Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
16. O DOMINANTE Roman lakobson OS TR~S PRIMEIROS estágios da P~qUi~foram suma- riamente caracterizados do seguinte -moôo:(1) análise dos aspectos fônicos do trabalho literário; (2) os problemas deSfgnificado ~no in-- terior da trama da poética; e (3) -mtegração de' som e sentido num todo ínseparãvel, Neste último estágio, a iaéiã de' áomill~ reve- lou-se muito útil; foi uma das mais centrais e profícuas noções dentre as elaboradas pela teoria formalista russa. Pode-se definir o domi- ' nante como sendo o centro de enfoque de um trabalho artístico: ele ~ulamenta, determina e transforma os seus outros componentes., O dominante garante a integridade da estrutura. l! ele que torna espe- cífico o trabalho. O traço típico da linguagem "contida" é obvia- mente seu padrão prosódico, a escrita em verso. Poderia parecer que isto é uma simples tautologia: o verso é o verso. No entanto, deve- mos nos lembrar constantemente de que o elemento que torna espe- cífica uma determinada variedade de linguagem domina a estrutura toda e assim sendo atua como seu constituinte obrigatório e inesca- pável, dominando todos os elementos e exercendo influência direta sobre cada um deles. Por sua vez, o verso não é apenas um con- Originalmente escrito em tcheco, como conferência pronunciada na Universidade Masaryk, em Bmo,:na primavera de 1935.Esta tra- dução é feita de acordo com a versão em inglês, "The Dominant". in Readings inrussian poetics, L. Matejka e K. Pomorska (eds.) , The MIT Press, Cambr., Mass. 1971. Os direitos da tradução foram graciosamente cedidos pelo autor. 485 I ceito simples nem uma unidade indivisível. Ele é em si Um sistema de valores; e como em todo sistema de valores ele detém uma hierar •. - quia própria na qual existem valores superiores e mferiores e um valor primeiro entre todos, o dominante, sem o qual (no interior da trama de um dado período literário' e uma determinada vertente artística) o verso nem pode ser concebido nem avaliado como verso. Na poesia tcheca do século XIV, por exemplo, a característica maior do verso não era o esquema silábico, mas a rima, pois havia poemas com números diferentes de sílabas por versos (os chamados versos "desmedidos") que eram, apesar disto, aceitos como versos, ao mes- mo tempo em que os versos não rimados não eram tolerados. Em contrapartida, na poesia tcheca realista da segunda metade do sé- culo XIX, a rima se mostrava dispensável, enquanto que o esquema silábico aparecia como componente obrigatório e sem o qual o verso não era verso; para esta escola, o verso livre era algo tão inaceitável quanto a arritmia. Na atualidade nem o padrão silábico nem o padrão de rima são-considerados obrigatórios para o verso; pelo contrário, t , ~ componente obrigatório é uma integridade de entonação: a ento- nação passa a ser o dominante do verso. Se estabelecêssemos compa- ...._.!~ções entre o verso medido e regular da 'antig.!lAlexandríada-fêliecã, .. os versos rimados do período realista ç 0_ verso rimado e medido da atuatiôãde, observaríamos que nos três casos os mesmos elementos ... -crtma:-esquema métrico e unidade entonacional) estariam Pres~es - mas que haveria uma diferença na hierarquia de valores, com obriga-- toriedades especííicas diversas e mudança -dos elementO"sconsiderados indispensáveis. A posição destes eleinentos específicos determina o papel e a estrutura dos demais componentes. O dominante pode ser estudado não apenas no trabalho poético de um artista isolado, de um dado cânone poético ou entre as normas de determinada escola poética, mas também na arte de uma época, então encarada como um todo particular. I! evidente, por exemplo, que na arte da Renascença o dominante, o cume dos critérios esté- ticos do tempo, estava nas artes visuais. Outras artes orientavam seus próprios caminhos na direção das artes visuais e eram valorizadas de acordo com a proximidade que alcançavam em relação ao objetivo que visavam. Por outro lado, na arte do Romantismo, o valor su- premo esteve no terreno da música. Assim, a poesia romântica tam- bém se orientou na' direção da música: a poesia romântica é dirigida para a música, seu verso se concentra no musical, com uma entona- ção que procura imitar a melodia musical. O foco sobre o dominante - dado que é na realidade externo ao trabalho poético - altera 486 .. , l , substancialmente a estrutura do poema no que concerne à tessitura sonora, à estrutura sintática e elenco de imagens; altera também os critérios métricos do poema, sua composição e distribuição de suas estrofcg. Na estética realista o dominante era a arte verbal e a hierar- quia dos valores poéticos modificou-se em coerência com isto. Acrescente-se que na medida em que tomamos o conceito de dominante como ponto de partida, a definição de um trabalho ar- tístico em comparação, com outras séries de valores culturais sofre modificações substanciais. Por exemplo, a relação entre o trabalho poético e outras mensagens verbais adquire uma demarcação mais n,ítida. Considerar o trabalho poético equivalente a uma função esté- tica ou, mais precisamente a uma função poética, enquanto lidamos com matéria verbal, é algo que caracteriza as épocas em que se exalta a "arte pura", a arte auto-suficiente, o princípio da "arte pela arte". Em seus primeiros passos, a escola formalista ainda conservava alguns traços típicos desta tendência. Mas esta é uma tendência indiscutivel- mente equivocada: o trabalho poético e confina exclusivamente à função poética; e e contem muitas outras funções além desta. Com efeito, as intenções eu' trabalho poético-ffeqGentementemantêm uma relação de estreita proximidade para com a filosofia, a didática social, etc. Assim como um trabalho poético não se encerra em sua função estética, as funções estéticas não se limitam ao trabalho oé- ti~o; ~ursode umora or, a conversação co-;riqueira, os artigos ~ornal, os aniínciQ.s, um livro ciêblífic1l-:::::"tooos poôem conter ! C0-E.~l_~açõesestéticªs,-,-expressar_ uma unção estéticã'e-freqtiente- ~_1idam ' com as palavras valorizando-as em si, para=etérrr-de+ sua fu çãa.referencíal. --- -, Em direta oposição ao ponto de vista monístico rígido, está a visão mecanicista, que reconhece a multiplicidade das funções de um trabalho poético e o considera (intencionalmente ou não) como um aglomerado mecânico de funções. Uma vez que o trabalho poético tem também uma função referencial, alguns defensores do segundo ponto de vista às vezes o consideram como sendo um documento da história cultural, das relações sociais, da biografia. Contrastando com o monismo e o pluralismo unilaterais, há um ponto de vista que associa uma consciência das múltiplas funções dos trabalhos poéticos com uma compreensão de sua integridade, quer dizer, da função que lhe confere unidade e lhe é sobredeterminante. Segundo tal ponto de vista, um trabalho poético não pode ser considerado como cum- pridor de uma função estética, apenas, ou de uma função estética associada a outras funções; o trabalho poético se diria então uma 487 vv~'" - 'f \ mensagem verb~l ~ue ~,:m _na estética a sua função dorninnnt . Evi- . entem~nte os smais que-ªpo~tam para a intrumentalizaçã da fuiição ~~são imutáveis nem_se.!l.!p.!'~_uniformes. Cada cânone poético concreto, cada série temporal de normas poéticas - por sua ~-=-Compreende elementos específicos e indispensáveis s m os :- quais o trabalho não pode ser identificado como poético. ~ A definição da função estética como sendo o dominante num trabalho poético nos permite determinar a hierarquia das diversas funções lingüísticas que ocorrem no trabalho poético. Na função referencial o signo tem uma conexão interna mínimá com o objeto ....:.aesignado.!-,pelo que- o signõ como tal se fêVesteâc importância mí- nima; por seu turno, a função expressiva exige uma relação mais íntima e direta entre signo e objeto e, portãnto, requer maioratenção "'}Yafãêom a estrutura interna do signo. Em comparação com a lin- guagem referencial, a linguagem emotiva - que desempenha pri- mariamente uma função expressiva - costuma estar mais próxima da linguagem poética (que visa precisamente ao signo como tal). As linguagens poética e emotiva freqüentemente s~ superpõem, razão pela qual são também freqüentemente tomadas uma pela outra. Se numa mensagem verbal a função dominante é a estética, tal men- sagem pode, com certeza, utilizar muitos instrumentos da linguagem expressiva; mas todos estarão submissos à função decisiva do tra- balho, isto é: deixam-se transformar pelo dominante. As pesquisas referentes ao dominante tiveram resultados im- portantes para a visão formalista da evolução da literatura. No caso da evolução da forma poética, não se trata apenas do aparecimento e da extinção de determinados elementos, mas também de desvios nas relações mútuas entre os diversos componentes do sistema; em outras palavras, desvios do dominante. Considerada uma série de normas poéticas - ou, mais especificamente - uma série de normas poéticas válidas para determinado gênero poético, vemos que elementos que inicialmente apareciam como secundários passam a essenciais e pri- mários. Por outro lado, elementos que apareciam como dominantes passam a subsidiários e opcionais. Nos primeiros trabalhos de Sklo- vskij, definia-se o trabalho poético como simples soma de recursos artísticos e o evoluir do poético aparecia como sendo apenas a subs- tituição de alguns desses recursos. Com o ulterior desenvolvimento ~o formalismQ,~giu a conce ção recisa do trabalho p.QélIco corr1o slstema estruturado, uma série regular e hierarquicamente ordenada> e recursos artístif..os. A evolução poéticã-é um desvio nesta hierar- • quia. A hierarquia dos recursos artísticos se modifica d.entro da tra- C 11..<Ã.. / .' (.-llr) : l,,';\.' , \;9-,) 488 v '112r"- {} •. ma de um gênero poético determinado; mais: a modificação altera a hierarquia dos gêneros poéticos e simultaneamente a distribuição cios recursos artísticos entre gêneros. Gêneros que apareciam inicialmente como vias secundárias, variantes subsidiárias, aparecem agora na li- nha de frente, enquanto gêneros tidos como canônicos passam para a retaguarda. Vários trabalhos da escola formalista tratam períodos da história da literatura russa sob este ponto de vista. Gukovskij analisa a evolução da poesia no século XVIII; Tynjanov e Ejxen- baum, juntamente com alguns discípulos estudam a evolução da prosa e da poesia russas na primeira metade do século XIX; Viktor Vinogradov estuda a evolução da prosa russa a partir de Gogol: Ejxenbaum estudo a evolução da prosa de' Tolstoj em comparação com a prosa russa e européia moderna. A imagem da história da literatura russa se modifica substancialmente; torna-se incompara- velmente mais rica e mais monolítica, mais sintética e ordenada do que o eram os membra disjecta do círculo erudito literário de antes. Mas os problemas da eV<::JJução~ª-~ljmi.!.al.:n à história literária. Surgem também qY.e_stões relativas a alterações das relações entre --;rte;--individ.1!ai~~ neste aspecto ~ ~xame ~cu~ado de regiões de tran~- sição é 2articularn~~ f'érttl;Por exemplo, urna análise da região -Te trãll';lção entreplntura e poesia - como é õC;-;o d~ ilustração -- - -OU--Uma análise dã regfãoÍrnítrôfe e~tre músic~ e poesia, como na romança. Finalmente, o problema das modificações nas alterações mú- tuas entre as artes e outros domínios culturais próximos entre si apa-,----- - -- -. rece especialmente no. que concerne às relações entre a literatura /"" ------- ---- ~ v e outros tipos de mensagens verbais. Aqui, a instabilidade dos limi- J r t;S,' a alteracão de contexto e de extensão erTiSefOres inâividuais, r parece especi~lmente elucídativa. OS-.$êner~cionais mostram um interesse especial para os pesquisadores. Em certos períodos eles Io- -;;; considerados extraliterários e extrapoéticos enquanto em outros podem preencher importantes funções literárias, por conterem ele- mentos que logo virão a ser exaltados pelas "belas letras", ao mes- mo tempo em que as formas literárias canonizadas não contam com eles. Esses gêneros transicionais são, por exemplo, as várias formas de littérature intime - cartas, diários, anotações, narrativas de via- gens, etc. - que em certas fases (como na literatura russa da pri- meira metade do século XIX) cumprem papel de destaque entre os valores literários. 489 Em outras palavras, desvios contínuos no sistema de valores ar- tísticos levam a desvios contínuos na avaliação de diferentes fenô- menos artísticos. Valores que segundo o ponto de vista de um sistema "velho eram tidos como desprezíveis ou considerados imperfeitos, ma- téria de diletantes, aberrações ou pura e simplesmente erros, heresias ou sinal de decadência podem aparecer, à luz de um sistema novo, como valores totalmente positivos. Os versos dos poetas (líricos do romantismo russo tardio) Tjutcev e Fet foram criticados pelos crí- ticos realistas que neles viram erros, descuido, etc. Turgenev, que publicara esses versos, corrigiu seu ritmo e estilo para melhorá-Ios e ajustá-Ias à norma vigente. A edição que daí resultou passou a ser a versão. canônica e somente na modernidade os textos originais foram reabilitados e reconhecidos como um passo inicial na direção de uma nova forma poética. O filólogo tcheco J. Král rejeitou os versos de Erben e Celakovsky, considerando-os errados e ultrapassados - se- gundo o ponto de vista da escola realista - enquanto a modernidade exalta esses mesmos versos precisamente por causa daquelas carac- terísticas em nome das quais haviam sido condenados pelo cânone realista. O trabalho do grande compositor russo Musorgskij não cor- respondia às exigências da instrumentalidade musical vigente no final do século XIX e Rimskij-Korsakov, mestre contemporâneo da técnica de composição, remodelou-os segundo o gosto que à época prevalecia; a nova geração, no entanto, recuperou os valores rebeldes decorrentes da ausência de sofisticação de Musorgskij suprimindo os retoques de Rimskij-Korsakov de composições como o "Boris Go- dunov", por exemplo. ---- O desvio e a transformação das relações entre componentes ar- tísticos individuais passou a ocupar um lugar central nas. investiga- ções formalístas, No campo da linguagem poética essas investigações demonstraram uma importância que se estCtldeU à pesquisa lingüís- tica em geral por haver introduzido maneiras de superar e resolver os hiatos entre o método histórico diacrônico e a Si.nclilliTil do cóifê " ansversal no temJ)o. A pesquisa formalista demonstrou claramênte que o esvio e as modificações não são meramente dados históricos (primeiro havia A, depois AI apareceu em seu lugar), mas sim que Io desvio é também um fenômeno sincrônico de experiência direta, um valor artístico altamente relevante. O leitor de um poema ou quem contempla um quadro tem vividamente em seu espírito a presença de duas ordens: o cânone tradicional e a novidade artística que é um desvio em relação a ele. h contra a base de tal tradição que se con- 490 .. cebe a renovação. Os estudos formalistas trouxeram à luz o fato de que este simultâneo manter a tradição e fugir dela compõem a essên- cia de todo novo trabalho artístico. Tradução Jorge Wanderley 491
Compartilhar