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EMENTA: MANDADO DE SEGURANÇA. REFORMA AGRÁRIA. IMÓVEL RURAL. INVASÃO DA PROPRIEDADE POR TRABALHADORES RURAIS REUNIDOS EM MOVIMENTO SOCIAL ORGANIZADO. ESBULHO POSSESSÓRIO PRATICADO MEDIANTE AÇÃO COLETIVA. PRÁTICA ILÍCITA DE VIOLAÇÃO POSSESSÓRIA QUE COMPROMETE A RACIONAL E ADEQUADA EXPLORAÇÃO DO IMÓVEL RURAL, APTA A AFASTAR A ALEGAÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE. SITUAÇÃO CONFIGURADORA DE FORÇA MAIOR. DESCABIMENTO DA DESAPROPRIAÇÃO-SANÇÃO (CF, ART. 184, “CAPUT”). INVALIDAÇÃO DA DECLARAÇÃO EXPROPRIATÓRIA. MANDADO DE SEGURANÇA DEFERIDO.
– A prática ilícita do esbulho possessório que compromete a racional e adequada exploração do imóvel rural qualifica-se, em face do caráter extraordinário que decorre dessa anômala situação, como hipótese configuradora de força maior, constituindo, por efeito da incidência dessa circunstância excepcional, causa inibitória da válida edição do decreto presidencial consubstanciador da declaração expropriatória, por interesse social, para fins de reforma agrária, notadamente naqueles casos em que a direta e imediata ação predatória desenvolvida pelos invasores culmina por frustrar a própria realização da função social inerente à propriedade. Precedentes.
– O Supremo Tribunal Federal, em tema de reforma agrária (como em outro qualquer), não pode chancelar, jurisdicionalmente, atos e medidas que, perpetrados à margem da lei e do direito por movimentos sociais organizados, transgridem, comprometem e ofendem a integridade da ordem jurídica fundada em princípios e em valores consagrados pela própria Constituição da República. Precedentes.
– A necessidade de observância do império da lei (“rule of law”) e a possibilidade de acesso à tutela jurisdicional do Estado – que configuram valores essenciais em uma sociedade democrática – devem representar o sopro inspirador da harmonia social, significando, por isso mesmo, um veto permanente a qualquer tipo de comportamento cuja motivação resulte do intuito deliberado de praticar atos inaceitáveis de violência e de ilicitude, como os atos de invasão da propriedade alheia e de desrespeito à autoridade das leis e à supremacia da Constituição da República perpetrados por movimentos sociais organizados, como o MST.
DECISÃO: Registro, preliminarmente, por necessário, que o Supremo Tribunal Federal, mediante edição da Emenda Regimental nº 28, de 18 de fevereiro de 2009, delegou expressa competência ao Relator da causa para, em sede de julgamento monocrático, denegar ou conceder a ordem de mandado de segurança, desde que a matéria versada no “writ” em questão constitua “objeto de jurisprudência consolidada do Tribunal” (RISTF, art. 205, “caput”, na redação dada pela ER nº 28/2009).
Ao assim proceder, fazendo-o mediante interna delegação de atribuições jurisdicionais, esta Suprema Corte, atenta às exigências de celeridade e de racionalização do processo decisório, limitou-se a reafirmar princípio consagrado em nosso ordenamento positivo (RISTF, art. 21, § 1º; Lei nº 8.038/90, art. 38; CPC, 544, § 4º) que autoriza o Relator da causa a decidir, monocraticamente, o litígio, sempre que este referir-se a tema já definido em “jurisprudência dominante” no Supremo Tribunal Federal.
Nem se alegue que essa orientação implicaria transgressão ao princípio da colegialidade, eis que o postulado em questão sempre restará preservado ante a possibilidade de submissão da decisão singular ao controle recursal dos órgãos colegiados no âmbito do Supremo Tribunal Federal, consoante esta Corte tem reiteradamente proclamado (RTJ 181/1133-1134, Rel. Min. CARLOS VELLOSO – AI 159.892-AgR/SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.).
A legitimidade jurídica desse entendimento – que vem sendo observado na prática processual desta Suprema Corte (MS 27.236-AgR/DF, Rel. Min. RICARDO LEWANDOWSKI – MS 27.649/DF, Rel. Min. CEZAR PELUSO – MS 27.962/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.) – decorre da circunstância de o Relator da causa, no desempenho de seus poderes processuais, dispor de plena competência para exercer, monocraticamente, o controle das ações, pedidos ou recursos dirigidos ao Supremo Tribunal Federal, justificando-se, em consequência, os atos decisórios que, nessa condição, venha a praticar (RTJ 139/53 – RTJ 168/174-175 – RTJ 173/948), valendo assinalar, quanto ao aspecto ora ressaltado, que o Plenário deste Tribunal ao apreciar o MS 28.790-ED/DF, Rel. Min. DIAS TOFFOLI, reafirmou a possibilidade processual do julgamento monocrático do próprio mérito da ação de mandado de segurança, desde que observados os requisitos estabelecidos no art. 205 do RISTF, na redação dada pela Emenda Regimental nº 28/2009.
Tendo em vista essa delegação regimental de competência ao Relator da causa, impõe-se reconhecer que a controvérsia mandamental ora em exame ajusta-se à jurisprudência que o Supremo Tribunal Federal firmou na matéria em análise, o que possibilita seja proferida decisão monocrática sobre o litígio em questão.
Trata-se de mandado de segurança impetrado com o objetivo de questionar a validade jurídica do ato emanado da Senhora Presidente da República (Decreto de 26 de dezembro de 2013, publicado no DOU nº 251, de 27/12/2013), que declarou de interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural denominado “Fazenda Vista Alegre”.
Esta impetração mandamental sustenta-se, em síntese, nos seguintes fundamentos:
“(...) o parágrafo 6º, do art. 2º, da Lei 8.629/93 determina que o imóvel rural público ou particular que seja objeto de esbulho ou turbação não será vistoriado, avaliado ou desapropriado por um período de 02 (dois) anos, contados a partir da desocupação do imóvel e reintegração na posse dos legítimos proprietários, sendo cabível a prorrogação por igual período, ou seja, MAIS 02 (DOIS) ANOS, no caso de reincidência.
Ora, é isto o que ocorreu no caso em tela, pois o imóvel dos impetrantes sofreu duas invasões no ano de 2009 e mais uma invasão no dia 20 de janeiro de 2013, todas, decorrentes de conflito fundiário perpetrado por membros do MST com a finalidade de pressionar para a desapropriação do imóvel para efeito de reforma agrária.
Em casos como o que ora apresentamos, fica evidente a ilegalidade do decreto de desapropriação expedido pela Sra. Presidente da República, pois viola de forma direta o artigo 2º, parágrafo sexto, da Lei n.º 8.629/93 e, principalmente, o espírito da norma, tão bem exposto e defendido pelo próprio Supremo Tribunal Federal (...).” (grifei)
A Senhora Presidente da República, ao prestar as informações que lhe foram solicitadas, sustentou a validade jurídica da declaração expropriatória em causa.
Em juízo de estrita delibação, indeferi o pedido de medida liminar formulado pelos ora impetrantes.
O Ministério Público Federal, em manifestação do eminente Chefe da Instituição, opinou pela concessão da segurança, em pronunciamento que está assim ementado:
“ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL. MANDADO DE SEGURANÇA. DESAPROPRIAÇÃO PARA FINS DE REFORMA AGRÁRIA. IMÓVEL RURAL OBJETO DE INVASÃO. LEI 8.629/93.
1 – O parágrafo 6º do artigo 2º da Lei 8.629/93 dispõe que o imóvel rural objeto de invasão não poderá sofrer desapropriação nos dois anos seguintes à desocupação.
2 – Decisão judicial de primeiro grau a certificar esbulho possessório ocorrido em janeiro de 2014.
3 – Parecer pela concessão de segurança.” (grifei)
Sendo esse o contexto, passo a apreciar a presente controvérsia mandamental. E, ao fazê-lo, entendo que os fundamentos em que se apoia esta impetração justificam a concessão do mandado de segurança, especialmente se se tiver presente a jurisprudência que o Supremo Tribunal Federal firmou na matéria ora em exame, em decisões proferidas a propósito de declarações expropriatórias de imóveis rurais objeto de esbulho possessório.
Em tais decisões, esta Corte Suprema – considerado, sobretudo, o julgamento plenário da ADI 2.213-MC/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO (RTJ 190/139-143), em que se reconheceu, em juízo de delibação, aplena legitimidade constitucional do art. 2º, § 6º, da Lei nº 8.629/93, na redação dada pela MP nº 2.183-56, de 24/08/2001 – tem advertido que o esbulho possessório, enquanto subsistir (e até dois anos após a desocupação do imóvel rural invadido por movimentos sociais organizados), impede que se pratiquem atos de vistoria, de avaliação e de desapropriação da propriedade imobiliária rural, por interesse social, para efeito de reforma agrária, pois a prática da violação possessória, além de configurar ato impregnado de evidente ilicitude, revela-se apta a comprometer a racional e adequada exploração do imóvel rural, justificando-se, por isso mesmo, a invocação da “vis major”, em ordem a afastar a alegação de descumprimento da função social (RTJ 182/545, Rel. Min. ELLEN GRACIE – MS 23.563/GO, Rel. p/ o acórdão Min. MAURÍCIO CORRÊA, v.g.):
“– CONSTITUCIONAL. AGRÁRIO. REFORMA AGRÁRIA: DESAPROPRIAÇÃO. IMÓVEL INVADIDO: ‘SEM- -TERRA’.
I. – Imóvel rural ocupado por famílias dos denominados ‘sem-terra’: situação configuradora da justificativa do descumprimento do dever de tornar produtivo o imóvel. Força maior prevista no § 7º do art. 6º da Lei 8.629/93. Precedentes do Supremo Tribunal Federal.
II. – Mandado de segurança deferido.”
(RTJ 188/131, Rel. Min. CARLOS VELLOSO – grifei) 
“A prática ilícita do esbulho possessório, quando afetar os graus de utilização da terra e de eficiência em sua exploração, comprometendo os índices fixados por órgão federal competente, qualifica-se, em face do caráter extraordinário que decorre dessa anômala situação, como hipótese configuradora de força maior, constituindo, por efeito da incidência dessa circunstância excepcional, causa inibitória da válida edição do decreto presidencial consubstanciador da declaração expropriatória, por interesse social, para fins de reforma agrária, notadamente naqueles casos em que o coeficiente de produtividade fundiária – revelador do caráter produtivo da propriedade imobiliária rural e assim comprovado por registro constante do Sistema Nacional de Cadastro Rural – vem a ser descaracterizado como decorrência direta e imediata da ação predatória desenvolvida pelos invasores, cujo comportamento, frontalmente desautorizado pelo ordenamento jurídico, culmina por frustrar a própria realização da função social inerente à propriedade. Precedentes.”
(RTJ 187/910, Rel. Min. CELSO DE MELLO)
O Supremo Tribunal Federal, ao extrair consequências jurídicas do esbulho possessório praticado por terceiros, notadamente quando organizados em movimentos coletivos, teve presente – em casos nos quais invalidou a declaração expropriatória emanada do Presidente da República – a circunstância excepcional ora referida.
Esta Suprema Corte, por mais de uma vez, pronunciando-se sobre a questão específica do esbulho possessório, executado, mediante ação coletiva, por movimentos de trabalhadores rurais, não hesitou em censurar essa prática ilícita, ao mesmo tempo em que invalidou o decreto presidencial consubstanciador da declaração expropriatória de imóveis rurais, pois, com a arbitrária ocupação de tais bens, não mais se viabiliza a realização de vistoria destinada a constatar se a propriedade invadida teria atingido, ou não, coeficientes mínimos de produtividade fundiária.
Esse entendimento – que identifica, no ato de esbulho possessório, causa impeditiva de declaração expropriatória do imóvel rural, para fins de reforma agrária (RTJ 182/545, Rel. Min. ELLEN GRACIE – RTJ 183/171, Rel. Min. NÉRI DA SILVEIRA – MS 23.323/PR, Rel. Min. NÉRI DA SILVEIRA, v.g.) – acentua que a ocupação ilícita da propriedade imobiliária, notadamente nos casos em que esta se faz de modo coletivo, além de impedir, injustamente, que o proprietário nela desenvolva regular atividade de exploração econômica, representa motivo legítimo que justifica, ante o caráter extraordinário de tal anômala situação, a impossibilidade de o imóvel invadido atender os graus mínimos de produtividade exigidos pelo ordenamento positivo, para, desse modo, poder realizar a função social que lhe é inerente.
Esse particular aspecto da questão resultou evidenciado, quando do julgamento plenário, por esta Suprema Corte, do MS 22.666/PR, Rel. Min. ILMAR GALVÃO (RTJ 175/921), ocasião em que o Tribunal anulou declaração expropriatória que incidira sobre imóvel rural cujas atividades foram injustamente paralisadas, por efeito de esbulho possessório praticado, coletivamente, por movimento de trabalhadores rurais.
O acórdão consubstanciador desse julgamento está assim ementado:
“REFORMA AGRÁRIA. IMÓVEL RURAL. DECRETO QUE O DECLAROU DE INTERESSE SOCIAL, PARA ESSE FIM. ALEGADA AFRONTA AO ART. 185, II, DA CONSTITUIÇÃO.
Imóvel que cumpriu sua função social até ser invadido por agricultores ‘sem-terra’, em meados de 1996, quando teve suas atividades paralisadas.
Situação configuradora da justificativa da força maior, prevista no § 7º do art. 6º da Lei nº 8.629/93, que tem por efeito tornar o imóvel insuscetível de desapropriação por interesse social, para fim de reforma agrária.
Mandado de segurança deferido.” (grifei)
Essa mesma orientação foi reiterada pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal no julgamento do MS 22.328/PR, Rel. Min. ILMAR GALVÃO (RTJ 163/984-985), em que se reconheceu a invalidade da declaração expropriatória de imóvel rural comprometido, em razão do esbulho possessório que injustamente o atingira, na consecução dos índices adequados de produtividade compatíveis com as exigências estipuladas em lei, considerados, para esse efeito, os cálculos do GUT (Grau de Utilização da Terra) e do GEE (Grau de Exploração Econômica):
“DECRETO QUE DECLAROU DE INTERESSE SOCIAL, PARA FINS DE REFORMA AGRÁRIA, O IMÓVEL RURAL DENOMINADO ‘FAZENDA INGÁ’, NO MUNICÍPIO DE ALVORADA DO SUL, PARANÁ.
Procedência da alegação de que a ocupação do imóvel pelos chamados ‘sem terra’ em 1991, ano em que os impetrantes se haviam investido na sua posse, constituindo fato suficiente para justificar o descumprimento do dever de tê-lo tornado produtivo e tendo-se revelado insuscetível de ser removido por sua própria iniciativa, configura hipótese de caso fortuito e força maior previsto no art. 6º, § 7º, da Lei nº 8.629/93, a impedir a classificação do imóvel como não produtivo, inviabilizando, por conseqüência, a desapropriação.
Mandado de segurança deferido.” (grifei)
Cumpre também destacar que esse particular aspecto da questão – impossibilidade de realização de vistoria, avaliação ou desapropriação em imóvel rural invadido (seja durante a invasão, seja nos dois anos subsequentes à desocupação), além da prática de outros atos tendentes à formalização da própria declaração expropriatória – resultou evidenciado, quando do julgamento da ADI 2.213-MC/DF, de que sou Relator, ocasião em que o Egrégio Plenário desta Suprema Corte reconheceu, por expressiva maioria, a validade jurídico-constitucional do § 6º do art. 2º da Lei nº 8.629/93, cuja redação, nos termos da MP nº 2.183-56, de 24/08/2001, é a seguinte:
“‘Art. 2º (...)
§ 6º O imóvel rural de domínio público ou particular objeto de esbulho possessório ou invasão motivada por conflito agrário ou fundiário de caráter coletivo não será vistoriado, avaliado ou desapropriado nos dois anos seguintes à sua desocupação, ou no dobro desse prazo, em caso de reincidência; e deverá ser apurada a responsabilidade civil e administrativa de quem concorra com qualquer ato omissivo ou comissivo que propicie o descumprimento dessas vedações.” (grifei)
Não custa rememorar, por oportuno, que a limitação constante da norma em exame não faz instaurar hipótese nova de inexpropriabilidade, mas encontra sua razão de ser na necessidade de permitir, ao longo daquele lapso temporal, que se torne possível a reorganização do sistema de produção fundiária, além de viabilizar a própria recuperação física ou material do prédio invadido ou esbulhado, muitas vezes substancialmente afetado, em seu grau de produtividade, pelaação predatória praticada pelos invasores.
Isso quer dizer, portanto, que eventual autolimitação que se haja imposto ao próprio Poder Executivo da União, em tema de desapropriação, não significa que se esteja a criar, em sede normativa, um novo tipo de propriedade imobiliária, imune à ação expropriatória da União Federal, para fins de reforma agrária.
Na realidade, a regra em questão limitou-se a projetar, no plano normativo, consequência derivada da própria jurisprudência firmada pelo Supremo Tribunal Federal, cuja orientação – em tema de desapropriação, para reforma agrária, de imóveis objeto de esbulho possessório – consolidou-se, como precedentemente referido, no sentido de invalidar o ato expropriatório, por reconhecer presente, em tal anômala situação, hipótese configuradora de força maior, apta, por si só, a impedir a descaracterização do imóvel invadido como propriedade produtiva, na linha do que estabelece a própria Lei nº 8.629/93, em seu art. 6º, § 7º.
Insista-se, portanto, que regras legais, como a ora mencionada, buscam, de um lado, dar concreção à própria função social da propriedade e objetivam, de outro, a conferir real expressão à garantia constitucional do direito de propriedade.
É preciso ter presente, ainda, que a norma ora em exame prende-se à circunstância de que o processo de reforma agrária, em nosso país, não pode ser conduzido de maneira arbitrária, nem de modo ofensivo à garantia constitucional da propriedade.
Nada justifica o emprego ilegítimo do instrumento expropriatório, quando utilizado, pelo poder estatal, com evidente transgressão dos princípios e das normas que regem e disciplinam as relações entre as pessoas e o Estado.
Essa mesma advertência também se impõe a quaisquer particulares, movimentos ou organizações sociais que visem, pelo emprego arbitrário da força e pela ocupação ilícita de imóveis rurais, a constranger o Poder Público a promover ações expropriatórias.
A União Federal alega, no entanto, que “não houve infração ao disposto no art. 2º, § 6º, da Lei 8.629/93”, porquanto “a primeira invasão teria ocorrido em 22/02/2009, a segunda em 28/06/2009, e a terceira em 20/01/2013; todos fatos posteriores à vistoria de fiscalização do INCRA em 13 a 22 de agosto de 2008”.
Entendo inacolhível essa alegação deduzida pela União Federal. É que esta Suprema Corte, ao julgar o MS 25.493/DF, Rel. Min. MARCO AURÉLIO, reafirmou, na linha do que o Plenário desta Corte já proclamara na ADI 2.213-MC/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO, a inteira validade jurídica do § 6º do art. 2º da Lei nº 8.629/93.
E a razão desse entendimento é uma só: os atos reveladores de violação possessória, além de instaurarem situações impregnadas de inegável ilicitude civil e penal (CP, art. 161, § 1º, II), traduzem hipóteses caracterizadoras de força maior, aptas, quando concretamente ocorrentes, a infirmar a própria eficácia da declaração expropriatória, tal como esta Suprema Corte tem decidido:
“MANDADO DE SEGURANÇA. DESAPROPRIAÇÃO. REFORMA AGRÁRIA. PROCEDIMENTO. VISTORIA. NOTIFICAÇÃO. IRREGULARIDADE. NÃO CONFIGURAÇÃO. PRODUTIVIDADE. AVALIAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. OCUPAÇÃO DA ÁREA DESAPROPRIANDA POR ‘SEM-TERRA’. CASO FORTUITO OU FORÇA MAIOR. OCORRÊNCIA. PROCEDÊNCIA DO PEDIDO.
1. Notificação prévia. Formalidade essencial. Irregularidade no procedimento. Inexistência. 
	Sucessivas invasões do imóvel por integrantes do ‘Movimento dos Sem Terra’. Configuração de motivo de força maior ou de caso fortuito, capaz de impedir a adequada avaliação da produtividade do imóvel. Lei 8629/93, artigo 6º, § 7º.
	
Segurança concedida.”
(MS 23.563/GO, Red. p/ o acórdão Min. MAURÍCIO CORRÊA – grifei)
Cabe assinalar, ainda, que a decisão proferida, nos autos do Interdito Proibitório nº 0007466-17.2009.8.26.0168, pelo MM. Juiz de Direito da 3ª Vara da comarca de Dracena/SP, destacou que essa não era a primeira oportunidade em que o imóvel em referência sofria esbulho possessório, valendo destacar, por sua pertinência, a seguinte passagem: 
“1. O autor pediu e obteve uma medida liminar nos autos do Interdito proibitório sobre o imóvel descrito na inicial. Acontece que veio notícia nos autos de nova turbação na posse do mesmo imóvel o que foi certificado pelo Sr. Oficial de Justiça à fls. 289.
2. Como já determinado na decisão inicial (fls. 222/223), ficaram os requeridos proibidos de praticarem quaisquer atos de turbação ou esbulho, sob pena de pagar multa diária.
3. E, sem prejuízo da sanção pecuniária se verificasse a concreta moléstia à posse ou esbulho possessório, transformar-se-ia a presente ação de interdito proibitório em ação de Manutenção ou Reintegração, bastando apenas que a parte prejudicada comunicasse o fato ao Juiz e requeresse o mandado respectivo (CPC, Art. 920 e RT 490/75, JTA 98/186).
4. Assim sendo nos termos do artigo 928 do CPC, em razão dos argumentos expostos e documentos atrelados na petição de fls. 268/270 e certidão do oficial de fls. 289, verifico que são verossímeis e plausíveis, numa primeira análise os fatos alegados pelo autor, consistente na injusta molestação da posse de um bem que lhe pertence, embora demonstrada a continuação da aludida posse.” (grifei)
A situação anômala derivada de reiteradas práticas ilícitas de esbulho possessório, especialmente quando perpetradas por movimentos sociais organizados, como aqueles liderados pelo MST, impõe um registro final, que entendo necessário e pertinente, pois – como sempre tenho afirmado em decisões por mim proferidas – esta Corte Suprema não pode chancelar, jurisdicionalmente, atos e medidas que, cometidos à margem da lei e do direito, transgridem, comprometem e ofendem a integridade da ordem jurídica fundada em princípios e em valores consagrados pela própria Constituição da República.
Tenho salientado, em votos proferidos no Supremo Tribunal Federal, que não se pode desconsiderar o fato relevantíssimo de que vivemos sob um regime constitucional cujos fundamentos, estruturados em bases democráticas, garantem a intangibilidade do direito de propriedade (embora este não possua caráter absoluto), ao mesmo tempo em que disciplinam o procedimento de expropriação dos bens pertencentes ao patrimônio privado.
Não questiono a necessidade de execução, no País, de um programa de reforma agrária, cuja implementação se faz inadiável e essencial à superação dos conflitos fundiários e à viabilização do acesso dos despossuídos à propriedade da terra.
É que o acesso à terra, a solução dos conflitos sociais, o aproveitamento racional e adequado do imóvel rural, a utilização apropriada dos recursos naturais disponíveis e a preservação do meio ambiente constituem, inegavelmente, elementos de realização da função social da propriedade. A desapropriação, nesse contexto – enquanto sanção constitucional ao descumprimento da função social da propriedade (JOSÉ AFONSO DA SILVA, “Curso de Direito Constitucional Positivo”, p. 281, item n. 13, 32ª ed., 2009, Malheiros) – reflete importante instrumento destinado a dar consequência aos compromissos assumidos pelo Estado na ordem econômica e social.
Isso significa, portanto, que incumbe, ao proprietário da terra, o dever jurídico-social de cultivá-la e de explorá-la adequadamente, sob pena de incidir nas disposições constitucionais e legais que sancionam os senhores de imóveis ociosos, não cultivados e/ou improdutivos, pois só se tem por atendida a função social que condiciona o exercício do direito de propriedade, quando o titular do domínio cumprir a obrigação (1) de favorecer o bem-estar dos que na terra labutam; (2) de manter níveis satisfatórios de produtividade; (3) de assegurar a conservação dos recursos naturais; e (4) de observar as disposições legais que regulam as justas relações de trabalho entre os que possuem o domínio e aqueles que cultivam a propriedade.
É importante reafirmar que o direito de propriedade não se reveste de caráter absoluto, eis que,sobre ele, pesa grave hipoteca social, a significar que, descumprida a função social que lhe é inerente (CF, art. 5º, XXIII), legitimar-se-á a intervenção estatal na esfera dominial privada, observados, contudo, para esse efeito, os limites, as formas e os procedimentos fixados na própria Constituição da República.
Nada justifica, porém, o emprego ilegítimo do instrumento expropriatório, quando utilizado pelo poder estatal com evidente transgressão aos princípios e normas que regem e disciplinam as relações entre as pessoas e o Estado. Não se pode perder de perspectiva, por mais relevantes que sejam os fundamentos da ação expropriatória do Estado, que este não pode - e também não deve - desrespeitar a cláusula do “due process of law”, que condiciona qualquer atividade do Estado tendente a afetar, dentre outros direitos, aquele que concerne à propriedade privada.
Essa mesma advertência também se impõe a quaisquer particulares, movimentos ou organizações sociais que visem, pelo emprego arbitrário da força e pela ocupação ilícita de imóveis rurais, a pressionar e a constranger, de modo autoritário, o Poder Público a promover ações expropriatórias, para efeito de execução do programa de reforma agrária.
É que tais atividades são claramente desenvolvidas à margem da lei e praticadas com evidente desprezo aos princípios que informam o sistema jurídico.
Desse modo, não se pode ignorar que a Constituição da República, após estender, ao proprietário, a cláusula de garantia inerente ao direito de propriedade (art. 5º, XXII), proclama que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal” (art. 5º, LIV).
Cumpre assinalar, por isso mesmo, que a destituição dominial que incida sobre o proprietário de qualquer bem não prescinde – enquanto medida de extrema gravidade que é – da necessidade de observância estatal das garantias inerentes ao “due process of law”, consoante observa autorizado magistério doutrinário (CELSO RIBEIRO BASTOS, “Comentários à Constituição do Brasil”, vol. 2/284-285, 3ª ed., 2004, Saraiva).
Não custa enfatizar, bem por isso, que a União Federal – mesmo tratando-se da execução e implementação do programa de reforma agrária – não está dispensada da obrigação, que é indeclinável, de respeitar, no desempenho de sua atividade de expropriação, por interesse social, os postulados constitucionais, que, especialmente em tema de propriedade, protegem as pessoas e os indivíduos contra a eventual expansão arbitrária do poder.
Essa asserção – ao menos enquanto subsistir o sistema consagrado em nosso texto constitucional – impõe que se repudie qualquer medida que importe em arbitrária negação ou em injusto sacrifício do direito de propriedade, notadamente quando o Poder Público se deparar, como no caso ora em exame, com atos de espoliação ou de violação possessória.
Impende considerar, na análise dessa questão, as ponderações feitas pelo eminente e saudoso Professor MIGUEL REALE (“Liberdade e Democracia”, p. 2, “O Estado de São Paulo”, de 10/06/2000), que, em magistério irrepreensível, destaca a necessidade de respeito ao império do Direito e da lei:
“Tem-se pretendido justificar os atos violentos perpetrados pelo Movimento dos Sem Terra (MST) com a invocação da liberdade na democracia, de tal modo que seriam ilícitas e reprováveis as medidas governamentais destinadas a manter a ordem pública, assegurando os direitos das vítimas dos atentados. Nada mais absurdo que tal assertiva.
Em verdade, no regime democrático a liberdade jamais poderia significar a faculdade de fazer o que bem se entende, porquanto ela é um bem comum de caráter universal, de tal modo que a ação dos cidadãos pressupõe o respeito mútuo dos direitos e prerrogativas de cada um.
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Assim sendo, não há como legitimar, à luz da liberdade, a invasão de terras a pretexto de não estarem sendo devidamente cultivadas por seus proprietários. É para assegurar o cumprimento dos deveres que assiste a todos o direito de representação ao Estado, no caso de uma propriedade rural não estar atendendo à sua função social, reclamando sua desapropriação para fins de reforma agrária. O que não é lícito aos indivíduos nem a nenhum grupo social é converter-se em juiz da questão, invadindo desde logo as terras para nelas assentar agricultores (...).
Em boa hora, o Direito Constitucional brasileiro foi enriquecido pelo princípio em vigor no Common Law, e consagrado pelo inciso LIV do artigo 5º da Constituição, segundo o qual ‘ninguém será privado da liberdade e de seus bens sem o devido processo legal’.
Isto posto, no caso de apossamento manifestamente ilegal feito pelo MST, seja de terras, seja de edifícios públicos, não se pode negar ao Estado o emprego da Polícia Militar para manter a ordem, restituindo o bem espoliado. 
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Quando se pensa o contrário, justificando atos de espoliação, é que já se deixou de raciocinar nos termos da lei, mas, sim, em função de motivos ideológicos, ou seja, das leis futuras que se pretende instaurar pela força, segundo aspirações que nada têm que ver com a democracia (...).
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Como se vê, a liberdade que a democracia assegura é a exercida na forma da lei, sendo sábio o antigo brocardo ‘ubi lex, ibi libertas’, ou, por outras palavras, não há liberdade fora da lei. Isso é da essência da democracia (...).” (grifei)
O exercício arbitrário das próprias razões, ainda que praticado para satisfazer pretensão eventualmente legítima, encontra repulsa no ordenamento jurídico, especialmente quando os atos que ofendem direitos de terceiros configuram medidas caracterizadoras de violação possessória, valendo relembrar, neste ponto, que o esbulho possessório – mesmo tratando-se de propriedades alegadamente improdutivas – constitui ato revestido de ilicitude jurídica.
Nada pode justificar o desrespeito à autoridade das leis e à supremacia da Constituição da República.
O fato é que a exigência de respeito à lei e à autoridade da Constituição da República representa condição indispensável e necessária ao exercício da liberdade e à prática responsável da cidadania, nada podendo legitimar a ruptura da ordem jurídica, quer por atuação de movimentos sociais (qualquer que seja o perfil ideológico que ostentem), quer por iniciativa do Estado, ainda que se trate da efetivação da reforma agrária, pois, mesmo esta, depende, para viabilizar-se constitucionalmente, da necessária observância dos princípios e diretrizes que estruturam o ordenamento positivo nacional.
O esbulho possessório, além de qualificar-se como ilícito civil, também pode configurar, como precedentemente já salientado, situação revestida de tipicidade penal, caracterizando-se, desse modo, como ato criminoso (CP, art. 161, § 1º, II; Lei nº 4.947/66, art. 20).
Não constitui demasia relembrar, neste ponto, que a necessidade de observância do império da lei (“rule of law”) e a possibilidade de acesso à tutela jurisdicional do Estado – que configuram valores essenciais em uma sociedade democrática – devem representar o sopro inspirador da harmonia social, significando, por isso mesmo, um veto permanente a qualquer tipo de comportamento cuja motivação resulte do intuito deliberado de praticar atos inaceitáveis de violência e de ilicitude, como os atos de invasão da propriedade alheia e de desrespeito à autoridade das leis e à supremacia da Constituição da República perpetrados por movimentos sociais organizados, como o MST.
Em suma: os aspectos que venho de ressaltar revelam-se suficientes para autorizar a concessão do presente mandado de segurança, eis que os diversos atos de esbulho possessório ocorridos no imóvel rural em referência comprometeram, efetivamente, a racional e adequada exploração dessa propriedade e, em consequência,o cumprimento da sua função social.
Sendo assim, tendo presentes as razões expostas, acolhendo o parecer do eminente Procurador-Geral da República e considerando, notadamente, a existência de precedentes desta Suprema Corte, defiro o mandado de segurança, para invalidar o Decreto de 26/12/2013 editado pela Senhora Presidente da República (DOU nº 251 de 27/12/2013), que declarou de interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural denominado “Fazenda Vista Alegre”, situado no Município de Dracena, Estado de São Paulo, “objeto das Matrículas nºs 19.524, 19.525 e 19.526, Livro 2 – ano 2008, do Cartório de Registro de Imóveis da Comarca de Dracena, Estado de São Paulo” (grifei).
Comunique-se.
Arquivem-se os presentes autos.
Publique-se.
Brasília, 07 de abril de 2015. 
Ministro CELSO DE MELLO
Relator

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