caminhos científicos do Direito Administrativo no Brasil • impossibilidade de verificação dos elementos formadores dos preços cobrados; • inexistência de controle sobre as entradas financeiras nas empresas, de modo que não se pode diferenciar entre entrada de capitais legítima ou criminosa; • impossibilidade de participação administrativa na formulação das políticas in- ternas do serviço; • redução dos mecanismos de controle parlamentar das políticas de prestação dos serviços; • obstacularização de qualquer chance de o cidadão participar diretamente da ad- ministração interna do serviço, salvo mediante ouvidorias sem compulsoriedade; • descontrole sobre a atividade lobista e parlamentar, assim como os seus gastos – o cidadão não conhece a atividade política dos privados e como a cena política está sendo alterada em favor deles; • inexistência da obrigação de prestar e divulgar informações na internet; • participação financeiras dos funcionários e dirigentes em campanhas políticas; • envolvimento geopolítico com potências estrangeiras no caso de empresas pres- tadoras de serviços e bens estratégicos; • dificuldade de obter de informações por parte do próprio poder público ante o prestador privado; • contratação sem licitação do próprio prestador de serviço por parte do poder público; • doações e gastos despropositados do prestador de serviço – que repercutirão no preço final do bem ou serviço prestado. Assim, uma vez posto o problema, torna-se necessário superar a noção de que a di- visão público/privado é imóvel e absoluta (HABERMAS, 1990). O Direito privado possui em sua origem um núcleo, que é precisamente a irradiação da propriedade privada. Todos os institutos de Direito Civil acabaram se moldando em torno da noção de propriedade exclusiva. Se a propriedade é inclusiva e absoluta, também as empresas e demais direitos privados também assim o são. Entretanto, se fala aqui de interesse público, razão pela qual as bases de pensamento devem ser desenvolvidas em outro núcleo. Não é possível pensar que a noção romana de 2 mil anos atrás continue a reger atividades fundamentais para a vida em sociedade. 4. Reconstruindo as bases epistemológicas do Direito Administrativo É sabido que o Direito Administrativo, como unidade operativa, possui três códi- gos possíveis de entrada principais: os critérios subjetivos, objetivos e do regime jurídico. Não é intenção deste trabalho o resgate histórico ou uma análise exaustiva dos critérios. A partir da teoria dos sistemas, aprende-se que o critério de entrada em um sistema pode Caroline Müller Bitencourt • Janriê Rodrigues Reck 26 ser binário (exemplo: a pessoa faz parte ou não da Administração Pública para incidir o regime jurídico administrativo), mas o que faz incidir um dos lados do código (ser ou não pessoa da Administração Púbica) é uma multiplicidade de programas, observada pelo sis- tema mesmo. Conforme Luhmann (2002), essa é a razão do sucesso e da falha do critério do regime jurídico como código de entrada do Direito Administrativo: ao mesmo tempo que é óbvio que só pode ser entendido como algo que incide normas de Direito Adminis- trativo àquilo que o próprio regime jurídico diz que é Administração Pública, não restam dúvidas de que tal perspectiva mantém à deriva os processos de reconstrução racional dos critérios de entrada. Os demais critérios, o objetivo (Direito Administrativo é aquilo que tem a ver com função pública ou interesse público) e o subjetivo (Direito Administrativo é aquele que incide sobre as pessoas pertencentes à Administração Pública), de certo modo, também falham. O primeiro critério estabelece-se como uma fórmula da contingência, como diz Luhmann (2007). Esse tema será retomado logo a seguir; por enquanto, basta dizer que os administrativistas o abandonaram por conta da pouca segurança e vagueza que oferece. O critério subjetivo, ou seja, é Direito Administrativo o Direito das pessoas da Administração Pública, oferece alguma segurança. De fato, se a Constituição ou as leis infraconstitucionais estabelecem que determinada pessoa faz parte da Administração, torna-se fácil um esquema de operação (script, nos dizeres de Luhmann) que ligue aquela pessoa a um regime jurídico. Tal critério, porém, é insuficiente, pois a Constituição Fede- ral estabelece, em diversos dispositivos, o critério objetivo (ao determinar, por exemplo, que quem sofre abuso de poder de pessoa investida em autoridade públicapoderá invocar o mandado de segurança) ou quando estabelece a delegação cartorária, indicando tratar- -se de atividade de relevância pública. Por outro lado, há uma tímida evolução legislativa a indicar alguma aplicação de Direito Administrativo a particulares – como a recente lei an- ticorrupção e a lei de improbidade (ambas somente aplicáveis nas relações jurídicas com a Administração Pública). É necessário lembrar, por outro lado, as atuais construções em termos de Direitos Fundamentais. Uma vez que só há direitos fundamentais enquanto há políticas públicas e serviços públicos, fala-se hoje que o Direito Administrativo é, no final das contas, o Direito Constitucional materializado. Se o Direito Administrativo assumiu nova missão, a de colocar condições para a promoção de políticas públicas realizadoras de Direitos Fundamentais, seu centro se desloca das pessoas da Administração Pública para o cidadão, tornando tênues os critérios antes estabelecidos. O critério subjetivo mostrou-se, assim, insuficiente para uma descrição minima- mente complexa do Direito Administrativo em suas novas facetas. Além disso, também não está adequado às novas demandas que estão emergindo. De fato, conforme descrito, há uma poderosa onda de atividades de interesse público sendo levada a cabo por pessoas jurídicas privadas – com consequências desastrosas para a moralidade pública e para os valores constitucionais. Propõe-se uma refundação do Direito Administrativo a partir de uma perspectiva pós-moderna de reconhecimento da indeterminação e do paradoxo. Dados os estreitos limites deste trabalho, as novas bases são enunciadas de forma objetiva: 27 Políticas públicas e matriz pragmático-sistêmica: os novos caminhos científicos do Direito Administrativo no Brasil • resgate do critério objetivo para caracterização da incidência do Direito Admi- nistrativo, com abandono das pretensões metafísicas de desenvolvimento de um conceito seguro e preciso de interesse público; • interesse e utilidade pública passam a ser fórmulas da contingência ou, em outras palavras, termos que, em si, são vagos e meramente simbólicos, mas adquirem alguma consistência por meio de uma rede de outros conceitos, que remetem à fórmula (o conceito de interesse público seria formado, assim, por leis administrativas, jurisprudência, doutri- na, princípios constitucionais, boas práticas, etc.) • generalização do conceito de utilidade pública para as entidades privadas que prestam serviços econômicos de relevância pública (boa parte antigos serviços públicos); • reconhecimento de políticas públicas policontexturais, ou seja, políticas públi- cas que não funcionam na lógica única de arrecadação de tributos > estrutura pública > prestação de serviços públicos e aplicação de poder de polícia, mas que operam a partir de outras lógicas; • aplicação do Direito Administrativo não só nas relações entre privados entre si e com a Administração Pública, mas também nas relações nas próprias pessoas jurídicas privadas; • moralidade administrativa como um dos princípios estruturantes e reitores do Direito Administrativo; • complexidade e policontexturalidade dentro do próprio Direito Administrativo (mais importante). Sobre esses elementos, discorrem-se algumas reflexões a seguir. De fato, um dos dogmas do Direito como um todo é a consistência – ou tratar ca- sos iguais de forma igual. Assim, é dificultoso ao jurista pensar que é possível a existência de diversos regimes jurídicos de Direito Administrativo para diferentes contextos, mas justamente a fórmula da consistência possui outro lado: tentativa de trabalhar adequada- mente as peculiaridades (LUHMANN, 2002). O Direito Administrativo precisa se reinventar e os juristas precisam entender que é possível existir múltiplos contextos de aplicação do Direito Administrativo, com diversos regimes jurídicos diferenciados. Significa dizer que o Direito Administrativo, como Direito do interesse público e das políticas públicas, pode incidir em diversas inten- sidades, com diversos regimes jurídicos. Por exemplo, a Administração Direta possui um regime jurídico de Direito Administrativo intenso. Uma sociedade de economia mista, um regime jurídico já com intensidade menor de incidência de normas de Direito Admi- nistrativo. O tabu que precisa ser rompido, contudo, é precisamente o da incidência das normas de Direito Administrativo sobre entidades privadas de utilidade pública. Uma vez sendo substituído o critério subjetivo como predominante (e já há exemplos no orde- namento jurídico brasileiro) para o da utilidade pública, se poderá pensar não no fim do Direito Administrativo, mas na sua expansão a fronteiras ainda inexploradas. Tal neces- sidade se impõe diante de uma evidente recepção incompleta dos valores constitucionais em face da canônica divisão direito público/privado. Advoga-se aqui não uma construção a priori desse regime jurídico; de fato, a moralidade administrativa está na Constituição. Caroline Müller Bitencourt • Janriê Rodrigues Reck 28 Pretende-se, então, fazer uma leitura constitucionalmente adequada dos valores constitu- cionais presentes na Administração Pública. Desse modo, estabelece-se uma relação com o que foi construído até aqui. De- monstrou-se que o Direito não pode prescindir das conquistas epistemológicas da con- temporaneidade e que elas repercutem na metafísica, distinção em público e privado (CLAM, 2006). Em seguida, abordaram-se algumas tendências no campo das políticas públicas e a contínua transferência de atividades públicas para entes privados abre portas para a corrupção. Finalmente, fundamentou-se a necessidade de uma nova base episte- mológica para o Direito Administrativo para fins de aplicação do princípio da moralidade administrativa em conexão com as atividades de relevância pública. 5. Obrigações de Direito Administrativo e seu resgate nas pessoas de Direito Privado A moralidade administrativa está presente no art. 37 da Constituição Federal do Brasil, enunciada como princípio. Ao contrário do princípio da legalidade e da publicida- de, os quais podem ser vistos como programas (se for para criar uma expectativa norma- tiva que seja por lei – legalidade; quem participar da atividade administrativa deve divul- gar informações – publicidade), o princípio da moralidade parece ser mais uma unidade operativa do que um programa jurídico. Significa dizer que o princípio da moralidade não tem um conteúdo próprio, mas cumpre a importante função, para o sistema jurídico, de unir diversas normas que já existem a partir de uma perspectiva específica – a saber, a da coisa certa a se fazer. Se alguém tem dúvidas sobre contratar parentes para trabalhar na Administração, usa-se uma regra que já existe (a da não discriminação) aplicada a partir da perspectiva moralista; se há dúvidas a respeito de um servidor que trabalha em um tri- bunal poder advogar, coloca-se a questão na perspectiva na captação indevida de clientes e tráfico de influência. Enfim, a regra da moralidade opera conectando diferentes regras. É importante dizer que o critério subjetivo para a aplicação das regras da Administração Pública – incluindo a moralidade administrativa – é doutrinário, não é visualizado na Constituição expressamente, razão pela qual é necessário fazer uma leitura concretista da Constituição. Cabe à ciência do Direito, trabalhar para que os princípios e as regras constitucionais sejam aplicáveis com o máximo de efetividade possível. Assim, caso se queira que a atividade administrativa seja regida por regras de moralidade, que o dinheiro público seja aplicado de modo justo e que as atividades de utilidade pública sejam regidas pelo interesse público, será necessário adaptar o regime jurídico de Direito Privado e refletir em termos de policontexturalidade, pensando numa aplicação mista dos regimes para evitarpatologias corruptivas (LEAL, 2013). Assim, são obrigações de serviço público e de Direito Administrativo que incidem sobre privados, quando no exercício de uma função pública, as estipuladas a seguir. Todas estão baseadas no princípio republicano, no direito fundamental ao bom governo e em normas que estão expressas em todas as Constituições da América Latina: 29 Políticas públicas e matriz pragmático-sistêmica: os novos caminhos científicos do Direito Administrativo no Brasil não contratação de parentes para o exercício de emprego em empresas, concessio- nários e delegatórios de funções públicas, já que o critério de contratação é uma relação de afetividade, e não competência e isonomia, o que fere o valor republicano da igualdade; proibição da denúncia imotivada ou vazia do contrato de trabalho e possibilidade de controle jurisdicional da despedida mediante provocação do empregado, para evitar perseguições políticas – já que, em uma República, há pluralismo e igualdade de chances entre os partidos, sendo imoral favorecer o partido que eventualmente estava no governo no momento da outorga do serviço, delegação ou concessão; novamente, para evitar partidarismo e preferências pessoais, há de se estabelecer critérios impessoais para contratação de trabalhadores. É evidente que uma pequena ONG ou delegatário de serviço público não pode realizar um concurso público; pode, contudo, realizar um processo seletivo simplificado; grandes empresas prestadoras de uma função pública estão obrigadas ao concurso público, contudo, dado o princípio republicano da igualdade; • os bens e serviços a serem contratados pelas empresas e delegatários devem estar guiados por critérios impessoais, e não preferências políticas – logo, alguma espécie de licitação ou seleção simplificada é necessária para o operador de função pública adquira bens licitamente; • transparência e abertura total das planilhas de custos – o princípio da publicida- de não pode deixado de lado em uma República; • transparência e divulgação da contabilidade da empresa, com abertura bancária, de modo que o cidadão possa conferir as entradas e saídas de recursos e suas correspon- dências nas contas bancárias; • conselhos com participação da Administração Pública e de cidadãos, com com- petência para elaboração de diretrizes no que toca ao serviço e às políticas da empresa – mesmo que seja uma sociedade anônima, uma vez que o valor democracia em uma Re- pública é mais importante que um aspecto apenas do direito de titularidade de uma ação; • transparência total dos gastos e das relações de diretores com partidos e repre- sentantes de empresas perante partidos; • divulgação total de salários, contabilidade, planilha de custos, entradas, saídas e gastos em sítios da internet; • transparência das relações de empresas multinacionais com seus Estados de ori- gem/controladores; • controle de gastos com doações/investimentos dos prestadores de serviços públi- cos e de utilidade pública; • controle jurisdicional interna corporis dos atos dos prestadores de serviços de utilidade pública, mediante critérios como parâmetros para controle dos atos administra- tivos, como moralidade e finalidade; • acompanhamento da evolução patrimonial dos proprietários e dirigentes das en- tidades privadas. Caroline Müller Bitencourt • Janriê Rodrigues Reck 30 Com essas medidas, reduz-se o nível de arbitrariedade e desconexão do interesse público relacionado com os particulares prestadores de serviços públicos e serviços eco- nômicos de utilidade pública. Conclusão O problema que orientava este trabalho faz referência às insuficiências do regime jurídico de Direito Privado quanto à moralidade administrativa e à necessidade de revisão das bases epistemológicas do Direito Administrativo e do Direito Privado, com o conse- quente retorno do Direito Administrativo. Em um primeiro momento, desmontou-se o caráter canônico da divisão público/ privado, em uma superação da metafísica clássica; em um segundo, as inconveniências da fuga do Direito Administrativo. Essa foi a ponta para a fundamentação da aplicação do princípio da moralidade administrativa como elemento de refundação e resgate do Di- reito Administrativo, alterando o regime jurídico das instituições de Direito Privado. Em seguida, fundamentaram-se algumas normas aplicáveis às instituições privadas, como a vedação ao nepotismo, a necessidade de prestação de informações e a impossibilidade de denúncia vazia do trabalhador. 31 Políticas públicas e matriz pragmático-sistêmica: os novos caminhos científicos do Direito Administrativo no Brasil Referências CLAM, J. Questões fundamentais de uma teoria da sociedade: contingência, paradoxo, só-efetuação. São Leopoldo: Unisinos, 2006. GUIMARÃES, B. S. O Exercício da Função Administrativa e o Direito Privado. Tese de Doutorado. São Paulo: USP, 2010. HABERMAS, J. Pensamento Pós-Metafísico: estudos filosóficos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990. KELSEN, H. Teoria Geral das Normas. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1986. LEAL, R. G. Patologias Corruptivas nas Relações Entre Estado, Administração Pública e Sociedade: Causas, Consequências e Tratamentos. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2013. LUHMANN, N. El Derecho de la sociedad. 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Significa, desse modo, aplicar a matriz pragmática para observar como a competência – a partir do conceito de decisão – é capaz de coordenar ações dentro do Direito. Delimita-se o tema, espacialmente, na experiência ocidental da ciência jurídica, uma vez que decisão e competência são temáticas de Teoria do Direito, Filosofia do Di- reito e Direito Constitucional, comuns aos desafios enfrentados desde sua definição como observáveis pelo Direito, notadamente a partir do Estado moderno. Para o enfrentamento do problema, ainda, emprestam-se reflexões da Pragmática da Ação, da Democracia Dis- cursiva e da Teoria dos Sistemas. O problema que norteia este trabalho diz respeito a como a matriz pragmático-sis- têmica observa a competência e sua inserção no Direito. Significa que é necessário resol- ver, primeiro, a questão de como a matriz pragmático-sistêmica possibilita a leitura da decisão, competência e coordenação de ações a partir de construções mais sofisticadas (e suas conexões), assim como, em um segundo momento, refazer a observação das relações entre decisão e competência, já observadas a partir das novas categorias. A hipótese é a de que a competência pode ser observada a partir de diversas ca- tegorias de observação. Se observada a inserção da competência na cadeia de decisões do Direito, se perceberá tanto a competência quanto a interpretação sobre a competência como decisões. Tais decisões podem ser mais bem observadas se conectadas com as cons- truções de Habermas sobre a função social do Direito. Uma das funções sociais é, preci- samente, gerar coordenação; para tanto, é necessário valer-se de uma teoria pragmática do significado, o que não significa esgotar o problema de como é possível
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