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SALES, A. C. 1 Rev. Univ. Rural, Sér. Ciências Humanas. Seropédica, RJ, EDUR, v. 28, n. -21, jan.-dez., 2006. p. 01-08. PLATÃO E O SIMULACRO: A PERSPECTIVA DE DELEUZE ALESSANDRO CARVALHO SALES1 1. Doutorando em Filosofia pela UFSCar e Bolsista da FAPESP. RESUMO: SALES, A. C. Platão e o simulacro: a perspectiva de Deleuze. Revista Universidade Rural: Série Ciências Humanas, Seropédica, RJ: EDUR, v. 28, n. 1-2, p. 01-08, jan.-dez., 2006. Trata-se de acompanhar a leitura que o filósofo francês Gilles Deleuze (1925-1995) propõe do platonismo, a partir, especialmente, do texto “Platão e o simulacro”, na obra Lógica do sentido. Num primeiro momento de nosso trabalho, observaremos que esse autor apontará o simulacro em estrita correlação com o problema da diferença e como contraponto à axiomática platônica. Numa segunda parte, teceremos algumas considerações acerca das conseqüências do seu ponto de vista. Palavras-chave: Deleuze, Platão, Simulacro. ABSTRACT : SALES, A. C. Plato and the Simulacrum: Deleuze´s Perspective. Revista Universidade Rural: Série Ciências Humanas, Seropédica, RJ: EDUR, v. 28, n. 1-2, p. 01-08, jan.-dez., 2006. Our aim is to follow the proposal by the French philosopher Gilles Deleuze (1925-1995) to read platonism, especially from the text Plato and the Simulacrum, published in the book The Logic of Sense. At a first moment of our paper, we will observe that this author will point out the simulacrum in strict correlation with the problem of the difference and as counterpoint to the platonic axiomatic. In a second part, we will weave some notes concerning the consequences of his point of view. Key words: Deleuze, Plato, Simulacrum. Deleuze, na esteira de Nietzsche, vai detectar, na alvorada da sociedade ocidental a partir dos gregos, mais especif icamente com o advento do pensamento socrático-platônico (em torno do século IV antes de Cristo), o ponto de inflexão em relação ao qual seríamos, em nossos modos hegemônicos de vivência e de subjetivação, como que o contingente desenrolar tardio.1 Queremos nos localizar mais precisamente neste tópico singular. Buscaremos circunstanciá-lo em alguns lugares da Lógica do sentido (DELEUZE, 1969), mas não somente nesse registro, na medida em que também encontraremos amparo em outras variações discursivas. É especialmente em um dos apêndices do livro, no texto “Platão e o simulacro”, que Deleuze vai se colocar na linha nietzscheana que refere a reversão do platonismo. De antemão, ele certifica a necessidade de que atentemos para a real motivação de Platão quando este institui a chamada teoria das Idéias.2 No livro VI da República, Platão traça a linha metafísica cujos efeitos, segundo a leitura em pauta, multiplicaram-se ao longo da posterior história dos homens. Essa linha separa um mundo sensível – o nosso mundo, lugar das imagens e dos corpos – de um inteligível – mundo superior, ideal, 1“A f ilosofia de Nietzsche é, em sua inspiração fundamental, uma tomada de posição com respeito à própria filosofia. No Crepúsculo dos ídolos, por exemplo, ele assinala, de modo lapidar, as grandes etapas de sua história – Platão, a filosofia cristã, Kant, o positivismo –, define-as como o platonismo da filosofia e se insurge contra toda a orientação do pensamento filosófico desde Platão” (MACHADO, R. Deleuze e a filosofia, p. 18). Diz-nos também Luís Fuganti, no texto “Saúde, desejo e pensamento”: “Escolhemos simultaneamente, como ponto de referência e centro de um combate, focalizar alguns aspectos da obra platônica que colaboraram decisivamente para a solidificação de um modo de viver e de pensar calcado na moral, na lei, na razão e no Estado. Esse estilo de vida aliado a inovações (...) ainda é, e cada vez mais, o dos nossos contemporâneos” (p. 19). 2Cf. DELEUZE, G. Lógica do sentido, p. 259. Dossiê Temático Filosofia Platão e o simulacro...2 Rev. Univ. Rural, Sér. Ciências Humanas. Seropédica, RJ, EDUR, v. 28, n. -21, jan.-dez., 2006. p. 01-08. das essências e das matemáticas. Platão, como filósofo, tem a preocupação de verificar as condições de possibilidade dos saberes, do conhecimento. Vai então asseverar que o conhecimento só é possível em relação aos objetos do mundo intel igível, dada a sua ordem e estabilidade. Já no que diz respeito ao sensível, o conhecimento, a princípio, surge como improvável, devido à total instabilidade deste mundo, mergulhado em permanentes misturas e transformações. Contudo, eis a grande questão, há uma forma de garantir que mesmo no mundo inferior o conhecimento torne-se possível, desde que suas imagens e matérias submetam-se aos objetos ideais do mundo inteligível, de modo a copiar-lhes o modelo. É assim que os corpos enlouquecidos que povoam o mundo sensível ganham contornos e limites, recebem uma ordem. Essa distinção funda o que mais tarde acabaremos por conhecer como representação, uma vez que as cópias são feitas à imagem e semelhança de seus modelos (não são eles, mas são como eles, interiorizando uma semelhança com a identidade superior da Idéia), já que aceitaram ser-lhes conformes.3 Quanto aos corpos que não se deixarem subjugar pelos modelos, que não interiorizarem convenientemente um nível necessário de semelhança, tanto pior: deverão, em qualquer participação, ser preteridos em favor das boas cópias. A estas, todas as graças. Aos simulacros, a pena do degredo.4 Eis que Platão estabelece o estatuto das hierarquias, das classificações, na medida em que passa a mensurar os pretendentes, aqueles que dispõem – para mais ou para menos – de uma determinada qualidade, primordialmente firmando algo de que somos herdeiros, nós, habitantes preferenciais do reino do ser, de quem pode, de quem detém.5 Estamos no ocidente, aurora recente e que já começa a esmaecer: doravante, todos terão de passar pela prova da cópia, para que os dóceis virtuosos, os semblantes que melhor souberem introjetar a semelhança, possam ser eleitos. Diz Deleuze: (...) é preciso distinguir, sem dúvida, todo um conjunto de graus, toda uma hierarquia, nesta participação eletiva: não haveria um possuidor em terceiro lugar, em quarto etc., até o infinito de uma degradação, até àquele que não possui mais que um simulacro, ele próprio miragem e simulacro? (1969, p. 261). O propósito maior da divisão platônica não seria pois atualizar o risco que cava a distância entre mundo inteligível e sensível. O risco mais incisivo, aquele que vai cortar mais crua e cruelmente a própria carne da matéria, dar-se-á, segundo Deleuze, dentro do mundo sensível, quando fica declarada a distinção entre as cópias e os simulacros.6 3“O platonismo funda assim todo o domínio que a filosofia reconhecerá como seu: o domínio da representação preenchido pelas cópias-ícones e definido não em uma relação extrínseca a um objeto, mas numa relação intrínseca ao modelo ou fundamento” (Ib., p. 264). Verificar também, quanto ao “processo platônico de fundação da representação” (MACHADO, R. Op. cit., p. 30). 4O parágrafo em questão contém o cerne da leitura deleuzeana de Platão. Como suporte a tal leitura, indicamos Ulpiano, A estética deleuziana, p. 1-4. Cf. ainda MACHADO, R. Op. cit., p. 25-27. Ou o próprio texto “Platão e o simulacro”. 5“O fundamento idêntico, e imparticipável, é a Idéia: só a justiça é justa, só a coragem é corajosa... Mas o fundamento possibilita aos pretendentes que passarem por sua prova, por sua seleção, participar da qualidade que só ele possui inteiramente e lhe ser semelhantes” (MACHADO, R. Op. cit., p. 32). Verificar também FOUCAULT, M. “Theatrum philosoficum”, p. 37-38. 6Pelo chamado diagrama da linha (ou método de divisão), a primeira dualidade, entre o inteligível e o sensível, é a manifesta; a segunda, entre a boa cópia e o simulacro, é chamada de latente. Cf. DELEUZE, G. Lógica do sentido, p. 262; DELEUZE, G. Crítica e clínica, p. 154; MACHADO, R. Op. cit.,p. 32. SALES, A. C. 3 Rev. Univ. Rural, Sér. Ciências Humanas. Seropédica, RJ, EDUR, v. 28, n. -21, jan.-dez., 2006. p. 01-08. Platão opõe o modelo e a cópia, mas particularmente para fundamentar a disparidade entre a cópia e o simulacro. Os simulacros não são tolerados, mistificadores que só distribuiriam ilusões: não aceitando interiorizar a semelhança em relação à identidade da Idéia, não deixam porém de se lhe assemelhar, mas dev ido a um efeito que é exterior, simulação que envolv e e logra um observador externo. Vejamos: O simulacro implica grandes dimensões, profundidades e distâncias que o observador não pode dominar. É porque não as domina que ele experimenta uma impressão de semelhança. O simulacro inclui em si o ponto de vista diferencial; o observador faz parte do próprio simulacro, que se transforma e se deforma com seu ponto de vista (DELEUZE, 1969, p. 264). Com esta citação, compreendemos a força do simulacro e o porquê do cognome. Se não consente a figuração como mero derivado de uma Idéia, ele é precisamente o que f ica “construído sobre uma disparidade, sobre uma diferença, ele interioriza uma dissimilitude” (Ib., p. 263). Em si, é diferença, singularidade, porém, do ponto de vista de um observador externo, este coloca em curso mecanismos de recognição e recebe uma marca sensível que, em último termo, nada mais é que uma impressão. Portanto, é um simulacro porque produz esta impressão, esta simulação no observador externo.7 Os sofistas, ao contrário de Platão, lev aram o simulacro às últimas conseqüências. Ora, se a questão é o nível de imitação, o que poderia ocorrer se a imagem – para além de somente despreocupar-se com seu grau de semelhança e evitar a submissão à Idéia –, se ela passasse, ardilosamente, a buscá-lo de uma maneira tão correta e precisa que mal fosse possível elaborar a distinção entre ela e o modelo? Acentuando ainda mais o problema, não esqueçamos também de pôr na devida conta que a suposta semelhança, efeito exterior, oculta de fato uma singularidade, uma diferença que deveria existir apenas no modelo, e que não só não aceitou a ele se submeter, como também decidiu enfrentá-lo e subvertê-lo: Paradoxos em excesso. Singularizar-se, pretender ser um igual ao modelo – é a imagem falsa que se excedeu em ser a mesma (...) Não poder fazer a diferença, quem é quem; a pérfida série do simulacro, todos originais... Insuportável? Caem as hierarquias platônicas (AGUIAR, 1992, p. 30).8 Riqueza dos sofistas, conhecedores da potência do paradoxo: se a boa cópia, a cópia perfei ta, é a que, apesar da semelhança, não pode deixar de transparecer sua imperfeição em relação ao original, eles irão divulgar as cópias mais que imperfeitas, imperfeitas a ponto de serem confundidas com a perfeição original. Em suma, não podem existir modelos absolutos nem essências ideais para um mundo onde tudo são simulações, “não haverá maior realidade em um movimento real do que num artificial, pois todos se assemelham como composições artificiais, desfazendo-se a idéia de boa imagem...” (Ib., p. 31).9 7Chediak complementa: “Por um lado, ela [a diferença, o simulacro] se instala entre as formas, nas rupturas, nas falhas e descontinuidades desse mundo já estabelecido e, por outro lado, a forma não é outra coisa senão esta captura, sem dúvida possível, da diferença, por parte das atividades unificadoras e recognitivas, que querem e buscam constituir-se a partir do estabelecimento de semelhanças, continuidades e fixações” (CHEDIAK, K. Introdução à filosofia de Deleuze, p. 113). 8Cf. também DELEUZE, G. Lógica do sentido, p. 267-268. 9Em Crítica e clínica, no texto “Platão, os gregos”, Deleuze afirma que o platonismo “afronta a sofística como seu inimigo, mas também como seu limite e seu duplo: por pretender tudo ou qualquer coisa, o sofista corre sério risco de confundir a seleção, de perverter o juízo” (p. 154). Platão e o simulacro...4 Rev. Univ. Rural, Sér. Ciências Humanas. Seropédica, RJ, EDUR, v. 28, n. -21, jan.-dez., 2006. p. 01-08. Reverter o platonismo será portanto valorizar multiplamente aquilo que para Platão nada mais é que residual, sobra última a que ninguém deveria aspirar. Também não mais será possível construir qualquer série hierárquica, típico quadro de promoções em função das quais as imagens e corpos se debatem a fim de obterem o apanágio da boa cópia, instituído por um saber e um poder relativos à recém-nascida f i losof ia: desinstauração dos pré-conceitos, dos postulados a priori. Os simulacros são já os indóceis, a margem ilimitada e mutante que não se deixa efetivamente conformar e f ixar contornos. Ou então, pervertidamente, podem – atravessando a rota de um anel de Moebius, e sempre guardando a singularidade que lhe é própria – buscar a tal ponto a semelhança a um modelo que já não mais seria possível a verificação de suas diferenças, de modo até a afrontar a concepção de original... Deleuze: (...) é possível que o fim do Sofista contenha a mais extraordinária aventura do platonismo: à força de buscar do lado do simulacro e de se debruçar sobre seu abismo, Platão, no clarão de um instante, descobre que não é simplesmente uma falsa cópia, mas que põe em questão as próprias noções de cópia... e de modelo. A definição final do sofista nos leva a um ponto em que não mais podemos distingui- lo do próprio Sócrates: o ironista operando, em conversas privadas, por meio de argumentos breves. Não seria necessário mesmo levar a ironia até aí? E também que tivesse sido Platão o primeiro a indicar esta direção da reversão do platonismo? (1969, p. 262). Os simulacros, dissimi l i tude, singularidade, a própria diferença: eis porque Deleuze vai tanto apreciá-los. E se há diferença, há também variação, multiplicidade, potência para a geração de duplos, relegando para um segundo plano a identidade e a semelhança, pois o mesmo é sempre efeito exterior, simulação. Havemos, portanto, de repensar duas fórmulas, separadas por um abismo de pensamento e de existência: “só o que parece difere”, “somente as diferenças se parecem”. A primeira coloca no cerne da questão a Idéia, a identidade como fundamento espir i tual obv iamente convergente e como molde primordial, a serviço das instâncias de ordenação e de controle. A segunda, pelo inverso, refere a proli feração e a complexidade dos simulacros divergentes, as diferenças e a multiplicidade como fatores éticos para as ações e constituições de um mundo (Ib., p. 267). Ou seja, “(...) é a semelhança que se diz da diferença interiorizada, e a identidade do Diferente como potência primeira. O mesmo e o semelhante não têm mais por essência senão ser simulados, isto é, exprimir o funcionamento do simulacro” (Ib., p. 268).10 Em outras palavras, o mesmo, recognição que efetuamos quando nos chegam as coisas e os fatos, é sempre uma simulação, pois, no seu seio, ele guarda uma singularidade. De nosso ponto de vista, pensamos tratar- se do mesmo, porém, em si, trata-se de uma diferença, do tecido plissado e enredado de uma diferença. Quanto a essa simulação, efeito do funcionamento ou simplesmente da existência do simulacro, ela é fantasmática exatamente por conta da marca de semelhança, de duplicidade, que pode gerar no observador externo; entretanto, não há garantia alguma de que tal impressão esteja necessariamente vinculada a uma determinada idéia ou que nela possa ter um fundamento último (Ib., p. 268). Vislumbramos porque Deleuze vai propor o sentido como construção, longe de vinculá-lo à jurisdição de um absoluto. 10Cf. ainda Klossovski ou “Os corpos-linguagem” (DELEUZE, G. Lógica do sentido, p. 297). Uma tal citação expressa o núcleo da filosofia de Deleuze. SALES, A. C. 5 Rev. Univ. Rural, Sér. Ciências Humanas. Seropédica, RJ, EDUR, v. 28, n. -21, jan.-dez., 2006. p. 01-08. Fantasma é pois o próprio simulacro,o que acaba simulado, o efeito de simulação, tudo inseparável e indiscernível (Ib., p. 268). Nós os criamos, não há como não criá-los, embora provavelmente haja – se pesam negativamente – como abrandá- los, minimamente desmistif icá-los ou desconstruí-los, diminuir-lhes os efeitos, mudar-lhes a fisionomia. Para tanto, existem inúmeras práticas, nenhuma exatamente simples, todas com suas condições e delicadezas, muitas não só inócuas mas também opressoras e agravantes. CONSIDERAÇÕES Necessitaríamos, sempre que possível, positivar o fantasma, despojá-lo da aura negativa que, por vezes, carrega e difunde. Ora, fato é que não se trata de um fantasma ou de o fantasma: avessar o mundo e promovê-lo à sua positividade complexa é atestar que, em sua superfície, tudo o que há são fantasmas, simulacros (DELEUZE, 1969, p. 267). De fato, o mundo é simulação, “arrastamo-nos em um mundo de simulacros, não há outro” (AGUIAR, 1992, p. 31). E não tomemos isso por mera aparência ou ilusão,11 termos que caberiam em esfera opositiva a um fundamento último que, por seu turno, jamais seria aparente ou ilusório, mas sempre real e verdadeiro. Na v isão de Deleuze, a invenção platônica é uma poderosa máquina de formatação e colonização do pensamento. Uma das minúcias principais foi ter proposto algo estritamente idealizado, algo que pudesse infinitamente pairar sobre as imagens e os corpos sensíveis: mesmo na melhor hipótese, a qualificação máxima de uma cópia a fará dispor de uma realidade segunda, pois acima de tudo estão os modelos absolutos. Se Platão procura definir o que é a justiça será principalmente para poder postular quem é o mais justo.12 Não se trata de uma lei do verdadeiro e do falso, porquanto “a verdade não se opõe aqui ao erro, mas à falsa aparência” (FOUCAULT, 1970, p. 38).13 Importa-nos também certificar o quanto Deleuze coloca essa leitura em diferença dos eventos e das coisas, sob um signo de pura afirmação: “Longe de ser um novo fundamento, engole todo fundamento, assegura um universal desabamento (effondrement), mas como acontecimento positivo e alegre, como effondement” (DELEUZE, 1969, p. 268).14 Diremos, ainda, em outras palavras: afirmar os simulacros será desprezar as exigências de pretensão impostas em função de modelos externos supostamente superiores e, neste lugar, instalar o jogo pleno das potências, a superfície do mundo – suas formas, seus eventos, sua visibilidade manifesta, enfim – como simples efeito desse jogo, efeito sempre 11“Que o Mesmo e o Semelhante sejam simulados não significa que sejam aparências e ilusões. A simulação designa a potência para produzir um efeito” (DELEUZE, G. Lógica do sentido, p. 268). 12A única verdade é a do modelo, dona de uma identidade originária superior. 13“Effondement” é um neologismo criado por Deleuze. Em Diferença e repetição, Luiz Orlandi e Roberto Machado traduzem o termo por a-fundamento. Cf., por exemplo, p. 122-123, ou p. 159: “É assim que o fundamento foi ultrapassado em direção a um sem-fundo, a-fundamento universal que gira em si mesmo e só faz retornar o por-vir”. 14A lém disso, lembramos que toda essa proposta, essa que se vincula ao ser, desarticulou um outro modo de se localizar e existir no mundo grego que foi bastante estudado por Foucault na última fase de sua obra, e que diz respeito não à busca de essências imóveis e absolutas, mas a uma maneira de se conduzir diante das relações e dos acontecimentos. Não o ser, mas uma maneira de ser; por exemplo, não o ser do amor, mas uma maneira de ser e de se conduzir diante do amor. Cf. FUGANTI, L. Op. cit., p. 23-25. Platão e o simulacro...6 Rev. Univ. Rural, Sér. Ciências Humanas. Seropédica, RJ, EDUR, v. 28, n. -21, jan.-dez., 2006. p. 01-08. em perspectiva, necessariamente múltiplo e mutável, jamais absoluto ou definitivo.15 Ao pôr luz nos sofistas e em seus simulacros-fantasmas, Deleuze quer explicitar todo o processo pragmático e criativo que pode ser disparado a partir do que chama de potência do falso, processo inseparável da produção e da novidade. Haverá sempre uma multiplicidade de caminhos, de pontos de v ista, de perspectivas, ao invés de um único, o suposto monolito a ser alcançado e desvelado: inf initos véus, inf ini tas cavernas.16 Esses caminhos não são, aliás, o que devemos descobrir, mas aquilo que podemos buscar criar, de maneira que cada falsa estrada criada é a assunção de uma verdade.17 A arte, lugar por excelência dos falsários, já de há muito o sabia. Verificamos a coerência de Deleuze. Os colágenos de sua tessitura filosófica – circunstanciados como os duplos veementes que pululam no seu trabalho – são a própria força positiva dos simulacros e da potência criativa do falso, como pode atestar um impactante fragmento de sua carta a Michel Cressole: Eu me imaginava chegando pelas costas de um autor e lhe fazendo um filho, que seria seu, e no entanto seria monstruoso. Que fosse seu era muito importante, porque o autor precisava efetivamente ter dito tudo aquilo que eu lhe fazia dizer. Mas que o filho fosse monstruoso também representava uma necessidade, porque era preciso passar por toda espécie de descentramentos, deslizes, quebras, emissões secretas que me deram muito prazer (1990, p. 14). A contemporaneidade, império dos simulacros: recalcados durante tanto tempo pelo despotismo da pretensão e do absoluto, escapam de seu desterro, declaram sua rebelião e não cessam mais de se manifestar, pecul iarmente configurados segundo os novos suportes computacionais e digitais: a internet, a arte, as mídias de um modo geral. Sob este ponto de vista, Platão enlouqueceria. Os rebentos mais desavisados pisam sobre cacos pontiagudos e numerosos, restos de um espelho fraturado. Envoltos em uma vaga pungente, parecem não saber lidar com a diferença e a multipl icidade incontornáveis, tão afeitos que eram (ou são) à ordem do uno. As conseqüências são evidentes e se atualizam em fogs de toda espécie: ni i l ismos profundos, radicalismos, o terrível vale-tudo. Outra questão importante – que apenas tangenciaremos em função dos limites de nosso trabalho, mas que não poderemos deixar de contemplar – diz respeito, na estrada sucessória da predileção platônica pelo quem, ao estatuto do sujeito contemporâneo. O que pode um eu? Alguns acreditam que eu pode e consegue tudo. No entanto, temos a nítida impressão de que os que mais aí depositam o exagero de suas expectativas são os que mais acolhem o ressent imento, a má consciência, a culpa.18 O que é ter um eu? 15Sobre o confronto entre potência e pretensão em relação à filosofia, cf. “Platão, os gregos”, em Crítica e clínica, p. 154-155. Lemos aí: “A potência é modesta, contrariamente à pretensão”. 16Menção a um fragmento bastante conhecido de Nietzsche, em Para Além de Bem e Mal (§ 289): “(...) por trás de cada caverna, não jaz, não tem de jazer uma caverna ainda mais profunda, um modo mais vasto, mais alheio, mais rico, além de uma superfície, um sem-fundo por trás de cada fundo, por trás de cada ‘fundamento’” (p. 294). Esse fragmento é lembrado em Lógica do sentido (cf. p. 269). 17Em Cinema 2, lemos por exemplo: “O artista é criador de verdade, pois a verdade não tem de ser alcançada, encontrada nem reproduzida, ela deve ser criada” (p. 178). Há aí, no item “As potências do falso” uma bela discussão sobre esse assunto com motivos no cinema (cf. p. 155-188). 18É o que talvez possamos concluir da leitura de um texto como “Carta a um crítico severo” (DELEUZE, G.Conversações, p. 11-22). Para um exame detalhado do ressentimento, da má consciência e da culpa, cf. o quarto capítulo de Nietzsche e a filosofia, “Do ressentimento à má consciência” (p. 92-122). SALES, A. C. 7 Rev. Univ. Rural, Sér. Ciências Humanas. Seropédica, RJ, EDUR, v. 28, n. -21, jan.-dez., 2006. p. 01-08. Quem é que fala e pensa nesse eu? Não seria oeu também algum tipo de efeito – um efeito rico e essencial –, mas sim, ele próprio, uma simulação? Até que ponto conseguiríamos dissolvê-lo, mergulhá-lo em seu próprio mar, múltiplo mar de alteridade, de onde ele emerge enquanto efeito, mas que em suma o constitui?19 Nada disso é simples. A complexidade dessas questões é o próprio enleamento hodierno, violência que só deveria acentuar nossa necessidade de parâmetros éticos e pragmáticos, linha sensível que não pode deixar de atravessar a superfície deste trabalho. Lembramos que pôr os existentes sob a potência do falso e do simulacro não é de modo algum afastar- se do rigor ou resignar-se a uma revogação de todo critério avaliativo, a equivalência ordinária entre elementos, relativização de tudo. Pois há uma grande diferença entre destruir para conservar e perpetuar a ordem estabelecida das representações, dos modelos e das cópias e destruir os modelos e as cópias para instaurar o caos que cria, que faz marchar os simulacros e levantar um fantasma – a mais inocente de todas as destruições, a do platonismo (DELEUZE, 1969, p. 271). REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AGUIAR, S. O simulacro. In: ECO – Publicação da Pós-Graduação da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Vol. 1, n. 1. Rio de Janeiro: Imago, 1992. p. 27-37. CHEDIAK, K. Introdução à filosofia de Deleuze. Londrina: Editora da UEL, 1999. 134 p. DELEUZE, G. (1962) Nietzsche e a filosofia. Rio de Janeiro: Rio, 1976. 170 p. __________. (1969) Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 1998. 342 p. __________. (1993) Crítica e clínica. São Paulo: 34, 1997. 176 p. __________. (1968) Diferença e repetição. Rio de Janeiro: Graal, 1988. 499 p. __________. (1985) Cinema 2 – a imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 1990. 339 p. __________. (1990) Conversações. São Paulo: 34, 1992. 232 p. FOUCAULT, M. (1970) Theatrum philosoficum. In: FOUCAULT, Michel. Nietzsche, Freud e Marx/Theatrum philosoficum. Porto: Anagrama, [s/d.], p. 35-79. FUGANTI, L. Saúde, desejo e pensamento. In: SaúdeLoucura, n. 2. São Paulo: Hucitec, [s/d.], p. 19-82. LÉVY, P. (1990) As tecnologias da inteligência. Rio de Janeiro: 34, 1993. 208 p. MACHADO, R. Deleuze e a filosofia. Rio de Janeiro: Graal, 1990. 242 p. 19Sabemos que a questão do sujeito é tradicionalmente colocada, em termos de História da Filosofia, desde Descartes. Contudo, conforme já indicamos, há pensadores que remetem a gênese desta problemática à Grécia Antiga. Esses estudiosos (como Nietzsche, Foucault, Deleuze, Guattari, entre outros), procuram, de um modo geral, valorizar a multiplicidade dinâmica de vozes no sujeito em contraponto ao sujeito fixo conformado por um eu e uma consciência irredutíveis. Deleuze, por exemplo, utiliza muito a fórmula de Rimbaud, “Eu é um outro...”. Quanto ao eu como efeito de simulação, sugerimos verificar, por exemplo, o livro As tecnologias da inteligência, de Pierre Lévy (cf. p. 170-171). Platão e o simulacro...8 Rev. Univ. Rural, Sér. Ciências Humanas. Seropédica, RJ, EDUR, v. 28, n. -21, jan.-dez., 2006. p. 01-08. NIETZSCHE, F. (1885/86) Para além de bem e mal. In: Obras Incompletas. São Paulo: Abril Cultural, 1978, p. 267-294. (Coleção Os Pensadores). ULPIANO, C. A estética deleuziana. São Paulo: Oficina Três Rios, 1993 (mimeo). 23 f. __________. Do saber em Platão e do sentido como reversão do platonismo. 1983. 104 f. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio Janeiro, Rio de Janeiro.
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