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PLATÃO E O SIMULACRO

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SALES, A. C. 1
Rev. Univ. Rural, Sér. Ciências Humanas. Seropédica, RJ, EDUR, v. 28, n. -21, jan.-dez., 2006. p. 01-08.
PLATÃO E O SIMULACRO: A PERSPECTIVA DE DELEUZE
ALESSANDRO CARVALHO SALES1
1. Doutorando em Filosofia pela UFSCar e Bolsista da FAPESP.
RESUMO: SALES, A. C. Platão e o simulacro: a perspectiva de Deleuze. Revista Universidade
Rural: Série Ciências Humanas, Seropédica, RJ: EDUR, v. 28, n. 1-2, p. 01-08, jan.-dez., 2006.
Trata-se de acompanhar a leitura que o filósofo francês Gilles Deleuze (1925-1995) propõe do platonismo,
a partir, especialmente, do texto “Platão e o simulacro”, na obra Lógica do sentido. Num primeiro momento
de nosso trabalho, observaremos que esse autor apontará o simulacro em estrita correlação com o
problema da diferença e como contraponto à axiomática platônica. Numa segunda parte, teceremos
algumas considerações acerca das conseqüências do seu ponto de vista.
Palavras-chave: Deleuze, Platão, Simulacro.
ABSTRACT : SALES, A. C. Plato and the Simulacrum: Deleuze´s Perspective. Revista
Universidade Rural: Série Ciências Humanas, Seropédica, RJ: EDUR, v. 28, n. 1-2, p. 01-08,
jan.-dez., 2006. Our aim is to follow the proposal by the French philosopher Gilles Deleuze (1925-1995)
to read platonism, especially from the text Plato and the Simulacrum, published in the book The Logic of
Sense. At a first moment of our paper, we will observe that this author will point out the simulacrum in strict
correlation with the problem of the difference and as counterpoint to the platonic axiomatic. In a second
part, we will weave some notes concerning the consequences of his point of view.
Key words: Deleuze, Plato, Simulacrum.
Deleuze, na esteira de Nietzsche, vai
detectar, na alvorada da sociedade
ocidental a partir dos gregos, mais
especif icamente com o advento do
pensamento socrático-platônico (em torno
do século IV antes de Cristo), o ponto de
inflexão em relação ao qual seríamos, em
nossos modos hegemônicos de vivência
e de subjetivação, como que o contingente
desenrolar tardio.1 Queremos nos localizar
mais precisamente neste tópico singular.
Buscaremos circunstanciá-lo em alguns
lugares da Lógica do sentido (DELEUZE,
1969), mas não somente nesse registro,
na medida em que também encontraremos
amparo em outras variações discursivas.
É especialmente em um dos apêndices
do livro, no texto “Platão e o simulacro”,
que Deleuze vai se colocar na linha
nietzscheana que refere a reversão do
platonismo. De antemão, ele certifica a
necessidade de que atentemos para a real
motivação de Platão quando este institui a
chamada teoria das Idéias.2
No livro VI da República, Platão traça a
linha metafísica cujos efeitos, segundo a
leitura em pauta, multiplicaram-se ao longo
da posterior história dos homens. Essa
linha separa um mundo sensível – o nosso
mundo, lugar das imagens e dos corpos –
de um inteligível – mundo superior, ideal,
1“A f ilosofia de Nietzsche é, em sua inspiração fundamental, uma tomada de posição com respeito à
própria filosofia. No Crepúsculo dos ídolos, por exemplo, ele assinala, de modo lapidar, as grandes etapas
de sua história – Platão, a filosofia cristã, Kant, o positivismo –, define-as como o platonismo da filosofia e
se insurge contra toda a orientação do pensamento filosófico desde Platão” (MACHADO, R. Deleuze e a
filosofia, p. 18). Diz-nos também Luís Fuganti, no texto “Saúde, desejo e pensamento”: “Escolhemos
simultaneamente, como ponto de referência e centro de um combate, focalizar alguns aspectos da obra
platônica que colaboraram decisivamente para a solidificação de um modo de viver e de pensar calcado na
moral, na lei, na razão e no Estado. Esse estilo de vida aliado a inovações (...) ainda é, e cada vez mais,
o dos nossos contemporâneos” (p. 19).
2Cf. DELEUZE, G. Lógica do sentido, p. 259.
Dossiê Temático Filosofia
Platão e o simulacro...2
Rev. Univ. Rural, Sér. Ciências Humanas. Seropédica, RJ, EDUR, v. 28, n. -21, jan.-dez., 2006. p. 01-08.
das essências e das matemáticas. Platão,
como filósofo, tem a preocupação de
verificar as condições de possibilidade dos
saberes, do conhecimento. Vai então
asseverar que o conhecimento só é
possível em relação aos objetos do mundo
intel igível, dada a sua ordem e
estabilidade. Já no que diz respeito ao
sensível, o conhecimento, a princípio,
surge como improvável, devido à total
instabilidade deste mundo, mergulhado em
permanentes misturas e transformações.
Contudo, eis a grande questão, há uma
forma de garantir que mesmo no mundo
inferior o conhecimento torne-se possível,
desde que suas imagens e matérias
submetam-se aos objetos ideais do mundo
inteligível, de modo a copiar-lhes o modelo.
É assim que os corpos enlouquecidos que
povoam o mundo sensível ganham
contornos e limites, recebem uma ordem.
Essa distinção funda o que mais tarde
acabaremos por conhecer como
representação, uma vez que as cópias são
feitas à imagem e semelhança de seus
modelos (não são eles, mas são como
eles, interiorizando uma semelhança com
a identidade superior da Idéia), já que
aceitaram ser-lhes conformes.3 Quanto
aos corpos que não se deixarem subjugar
pelos modelos, que não interiorizarem
convenientemente um nível necessário de
semelhança, tanto pior: deverão, em
qualquer participação, ser preteridos em
favor das boas cópias. A estas, todas as
graças. Aos simulacros, a pena do
degredo.4
Eis que Platão estabelece o estatuto
das hierarquias, das classificações, na
medida em que passa a mensurar os
pretendentes, aqueles que dispõem – para
mais ou para menos – de uma determinada
qualidade, primordialmente firmando algo
de que somos herdeiros, nós, habitantes
preferenciais do reino do ser, de quem
pode, de quem detém.5 Estamos no
ocidente, aurora recente e que já começa
a esmaecer: doravante, todos terão de
passar pela prova da cópia, para que os
dóceis virtuosos, os semblantes que
melhor souberem introjetar a semelhança,
possam ser eleitos. Diz Deleuze:
(...) é preciso distinguir, sem dúvida, todo
um conjunto de graus, toda uma hierarquia,
nesta participação eletiva: não haveria um
possuidor em terceiro lugar, em quarto etc.,
até o infinito de uma degradação, até
àquele que não possui mais que um
simulacro, ele próprio miragem e
simulacro? (1969, p. 261).
O propósito maior da divisão platônica
não seria pois atualizar o risco que cava a
distância entre mundo inteligível e sensível.
O risco mais incisivo, aquele que vai cortar
mais crua e cruelmente a própria carne da
matéria, dar-se-á, segundo Deleuze,
dentro do mundo sensível, quando fica
declarada a distinção entre as cópias e os
simulacros.6
3“O platonismo funda assim todo o domínio que a filosofia reconhecerá como seu: o domínio da representação
preenchido pelas cópias-ícones e definido não em uma relação extrínseca a um objeto, mas numa relação
intrínseca ao modelo ou fundamento” (Ib., p. 264). Verificar também, quanto ao “processo platônico de
fundação da representação” (MACHADO, R. Op. cit., p. 30).
4O parágrafo em questão contém o cerne da leitura deleuzeana de Platão. Como suporte a tal leitura,
indicamos Ulpiano, A estética deleuziana, p. 1-4. Cf. ainda MACHADO, R. Op. cit., p. 25-27. Ou o próprio
texto “Platão e o simulacro”.
5“O fundamento idêntico, e imparticipável, é a Idéia: só a justiça é justa, só a coragem é corajosa... Mas o
fundamento possibilita aos pretendentes que passarem por sua prova, por sua seleção, participar da
qualidade que só ele possui inteiramente e lhe ser semelhantes” (MACHADO, R. Op. cit., p. 32). Verificar
também FOUCAULT, M. “Theatrum philosoficum”, p. 37-38.
6Pelo chamado diagrama da linha (ou método de divisão), a primeira dualidade, entre o inteligível e o
sensível, é a manifesta; a segunda, entre a boa cópia e o simulacro, é chamada de latente. Cf. DELEUZE,
G. Lógica do sentido, p. 262; DELEUZE, G. Crítica e clínica, p. 154; MACHADO, R. Op. cit.,p. 32.
SALES, A. C. 3
Rev. Univ. Rural, Sér. Ciências Humanas. Seropédica, RJ, EDUR, v. 28, n. -21, jan.-dez., 2006. p. 01-08.
Platão opõe o modelo e a cópia, mas
particularmente para fundamentar a
disparidade entre a cópia e o simulacro.
Os simulacros não são tolerados,
mistificadores que só distribuiriam ilusões:
não aceitando interiorizar a semelhança
em relação à identidade da Idéia, não
deixam porém de se lhe assemelhar, mas
dev ido a um efeito que é exterior,
simulação que envolv e e logra um
observador externo. Vejamos:
O simulacro implica grandes dimensões,
profundidades e distâncias que o
observador não pode dominar. É porque
não as domina que ele experimenta uma
impressão de semelhança. O simulacro
inclui em si o ponto de vista diferencial; o
observador faz parte do próprio simulacro,
que se transforma e se deforma com seu
ponto de vista (DELEUZE, 1969, p. 264).
Com esta citação, compreendemos a
força do simulacro e o porquê do cognome.
Se não consente a figuração como mero
derivado de uma Idéia, ele é precisamente
o que f ica “construído sobre uma
disparidade, sobre uma diferença, ele
interioriza uma dissimilitude” (Ib., p. 263).
Em si, é diferença, singularidade, porém,
do ponto de vista de um observador
externo, este coloca em curso
mecanismos de recognição e recebe uma
marca sensível que, em último termo, nada
mais é que uma impressão. Portanto, é um
simulacro porque produz esta impressão,
esta simulação no observador externo.7
Os sofistas, ao contrário de Platão,
lev aram o simulacro às últimas
conseqüências. Ora, se a questão é o nível
de imitação, o que poderia ocorrer se a
imagem – para além de somente
despreocupar-se com seu grau de
semelhança e evitar a submissão à Idéia
–, se ela passasse, ardilosamente, a
buscá-lo de uma maneira tão correta e
precisa que mal fosse possível elaborar a
distinção entre ela e o modelo?
Acentuando ainda mais o problema, não
esqueçamos também de pôr na devida
conta que a suposta semelhança, efeito
exterior, oculta de fato uma singularidade,
uma diferença que deveria existir apenas
no modelo, e que não só não aceitou a ele
se submeter, como também decidiu
enfrentá-lo e subvertê-lo:
Paradoxos em excesso. Singularizar-se,
pretender ser um igual ao modelo – é a
imagem falsa que se excedeu em ser a
mesma (...) Não poder fazer a diferença,
quem é quem; a pérfida série do simulacro,
todos originais... Insuportável? Caem as
hierarquias platônicas (AGUIAR, 1992, p.
30).8
Riqueza dos sofistas, conhecedores da
potência do paradoxo: se a boa cópia, a
cópia perfei ta, é a que, apesar da
semelhança, não pode deixar de
transparecer sua imperfeição em relação
ao original, eles irão divulgar as cópias
mais que imperfeitas, imperfeitas a ponto
de serem confundidas com a perfeição
original. Em suma, não podem existir
modelos absolutos nem essências ideais
para um mundo onde tudo são simulações,
“não haverá maior realidade em um
movimento real do que num artificial, pois
todos se assemelham como composições
artificiais, desfazendo-se a idéia de boa
imagem...” (Ib., p. 31).9
7Chediak complementa: “Por um lado, ela [a diferença, o simulacro] se instala entre as formas, nas rupturas,
nas falhas e descontinuidades desse mundo já estabelecido e, por outro lado, a forma não é outra coisa
senão esta captura, sem dúvida possível, da diferença, por parte das atividades unificadoras e recognitivas,
que querem e buscam constituir-se a partir do estabelecimento de semelhanças, continuidades e fixações”
(CHEDIAK, K. Introdução à filosofia de Deleuze, p. 113).
8Cf. também DELEUZE, G. Lógica do sentido, p. 267-268.
9Em Crítica e clínica, no texto “Platão, os gregos”, Deleuze afirma que o platonismo “afronta a sofística
como seu inimigo, mas também como seu limite e seu duplo: por pretender tudo ou qualquer coisa, o
sofista corre sério risco de confundir a seleção, de perverter o juízo” (p. 154).
Platão e o simulacro...4
Rev. Univ. Rural, Sér. Ciências Humanas. Seropédica, RJ, EDUR, v. 28, n. -21, jan.-dez., 2006. p. 01-08.
Reverter o platonismo será portanto
valorizar multiplamente aquilo que para
Platão nada mais é que residual, sobra
última a que ninguém deveria aspirar.
Também não mais será possível construir
qualquer série hierárquica, típico quadro
de promoções em função das quais as
imagens e corpos se debatem a fim de
obterem o apanágio da boa cópia,
instituído por um saber e um poder
relativos à recém-nascida f i losof ia:
desinstauração dos pré-conceitos, dos
postulados a priori. Os simulacros são já
os indóceis, a margem ilimitada e mutante
que não se deixa efetivamente conformar
e f ixar contornos. Ou então,
pervertidamente, podem – atravessando
a rota de um anel de Moebius, e sempre
guardando a singularidade que lhe é
própria – buscar a tal ponto a semelhança
a um modelo que já não mais seria
possível a verificação de suas diferenças,
de modo até a afrontar a concepção de
original... Deleuze:
(...) é possível que o fim do Sofista
contenha a mais extraordinária aventura do
platonismo: à força de buscar do lado do
simulacro e de se debruçar sobre seu
abismo, Platão, no clarão de um instante,
descobre que não é simplesmente uma
falsa cópia, mas que põe em questão as
próprias noções de cópia... e de modelo. A
definição final do sofista nos leva a um
ponto em que não mais podemos distingui-
lo do próprio Sócrates: o ironista operando,
em conversas privadas, por meio de
argumentos breves. Não seria necessário
mesmo levar a ironia até aí? E também que
tivesse sido Platão o primeiro a indicar esta
direção da reversão do platonismo? (1969,
p. 262).
Os simulacros, dissimi l i tude,
singularidade, a própria diferença: eis
porque Deleuze vai tanto apreciá-los. E se
há diferença, há também variação,
multiplicidade, potência para a geração de
duplos, relegando para um segundo plano
a identidade e a semelhança, pois o
mesmo é sempre efeito exterior,
simulação.
Havemos, portanto, de repensar duas
fórmulas, separadas por um abismo de
pensamento e de existência: “só o que
parece difere”, “somente as diferenças se
parecem”. A primeira coloca no cerne da
questão a Idéia, a identidade como
fundamento espir i tual obv iamente
convergente e como molde primordial, a
serviço das instâncias de ordenação e de
controle. A segunda, pelo inverso, refere a
proli feração e a complexidade dos
simulacros divergentes, as diferenças e a
multiplicidade como fatores éticos para as
ações e constituições de um mundo (Ib.,
p. 267). Ou seja, “(...) é a semelhança que
se diz da diferença interiorizada, e a
identidade do Diferente como potência
primeira. O mesmo e o semelhante não
têm mais por essência senão ser
simulados, isto é, exprimir o funcionamento
do simulacro” (Ib., p. 268).10 Em outras
palavras, o mesmo, recognição que
efetuamos quando nos chegam as coisas
e os fatos, é sempre uma simulação, pois,
no seu seio, ele guarda uma singularidade.
De nosso ponto de vista, pensamos tratar-
se do mesmo, porém, em si, trata-se de
uma diferença, do tecido plissado e
enredado de uma diferença.
Quanto a essa simulação, efeito do
funcionamento ou simplesmente da
existência do simulacro, ela é fantasmática
exatamente por conta da marca de
semelhança, de duplicidade, que pode
gerar no observador externo; entretanto,
não há garantia alguma de que tal
impressão esteja necessariamente
vinculada a uma determinada idéia ou que
nela possa ter um fundamento último (Ib.,
p. 268). Vislumbramos porque Deleuze vai
propor o sentido como construção, longe
de vinculá-lo à jurisdição de um absoluto.
10Cf. ainda Klossovski ou “Os corpos-linguagem” (DELEUZE, G. Lógica do sentido, p. 297). Uma tal citação
expressa o núcleo da filosofia de Deleuze.
SALES, A. C. 5
Rev. Univ. Rural, Sér. Ciências Humanas. Seropédica, RJ, EDUR, v. 28, n. -21, jan.-dez., 2006. p. 01-08.
Fantasma é pois o próprio simulacro,o
que acaba simulado, o efeito de simulação,
tudo inseparável e indiscernível (Ib., p.
268). Nós os criamos, não há como não
criá-los, embora provavelmente haja – se
pesam negativamente – como abrandá-
los, minimamente desmistif icá-los ou
desconstruí-los, diminuir-lhes os efeitos,
mudar-lhes a fisionomia. Para tanto,
existem inúmeras práticas, nenhuma
exatamente simples, todas com suas
condições e delicadezas, muitas não só
inócuas mas também opressoras e
agravantes.
CONSIDERAÇÕES
Necessitaríamos, sempre que possível,
positivar o fantasma, despojá-lo da aura
negativa que, por vezes, carrega e difunde.
Ora, fato é que não se trata de um
fantasma ou de o fantasma: avessar o
mundo e promovê-lo à sua positividade
complexa é atestar que, em sua superfície,
tudo o que há são fantasmas, simulacros
(DELEUZE, 1969, p. 267).
De fato, o mundo é simulação,
“arrastamo-nos em um mundo de
simulacros, não há outro” (AGUIAR, 1992,
p. 31). E não tomemos isso por mera
aparência ou ilusão,11 termos que caberiam
em esfera opositiva a um fundamento
último que, por seu turno, jamais seria
aparente ou ilusório, mas sempre real e
verdadeiro.
Na v isão de Deleuze, a invenção
platônica é uma poderosa máquina de
formatação e colonização do pensamento.
Uma das minúcias principais foi ter
proposto algo estritamente idealizado, algo
que pudesse infinitamente pairar sobre as
imagens e os corpos sensíveis: mesmo na
melhor hipótese, a qualificação máxima de
uma cópia a fará dispor de uma realidade
segunda, pois acima de tudo estão os
modelos absolutos. Se Platão procura
definir o que é a justiça será principalmente
para poder postular quem é o mais justo.12
Não se trata de uma lei do verdadeiro e do
falso, porquanto “a verdade não se opõe
aqui ao erro, mas à falsa aparência”
(FOUCAULT, 1970, p. 38).13
Importa-nos também certificar o quanto
Deleuze coloca essa leitura em diferença
dos eventos e das coisas, sob um signo
de pura afirmação: “Longe de ser um novo
fundamento, engole todo fundamento,
assegura um universal desabamento
(effondrement), mas como acontecimento
positivo e alegre, como effondement”
(DELEUZE, 1969, p. 268).14 Diremos,
ainda, em outras palavras: afirmar os
simulacros será desprezar as exigências
de pretensão impostas em função de
modelos externos supostamente
superiores e, neste lugar, instalar o jogo
pleno das potências, a superfície do mundo
– suas formas, seus eventos, sua
visibilidade manifesta, enfim – como
simples efeito desse jogo, efeito sempre
11“Que o Mesmo e o Semelhante sejam simulados não significa que sejam aparências e ilusões. A simulação
designa a potência para produzir um efeito” (DELEUZE, G. Lógica do sentido, p. 268).
12A única verdade é a do modelo, dona de uma identidade originária superior.
13“Effondement” é um neologismo criado por Deleuze. Em Diferença e repetição, Luiz Orlandi e Roberto
Machado traduzem o termo por a-fundamento. Cf., por exemplo, p. 122-123, ou p. 159: “É assim que o
fundamento foi ultrapassado em direção a um sem-fundo, a-fundamento universal que gira em si mesmo
e só faz retornar o por-vir”.
14A lém disso, lembramos que toda essa proposta, essa que se vincula ao ser, desarticulou um outro modo
de se localizar e existir no mundo grego que foi bastante estudado por Foucault na última fase de sua obra,
e que diz respeito não à busca de essências imóveis e absolutas, mas a uma maneira de se conduzir
diante das relações e dos acontecimentos. Não o ser, mas uma maneira de ser; por exemplo,
não o ser do amor, mas uma maneira de ser e de se conduzir diante do amor. Cf. FUGANTI, L. Op. cit., p.
23-25.
Platão e o simulacro...6
Rev. Univ. Rural, Sér. Ciências Humanas. Seropédica, RJ, EDUR, v. 28, n. -21, jan.-dez., 2006. p. 01-08.
em perspectiva, necessariamente múltiplo
e mutável, jamais absoluto ou definitivo.15
Ao pôr luz nos sofistas e em seus
simulacros-fantasmas, Deleuze quer
explicitar todo o processo pragmático e
criativo que pode ser disparado a partir do
que chama de potência do falso, processo
inseparável da produção e da novidade.
Haverá sempre uma multiplicidade de
caminhos, de pontos de v ista, de
perspectivas, ao invés de um único, o
suposto monolito a ser alcançado e
desvelado: inf initos véus, inf ini tas
cavernas.16 Esses caminhos não são,
aliás, o que devemos descobrir, mas aquilo
que podemos buscar criar, de maneira que
cada falsa estrada criada é a assunção de
uma verdade.17 A arte, lugar por excelência
dos falsários, já de há muito o sabia.
Verificamos a coerência de Deleuze. Os
colágenos de sua tessitura filosófica –
circunstanciados como os duplos
veementes que pululam no seu trabalho –
são a própria força positiva dos simulacros
e da potência criativa do falso, como pode
atestar um impactante fragmento de sua
carta a Michel Cressole:
Eu me imaginava chegando pelas costas
de um autor e lhe fazendo um filho, que
seria seu, e no entanto seria monstruoso.
Que fosse seu era muito importante,
porque o autor precisava efetivamente ter
dito tudo aquilo que eu lhe fazia dizer. Mas
que o filho fosse monstruoso também
representava uma necessidade, porque
era preciso passar por toda espécie de
descentramentos, deslizes, quebras,
emissões secretas que me deram muito
prazer (1990, p. 14).
A contemporaneidade, império dos
simulacros: recalcados durante tanto
tempo pelo despotismo da pretensão e do
absoluto, escapam de seu desterro,
declaram sua rebelião e não cessam mais
de se manifestar, pecul iarmente
configurados segundo os novos suportes
computacionais e digitais: a internet, a arte,
as mídias de um modo geral. Sob este
ponto de vista, Platão enlouqueceria. Os
rebentos mais desavisados pisam sobre
cacos pontiagudos e numerosos, restos de
um espelho fraturado. Envoltos em uma
vaga pungente, parecem não saber lidar
com a diferença e a multipl icidade
incontornáveis, tão afeitos que eram (ou
são) à ordem do uno. As conseqüências
são evidentes e se atualizam em fogs de
toda espécie: ni i l ismos profundos,
radicalismos, o terrível vale-tudo.
Outra questão importante – que apenas
tangenciaremos em função dos limites de
nosso trabalho, mas que não poderemos
deixar de contemplar – diz respeito, na
estrada sucessória da predileção platônica
pelo quem, ao estatuto do sujeito
contemporâneo. O que pode um eu?
Alguns acreditam que eu pode e consegue
tudo. No entanto, temos a nítida impressão
de que os que mais aí depositam o exagero
de suas expectativas são os que mais
acolhem o ressent imento, a má
consciência, a culpa.18 O que é ter um eu?
15Sobre o confronto entre potência e pretensão em relação à filosofia, cf. “Platão, os gregos”, em Crítica e
clínica, p. 154-155. Lemos aí: “A potência é modesta, contrariamente à pretensão”.
16Menção a um fragmento bastante conhecido de Nietzsche, em Para Além de Bem e Mal (§ 289): “(...) por
trás de cada caverna, não jaz, não tem de jazer uma caverna ainda mais profunda, um modo mais vasto,
mais alheio, mais rico, além de uma superfície, um sem-fundo por trás de cada fundo, por trás de cada
‘fundamento’” (p. 294). Esse fragmento é lembrado em Lógica do sentido (cf. p. 269).
17Em Cinema 2, lemos por exemplo: “O artista é criador de verdade, pois a verdade não tem de ser alcançada,
encontrada nem reproduzida, ela deve ser criada” (p. 178). Há aí, no item “As potências do falso” uma bela
discussão sobre esse assunto com motivos no cinema (cf. p. 155-188).
18É o que talvez possamos concluir da leitura de um texto como “Carta a um crítico severo” (DELEUZE,
G.Conversações, p. 11-22). Para um exame detalhado do ressentimento, da má consciência e da culpa, cf.
o quarto capítulo de Nietzsche e a filosofia, “Do ressentimento à má consciência” (p. 92-122).
SALES, A. C. 7
Rev. Univ. Rural, Sér. Ciências Humanas. Seropédica, RJ, EDUR, v. 28, n. -21, jan.-dez., 2006. p. 01-08.
Quem é que fala e pensa nesse eu? Não
seria oeu também algum tipo de efeito –
um efeito rico e essencial –, mas sim, ele
próprio, uma simulação? Até que ponto
conseguiríamos dissolvê-lo, mergulhá-lo
em seu próprio mar, múltiplo mar de
alteridade, de onde ele emerge enquanto
efeito, mas que em suma o constitui?19
Nada disso é simples. A complexidade
dessas questões é o próprio enleamento
hodierno, violência que só deveria acentuar
nossa necessidade de parâmetros éticos
e pragmáticos, linha sensível que não pode
deixar de atravessar a superfície deste
trabalho. Lembramos que pôr os
existentes sob a potência do falso e do
simulacro não é de modo algum afastar-
se do rigor ou resignar-se a uma revogação
de todo critério avaliativo, a equivalência
ordinária entre elementos, relativização de
tudo.
Pois há uma grande diferença entre
destruir para conservar e perpetuar a
ordem estabelecida das representações,
dos modelos e das cópias e destruir os
modelos e as cópias para instaurar o caos
que cria, que faz marchar os simulacros e
levantar um fantasma – a mais inocente
de todas as destruições, a do platonismo
(DELEUZE, 1969, p. 271).
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19Sabemos que a questão do sujeito é tradicionalmente colocada, em termos de História da Filosofia,
desde Descartes. Contudo, conforme já indicamos, há pensadores que remetem a gênese desta
problemática à Grécia Antiga. Esses estudiosos (como Nietzsche, Foucault, Deleuze, Guattari, entre outros),
procuram, de um modo geral, valorizar a multiplicidade dinâmica de vozes no sujeito em contraponto ao
sujeito fixo conformado por um eu e uma consciência irredutíveis. Deleuze, por exemplo, utiliza muito a
fórmula de Rimbaud, “Eu é um outro...”. Quanto ao eu como efeito de simulação, sugerimos verificar, por
exemplo, o livro As tecnologias da inteligência, de Pierre Lévy (cf. p. 170-171).
Platão e o simulacro...8
Rev. Univ. Rural, Sér. Ciências Humanas. Seropédica, RJ, EDUR, v. 28, n. -21, jan.-dez., 2006. p. 01-08.
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1983. 104 f. Dissertação (Mestrado em
Filosofia) – Instituto de Filosofia e Ciências
Sociais, Universidade Federal do Rio
Janeiro, Rio de Janeiro.

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