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Giorgio del Vecchio - Lições de Filosofia do Direito

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DE
L E C Ç Ã O S T V D I V M
TEMAS FILOSÓFICOS, JURÍDICOS E SOCIAIS
GIORGIO DEL VECCHIO
LIÇÕES
FILOSOFIA
DIREITO
5.“ Edição
TRADUÇÃO DE
ANTÔNIO JOSÉ BRANDÃO
REVISTA E PREFACIADA POR
L. CABRAL DE MONCADA
E ACTUALIZADA POR
ANSELMO DE CASTRO
da Universidade de Roma
A R MÊ N I O AM ADO — E D I T O R , S U C E S S O R - C O I M B R A
LIÇÕES
DE
FILOSO FIA DO DIREITO
C O L E C Ç Ã O S T V D I V M
TEMAS FILOSÓFICOS, JURÍDICOS B SOCIAIS
GIORGIO DEL VECCHIO
Professor da Universidade de Roma
LIÇÕES
DE
FILOSOFIA DO DIREITO
TRADUÇÃO DE
ANTÔNIO JOSÉ BRANDÃO
J.a EDIÇÃO CORRECTA E ACTUALIZADA 
SEGUNDO A 10.a E ÚLTIMA EDIÇÃO ITALIANA
REVISTA E PREFACIADA POR
L. CABRAL DE MONCADA
E ACTUALIZADA POR
ANSELMO DE CASTRO
A R MÊ N I O A M A D O - E D I T O R , S U C E S S O R - C O I M B R A - 1 979
T itu lo orig inal:
«Leziooi di F ilosofía dei Dtrltto»
Autor:
Giorgio Del V ecchio
D ireitos ex c lu siv o s em língua portuguesa de 
Arm énio Amado — Editor, S u cessor 
Ce ira — Coimbra — Portugal — 1979 
Colecção S tu d iu m , n .01 58 e 59
P R E F Á CI O
A Filosofia do direito hoje mais em voga, é de data rela­
tivamente recente. A sua história não vai muito além de uma 
geração, remontando a pomo mais de sessenta anos.
Se tomarmos como ponto de referência, para marcar o 
início dessa modernidade, o momento da renovação da filosofia 
de Kant no século transado, poderíamos dizer que tal filosofia 
se subdivide fundamentalmente em dois períodos separados um 
do outro pela primeira guerra mundial: o do N eokantism o e o 
da reacção contra ele. Devemos, sem dúvida, ao primeiro o des­
pertar da reflexão filosófica no campo jurídico, depois do largo 
período positivista que acompanhou quase toda a segunda 
metade do século xix . Já, porém, lhe não devemos o estado mais 
actual da nossa consciência filosófica em nenhuma das grandes 
directrizes em que esta se afirma.
Ao grito de Liebmann, «zurück zu Kant» (voltemos a 
Kant), de 1865, sucedeu um estado de espírito que se poderia 
talvez exprimir melhor pelo grito precisamente oposto: fujamos 
de Kant. Ê preciso reconhecer isto: a mais moderna filosofia 
ultrapassou Kant numa larga frente, e foge dele. E contudo, 
facto não menos notável: a influência e a sombra de Kant 
continuam a persegui-la. Hoje, como escreveu Ortega, as portas 
da «prisão kantiana» parecem abrir-se de par em par. Os presos 
evadem-se de lá um a um! E contudo esses presos evadidos 
conservam ainda cá fora, já na liberdade, muitos dos hábitos 
contraídos na prisão.
8 PREFACIO
Ao subjectivismo da Crítica kantiana sucedeu o óbjecti- 
vismo de um conhecimento de novo voltado para o ser. Toma­
ram a reatar-se neste ponto, em determinados sectores do pen­
samento filosófico contemporâneo, as melhores tradições da 
Philosophia perennis. 0 ser, a realidade, e a Ontologia que os 
estuda, protendem a retomar o seu antigo lugar no centro da 
especulação filosófica, submetendo a si novamente, embora 
seguindo outras vias, como nos melhores tempos da Grécia e 
da Idade Média, o estudo do sujeito, da lógica e da Teoria do 
conhecimento. A «revolução copemiciana», a que aludia o símile 
de Kant, insiste em produzir-se, mas desta vez no sentido inverso 
do imaginado pelo filósofo de Königsberg. Os termos da pro­
blemática gnoseològica são, uma vez mais, invertidos ou, pelo 
menos, profundamente modificados nas sum relações. No centro 
do sistem a solar do conhecimento fica, outra vez, o objecto.
E gravitando em volta dele, como a Terra em volta do soi, está 
outra vez o sujeito. Mais do que isso: Constituindo como que o 
fundo longínquo, mas não já julgado de todo inacessível ao 
nosso órgão visual filosófico —espécie de esfera celeste sobre 
a qual este novo-velho sistema planetário das relações entre o 
sujeito e o objecto se desenha— eis outra vez retomada a 
Metafísica, que Kant prudentemente tentara afastar, que os 
neokantianos quiseram radicalmente eliminar, e dentro da qual 
voltam a perfilarse todas as inquietações e anseios de infinito 
que agitam a alma contemporânea. Mas, facto não menos 
curioso: este estremecimento ê o de uma alma muito mais rica 
na consciência de si mesma, e isso precisamente devido, em 
grande parte, às profundidades da própria reflexão kantiana.
Esta, nos seus grandes traços, a situação do presente.
A moderna Filosofia do direito, hoje mais em voga, nasceu pois 
sob o signo do Neokantismo, e foi um rebento da grande árvore 
da filosofia kantiana. E se hoje, passados cerca de trinta anos, 
vemos aquela enveredar, em larga medida, por outros caminhos 
em demanda de outros horizontes, como por exemplo, os de 
um novo idealismo objectivo ou os de um novo Direito natural,
PREFACIO 9
em que o melhor da Escolástica ressurge renovado, a primeira 
pergunta a fazer aos representantes destas diversas correntes, 
é e será sempre a mesma: — como forçaram eles as portas 
da prisão? Por onde saíram dela? Que elementos conservaram 
da lição de Kant?
Ponhamos justamente estas perguntas a respeito do ilustre 
filósofo-jurista italiano, Giorgio del Vecchio, cujas Lezioni 
saem hoje em tradução portuguesa, á qwal estas despretenciosas 
linhas pretendem servir de prefácio. Qual o seu sistema de 
idéias? Em que relação se acha com Kant e o Neokantismo? 
Em que medida os ultrapassa?
A construção de idéias de del Vecchio nasceu em 1902, 
depois de largos estudos feitos na Alemanha, com o seu primeiro 
trabalho, intitulado II sentimento giairidico. Aí encontramos já 
em germe todo o seu ulterior sistema de idéias filosóficats, como 
este veio a desenvolver-se. Nasceu tal sistema sob o signo do 
Neokantismo, então em plena ascensão. A influência de Mar­
burgo e as afinidades com o pensamento de Stammler são nele 
inegáveis. Tal qual este, del Vecchio atribui também à Filo­
sofia do direito, como objecto próprio das suas investigações, 
estes dois temas capitais: a determinação do conceito de direito, 
e a determinação do ideal jurídico. Que é direito, e como deve 
ser o direito? Eis aí também as duas preocupações máximas 
iniciais do filósofo italiano. A primeira chama-se uma questão 
lógico-gnoseológica; à segunda uma questão ético-axiológica. 
A primeira refere-se ao conhecer e ao conhecimento; a segunda 
ao dver ser e ao obrar. S certo que del Vecchio lhes acres­
centou uma terceira, empírico-fenomenológica, relativa ao ser 
histórico-social do direito, afastando-se neste ponto da sua ins­
piração kantiana de origem. Mas esta terceira parte ou capítulo 
da sua temática, diga-se de passagem, é hoje considerada uma 
espécie de corpo estranho e menos filosófico no sistema das
10 PREFACIO
suas idéias, devendo ver-se nela antes o resíduo das correntes 
do sociologismo naturalista do século xix, ou seja, do positivismo 
e historicismo, que ainda se reflectem na formação do seu 
espírito.
Mais importante, porém, é notar as posições fundamentais 
a que o ilustre professor italiano se soube elevar no segundo dos 
temas capitais, a que acabamos de nos referir, dado que no 
primeiro ele pode ser considerado um neokantiano da Escola de 
Marburgo. Ê, com efeito, na parte referente à determinação 
do ideal jurídico que del Vecchio sobretudo ultrapassa o kan­
tismo, fundando uma nova metafisica.
Já se tem chamado ao sistema de idéias delvecchiano um 
«idealismo crítico». Isto, sem dúvida, em atenção ao su b je ti­
vismo transcendental do seu ponto de partida: a Oiítica da 
Razão paira. Tal designação contudo está longe de ser justa, 
se sem reservas a quisermos aplicar ao todo desse sistema. Se 
conservarmos à palavra «crítico» o seu significado rigorosa­
mente filosófico, a designação só poderá aplicar-se à primeira 
parte das suas investigações. De «idealismo crítico» só há na 
sua obra a atitude inicial; digamos: o primado
por ele atribuído 
ao problema do conhecimento, a maneira como procura deter­
minar a priori o conceito de direito; e ainda a sua maneira de 
conceber as relações entre o direito e a moral. Mas este «idea­
lismo critico» já do mesmo modo se não revela, com a mesma 
pureza e intensidade, na segunda parte da temática do filósofo, 
onde ele é menos fiel à primeira orientação, para se deixar 
atrair na órbita de outros mundos de idéias.
A determinação do ideal jurídico, ou seja, do direito justo, 
é aquela parte da Filosofia jurídica, a que quase exclusivamente 
se consagram os filósofos juristas de todos os tempos, e a que 
mais usualmente se dá o nome de ôireito natural. E sabe-se 
que o Neokantismo, com Stammler e del Vecchio, reagindo 
contra o positivismo e o naturalismo do século xix, e apesar 
da raiz kantiana do seu pensamento, foi neste século, fora da 
Escolástica, o verdadeiro restaurador da ideia dum Direito natu-
PREFACIO 11
rol. Isto é inegável. Como procurou, porém , del Vecchio assen­
tar e fundamentar a sua concepção de um Direito natural? 
Diremos só duas palavras a este respeito, por estar aí o punctum 
saliens da sua emancipação do kantismo.
Kant der ar nos, como é geralmente safado, o derradeiro 
termo na linha de evolução das ideias jusnaturalistas do 
século xvm. Também ele foi, sem dúvida, jusnaturalista. Mas 
o seu Direito natural, pelo total esvaziamento da Razão (Ver­
nunft) dos seus conteúdos empíricos, ficara reduzido a uma 
forma vácua e pobre, espécie de moldura sem quadro, tabela 
sem números, ou ainda a uma figura abstracta à qual fora rou­
bada toda a vida. Além disso, esse direito deixou de se impor 
do exterior ao homem, passando a impor-se-lhe do intenor. 
Deixem de estar necessariamente ancorado num ser transcen­
dente ou numa natureza repleta de momentos empíricos, para 
ser considerado uma simples lei da Razão. Os seus preceitos 
ideais, universais, não iam além disto: «obra por maneira que 
possas sempre tratar a vontade livre e racional, isto é, a hum a­
nidade, em ti e nos outros, como um fim e não como um meio». 
Ou ainda: «obra por forma que a tua liberdade (não o mesmo 
que o arbítrio) possa sempre harmonizar-se com a liberdade 
dos outros, segundo um a lei geral de liberdade para todos». 
Tudo o que de concreto podia extrair-se do conceito de direito 
para Kant, como direito natural, consistia nisto. Com Kant o 
jusnaturalismo mirrara-se num absoluto e total jusracionalismo, 
convertida a Razão numa forma pura e sem conteúdos.
Esta orientação foi também ainda a seguida por Stammler. 
Stammler, porém, já lhe não foi inteiramente fiel. O formar 
lismo criticista deste filósofo já não foi tão rígido como o de 
Kant. Assim, quando ele tratou de definir o seu conceito de 
Direito natural, aliás englobado na ideia formal de justiça, vol­
taram a aparecer dentro dele, inopinadamente, certas ideias, 
como a de personalidade livre e a de comunidade humana ou 
Estado, que, embora ele o não pensasse, tinham muito mais 
de empírico que de puramente racional e estavam longe de cor-
12 PREFACIO
responder a puras formas lógicas. Por outro lado, a preocupa­
ção teleologica ou finalista, embora sem projecção metafisica, 
que Kant arredara, voltava também a desempenhar na cons­
trução de Stammler um importante papel
Ora importa notar que este afastamento, a princípio quase 
insensível, do pensamento kantiano, e sobretudo este abraçar 
de preocupações teleológicas, vêm a produzir-se em del Vecchio 
num grau muito maior do que em Stammler, conduzindo-o 
a edificar, por último, na base do seu neokantismo, um verda­
deiro e novo sistema metafisico de idéias. E este é o ponto 
decisivo.
A natureza hum ana à qual del Vecchio vai buscar o cri­
tério para definir o ideal jurídico, o direito justo, com efeito, 
nem é uma realidade puramente empírica, como era para muitos 
dos jusnaturalistas clássicos, nem mera ideia racional e a/penas 
formal, como era para Kant. Ê antes uma realidade espiritual 
orientada por fins e fazendo parte de um universo também teo­
logicamente estruturado. «A natureza hum ana é, neste sentido
— diz ele — um princípio vivo que anima o universo e se 
exprime na infinita variedade do seu desenvolvimento. S aquela 
substância que reconhecemos imune da angústia da causalidade: 
a razão anterior que dá normas a todas as coisas e lhes assina
a sua própria tendência'». E uma tal visualização teológica
— note-se desde já — não é, como era para Kant e os neókan- 
tianos, um simples princípio regulativo, h eu rístico , da nossa 
compreensão de certas coisas, ou um certo ângulo de visão ou 
ponto de vista não essencial, só aplicáveis à esfera do humano.
Ê mais. Ê uma estrutura da realidade que abarca o universo 
e o homem. Trata-se de uma teleologia não regulativa, mas cons­
titutiva e carregada de momentos ontológicos. Ê, porém, evi­
dente que uma tal concepção da natureza humana, como a da 
natureza em geral, está já muito para além do kantismo, e 
constituü uma nova metafísica. E o mesmo se diga do conceito 
de personalidade humana que está na base destas idéias. Che­
gado a este ponto, dir-se-ia que é aí que o nosso filósofo dban-
PREFACIO 13
dona definitivamente a lição de Kant, sem poder permanecer 
por mais tempo dentro do ergástulo kantiano. Foi por ai que 
del Vecchio se evadiu dele: pela porta das concessões —que 
aliás o Neokantismo, com Stammler, já começara a fazer — 
às visualizações teleológicas da realidade, através das quais vol­
tavam a descortinarse, cá fora, em vasta perspectiva, as sedu­
toras paragens metafísicas. O ilustre mestre italiano alargou 
ainda mais esse buraco, já aberto nas grades da dita prisão, 
pelo teleólogismo stammleriano. E contudo, conforme já atrás 
notámos, também neste caso o evadido de tal prisão não pode 
esquecer-se dela, e continuou a conservar vivo o hábito das for­
mulações gnoseológicas de nítido sabor kantiano. Ao dar-nos 
o preceito supremo do seu Direito natural, o formalismo kantiano 
ergue-se de novo. Assim é dele esta fórmula: «obra por maneira 
que sejas, não simples meio ou veíoulo das forças da natureza, 
mas um ser autónomo com a dignidade de princípio e fim; não 
como indivíduo empírico {homo phaenomenon), mas como ser 
racional (homo noumenon»). Não parece estar-se a ouvir ainda 
a voz do mesmo Kant?
E poderemos nós depois disto continuar a chamar ainda 
Idealismo ao sistema de idéias de del Vecchio?
Se por Idealismo entendermos o Idealismo critico, subjec­
tivo e transcendental, que reduz todo o mundo das nossas repre­
sentações a um jogo de formas criadas por uma «consciência 
em si mesma*, uma Bewusstsein überhaupt, não necessária e 
ontologicamente ancorada num ser transsuibjectivo, absorvida 
toda a filosofia numa Teoria do conhecimento, como já disse­
mos acima, é evidente que não. Aquilo que ele conserva de 
Kant não é o bastante para o incluir sob a rubrica desse .. .ismo. 
Neste sentido, del Vecchio não é kantiano nem idealista. O seu 
Idealismo não é um Idealismo epistemologico nem critico. Mas 
se por Idealismo entendermos toda a outra concepção do uni­
verso caracterizada péla afirmação de uma realidade metafísica 
das idéias, quer em sentido platônico, como transcendência, quer 
aristotélico, como imanência, então poderemos tranquilamente
14 PREFACIO
continuar a chamar a del vecchio um idealista. Simplesmente: 
o seu idealismo será então um Idealismo metafisico.
O Idealismo de del vecchio é, além disso, urna forma de 
Idealismo parecida em vários aspectos com muitas outras que 
pulularam na história da filosofia do século xix e do actual, 
em que, como já foi notado por recasens (*), tomam a aparecer 
muitos momentos derivados de todas as grandes correntes do 
Idealismo alemão post-kantiano. Fichte com a sua concepção 
do Eu, principio absoluto e autônomo, do qual toda a realidade 
do não-eu não
passa de ser uma função; Schelling com o seu 
organicismo teleologico e metafísico, inspirador do sistema de 
krause; Hegel com o seu panlogismo também metafisico, de 
uma Razão universal que acaba por se fazer natureza, cons­
ciência e espirito, a si mesmo se contemplando como pensamento 
absoluto, etc., todos estes momentos, com efeito, surgem aqui 
e além, como ingredientes de rápida fulguração que logo se 
diluem, absorvidos na síntese do pensamento delvecchiano. Nele, 
poderia dizer-se, estão em germe todas as formas conhecidas 
do Idealismo ocidental. Poderíamos também chamar-lhe por 
essa razão um Idealismo ecléctico.
Recentemente, del vecchio converteu-se ao Catolicismo. 
Este facto tem levado alguns escritores a darem ao sistema 
das suas idéias uma nova interpretação, tendente a desligá-lo 
de certos dos seus momentos kantianos, principalmente do que 
no kantismo há de formalismo ético e jurídico, bem como de 
muitos dos seus ingredientes hegelianos e scheTlinguianos, para 
o aproximarem de outras concepções e pontos de vista mais 
consentâneos com um jusnaturalismo escolástico de pura base 
tomista. Pretendeu-se descobrir aí como que o balbuciar duma 
verdade eterna e absoluta, em profunda concordância com as 
verdades fundamentais do Cristianismo.
(') D irecciones con tem porâneas dei p en sa m ien to ju r íd ico , pág. 107.
PREFACIO 15
Conquanto, na sua generalidade, nos pareça inteiramente 
justificada esta última pretensão, não julgamos, porém, viável 
nenhuma tentativa de interpretação das idéias de del vecchio 
em conjunto sobre a base de uma amputação de tal natureza 
de quaisquer dos momentos que elas contêm. Uma amputação 
destas eqüivaleria a uma violência praticada contra a realidade 
histórica do sistema que elas constituem, como esse sistema 
foi vivido e pensado pelo seu autor. Se o sistema pode em si 
mesmo ser considerado como contendo algo de contraditório, 
é preciso reconhecer que tal contradição está sobretudo na época 
e na situação histórica mental, de que ele emerge. Há contradi­
ções orgânicas no íntimo de muitos sistemas de idéias, cuja tentar 
tiva de eliminação, longe de os purificar, os toma simplesmente 
incompreensíveis como dado existencial de um pensamento 
vivido.
Por isso, concluímos:
O sistema de idéias do ilustre autor destas Lezioni pertence 
historicamente, de uma maneira definitiva, ao quadro da filo­
sofia idealista dos fins do século xix e mergulha as suas raízes 
no terreno das mais autênticas tradições do Idealismo alemão 
kantiano, post-kantiano e neo-kantiano. Ê a tentativa de uma 
síntese dessas três formas de Idealismo, reflectindo osque todas 
elas aliás têm de inacabado e de contraditório entre si. Nenhum 
desses elementos contudo assume nele a consistência de uma 
orientação ou directriz assaz forte, para lhe poder ser atri­
buída a nacionalidade de uma qualquer dessas três formas de 
Idealismo como única e exclusiva. Nem tão pouco os seus mo­
mentos metafísicos e jusnaturálísticos estão suficientemente 
libertos de preocupações «críticas», para se supor que na con­
tinuação da linha lógica do sistema possa vir a encontrar-se, 
ao fim e ao cabo, a pura escolástica tomista.
A obra deste insigne filósofo-jurista pode, numa palavra, 
caracterizarse, na sua suprema intenção filosófica —e nisto
16 PREFACIO
vai a melhor homenagem que lhe podemos e devemos prestar — 
como mais um grande esforço por conciliar entre si as duas 
grandes correntes deste século, principalmente a partir da pri­
meira guerra mundial: a das exigências do espirito critico, 
aplicado a todo o conhecimento, de que foi paradigma a lição 
de Kant, e a das novas exigências de um mais puro idealismo 
ético. Por outras palavras: entre o que de eterno há em Kant, 
e as aspirações de uma nova Ética de valores materiais, não 
simplesmente formais —no sentido de Max Schbler— supe- 
radora de todo o logicismo, a acenar para uma nova metafísica 
em que volta a ver-se ao longe o clarão das grandes verdades 
do Cristianismo.
A solução pessoal religiosa que o nosso ilustre amigo deu 
ao problema dessa conciliação, não é uma solução lógica do 
sistema, como já contida nele, mas uma solução do «homo 
religiosus», para além de todo o filosofar, que é del Vecchio,
Cabral de Moncada
DUAS PALAVRAS DO TRADUTOR
Costuma-se dizer que os livros também possuem um destino. 
Se fosse necessário ilustrar com um exemplo o adágio, nenhum 
outro melhor podia ser encontrado que o das Lições de Filosofia 
do Direito do ilustre Reitor da Universidade de Roma, o Pro­
fessor Giorgio del Vecchio. Editadas pela vez primeira em 
1980, dois anos depois, em 1982, tomava-se necessária outra 
edição, já esgotada em 1986, ano em que se publica a terceira. 
A guerra impediu que saísse nova edição em 1989; esta é 
publicada em 1944; mas, logo no ano seguinte, houve necessi­
dade de imprimir a 5.° — a mesma que nestes dois volumes se 
apresenta ao mundo da cultura lusíada na versão portuguesa.
Entretanto, o livro havia feito carreira fora da Itália. Tror 
duzido para espanhol, francês, alemão, turco e japonês, correra 
mundo, por toda a parte recebendo o prêmio devido ao autor 
pelo notabilissimo esforço precursor de que as lições são o coroar 
mento e a síntese.
Com o brilho e a proficiência habituais, fe z o meu querido 
Mestre e Amigo, Professor Cabral de Moncada, a biografia 
espiritual do Professor del Vecchio. Seja-me permitido, no 
entanto, acrescentar o seguinte: o êxito destas Lições deve-se 
ao facto de nelas o seu autor ter sabido, com arte consumada, 
tomar a Filosofia do Direito acessível a todos os juristas, mesmo 
àqueles destituídos de formação especializada. Todas as ques­
tões que ao jurista como tal interessam foram pelo Professor 
del Vecchio filosoficamente enfocadas e tratadas.
T d - 2
18 DUAS PALAVRAS DO TRADUTOR
Muitas vezes se repreende a Filosofia do Direito -por andar 
longe do mundo e da luta dos humanos interesses; e os seus 
cultores, por se alhearem das preocupações correntes do homem 
de leis, para nada os ajudando no momento em que melhor 
ou mais fundamente desejam meditar o Direito. Pois bem: o 
reparo não pode ser dirigido a estas Lições, onde se mantém 
contacto estreito com os dados da vida jurídica, sem todavia 
se cair na redundância inútil de repetir em termos filosóficos 
o já dito pela ciência dogmática do Direito. Eis a razão pela 
qucU elas têm actuado, por toda a parte, como despertador eficaz 
da vocação filosófica dos juristas. Oxalá continuem a cumprir 
em Portugal tão afortunado como benéfico destino.
Antônio J osé Brandão
PREFÁCIO DO AUTOR 
 7A EDIÇÃO ITALIANA (1950)
A revisão a que foi submetida a presente edição não intro­
duziu na obra nenhuma modificação substancial Breves foram 
os acrescentamentos sofridos pela parte histórica (por exemplo, 
quanto à Filosofia do Direito na Alemanha) e o mesmo se diga 
dos sofi idos pela parte sistemática (por exemplo, os relativos 
ao Tribunal constitucional, aos direitos potestativos, ao matriar­
cado, à ideia de progresso e à luta pelo justiça). Fizeram-se 
também alguns retoques com o fim de introduzir na exposição 
maior clareza e precisão. Por último, em ordem a atingir o 
mesmo fim , introduziu-se igualmente leve alteração na ordem 
das matérias, no tocante às normas técnicas e aos destinatários 
das normas jurídicas.
Possam os desvelos consagrados a esta nova edição e os 
melhoramentos nela introduzidos testemunhar, ao menos, a gra­
tidão do autor pelo constante e cada vez maior favor com que 
a obra tem sido acolhida pelos estudiosos.
Roma, 1950
PREFÁCIO DA 8A EDIÇÃO
A presente edição foi também objecto de uma nova revisão 
do autor, apesar do reduzido tempo decorrido sobre a prece­
dente. Nela se introduziram numerosos retoques e alguns adita­
mentos, como sejam , quanto a estes, as mais completas
refe­
rências, na Parte Histórica, a Gioberti, Mazzini e a outros 
autores italianos e estrangeiros, com o que se preencheram 
várias lacimas; e, na Parte Sistemática, a reelaboração e melhor 
esclarecimento de alguns pontos, por exemplo, dos factos e actos 
jurídicos, o Estado e a sociedade dos Estados, etc.
Sem nada prejudicarem a índole originária da obra, de 
manual escolar, os desenvolvimentos que vêm sendo introdu­
zidos, progressivamente, nas várias edições, não deixarão tam­
bém de ser de algum modo úteis aos estudiosos em geral das 
doutrinas jurídicas.
Roma, 1951
PREFÁCIO DA PRESENTE lOA EDIÇÁO
A presente 10.a edição, ao contrário da 9.a edição, quase 
idêntica à precedente, contém várias alterações e aditamentos 
de certa importância, tanto na Parte Histórica como na Siste­
mática.
Aditou-se também a esta edição um índice analítico, de 
acordo com os votos expressos por alguns estudiosos.
Rama, Dezembro de 1957
B I B L I O G R A F I A
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PARTE HIST ÓR ICA
HISTORIA DA FILOSOFIA DO DIREITO
Considerações preliminares
De cada ciência é vantajoso conhecer a história. Mas a 
importância de tal conhecimento faz-se sentir de modo particular 
a respeito das disciplinas filosóficas: em estas, o presente, sem 
o passado, carece de sentido; e o passado revive no presente. 
Os problemas filosóficos que hoje discutimos são fundamen­
talmente os mesmos que aos filósofos antigos se mostraram, 
ainda que de modo germinal ou embrionário. O exame dos sis­
temas filosóficos, por outro lado, proporciona-nos um a série 
de experiências lógicas. Ao efectuá-las, aprendemos a ver a 
que conclusões se chega quando se parte de certas premissas 
e, assim, a tirar partido da aprendizagem, com o intuito de nos 
avizinharmos de sistema mais perfeito, que seja produto de 
mais intensa maturidade, capaz de evitar os erros já entretanto 
cometidos e de aproveitar os progressos já entretanto atingidos. 
A História da Filosofia é, por conseguinte, meio de estudo 
e de investigação, e, como tal, poderosa ajuda para o nosso 
trabalho: oferece-nos repositório de observações, de raciocínios, 
de distinções, que a um homem só, no decurso da vida, seria 
impossível ocorrer. Acontece-nos o mesmo que a qualquer artí­
fice actual que, agora, seria incapaz de ser o inventor de todos 
os instrum entos da sua arte.
No caso particular da Filosofia do Direito, a história dela 
mostra-nos sobretudo que em todas as épocas se meditou sobre 
o problema do Direito e da Justiça. Logo: o facto denuncia
32 LIÇÕES DE FILOSOFIA DO DIREITO
que tal problema não é um a invenção artificiosa mas corres­
ponde à necessidade naturai e constante do espírito humano.
A Filosofia do Direito, porém, não se nos depara, nas suas 
origens, como disciplina autónoma mas mesclada com a Teo­
logia, a Moral e a Política; só pouco a pouco se operou a sua 
autonomia. Nos primeiros tempos, a confusão foi completa e, 
no Oriente, temos o seu melhor exemplo, pois, aí, os livros 
sagrados apresentam-se simultaneamente como tratados de Cos­
mogonia, de Moral, e contêm elementos de outras ciências, 
assim teóricas como práticas. Nestes escritos predomina o espí­
rito dogmático. Neles é o direito concebido à maneira de pres­
crição divina, superior ao poder humano, e, por isso, não como 
objecto de discussão e ciências, mas tão só de fé. As leis 
positivas são também consideradas indiscutíveis; e não se julga 
susceptível de fiscalização e limite o poder existente, expressão 
da divindade. Em esta fase, própria dos povos orientais, ainda 
o espírito crítico não se tinha manifestado. Contudo, injusto 
seria olvidar que muitos destes povos, sobretudo os hebreus, 
os chineses e os indianos deram notável impulso aos estudos 
filosóficos, sobretudo no respeitante à Moral.
A Filosofia G rega 
Primórdios
É a Grécia a pátria por excelência da Filosofia, que nela 
atinge desenvolvimento autónomo 0). Em os primeiros tempos, 
a mente grega não se vira para os problemas éticos, nem tão 
•pouco para os jurídicos, pois preocupa-se exclusivamente com 
a natureza física. Assim, a Escola Jónica, a mais antiga (vi séc. 
A. C.), tentou explicar os fenómenos do mundo sensível me­
diante a sua redução a certo tipo único deles. Mas esta escola, 
à qual, entre outros, pertenceram Tales, Anaximandro, Ana­
ximenes, Heraclito e Empédocles (que formulou a teoria dos
HISTORIA DA FILOSOFIA DO DIREITO 3 3
quatro elementos: água, ar, fogo e terra), não tem importância 
para o nosso estudo.
Outra escola, quase contemporânea da jónica, a Eleática, 
tentou responder ao mesmo problema pela boca dos seus repre­
sentantes — Xenófanes, Parménides, Zenão de Eleia, Melisso 
de Samos— mas de modo bem mais profundo e reflectido. 
Erguendo-se até um conceito metafísico, sustentou que o ser 
é uno, imutável, eterno. Por outro lado, aceita um a única dis­
tinção: entre aquilo que é e aquilo que não é, Daqui a negação 
do conceito de devir e de movimento: ambos correspondem 
apenas a ilusão dos sentidos. Não é de admitir o nascimento 
e a morte, o trânsito entre ambos.
Relacionam-se com as doutrinas das Escolas Jónica e Eleá­
tica as doutrinas de outros filósofos, como Eraclito, que sustenta, 
ao contrário dos Eleáticos, o conceito do devir; Empédocles, 
que formulou a teoria dos quatro elementos: o fogo, o ar, a água, 
a terra; Anaxágoras, Demócrito, etc., que consideram também 
não o problema ético-jurídico, mas o cosmológico ou o do ser 
em geral; embora encontremos já um a outra referência 
àquele problema em Heráclito e Demócrito.
Mais forte conexão com a nossa disciplina apresenta outra 
escola desta época: a Pitagórica.
Pouco se conhece de P itá g o ra s, quer quanto à vida, quer 
quanto à doutrina. Nascido em Samos, no ano de 582 A. C., 
emigrou para a Itália meridional, para Oratone onde fundou 
um a sociedade, com adeptos escolhidos da sua doutrina. Esta 
corporação aristocrática, de carácter religioso e moral, vincu­
lando seus membros por forte disciplina, não se manteve muito 
tempo. Com efeito, surgiram desconfianças políticas, e P itá­
g o ra s teve de refugiar-se em Metaponte, onde morreu no ano 
de 500 A. C.
Segundo parece, era oral o ensino de Pitágoras e, por 
isso, não se encontra traço de seus escritos: das suas teorias 
chegaram até nós apenas fragmentos recolhidos em aponta­
mentos de discípulos e as referências de Aristóteles, que as
F D-3
3 4 LIÇÕES DE FILOSOFIA DO DIREITO
contestou. Particularmente importante é o estudo do continua­
dor de Pitágoras, Filolau, contemporâneo de Sócrates, com o
seu escrito Da Natureza ( uepl <pÚTe<oç). Deste trabalho possuí­
mos notáveis fragmentos.
A intuição fundamental de Pitágoras é a de que a essência 
de todas as coisas
é o número. Donde: o princípio numérico é 
princípio das coisas. Este conceito matemático abre caminho 
a considerações astronómicas, musicais e políticas. Assim, para 
os pitagóricos, a Justiça é relação aritmética, um a equação 
ou igualdade. À luz desta concepção, deduzem o conceito de 
retribuição, de troca, de correspondência entre o facto e o tra­
tamento adequado dele ( t ò ávTi7ce7tv8ói;). Encontra-se nesta con­
cepção — a qual se aplica ’igualmente à pena— o germe da 
futura doutrina aristotélica da Justiça.
Os Sofistas
A escola que, em primeira mão, enfrentou os problemas 
do espírito humano, do conhecimento, e da ética, foi a dos 
Sofistas, no século v A. C.
Eram os Sofistas naturais da Grécia e da Grande Grécia 
(Itália meridional, Sicilia) e constituíam um grupo de pen­
sadores e omdores que, muito embora professando doutrinas 
diferentes, se aparentavam entre si por traços comuns. Os prin­
cipais de entre eles foram Protagoras, Górgias, Hípias, Gal- 
licle, Trasímaco, Pródigo e outros. Só conhecemos as idéias 
deles através dos escritos dos seus adversários (a principal 
fonte delas são para nós os diálogos platónicos em que Sócra­
tes m uitas vezes polemiza com os sofistas).
Homens de grande vigor dialético e de robusta eloqüência, 
percorriam várias cidades sustentando nos seus discursos as 
teses mais dispares; tinham o gosto de se oporem às ten­
dências dominantes; frequentemente provocavam escândalo no 
numeroso auditório com os seus paradoxos.
HISTORIA DA FILOSOFIA DO DIREITO 3 5
É de sobremodo notável o facto de então se começar a 
discutir e a criticar o princípio da autoridade, a minar a fé 
tradicional e a despertar a atenção do povo; e isto está em 
relação com o período de discórdias internas em que se encon­
trava a Grécia. A obra dos Sofistas relaciona-se com esta 
situação.
Os Sofistas eram individualistas e subjectivistas. Ensina­
vam que cada homem possui seu modo próprio de ver e de 
conhecer as coisas. Daqui a tese, segundo a qual não é pos­
sível um a ciência autêntica, de carácter objectivo e umversal­
mente válida, mas tão só opiniões individuais. Ficou célebre 
o dito de Protágoras: o homem é a medida de todas as coisas 
(tcócvtov XpT)[idcTcov fiéxpov ív&pwfioç ): ou seja: cada homem pos­
sui a sua visão própria da realidade. Em sentido bem diverso 
foi sustentado, mais tarde, por Kant, por exemplo, que a 
mente hum ana é a medida de todas as coisas. Kant, com efeito, 
considerava a mente hum ana como sendo necessariamente 
idêntica em todos os indivíduos e, por isso, ao afirmar que 
ela é a medida de todas as coisas, não destruía a validez uni­
versal da ciência. As formas subjectivas, dentro da doutrina 
kantiana, são aptas a apreender, pela maneira inerente à sua 
própria estrutura, a realidade sensível — e de tal sorte que 
toda a experiência dela leva já o seu ounho. Mas estas formas 
são igualmente próprias e comuns a todos os sujeitos ,pensantes. 
Ora, para os Sofistas, apenas existem as opiniões mutáveis de 
cada indivíduo e, portanto, um a verdadeira ciência não é pos­
sível.
Negando os Sofistas a possibilidade de um a verdade objec- 
tiva, negam também que exista um a justiça absoluta; também 
o direito, para eles, é algo de relativo, opinião mutável, expres­
são do arbítrio e da força: justo é «aquilo que favorece ao 
m ais forte». Assim, Trasímaco pergunta se a justiça é um 
bem ou um mal, e responde: «A justiça é na realidade um bem 
de outrem; é um a vantagem para quem manda, é um dano para 
quem obedece».
3 6 LIÇÕES DE FILOSOFIA DO DIREITO
Como pelo exposto se dà conta, os Sofistas eram cépticos 
em moral, mais negadores e destruidores do que construtivos 
e afirmativos. Não Obstante, grande mérito foi o seu por terem 
atraído a atenção dos homens sobre dados e problemas relativos 
ao homem, ao pensamento humano; e a perturbação trazida 
pela sua actividade à consciência pública foi ainda benéfica e 
fecunda, pois aguçou o espírito crítico para muitos temas que 
até então a ninguém preocupavam. Enquanto os filósofos da 
escOla Jónica se haviam entregue ã exclusiva meditação do 
mundo externo, os Sofistas deram o seu interesse a proble­
mas psicológicos, morais e sociais. A eles se deve, por exem­
plo, a colocação rigorosa do problema de saber se a justiça 
tem um fundamento natural; se aquilo que é justo por lei — ou, 
como nós dizemos, o direito positivo— é também justo por 
natureza (a antítese entre o vó*w Styaiov e o <pú<m Síxatov). Ante 
este problema, assumiram geralmente atitude negativa, dizendo 
que se existisse um justo natural, todas as leis seriam iguais. 
Todavia, mais importante que a resposta dada, que, digamos, 
é discutível e até inaceitável, foi o terem proposto o problema.
Na verdade, depois da solução negativa tentada pelos Sofistas, 
outros filósofos puderam tentar uma solução afirmativa. Os 
Sofistas foram, em síntese, o fermento que suscitou a grande 
filosofia idealista grega: uma floração extraordinária do pen­
samento de que nenhum outro povo pode orgulhar-se. Esta 
resume-se, principalmente, nos nomes de S ó c r a te s , P la tã o e 
A r is tó te le s , que soberanamente resplandecem na história do 
pensamento.
Sócrates
Viveu em Atenas, de 469 a 399 A. C., o grande adver­
sário dos Sofistas, Sócrates, mais sábio da vida do que propria­
mente filósofo.
Também perante as doutrinas socráticas estamos em situa­
ção igual à que se nos oferece quanto às doutrinas sofistas;
HISTORIA DA FILOSOFIA DO DIREITO 3 7
ou seja: não temos escritos autênticos; conhecemo-los só através 
dos relatos de outros. Neste caso, temos os dos admiradores 
e discípulos, ao passo que dos Sofistas só temos os dos adver­
sários e críticos. Queremo-nos referir aos Diálogos de Platão 
e aos Memoráveis de Xenofonte. De longe, porém, são os pri­
meiros a fonte mais importante, embora aí o pensamento socrá­
tico, por vezes, seja de tal modo identificado com o do seu 
genial discípulo que difícil se tom a destrinçar um do ouitro. 
Assim se verifica sobretudo nos últimos diálogos; os primeiros, 
nomeadamente a Apologia, Eutifrón e Criton, mantiveram-se 
mais fiéis à palavra de Sócrates, que Platão recolhe da sua 
boca.
Discutia Sócrates de modo peculiar, multiplicando as per­
guntas e a elas dando respostas de maravilhosa e concludente 
simplicidade. Ao contrário dos Sofistas, que tudo afirmavam 
saber, declarava ele nada saber. Molestava-os com a sua iro­
nia, e confundia-os, interrogando-os (ironia — pergunta, inter­
rogação) sobre questões aparentemente simples, mas, no fundo, 
muito difíceis. Deste modo, constrangia-os, indirectamente, a 
darem-lhe razão.
Por certo aspecto, Sócrates avizinhou-se dos Sofistas; 
também orientou a sua meditação para o estudo do homem. 
Como é sabido, tinha por mote a inscrição dèlfica: «Conhece-te 
a ti mesmo» (yvw&í aeauTÓv). Ninguém como ele insistiu tanto 
na necessidade do auto-conhecimento. Mas neste estudo chegou 
a conclusões opostas às dos Sofistas: mos tirou que é preciso 
distinguir entre aquilo que é impressão dos sentidos, em 
que predomina a variedade e o arbítrio individual, a instabili­
dade e a acidentalidade subjectiva, e aquilo que é produto da 
razão, onde encontramos conhecimentos necessariamente iguais 
para todos os homens. Portanto, é preciso erguer-se dos sen­
tidos à unidade conceituai, racional. Sócrates ensinava a pro­
curar o princípio da verdade. Saber e operar para ele são como 
ciência e virtude, um a só e mesma coisa, pois esta não é mais 
do que uma-aplicação daquela.
38 LIÇÕES DE FILOSOFIA DO DIREITO
O que nos afirmou do saber em geral vale também para 
o saber jurídico. Para além das coisas singulares devemos apren­
der a ver a universalidade. Aqueles que apenas conseguem ver 
a variedade das coisas justas, as simples teses ou normas 
jurídicas, mais não a Justiça em si, não merecem o
nome de filó­
sofos (91X6 0 0 9 0 1 ). São antes am antes de opiniões (9 iXo8 6 Aoi). 
Acima das contradições do mundo empírico, objecto da opinião, 
existe o mundo inteligível, objecto da ciência. Filosofia é, preci­
samente, amor da ciência.
Sócrates, deste modo, lançou as primeiras pedras para 
um sistema filosófico idealista, mas não construiu o edifício, 
que foi obra de Platão. Ensinou o método do filosofar, sobre­
tudo no respeitante à Ética, reagindo contra o cepticismo prá­
tico dos sofistas na procura do Bem.
Ensinou a respeitar as leis (que os Sofistas haviam ensi­
nado a desprezar), e não só as leis escritas, mas também as 
que, embora não escritas, valem igualmente em todos os luga­
res, e são impostas pelos deuses aos homens.
Sócrates afirmou assim a sua fé em um a Justiça superior, 
para a validez da qual não é preciso sanção positiva, nem 
formulação escrita. A obediência às leis do Estado é, no entanto, 
para Sócrates, um dever que deve cumprir-se em todos os 
casos. O bom cidadão deve obedecer mesmo às leis más, para 
não estimular com a sua atitude os m aus cidadãos a violar 
as 'boas. O próprio Sócrates exemplificou em vida este prin­
cípio, pois, acusado injustamente de ter introduzido novos deu­
ses e corrompido a juventude, foi condenado à morte por este 
pretenso delito, enfrentando serenamente a execução da sen- 
tensa em vez de aproveitar a fuga que amigos aflitos lhe haviam 
preparado. A acusação de ter introduzido novos deuses, já feita 
por Aristóteles na Rane, foi possível só porque Sócrates se 
dizia inspirado por um a divindade (Sa[[A«v), que não era outra 
senão a sua consciência; e esta atitude, que parecia contrária à 
religião dominante, serviu de pretexto aos seus inimigos. A ma­
neira sublime e serena como encarou a morte toma ainda mais
HISTORIA DA FILOSOFIA DO DIREITO 3 9
admirável a sua figura e faz dele um precursor de outros már­
tires do pensamento. Pelo seu ensino, dedicado à investigação 
dos princípios racionais da actividade hum ana, Sócrates merece 
ser considemdo um dos principais (se não absolutamente, o 
primeiro) dos fundadores da Ética.
Platão
As obras do grande discípulo de Sócrates, Platão (427- 
-347 A. C.), escritas em forma de diálogo, figuram o Mestre 
na ocasião de discutir com discípulos e com Sofistas, seus adver­
sários, de sorte que o sistema platónico parece vir de Sócrates. 
Não foi este, porém, o edificador: Sócrates abriu caminho à 
especulação filosófica, mas não nos legou sistema completo. 
O Sócrates platónico não coincide com o Sócrates histórico, 
mas, em grande parte, é o próprio Platão.
Das doutrinas deste só nos ocupamos na medida em que 
interessam especialmente à nossa doutrina. Mencionaremos dois 
dos seus diálogos, a República, ou rcoXixeía (que melhor se tra­
duziria por «Estado») e as Leis, ou Nófxou A estes, acrescen­
taremos outro, que fica entre os dois primeiros, intitulado o 
Político — 7roXmxo£.
De todos, o mais importante é o primeiro, em que Platão 
nos apresenta, como todo o rigor, a sua concepção do Estado. 
Ele pretende encarar o problema da Justiça no Estado, pois, 
como ele diz, ali ela pode ser lida mais claramente, porque 
está escrita em caracteres grandes, ao passo que, em cada 
homem, está escrita com letras pequenas. *
Para P la tã o , o Estado é o homem em grande, ou seja: 
um organismo completo, em que se encontra reproduzida a 
mais „perfeita unidade. Constituído por indivíduos, solidamente 
estruturado, semelha um corpo formado por vários órgãos, 
cujo conjunto lhe toma possível a vida. No indivíduo, como no 
Estado, deve reinar aquela harmonia que se obtém pela virtude. 
A Justiça é a virtude por excelência, pois consiste em um a
40 LIÇÕES DE FILOSOFIA DO DIREITO
relação harmoniosa entre as várias partes de um corpo. Ela 
exige que cada qual faça o que lhe cumpre fazer (xá êau-roü 
7tp(<xTTeiv) com vista ao fim comum.
Platão compraz-se em traçar com rigor o paralelo entre 
o Estado e o indivíduo, empenha-se na descrição até aos mais 
pequenos detalhes e dá-lhe um a base psicológica. Três partes 
ou faculdades existem na alma do indivíduo: a razão, que 
domina; a coragem, que actúa; os sentidos, que obedecem. 
Atendendo a elas, há que distinguir no Estado três classes: 
a dos sábios, destinados a dominar; a dos guerreiros, chamados 
a defender o organismo social; a dos artífices e agricultores, 
a quem cabe nutri-lo. Mas, assim como o indivíduo deve ser 
dominado pela razão, assim também o Estado o deve ser pela 
classe que representa a saJbedoria, isto é: pelos filósofos.
A causa da participação do indivíduo no Estado e da sua 
submissão a ele é a falta de autarquia — a congênita imper­
feição que faz dele um ser incapaz de só por si prover às neces­
sidades várias da própria vida. O ser perfeito, capaz de se 
bastar a si mesmo, de tudo abranger e dominar, é o Estado. 
O fim do Estado é universal, pois compreende no âmbito das 
suas atribuições, a vida toda dos indivíduos: tem por fim a 
felicidade de todos mediante a virtude de todos.
Não seja esquecido que, . para a Filosofia grega clássica, 
felicidade e virtude, em vez de termos antitéticos, são termos 
coincidentes, porque a felicidade corresponde à actividade da 
alma segundo a virtude, isto é: segundo a sua própria natureza. 
O Estado, segundo Platão, domina a actividade hum ana em 
todas as suas • manifestações; a ele incumbe promover o Bem 
em todas as suas formas. O seu poder é, por conseguinte, ilimi­
tado: nada fica reservado ao arbítrio dos cidadãos, mas tudo 
cai debaixo da competência e intervenção do Estado.
Esta concepção absoluta é contrariada pela de outros filó­
sofos, para quem existem limites bem determinados à activi­
dade estadual (a concepção kantiana do Estado-de-Direito). 
Mas a concepção platónica foi, aliás, a dominante no mundo
HISTORIA DA FILOSOFIA DO DIREITO 4 1
helénico. Assim, para os gregos, a principal função do Estado 
é a educadora (roxiSeta).
No diálogo da República encontramos largas dissertações 
sobre o tema. Para Platão, os meios de educar são, sobretudo, 
a Música (na qual entra também a primeira instrução literá­
ria) e a Ginástica. A Música, em seu entender, cria predis­
posição favorável à recepção do bem e do belo. Dá, a seguir, 
um lugar à Matemática (na qual inclui a Astronomia). Final­
mente, para os mais capazes, reserva o ensino científico e filo­
sófico. Platão dedica particular interesse à formação dos 
homens para a vida pública. Os melhores indivíduos deverão 
atingir os lugares de ^governo mediante selecção gradual e 
adequada educação, mas nunca antes dos cinqüenta anos, dedi­
cando-se exclusivamente ao desempenho desta função, pois 
nenhum a outra actividade do cidadão é mais alta do que esta.
Nesta concepção, o elemento individual é totalmente sacri­
ficado ao social e político. Não se descobre aqui traços da ideia 
de que o indivíduo seja titular de direitos originários.
O Estado domina de modo absoluto. E Platão vai até ao 
ponto de suprimir, com vista a mais intensa e eficaz coesão 
política, as entidades sociais intermédias, que podem existir 
entre o Estado e o indivíduo. Ohega mesmo a sustentar a tese 
da supressão da propriedade e da familia; ou seja, por outras 
palavras: propõe st comunidade dos patrimônios e das mulhe­
res, por julgar que, deste modo, se obteria um a família única, 
capaz de assegurar a completa e . perfeita unidade orgânica 
e harmonia do Estado. Mas as teses eram válidas apenas 
para as duas classes superiores (ou seja para aqueles que mais 
directamente participavam na vida pública, os magistrados e 
os guerreiros). Com elas, portanto, estamos bem longe das 
modernas doutrinas comunistas. A personalidade hum ana, de 
nenhum a maneira é adequadamente reconhecida por Platão. 
Debalde se procura em seus escritos a condenação da escra­
vidão. Os servos estão
excluídos das três classes em que divide 
os homens no Estado, às quais confiava o desempenho de fün-
4 2 LIÇÕES DE FILOSOFIA DO DIREITO
ções estaduais. Por aqui se verifica quão erroneamente inter­
pretam a teoria platónica aqueles que teimam em ver nela a 
precursora do socialismo hodierno. P la tã o foi conduzido à sua 
concepção do Estado ideal, não por considerações económicas 
mas por preocupações éticas e políticas.
Ficam assim resumidamente expostos os conceitos formu­
lados por P la tã o no diálogo da República. O diálogo acerca 
das Leis, composto mais tarde, quando P la tã o ultrapassava 
os setenta anos, apresenta já carácter diferente. Aqui, em vez 
de nos dar a descrição de um puro ideal, considera antes a 
realidade histórica nos seus aspectos contingentes e permite-nos 
avaliar o seu admirável senso prático. No diálogo da República, 
P la tã o tinha formulado a máxima de que os sábios deverão 
governar segundo a sabedoria; e, se admitirmos que a sabe­
doria domina o mundo as leis serão supérfluas (neste sentido, 
leia-se ainda o Político, 294 a 299); mas se considerarmos 
a prática, e a natureza hum ana concretamente, constatamos 
a necessidade das mesmas. O diálogo das leis exprime precisa­
mente a passagem entre aquilo que idealmente devia ser e 
aquilo que a vida impõe, e trata longamente o problema da 
legislação. E isto sem afectar os princípios fundamentais expos­
tos na República. P la tã o reserva para o Estado um a função 
educadora. Por isso quer as leis acompanhadas de exortações 
e dissertações que expliquem os seus fins. Ãs leis penais atnibui 
fim essencialmente terapêutico. P la tã o considera os delin­
qüentes como enfermos (posto que, segundo o ensinamento 
socrático, nenhum homem é voluntariamente injusto): a lei 
é o meio para curá-los, a pena é o remédio para os mesmos. 
No entanto, não se recusa a tirar as últimas conseqüências 
da sua atitude. Pelo delito, nem só o delinquente revela estar 
enfermo, pois também o Estado se ressente da sua enfermidade. 
Quando a saúde do Estado o exige, —isto é: quando esta se 
acha permanentemente ameaçada por um delinquente incorri­
gível —, impõe-se a supressão do delinquente para salvaguarda 
do bem comum. A este propósito convém notar a diferença
HISTORIA DA FILOSOFIA DO DIREITO 4 3
entre a concepção de Platão e a da moderna Escola de Antro­
pologia criminal. Esta considera a delinqüência como um pro­
duto da degenerescência física, ao passo que, para Platão, o 
delinquente é intelectualmente deficiente, a sua enfermidade é 
aberração, ignorância da verdade, ou seja: da virtude que é 
conhecimento da verdade.
No diálogo das Leis, Platão mostra um maior respeito da 
personalidade individual (muito embora os escravos fiquem sem­
pre excluídos). A família e a propriedade são conservadas e já 
não sacrificadas a um a espécie de estadualismo, como na Repú­
blica. No entanto, à autoridade do Estado concede ainda impor­
tância sobrepujante. A ele compete fixar a repartição da pro­
priedade (e daí a divisão dos indivíduos por classes), intervir 
nos matrimônios e vigiar a vida conjugal (sujeita sempre a 
um a rigorosíssima vigilância), dirigir a actividade musical e 
poética (também esta regulada para fins educativos), superin­
tender na religião, no culto, etc.... Quanto à forma política, 
critica Platão tanto a monarquia como a democracia, em que 
um a parte dos cidadãos manda enquanto a outra obedece, pro­
pondo um a espécie de síntese de ambas, cujo modelo é sobre­
tudo o regime de Esparta (onde ao lado de dois reis, havia o 
Senado e os Eforos).
Como dissemos, neste diálogo encontra-se notável base his­
tórica ; por exemplo: há nele um maravilhoso tratado da gênese 
do direito. Transparece aí, igualmente, um conhecimento mais 
completo e rigoroso da realidade empírica do que aquele à luz 
do qual foi concebido e escrito o diálogo da República. Mas, 
ainda neste, onde o Estado se nos depara como pura concepção 
ideal, não falta um enxerto histórico, o qual deriva da 7tóXiç 
grega: esta apresenta-se aí nos seus traços essenciais e, simulta­
neamente, idealisada. Platão queria reagir contra o cepticismo 
dos sofistas e as tendências demagógicas do seu tempo, afir­
mando que só os melhores deviam governar, e desejava também 
impedir a dissolução da coisa pública. Desta sorte, deve-se 
reconhecer que a sua teoria política teve também um intuito
44 LIÇÕES DE FILOSOFIA DO DIREITO
prático e contém numerosas referências às condições históricas 
da época.
Aristóteles
A r is tó te le s (384-322 A. C.), nascido em Estagira, foi, 
durante vinte anos, discípulo de P la tã o e, mais tarde, preceptor 
de A lexan d re Magno. Quando este subiu ao trono, fundou 
A r is tó te le s a sua escola em Atenas, no Ginásio liceu (dedi­
cado a Apoio Aufceioç). Dedicou-se a todos os ramos de conhe­
cimento e pode dizer-se que, com ele, iniciaram-se muitas das 
nossas ciências. Porém, tendo-se perdido grande cópia dos escri­
tos anteriores ao seu laJbor, não se pode hoje ajuizar até que 
ponto (beneficiou das investigações dos antecessores. O carác­
ter do seu gênio é diferente do de P latão: este, por índole, é 
mais especulativo, A r is tó te le s mais inclinado à observação 
dos factos. Nas questões cardeais de Filosofía, contudo, não 
se afasta muito do Mestre; é, por isso, errado apresentá-lo, 
como vulgarmente acontece, na qualidade de seu adversário 
e antagonista. ® verdade que A r is tó te le s expressamente refuta 
algumas teorias de P la tã o . Amiúde se faz referência às discór­
dias pessoais que teriam oposto o mestre ao discípulo. Mas pro­
vavelmente exagerou-se a este respeito e formaram-se lendas 
em tomo das relações entre os dois grandes filósofos. Deve-se 
reconhecer, em todo o caso, que também A r is tó te le s foi essen­
cialmente metafísico e idealista.
Na exposição do pensamento deste filósofo também nos 
limitaremos ao exame das doutrinas que mais directamente 
interessam à Filosofia do Direito. Para este propósito, as obras 
a considerar, pela importância dipecta, são a Política e a Ética. 
Desta última, chegaram até aos nossos dias três redacções: Ética 
Nicomaqueia, Ética Eudemia e a cham ada Grande Moral ou 
Magna Morália, cujos capítulos, em muitos dos seus passos, 
coincidem. Só a primeira, a Nicomaqueia, não oferece dúvidas 
que é obra de Aristóteles; quanto às outras duas, a Eudemia,
HISTORIA DA FILOSOFIA DO DIREITO 4 5
provavelmente, é um trabalho de Eudeme, seu discípulo, e a 
Grande Moral um extracto das duas versões primeiras. Tam­
bém a Política (7roXiTtxà), em oito livros, não nos chegou com­
pleta. Outro escrito dele, sobre as constituições (rcoXiTeiai), con­
tendo a descrição de 158 constituições, perdeu-se quase total­
mente e só há pouco se descobriu fragmento importante dele: 
a Constituição dos Atenienses.
Para A r is tó te le s , assim como para P la tã o , o sumo bem 
é a Felicidade, fruto da virtude. O Estado é uma necessidade: 
não é apenas simples auAor/íoc (aliança), simples associação 
momentânea para atingir fim particular, mas perfeita união 
orgânica, tendo por fim a virtude e a felicidade universal; é 
a comunhão necessária ao serviço da .perfeição da vida. O ho­
mem é £tõov to X it íx o v (animal político) pois à vida política é 
levado pela próipria natureza. E o Estado, logicamente, prima 
aos indivíduos, tal como o organismo prima as suas partes. 
Assim como não é possível conceber uma mão viva separada 
do corpo, assim também, não se pode conceber o indivíduo 
sem o Estado. O Estado regula a vida dos cidadãos mediante 
leis. Estas dominam inteiramente a vida, porque os indivíduos 
não pertencem a si mesmos, mas ao Estado. Conteúdo das leis 
é a justiça. Desta, A r is tó te le s nos deixou uma profunda aná­
lise. O princípio da justiça é a igualdade, a qual é aplicada de 
várias maneiras. A r
is tó te le s distingue, portanto, a justiça em 
muitas espécies. A primeira de entre elas é a chamada justiça 
distríbuitiva (tò Síxouov èvTafç, tò Siavs[i.yjTixóv), que preside à 
distribuição das honras e dos bens e tem por fim obter que 
cada um receba daquelas e destes porção adequada ao seu 
mérito (xax’ áÇíav). Se — explicava A r is tó te le s — as pessoas 
são desiguais em mérito, tão-pouco as recompensas deverão 
ser iguais. Com isto, mais não se fez, como é manifesto, senão 
confirmar o princípio da igualdade: pois este seria violado, na 
sua aplicação específica, se fosse dado tratamento igual a 
méritos desiguais. A Justiça distributiva consiste, portanto,
46 LIÇÕES DE FILOSOFIA DO DIREITO
em um a relação proporcional que A ristó teles, não sem algum 
artifício, define como um a proporção geométrica ( yewíAeTpixfi 
ávaXoyía).
a segunda espécie de justiça é a justiça correctiva ou equi­
paradora, a que tamlbém se podia cham ar rectificadora ou 
sinalagmática, por presidir às relações da troca (tó év rolç 
ouvXX«Y(i-«°i Siop&wTixSv). Ainda neste domínio se explica o 
princípio da igualdade, emlbora de forma diversa, pois, neste 
caso, trata-se apenas de medir impessoalmente os ganhos e 
as perdas; — ou seja: as coisas e as acções consideradas em 
seu valor objectivo, supondo-se iguais os termos pessoais. Tal 
medida, segundo Aristóteles, encontra o seu tipo próprio na 
proporção aritmética (apiAYixixf) ávaXoíya).
Esta espécie de justiça procura lograr que as duas partes, 
que se encontram em relação, venham a achar-se, um a relati­
vamente à outra, em condições de paridade; e de tal sorte, que 
nenhum a receba ou dê demais ou de menos. Daqui segue-se 
a definição desta espécie de justiça como ponto intermédio ou 
meio termo entre o dano e a vantagem. No entanto, estes ter­
mos compreendidos em sentido amplo aplicam-se não só às 
relações voluntárias ou contratuais, mas também às que Aris­
tóteles chama involuntárias (<£xoú<na), e que têm origem no 
delito; portanto também se exige um a certa equiparação, ou 
seja: um a exacta correspondência entre o delito e a pena. A ju s­
tiça correctiva rectificadora ou equiparadora preside, assim, 
a todas as trocas e relações quer de natureza civil quer de natu­
reza penal.
A propósito desta matéria, Aristóteles efectúa ainda 
algumas sub-distinções, embora não explique muito claramente 
o seu pensamento. Pode encarar-se por dois aspectos a justiça 
correctiva ou equiparadora: enquanto preside à formação das 
relações de troca e lhes knpõe um a certa medida, ou enquanto 
tenta fazer com que esta medida, no caso de controvérsia, 
venha a prevalecer mediante a intervenção do juiz: no primeiro
HISTORIA DA FILOSOFIA DO DIREITO 4 7
caso, apresenta-se como justiça comutativa e no segundo como 
justiça judicial Quanto aos delitos, a justiça correctiva é sem­
pre necessariamente exercida na forma imediata da justiça 
judicial, visto que, aqui, se trata precisamente de reparar con­
tra a vontade de um a das partes um dano injustamente ocorrido. 
Em matéria de trocas ou contratos a justiça correctiva for­
nece normas, sobretudo aos próprios contraentes, e a obra 
rectificadora do juiz pode também não ser necessária.
Preocupou-se Aristóteles com a dificuldade da aplicação 
da lei abstracta aos casos concretos e sugeriu um correctivo 
da rigidez da Justiça: a equidade, critério de aplicação das 
leis, o qual permite adaptá-las a cada caso particular e tempe­
rar-lhes o rigor com a adequação, a fim de aclarar este con­
ceito, comparou a equidade a certa medida (regra lésbia), 
feita de um a substância flexível, capaz de se adaptar à sinuo­
sidade dos objectos a medir. Ora, dizia, as leis são formais, 
abstractas, esquemáticas; a ju sta aplicação delas exige um a 
adaptação, e esta adaptação é indicada pela equidade — a qual, 
segundo Aristóteles, pode ir ao ponto de se manifestar mesmo 
nas situações ainda não disciplinadas pelo legislador e sugerir 
novas normas jurídicas.
No campo das relações entre o Estado e o indivíduo, Aris­
tóteles, por muitos aspectos, afasta-se de Platão. Este pre­
tendia destruir os graus intermédios entre o Estado e o indi­
víduo. Aristóteles, porém, se concebe o Estado à maneira 
de síntese mais alta da convivência humana, apta pela sua con­
servação. a síntese estadual, para ele, não deve sacrificar as 
sínteses menores, os agregados menos numerosos, a família, 
as tribos ou aldeias (xwAai). Do primeiro agregado — a famí­
lia— transita-se para o segundo —a tribo— e a reunião 
dos xwjjiai dá lugar à 7tóXtç, ou seja: o Estado grego. Não se 
esqueça que a cidade grega correspondia a unidade política 
de muito menor dimensão que o Estado moderno.
4 8 LIÇÕES DE FILOSOFIA DO DIREITO
A consideração que a Aristóteles mereceram os graus 
intermédios de convivência, demonstra, da sua parte, concep­
ção histórica superior à de Platão. Aqueles agregados cons­
tituem as diversas etapas para se chegar ao Estado.
a abolição da família e da propriedade, concebida por 
Platão, acha no discípulo viva oposição e crítica. Neste con­
traste revela-se a diversidade de temperamento dos dois filó­
sofos : ao idealismo absoluto, puramente especulativo de Platão, 
opõe-se o espírito observador de Aristóteles, que nos próprios 
factos indaga a sua razão relativa e o grau do seu desenvol­
vimento sucessivo.
A família tem por elementos o homem, a mulher, os filhos 
e os criados; é sociedade estabelecida perpetuamente pela natu­
reza. Da união de várias famílias resulta a aldeia ou a vila 
(xtí>|x>]); da reunião de várias vilas, o Estado — que é único, 
e, portanto, goza de plena autarquia. Ele constitui o fim das 
outras formas de convivência e é dado pela natureza. Para 
prescindir do Estado o indivíduo teria de ser mais ou menos 
do que homem: um deus ou um bruto.
Aristóteles observa o fenómeno da escravatura e tenta 
justificá-lo, demonstrando como aqueles homens incapazes de 
se governarem, devem ser dominados. Alguns homens nasce­
ram para serem livres, outros para serem escravos. Além destas 
razões, apresenta outras de ordem prática para provar a utili­
dade da escravidão. 0 Estado, conforme a concepção aristo­
télica, necessita de um a classe de homens que se dediquem às 
ocupações materiais, que sirvam as outras classes de condição 
privilegiada, de sorte que estas fiquem aptas a dedicarem-se 
às formas superiores da actividade, especialmente à vida pública.
Convém lembrar que, naquele tempo, a escravatura era 
considerada, em geral, como necessária para a vida do Estado. 
É notório que também o Estado romano tinha nesta instituição 
um a das suas bases. Pense-se, por exemplo, nas grandiosas 
obras públicas construídas pelos escravos; pense-se também 
na possibilidade de os cidadãos participarem livremente na
HISTORIA DA FILOSOFIA DÖ DIREITO 49
vida pública e de se dedicarem às letras e às ciências, eviden­
temente devido, em parte, à existência da escravidão. Esta era 
um efeito, tido por legítimo, da conquista militar. Muitos dos 
escravos mais cultos, especialmente gregos, exercitavam nobres 
funções, servindo de grande proveito à formação cultural dos 
seus proprietários. Em Roma, muitos escravos eram am anuen­
ses e professores muito estimados; e muitos outros faziam ser­
viço nas numerosas bibliotecas, especialmente nas da época 
do Império.
Talvez os factos que acabam de ser recordados ajudem 
a compreender melhor agora, pelo menos até certo ponto, o 
motivo pelo qual Aristóteles aceitava como necessária a escra­
vatura: esta, dizia ele, podia abolir-se se a lançadeira e a 
agulha corressem sem auxílio de alguém sobre o tear. Tais 
palavras indicam que ele estava dominado pela ideia da função 
económica desempenhada pela escravatura no seu tempo. Pois, 
para a abolição desta contribuíram, em épocas sucessivas, além 
de outras causas, o progresso
da indústria, a invenção das 
máquinas, etc.... Ê de admitir, portanto, com respeito a certas 
fases da história, a relativa necessidade da escravatura — e, 
neste sentido, são apreciáveis as observações de Aristóteles. 
Mas, por outro lado, é inadmissível a sua tese, se lhe for atri­
buído o alcance de um a justificação absoluta, um a vez que a 
escravatura, em si mesma considerada, vai contra o direito 
que qualquer homem naturalmente tem à autonomia. E de 
nenhum a maneira se pode afirmar que, por natureza, exista 
um a espécie de homens destinados à servidão.
Enquanto Platão escorçou o perfil ideal do Estado, Aris­
tóteles, por sua vez, dedicou-se à observação das constituições 
dos Estados existentes mediante finas análises. Da sua colec- 
ção de constituições políticas perdeu-se infelizmente a maior 
parte, e apenas se aohou o fragmento sobre a constituição 
ateniense (traduzida para o italiano por ferrini). E embora 
a Política contenha também considerações de carácter geral, 
o nosso autor preocupou-se, de preferência, com as conexões
FD-4
50 LIÇÕES DE FILOSOFIA DO DIREITO
entre as instituições e as condições históricas e naturais. Quer 
dizer: preocupou-se, não com o óptimo absoluto, mas com o 
óptimo relativo. O seu exame recai sobre os governos mais 
adequados às várias situações de facto.
Foi A r is tó te le s quem, antes de qualquer outro, fez a dis­
tinção dos vários poderes do Estado — o legislativo, o executivo 
e o judiciário. A constituição política é o ordenamento dos três 
referidos poderes. E segundo o poder supremo é exercido por 
uma, por algumas ou por todas as pessoas, distingue três tipos 
de constituição: monarquia, aristocracia e 'política. A estes três 
tipos, considera-os igualmente bons, sempre que o poder supremo 
seja exercitado para o bem de todos (xoivòv ou|x<pépov). Se, 
porém, é exercitado em beneficio de quem o possui (ÍSiov 
au[i.<pépov), aquelas formas normais degeneram, e surgem, res­
pectivamente, a tirania, a oligarquia e a democracia ( a qual, 
neste sentido, corresponde antes ao que nós hoje designamos 
por demagogia).
Escola Estoica
Recordaremos ainda duas escolas posteriores a A r is tó te le s , 
e de notável importância: A Estoica e a Epicúrea.
A primeira deriva de uma sua antecedente, a dos Cínicos, 
representada sobretudo por A n tísten es, o qual, entre os seus 
adeptos, contou o famoso D iogenes. A n tísten es foi discípulo 
de G órgias e, mais tarde, de S ó cra tes; isso não o impediu 
de manter antagonismo aberto relativamente aos outros discí­
pulos deste, sobretudo P la tã o . Para os cínicos, a virtude é o 
único bem e consiste na modéstia, na continência, no saber 
contentar-se com pouco. O sábio não deve ter necessidades e 
despreza o que o comum dos homens apetece: segue apenas 
as leis da virtude e não atende às restantes leis (positivas). 
Deste modo, em parte alguma se sente estrangeiro e é cosmo­
polita (cidadão do mundo). Segundo estas idéias, os cínicos 
desprezam todos os costumes e todas as* leis vigentes, adoptam
HISTORIA DA FILOSOFIA DO DIREITO 51
atitude negativa em face do Estado e tratam de influir os 
cidadãos no sentido de os levar a quebrar os vínculos que os 
ligam ao Estado e a volver à simplicidade primitiva do estado 
de natureza.
A Escola estoica aparenta-se com esta, mas caracteriza-se 
por ser sublimação da ideia fundamental dos cínicos. Teve por 
fundador Zenão de Cipro, o qual iniciou o seu ensino em 
Atenas no ano 308 A. C. Foi ele quem do pórtico de Atenas 
tomou o nome para a escola: <rróa, pois era ali o local onde 
se reunia com os discípulos. A ele sucederam C lea n te e 
Crisipo. Entre os estoicos dos temjpos posteriores devem citar-se 
especialmente Panésio, Possidónio (que foi o Mestre de C ícero 
em Rodes), Séneca, E p ic teto (autor do famoso Ey/eipíSeov ou 
manual, admiravelmente traduzido por Leopardi) e M arco 
A u rélio . Os estoicos conceberam o seguinte ideal do homem 
sábio: aquele que venceu todas as suas paixões e se livrou 
das influências externas. Só deste modo se obtém o acordo 
consigo mesmo, ou seja: a liberdade autêntica. Semelhante 
ideal — pelos estoicos personificado sobretudo em S ó c r a te s — 
deve ser cultivado por cada homem, pois a cada um é imposto 
pela recta razão. Existe uma lei natural que domina e se reflecte 
também na consciência individual. O homem, por sua natureza, 
participa de uma lei universalmente válida. Eis porque, para 
os estoicos, o preceito supremo da ética é o que manda «viver 
segundo a natureza» (ojÀoXoyoujjivox;~ty) <puaeii;9jv).
Este conceito da lei universal acarreta consigo a conse­
qüência de que devem cessar as barreiras políticas e os homens 
ser considerados cosmopolitas, ou cidadãos do mundo, embora 
em um sentido mais elevado do que aquele que os cínicos davam 
à expressão. Assim como Platão, em homenagem à* 7tóXiç, 
suprimia a família e a .propriedade, suprime a escola estoica 
o Estado em homenagem ao Estado universal.
Até então dominara um ideal predominantemente político, 
cujo fim supremo era, em substância, a pertença do indivíduo
52 LIÇÕES DE FILOSOFIA DO DIREITO
ao Estado. Mas com a filosofia estoica anuncia-se e prepara-se 
moral mais ampla e hum ana. O Estoicismo afirma a existência 
de um a liberdade que nenhum a opressão poderá destruir: a 
liberdade que re su lta la superação das paixões.
O homem é livre se segue a sua verdadeira natureza, se 
aprende a vencer as suas paixões, tomando-se independente 
delas. Neste sentido, nenhum a diferença há entre livres e 
escravos. Há um a Sociedade do género humano para lá dos 
limites traçados pelos Estados políticos, baseada na identidade 
da natureza hum ana e das leis racionais que lhe correspondem. 
É por si mesmo significativo que entre os mais insignes cultores 
desta filosofia, se encontrem um escravo como epicteto e um 
imperador como Marco Aurélio.
A Filosofia Estoica, de certo modo, preludia o Cristianismo.
A Escola Epicúrea
À escola estoica opõe-se a epicúrea, a qual, por sua vez, 
foi antecedida pela escola cirenaica ou hedonística, fundada 
por aristipo de Cirene. Para esta escola, o único bem é o 
prazer; e o prazer é igualmente o único fundamento das obri­
gações.
Epicuro, que fundou a sua escola em Atenas no ano de 
306 A. C. e a manteve até à morte (270 A. C.), parte do con­
ceito fundamental dos cirenaicos, mas teve o mérito de ter 
dado à doutrina hedonista um mais amplo e racional desen­
volvimento. Para Epicuro, a virtude já não é, como era para 
os estoicos, o fim supremo da vida, mas meio de atingir a feli­
cidade. Assim se anuncia o princípio utilitário ou hedonístico, 
contrário ao da Moral estoica, e pode afirmar-se que as escolas 
éticas posteriores se dividiram, segundo estas duas diversas 
concepções, em um contínuo contraste.
Foi Epicuro homem sábio e prudente, que recomendava 
a temperança como virtude primeira para assegurar o prazer. 
Segundo a sua doutrina, não se trata de procurar quaJlquer
HISTORIA DA FILOSOFIA DO DIREITO 5 3
prazer, nem de fugir a teda a dor, m as conduzir-se em um 
modo que a soma final represente um máximo possível de 
prazer e o mínimo possível de sofrimento. Tal conduta envolve 
um certo cálculo e um a medida utilitária. A intemperança, 
especialmente, prejudica o organismo, abrevia a vida e, por­
tanto, diminui a faculdade de gozar. Neste sentido, a Epicuro 
foi dado apontar preceitos de natureza ética.
Por outro lado, a Escola Epicúrea contém, embora em 
germe, um a teoria sobre a distinção qualitativa ou graduação dos 
prazeres. Ao invés da Escola Cirenaica, que considemva sobre­
tudo as sensações físicas, Epicuro atribui maior peso aos pra­
zeres e ás dores espirituais, assaz mais duradouros. Assim para 
ele, a amizade é tida na conta de prazer maior. Isto mostra 
como a sua doutrin^não é exclusivamente materialista.

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