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Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de Filosofia e Ciências Humanas - Instituto de História História - 8º período (2013.1) História e Cidades nas Américas Resenha “Do Cabaré ao Lar: a utopia da cidade disciplinar e a resistência anarquista – Brasil 1890 – 1930”, de Margareth Rago. O texto lido para a resenha foi o livro “Do Cabaré ao Lar: a utopia da cidade disciplinar e a resistência anarquista – Brasil 1890 – 1930”, escrito por Margareth Rago e publicado em 1985. Margareth Rago é uma historiadora brasileira graduada pela Universidade de São Paulo (USP) em 1970. Obteve seu mestrado e doutorado pela Unicamp, em 1984 e 1990, respectivamente. Foi professora titular do Departamento de História da UNICAMP e diretora do Arquivo Edgar Leuenroth, também, da UNICAMP. Atualmente, desde sua aposentadoria em agosto 2015, é professora colaboradora no Departamento de História da UNICAMP. Suas principais áreas de pesquisa são: Teoria da História, História do Brasil República, pós-estruturalismo, feminismos, anarquismos, subjetividade, gênero, Foucault e Deleuze. Possui uma vasta lista de livros publicados, sendo “Do Cabaré ao Lar” sua segunda publicação. O trabalho condensa sua dissertação de mestrado defendida sob o título de Sem Fé, Sem Lei, Sem Rei – Liberalismo e Experiência Anarquista na República. Além da introdução e conclusão, o livro está dividido em 4 partes: Fábrica Satânica/Fábrica Higiênica, A Colonização da Mulher, A Preservação da Infância e a Desodorização do Espaço Urbano. Tem como objetivo examinar os momentos das lutas operárias no final do século XIX e início do século XX. Por meio da análise do operariado somos apresentados a uma intricada rede de questões políticas dos operários do período e, esta análise, se debruça em especial nas mulheres operárias e suas posições, resistências e opressões num mundo em transformação. Como dado em suas principais áreas de pesquisa, a autora se apoia nos escritos de Michel Foucault e E.P. Thompson para discutir os conceitos de disciplina e dominação, e o cotidiano dos operários no trabalho fabril. Assim, ela começa examinando os aspectos mais importantes que vão caracterizar a história da classe operária, com a cidade como pano de fundo para o desenrolar de toda a ação tratada em seu livro. Em “Fábrica Satânica/Fábrica Higiênica”, a primeira parte do livro, a autora vai destacar o crescimento urbano-industrial e as tentativas de domesticação do operariado. Esse crescimento, e a própria norma de conduta que é criada nesse ambiente das indústrias, é decorrente das intenções e ideais de modernidade do país no período. Para alcançar essa modernidade, no caso por meio de um país industrializado, serão utilizadas formas de lidar com esse trabalhador de maneira brutal, por meio de uma carga horária excessiva, condições precárias de segurança e higiene, além de violência física e moral. Dessa forma, via-se a fábrica como o local para a total dominação de corpos e mentes de seus operários, ao ditar normas de exploração que iriam inclusive para além dos limites das indústrias. Contudo, houveram diversos movimentos de resistência, organizados pelos trabalhadores, a essa estrutura de dominação. Muitas vezes sob influência de ideais anarquistas, organizaram greves, sabotaram a produção e o maquinário de seus locais de trabalho. Uma vez colocadas essas atitudes de resistência de seus operários, a autora apresenta as formas que os patrões encontraram para contornar essa situação, por meio da formação de práticas mais sutis de dominação do operariado. Nesse aspecto que é empregado o conceito de “Fábrica Higiênica”; se apoiando numa figura paternalista, os donos de indústrias buscaram executar algumas alterações nos espaços fabris tornando-o asséptico e racional. Essa “nova fábrica” iria se opor a antiga figura de uma fábrica escura, suja e exploradora, ao propor ambientes bem iluminados e ventilados, ao afirmar que iria garantir um ambiente agradável onde os trabalhadores poderiam se sentir seguros. É importante sublinhar, como é colocado pela autora, que durante o mesmo período de fundação da “nova fábrica”, a luta dos operários se mantém, e essa resistência se direciona ao controle do processo de trabalho e a tomada das fábricas. Na segunda parte, “A Colonização da Mulher”, Margareth Rago sistematiza a imagem do que seria o papel ideal da mulher durante a Primeira República, e elabora uma discussão entre esse ideal com a realidade das mulheres da classe operária e suas transgressões. Para esse debate faz uso do discurso médico sanitarista próprio desse período. É importante frisar que a conduta feminina foi objeto de análise e debate nesse momento de transição entre o século XIX e século XX. A estruturação dos papéis sociais é própria de um modelo burguês que determina à mulher o espaço privado, de modo que a ela deveria ser legado a execução das tarefas domésticas, suas conquistas seriam sua família, seu marido e a maternidade, e deveria manter uma postura servil. Esse modelo burguês deveria ser a norma de comportamento para todas as mulheres, mas era inviável de ser assimilado por mulheres pobres que compunham a classe trabalhadora, e que haviam rompido com esse núcleo de confinamento na vida do lar. A autora esmiúça essas “transgressões” da mulher operária, seja pela via dos médicos sanitaristas, que colocavam a profissionalização da mulher como um descumprimento de suas funções básicas, como a maternidade, e um desacordo com a sua natureza submissa, ou por meio da politização das mulheres no meio operário. É interessante a forma como Rago apresenta as formas de organização por emancipação feminina, ao tratar de múltiplas formas de resistência que vão desde a oposição a práticas sociais e morais convencionadas a mulher, até a greves organizadas pelas trabalhadoras. E é notável a constante presença do discurso anarquista nessas práticas, e a mobilização de mulheres em torno de dele, pensando que antes de tudo a luta por emancipação passa pela desestruturação da ordem moral, no sentido da necessidade de ser libertarem do modelo burguês do que é ser mulher. A terceira parte, “A Preservação da Infância”, busca examinar o trato da infância nessa sociedade em transformação. Se por um lado as crianças foram inseridas no trabalho fabril, expostas as mesmas condições de exploração que seus pais, a autora traz para o debate a apropriação que a medicina fez da infância. A criança foi vista como um elemento fundamental para a constituição da família nuclear moderna e também, nesse caso direcionado a criança pobre, para a formação de uma nova classe operária para o país, de maneira que era necessário que fosse educada e vigiada em vista de vir a formar uma mão de obra dócil e obediente. A forma como a autora introduz os debates sobre o saber médico e a criação da infância, se relaciona diretamente com as questões levantadas na segunda parte do texto, uma vez que a degeneração do menor é colocada como diretamente ligada ao fracasso da mulher em suas funções maternas. As principais preocupações dos médicos do período, como a mortalidade infantil e o problema do menor abandonado, são colocadas pela classe médica como diretamente ligadas a inserção da mulher no mercado de trabalho. A ausência da mulher do ambiente do lar, torna a vigilância e o cuidado dessas crianças relapsos. Por fim, na quarta parte do texto, “A Desodorização do Espaço Urbano”, todo o raciocínio construído em cima das práticas de higienização e dominação culmina ao demonstrar que tais práticas chegam, efetivamente, aos lares do proletariado. As profundas transformações no cenário urbano que vão buscar higienizar e embelezar os grandes centros, removendo toda a população e os edifícios considerados sujos e fétidos, vão se encontrar com o desejo da burguesia de possuir uma cidade mais bonita e mais moderna, próxima do padrão europeu. As remoções e as reformas eram entendidas como uma forma de elevar a moralidade popular. Assim, a dominação das classes populares tambémpassava pela questão da habitação, uma vez que a exclusão e o afastamento da classe operária do centro da cidade eram uma estratégia de segregação e de controle no ir e vir dessa parte da população. Na conclusão, Margareth Rago, faz um curto apanhado de tudo o que foi visto nas 4 partes do livro, de forma a colocar em pauta a oposição entre o discurso moralizante e uma sociedade em movimento e em transformação, que tinha em seu cerne múltiplas formas de transgressões e resistências. Além disso, ela firma a constante presença dos anarquistas em todos esses quadros de resistência, de maneira intrínseca ao que ocorria com a classe operária e suas redes, uma vez que suas propostas dialogavam diretamente com a necessidade de libertação de uma classe silenciada em vários aspectos. O livro tem uma característica muito interessante de fazer contraposições, o que é colocado em diversos momentos, como a moral e os desvios, entre o modelo burguês e a realidade do proletário. É algo que vem desde o título do livro, ao colocar cabaré e lar em evidência, desde já marcando essa dicotomia, que de certa forma é colocada como uma possível progressão. É uma leitura muito agradável uma vez que a autora vai costurando uma imagem progressivamente em relação aos capítulos, é um livro muito coerente nesse ponto, e muito firme em manter o anarquismo como pano de fundo de todas as manifestações tratadas na obra. Devido a isso, “Do Cabaré ao Lar: a utopia da cidade disciplinar e a resistência anarquista – Brasil 1890 – 1930” é uma leitura fundamental para entender como as transformações das cidades no período estão diretamente ligadas ao crescimento industrial e a formação de uma classe operária. Além disso, é um livro muito elucidativo em relação ao início do movimento feminista e o ingresso da mulher no mercado de trabalho, marcando de forma bastante incisiva as representações que essas mulheres vão ter para a sociedade burguesa da época. Em suma, Margareth Rago construiu um livro que deve ser lido e deve ser usado para entender essa sociedade em efervescência da Primeira República.