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2 Professora Adjunta do Departamento de Educação, Política e Sociedade da Universidade Federal do Espírito Santo. Pesquisadora do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros NEAB-UFES. DIMENSÕES SIMBÓLICAS DO JONGO E DA MEMÓRIA EM TERRITÓRIOS NEGROS: POSSIBILIDADES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES RACIAIS Profª Drª Patrícia Rufino Ouvimos histórias em muitas comunidades negras tradicionais. Essa escuta sensível das memórias vividas de fontes ainda vivas, reconstroem suas histórias a partir de fatos ocorridos em tempos passados, dos caminhos percorridos, das casas dos avós, do poço em que retiravam água, do córrego que havia... enfim, essas e outras histórias trazem as memórias de fatos que reencantam por sua magia. Pesquisar nessas comunidades tem sido um exercício prazeroso que une a tarefa árdua de pesquisadora ao prazer do encontro! São essas narrativas que trazemos nesse texto, eu nos unem aos tempos da memória e reconfiguram nossas formas de vivermos as africanidades. De tamanha generosidade que casa espanto! Trago para essa reflexão fragmentos da pesquisa “Olhares sobre jongos e caxambus” em que identificamos nas práticas jongueiras um enorme acervo imaterial, de ritos, formas, e tempos eu nos colocam diante de muitos questionamentos sobre a “História” já escrita da população negra no sudeste. Os ritos que envolvem as práticas de jongo desde o preparo dos tambores à festa, com procissão, são relatados através das narrativas dos jongueiros, que guardam a fé e reelaboram sua história. Os caminhos oram muitos, desde visitas, organização das rotas, às oficinas com as comunidades jongueiras Repensar os espaços escolares considerando a negritude apenas em dias específicos não se coloca como estratégia de combate ao racismo, ou seja, é tratar de forma simplificada um tema que depende de aprofundamentos e discussões cotidianas. Essa crítica inicial foi e é uma das proposições que vimos pensando, quando nos referimos aos currículos escolares e a abordagem das situações de diversidade étnico-racial na vida cotidiana das escolas públicas e das salas de aula. Este artigo tem por objetivo contribuir na análise do trato das relações étnico-raciais nos ambientes escolares e propõe pensarmos se a escola incentiva ações pedagógicas em todas as suas esferas, já que, a Lei 10.639/03 não seria um dispositivo exclusivamente necessário para que a questão racial fosse tratada na escola, porque o enfrentamento ao racismo 3 Professora Adjunta do Departamento de Educação, Política e Sociedade da Universidade Federal do Espírito Santo. Pesquisadora do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros NEAB-UFES. ultrapassa a relação de obrigatoriedade legal, mas necessariamente, já que o silencio ainda persiste, lançamos mão da Lei que nos garante autonomia para estes enfrentamentos. Apresentamos neste texto algumas inserções que serviram para identificarmos ações colaborativas para o trato pedagógico da questão racial no currículo, enfocando as contribuições da população negra na sociedade brasileira. Se em uma proposta mais ampla em que constam nos currículos oficiais o ensino de História e Cultura Afro-brasileira e africana e se de alguma forma as escolas ainda resistem, é sinal que temos muito a fazer, porque esse movimento de resistência nos diz muito em seus silêncios. Claro que quando nos referimos a “escola”, tomamos com propriedade todos aqueles sujeitos que lá estão, ou que de alguma forma participam da vida escolar. Por isso, esta discussão vai para além dos currículos, das salas de aula, ela envolve todos aqueles que entendem a educação como possibilidade ofertada para consolidação da cidadania. Por isso, penso então, que nesta reflexão inicial, entendermos esses processos de enegrecimento, para pensarmos os currículos, é necessário então dialogarmos com os lugares, com os territórios, nos enfrentamentos dessas barreiras e atuarmos nestes espaçostempos em que se desrespeitam as memórias, as histórias e os saberes necessários à compreensão e a contribuição do negro em nossa sociedade. Urge transversalizar o trato do racismo na escola colocando-o como tema presente no currículo escolar, principalmente se considerarmos os reflexos da “História” que vivemos – referindo-me a História do Brasil- contada a partir da reprodução de outros ditos, escritos para manutenção do poder de alguns, que excluem os não-ditos, os não escritos, os olhares, os gritos, as resistências. Passamos então a necessidade da contextualização dessa outra história, a partir mesmo das histórias e memórias vividas nas comunidades negras. Essa ação imputa à escola apropriar-se de quem é esse/essa estudante negro/negra, das próprias famílias negras e não negras, de suas histórias, dos avos e avós, dos antepassados, das mudanças ocorridas nos modos de vida, dos contextos de urbanização e dos processos de favelização, marginalização e pobreza que estão diretamente ligados à negação da negritude. Dessa forma, iniciamos nossa discussão questionando em que ponto, nos currículos concebidos ou oficiais – aqueles pensados a partir das diretrizes institucionais – estão pautadas práticas para o reconhecimento, aceitação e respeito à diversidade racial de 4 Professora Adjunta do Departamento de Educação, Política e Sociedade da Universidade Federal do Espírito Santo. Pesquisadora do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros NEAB-UFES. nossos alunos e alunas. Essas ações de reconhecimento a partir das próprias histórias, das histórias das famílias de seus territórios e suas interpretações nos questionam impulsionando rever conceitos, repensar realidades e até mesmo formas de como essas realidades se apresentam hoje. Para isso também é preciso pensar nas ações dos professores e professoras. São sujeitos, fundamentais para efetivação do currículo. Portanto, precisamos antes de qualquer discussão, pensarmos em uma parte específica - os “agentes da lei” – professores e professoras. A eles cabem em várias instancias, a formação, o trato da ação pedagógica e a junção de elementos que somente o professor/ professora necessitam para o enfrentamento inicial ao racismo e outras formas correlatas de discriminação na escola, que se apresenta na sala de aula. Ao pensar neste enfrentamento, nesta pesquisa, identificamos no jongo possibilidades para a construção desse diálogo. Claro que, existem inúmeros caminhos possíveis em que poderíamos partir para pensarmos as discussões sobre etnicidade, racismo, exclusão. No entanto, as práticas do jongo são apresentadas em algumas comunidades específicas e são propostas como movimentos de resistências negras e vão se disseminando conforme relações sociais locais, fortalecendo os elos de identificação comunitária. Fomos em busca de indícios que nos levassem a descobrir as práticas do jongo, em que coube interrogar, de que maneira uma escola situada em uma comunidade tradicional jongueira se relaciona e se apropria dessas práticas culturais? É possível a tradução do jongo no cotidiano das escolas? As respostas surgiram dos próprios sujeitos, de suas memórias, apontando os caminhos que percorremos. Assim, os mestres jongueiros, as pessoas da comunidade, as crianças foram nos mostrando quais eram os caminhos e mediações necessárias para educação para relações étnico-raciais a partir do jongo. Delineando o percurso da história oral temática, com visitas a desvelarmos as memórias de nossos antigos e novos jongueiros trabalhamos uma escuta sensível, a partir dos múltiplos olhares que se apresentavam. Portanto a conversa demonstrou-se uma das fortes características observadas durante os percursos nas comunidades,tanto urbanas quanto rurais, por isso a preocupação em construirmos um percurso metodológico que atendesse às necessidades da proposta – a escuta. A metodologia de história oral comportou essa possibilidade permitindo-nos registrarmos os saberes a partir das observações dos 5 Professora Adjunta do Departamento de Educação, Política e Sociedade da Universidade Federal do Espírito Santo. Pesquisadora do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros NEAB-UFES. próprios sujeitos. Para nós, colabora no sentido de resgatar as memórias coletivas, uma vez que trabalhamos com a concepção de memória como uma “[...] construção sobre o passado, atualizada e revisitada no tempo presente [...]” (DELGADO, 2010, p. 9). A memória como sabemos, é um campo de lutas, de disputa simbólica. Não é um lócus pacífico. Territórios Jongueiros Nossa proposta inicial se deteve em identificarmos as comunidades jongueiras existentes, tomando por princípio o reconhecimento desta prática cultural junto às secretarias de cultura, comissões de folclore e do Iphan, que inicialmente nos apresentaram alguns grupos, e a partir deles, fomos localizando alguns mestres e construindo um mapeamento com contatos de outros mestres Jongueiros, até porque nesta especificidade todas as comunidades jongueiras se conhecem ou sabem da existência deste ou daquele grupo de jongo. Foram identificadas comunidades jongueiras tanto no norte como no sul do Espírito Santo, porém, para melhor trabalharmos, foram divididas responsabilidades entre o grupo de pesquisadores em que alguns se destinaram à pesquisas com os grupos do sul e outros com os grupos do norte. Eu especificamente, neste período, trabalhei com os dizeres, fazeres e pensares dos grupos do norte, são estes que trataremos por hora aqui. A partir dos “Mestres” jongueiros iniciamos a pesquisa de campo que contou com visitas em comunidades no sul e no norte do Espírito Santo, neste ponto, solicitamos aos mestres que reunissem o maior quantitativo de participantes para explicarmos os objetivos da pesquisa em identificarmos os grupos e conhecermos suas histórias. As comunidades foram agrupadas em territórios, considerando a aproximação geográfica, para facilitar o fluxo de pesquisadores, pois algumas comunidades jongueiras são também quilombolas estão localizadas em lugares de difícil acesso. Portanto as visitas aconteceram durante alguns dias na semana e se concentraram nos fins de semana, conjugando, quando possível, as datas das festas e das devoções, de maneira que a cada fim de semana agendado fossem visitadas as comunidades mais próximas entre si. Das comunidades identificadas, conseguimos um quantitativo de 33 jongueiros dos grupos do norte, distribuídos como apresentamos no quadro a seguir. 6 Professora Adjunta do Departamento de Educação, Política e Sociedade da Universidade Federal do Espírito Santo. Pesquisadora do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros NEAB-UFES. Os grupos descritos neste quadro, foram visitados em períodos previamente agendados para a pesquisa, se reuniam para conversar, traziam suas reinvindicações, suas lembranças e em alguns momentos, cantavam, tocavam, nos convidavam para tomar café! As visitas iam assumindo as organizações dos próprios grupos, uma vez que, mais à vontade, eles se posicionavam direcionando as conversas. Quadro 1– Organização para as visitas às comunidades jongueiras no norte do Espírito Santo Territórios Norte Comunidades Grupos a serem visitados I - São Mateus (urbana e rural) Centro e São Cristóvão São Cristóvão -– Jongo de Santo Antônio. II - Conceição da Barra (rural) Itaúnas São Benedito e São Sebastião- – Linharinho Santa Bárbara – Jongo de Santa Bárbara III – Conceição da Barra (urbana) Santana Santana – Jongo de São Bartholomeu Jongo Mirin – Escola “Deolinda Lajes” A Comunidade de Santana – Jongo de São Bartholomeu Na comunidade de Santana, em Conceição da Barra, acontece a homenagem a São Bartholomeu no dia 24 de agosto. Atualmente esta celebração é realizada com uma procissão e finalizada com uma missa na igreja católica da comunidade. Após a realização da missa, participarmos da festa, conhecemos o jongo local, conversarmos com as pessoas, nos inteirarmos de outros contextos da celebração do santo. A visita à Santana assumiu então vários significados. Um inicial, foi a proposta de conhecermos o jongo em louvor à São Bartholomeu, outro que seria entendermos como esta comunidade constituiu seus processos culturais, a partir do que entendemos como processos de territorialização em que discutimos a negritude, e um outro olhar, que seria o entendimento do próprio fenômeno de presenciarmos durante a procissão dois santos (Bartholomeu) com o mesmo propósito – “estátuas”, devidamente homenageados, um nas mãos das mulheres mais antigas do local – e outro em um “andor” levado pelos homens até a igreja da comunidade. Essa 7 Professora Adjunta do Departamento de Educação, Política e Sociedade da Universidade Federal do Espírito Santo. Pesquisadora do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros NEAB-UFES. compreensão, no entanto, só nos vem após interligarmos os fatos da apropriação do próprio espaço em que vivem. O distrito de Santana encontra-se em uma região conhecida como “Sapê do Norte” compreendendo os municípios de São Mateus e Conceição da Barra apresentando-se numa região de fronteira campo/cidade com características urbanas, de forte influência da economia agrária, mas conservando algumas estruturas campesinas – tal como a aproximação entre as comunidades. Essa relação de interdependência rural/urbana apresenta-se claramente uma vez que muitos moradores retiram de suas roças recursos para sustento das famílias, e criam em torno de um elemento simbólico comum - o santo, pertencimento. Encontramos em Santana referencial da população do campo que migrou para a cidade e, mesmo assim, concentra boa parte de seu trabalho, relacionados às atividades do campo. Bem próximos à comunidade de Santana identificamos outra referência importante – o bairro Quilombo, onde fica situada atualmente a Igreja de São Bartholomeu e também a comunidade católica de Santana. Essa comunidade passa então a organizar-se ainda no séc. XIX com pessoas vindas de outras regiões rurais próximas à Conceição da Barra e do interior da Bahia. O “Sapê do Norte” é uma denominação popular da região compreendida , ao longo dos rios Cricaré e Itaúnas. Nesse território os traços históricos do período da escravidão marcam as constantes lutas empreendidas pela população negra, hoje quilombolas, em favor de suas terras, e pela resistência à devastação da Mata Atlântica promovida pelas indústrias de carvão e celulose. Nos processos de territorialidade constituídos por estas comunidades quilombolas do Sapê do Norte, esta relação territorial, acontece a partir das delimitações histórico-culturais de seus territórios. Utilizamos aqui a expressão “Sapê do Norte” – empregada pelos integrantes das comunidades negras existentes nos municípios de São Mateus e Conceição da Barra, ES.– para nos referirmos à região que ocupam desde o século XVIII. Para alguns escritores e pesquisadores da região, essa planta rasteira nativa – o capim sapê - representa a metáfora vegetal da resistência política dessas comunidades negras campesinas ao sistema escravista, até o final do século XIX, incluindo aí a resistência à perda do território para monocultura agroexportadora do eucalipto a partir da década de 1960. Esse capim, mesmo após o plantio e a colheita, com todo o desgaste da terra, mantém-se resistente a 8 Professora Adjunta do Departamentode Educação, Política e Sociedade da Universidade Federal do Espírito Santo. Pesquisadora do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros NEAB-UFES. todas as intempéries, brotando sempre, daí a metáfora das comunidades do “sapê” uma analogia a resistência das comunidades negras campesinas a todo processo de expropriação de suas propriedades e demarcações territoriais. Dessa forma, as demarcações territoriais são pensadas as partir dos contextos históricos, sociais e culturais. O que é hoje a comunidade de São Bartholomeu, no bairro Quilombo Novo, tem as reminiscências de todo contexto das lutas e resistências pela terra, ocupada inicialmente pelas grandes fazendas, depois por negros libertos e posteriormente interligadas pela religiosidade, ao apego ao jongo, a memória coletiva de seus descendentes. Apontando algumas questões levantadas em relação aos movimentos territoriais, entendemos que as dimensões territoriais do lugar estão diretamente relacionadas às práticas pelas quais as pessoas se organizam para pensar o espaço e as condições de sobrevivência que o mesmo oferece. No entanto, os contornos desses espaços são também delimitados conforme se constituem as relações sociais. Essas apropriações dialogam na organização do espaço, constituem-se como possibilidades com formas próprias de organização territorial, social, dando margem a entender que os sujeitos que constituem esses territórios dialogam a partir dessas relações sociais fomentando “costumes” ou as práticas culturais (CERTEAU,2005). O “santo das mulheres” Nos reunimos com um grupo de moradores mais antigos do Bairro de Santana e do Quilombo durante os preparativos para a festa de São Bartholomeu com alguns jongueiros que nos contaram um pouco mais sobre a história da comunidade e sobre o Jongo de “São Bartho”, como chamam na localidade. Fomos apresentados a D. Roxa - antiga moradora da região e devota de São Bartholomeu desde criança, quando ainda morava no “Braço do Rio” – às margens do rio, antes de mudar para o “Quilombo Novo”. Lá, como conta, as mulheres faziam as novenas e procissões juntamente com sua avó, mãe e todas outras devotas do santo. D. Roxa, é conhecida como a guardiã da imagem de São Bartholomeu, pois o santo foi/é herança familiar, e como ela mesmo nos conta, na conversa que tivemos, que “ele” é um santo de devoção das mulheres nos explicando os sentidos atribuídos à devoção. D. R - “[...] todo ano ia buscar [ o santo] no braço do rio, que “ieu” morava no braço do rio, né? Aí, ia aquela tripulação de mulé, realidade 9 Professora Adjunta do Departamento de Educação, Política e Sociedade da Universidade Federal do Espírito Santo. Pesquisadora do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros NEAB-UFES. como ia um “homem” ou dois, mas era pura “mulé”. Agora é ta cabando [risos]. Que os mais “véio” já tudo já faleceu, né?! Só tem os “novo”! P- Então mas, quando a Srª morava no braço do rio, a Srª tinha “ele” [São Bartholomeu] D.R- Já. Já existia ele. Isso aqui [mostra o santinho em sua casa] é antigo, meu Sr. Quando eu me intendi eu já encontrei. Que era da minha bisavó. É. Da minha bisavó passou “pá” minha avó. Da minha avó passou “pá” minha mãe. A minha mãe faleceu e ficou “prá” mim. Eu “tô” com 71 “ano”. P- Mas e... São Bartolomeu é protetor de quê? D.R- Das “mulé”. São Bartalameu e Nossa Senhora, do Bom Parto. É os dois que “faz” parto das “mulé”. Quem, quem é devoto deles, né?! É, porque hoje não tem quase devoto deles, né?! De primeira a minha mãe “pisuiu” vinte e seis, vinte e seis “filho”, nunca foi ao médico. A minha irmã uma “pisuiu” só cinco. Morreu. A “ôta” “pisuiu” dez. Eu “pisuí” dez. A minha “ôta” irmã “pisuiu” dez. Nunca fumo “no” médico. Parteira era ele e Nossa Srª do Bom Parto e São Bartholomeu. Em nosso diálogo, D. Roxa explica que “São Bartholomeu” é cultuado pelo menos há uns 300 anos pelas mulheres de sua família, mesmo sem saber ao certo a história inicial do santo, ou seja, como ele veio para sua família, D. Roxa assegura que “ele” foi passando de geração em geração, desde sua bisavó. Conta ainda que a imagem de São Bartholomeu, envolta pela fé, esteve na casa de cada uma das mulheres mais antigas da família, desde sua mãe, então suas irmãs, que “possuíram” filhos mediados, aos olhos da fé, por São Bartholomeu e Nossa Senhora do bom Parto. Consideramos fundamentais as observações de D. Roxa, principalmente atentando-nos as dificuldades por que passavam as famílias daquelas épocas para terem seus filhos, com poucos médicos, poucos hospitais com certeza o auxílio de parteiras, que também entregavam os partos que realizavam a fé depositada nos santos. Naquela época quando relatava suas memórias (2010) D. Roxa apresentava-se com 71 anos. Hoje, é possível pensar a festa de “São Bartho” pelo menos há 04 gerações. São Bartholomeu era levado para os lares em que as mulheres iam parir explica D. Roxa. Próximas da realização do parto, geralmente os maridos passavam em sua casa para levar o santo, por isso ela afirma, [...] ele é um santo das mulheres, andarilho, não é santo de 10 Professora Adjunta do Departamento de Educação, Política e Sociedade da Universidade Federal do Espírito Santo. Pesquisadora do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros NEAB-UFES. igreja[...]. Posteriormente a família organizava um local bem próximo da parturiente, para que o parto fosse abençoado pelo santo. Ao finalizar, correndo tudo como esperado, as famílias davam uma roupinha de recém-nascido, como doação, “pagando” a promessa feita. Em sua casa, D. Roxa mostra quantas roupinhas, sapatinhos, touquinhas guardadas, recebidas das pessoas que pagavam suas promessas. D. Roxa já escolheu em sua família quem herdará a missão de continuar os louvores à São Bartholomeu. D. Maria Amélia, sua sobrinha, terá a honra de continuar a tradição da família, sendo guardiã do santo. D. Maria Amélia, moradora antiga de Santana, tem, atualmente nas procissões a missão de levar ao colo a imagem de “São Bartholomeu” de propriedade da família. Confirma em seus relatos e se apresenta como a futura herdeira de “São Bartholomeu”, conforme nos explica, que recebeu da tia a herança de continuar com a devoção ao santo através do jongo. Ressalta ainda, que antigamente após as ladainhas aconteciam os bailes e eram as mulheres que animavam em agradecimento ao santo pela graça do parto. O bairro Quilombo Novo, em Santana, cresceu com essa devoção. Tanto que a igreja Católica da Comunidade, tem no altar Nossa Senhora do Bom Parto e São Bartholomeu. Uma curiosidade se deu em função de que o “santo” que se encontra na igreja atualmente, foi construído especificamente para avivação da fé. Pois como argumenta D. Roxa, o santo “oficial” da devoção, é aquele que foi de casa em casa para realizar os partos. Por isso a relção dicotômica de dois santos na procissão, e um no andor, carregado pelos homens da comunidade. Mas, as mulheres do jongo, as parteiras e outras tantas que receberam suas graças, vão à frente da procissão. Há muito tempo a festa e procissão de São Bartholomeu é acompanhada por mulheres que, em meio ao povo, carregam todo ornamentado um “santinho” ajoelhado, identificado como símbolo dessa fé, daí um quantitativo maior de mulheres à frente do Jongo de São Bartholomeu. Fé e jongo No norte do Espírito Santo,é comum encontrarmos no jongo uma quantidade maior de mulheres, pois são elas encarregadas de formarem a roda, ao comando das cabeceiras. Os homens cuidam dos instrumentos, são tamborzeiros e tocam também o reco-reco. Esse costume se estende também aos outros jongos que incorporaram aos seus rituais um quantitativo maior de mulheresno Sul do Espírito Santo, porém, com ritualísticas distintas 11 Professora Adjunta do Departamento de Educação, Política e Sociedade da Universidade Federal do Espírito Santo. Pesquisadora do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros NEAB-UFES. os Jongos do norte e os Caxambus no sul. Os homens, nos jongos do norte, confirmam sua presença tocando tambores, no entanto nos caxambus, homens e mulheres podem fazer parte das rodas. Nos jongos, é delas a responsabilidade por apresentar a dança. Ainda hoje, as mulheres jongueiras organizam, participam e acompanham a procissão de São Bartholomeu, mesmo com um quantitativo menor de senhoras, porque muitas senhoras, já idosas, não aguentam mais fazer todo cortejo de mais ou menos meio quilômetro pelas ruas do bairro, mas, mesmo assim buscam agradecer durante a missa. D. Maria Amélia, relata um pouco mais das histórias de que se lembra: O: São Bartho era baile de mulheres, num era? Mª A.: Só pura mulher. Mª A: Porque São Bartho é devoto das mulheres. P: Das mulheres? Quem leva São Barto na procissão? Mª A: É devoto das mulheres. Só mulher pode levar.É por isso que quando era baile era só de mulher e passô pro jongo só mulher. Tem homem, mais é no reco-reco, nos tambô. Tá entendendo? É assim. Mais é antigo, oh! T: É antigão! Já tem muitos anos. Mª A: Esse São Bartho tem muitos anos!! Essa crença também se manifesta na devoção aos ancestrais, que, conforme nos explica tem que ser preservada, algo que os une, e por essa união os identifica. Por outro lado também diferencia das outras comunidades e dos outros “processos de devoção” `tais como: devoção à Santo Antônio, `São Benedito, que são santos comumente devotados pelos jongueiros. Nesse ponto observamos que assim como a identidade depende da diferença, a diferença depende da identidade, são discursos que se criam, se afirmam nas memórias resultando de uma prática ancestral em que muito embora interligadas à presença do “santo” através de sua imagem transcedental, as identidades da comunidade são ativamente produzidas. As memórias D. Roxa, mostravam uma comunidade composta em sua maioria por mulheres que faziam suas ladainhas e procissão de barco, até a igreja, para cumprirem sua devoção ao santo, em agradecimento pelos partos que tiveram. Com o passar do tempo esses detalhes foram se transformando, apontando questões históricas nessas devoções, interligando o elo familiar, a herança recebida como devota, e recentemente como se 12 Professora Adjunta do Departamento de Educação, Política e Sociedade da Universidade Federal do Espírito Santo. Pesquisadora do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros NEAB-UFES. ressignificam os novos grupos de mulheres, que ainda recorrem à proteção de São Bartholomeu para realização de seus partos. M. A : Aí que eu tava falando com eles que esse Jongo ai, antes era o Baile de São Bartho. D. R : A maior parte que brincava no baile era as fias da finada Carminda, ela são já quase tudo mortas, num tem mais ninguém quase vivo.E eu, minha mãe nóis acompanho bastante. Era só. Era baile de São Barto. Aí com o tempo que enfio Pedro Aurora, mais Mª Amélia de Pedro, Seu Hemôgenes que virou Jongo, mais era Barto, o Baile de São Bartolomeu. Arcancei pulei muito. Na perspectiva de Delgado (2006), a temporalidade da memória o passado é espelhado no presente por meio das narrativas. A dinâmica da vida das pessoas está conectada com esses processos coletivos e por isso não se desvincula dos tempos percorridos, mas pode ser constantemente estimulada quando elas relatam suas vivências. Nesses relatos, encontram-se presentes múltiplos tempos que, conforme vamos conversando com os entrevistados, se apresentam nas narrativas, muitas vezes de formas desordenadas, mas reconstroem a história. No processar da memória estão presentes as dimensões do tempo individual (vida privada – roteiro biográfico) e do tempo coletivo (social, nacional, internacional). Os sinais exteriores são referências e estímulos para o afloramento de lembranças e recordações individuais, que constituem o substrato do ato de rememorar, que se relaciona segundo Halbwachs (1990) com os quadros sociais da memória. (Delgado,2010, p. 20) Nesse sentido, observamos que é comum, os jongueiros apresentarem em seus relatos que algumas referências, tais como: “naquele tempo...” ou “no tempo de Mestre X”, quando vão se recordando das práticas antigas. Optamos por apresentar as memórias, devido à sua importância para a reconstrução das histórias, uma vez que nosso aporte vem da metodologia da “história oral” e, como tal, interessam-nos as histórias a partir das narrativas dos sujeitos, reportando-nos a Benjamin (1994, p. 198): “[...] a experiência que se passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorrem todos os narradores [...]”. E entre as narrações, as melhores são as que menos se distinguem das histórias orais contadas pelos inúmeros narradores anônimos. Ainda em Benjamin (1994), apresentamos o cerne da questão que se apresenta pelos narradores com a descrição da cena, dos lugares, o encantamento que sentimos quando nos distanciamos do acontecimento para contá-lo. O autor esclarece que: 13 Professora Adjunta do Departamento de Educação, Política e Sociedade da Universidade Federal do Espírito Santo. Pesquisadora do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros NEAB-UFES. A narrativa que durante tanto tempo floresceu num meio de artesão – no campo, no mar e na cidade – é ela própria, num certo sentido, uma forma artesanal de comunicação. Ela não está interessada em transmitir o „puro em si‟ da coisa narrada como informação ou um relatório. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele. Assim imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso. Os narradores gostam de começar sua história com uma descrição das circunstâncias em que foram informados dos fatos que vão contar a seguir, a menos que prefiram atribuir essa história a uma experiência autobiográfica (BENJAMIN, 1994, p. 223). Dessa forma, os caminhos pedagógicos utilizados no trabalho com as memórias se deu pensando nos percursos históricos de cada grupo. Apropriamo-nos dos desenhos realizados durante as oficinas para tornar visível o processo de territorialidade, mostrando como esses territórios são historicamente construídos nas memórias dos sujeitos e como se constituíram em territórios jongueiros, observando que essa proposta facilita a compreensão das histórias, expondo para o ouvinte a condição de análise das falas com maior propriedade. Memórias de jongueiros Tatu – Eu falei: Gente, nóis temos um compromisso dia 24 de agosto. Foi falado isso pra todo mundo. Foi ou não foi? Mª Amélia e Seu Andrelino – Foi. Tatu – Eu falei: „e nóis temos o compromisso dia 24 de agosto‟. Esse dia eu posso está deitado em cima da cama, eu vou dá um jeito de alguém pegá o colchão de um lado de outro, vou vim pra dentro da igreja. A igreja é obrigada a me aceitá, que ali dentro, no colchão eu vo cantá, fazê alguma coisa, esperniar. Nóis tem um compromisso com isso. Nós não temos outro compromisso com alguém que vem lá de fora dizê: „Não, o grupo vai pra lá‟, aquele tipo de coisa. Nóis não temos esse compromisso de fazê isso. Dia 24 nóis temos um compromisso, deitar na nossa cama dia 23 e sabê que di manhã cedo nóis vão acordá, nóis vão ter um compromisso com São Barto a partir de seis da manhã, nóis vão ter um compromisso com ele. Você entendeu? Às vezes vem aquele mal entendido, aquele tipo de coisa: „Por que que eu aceitei?‟ Osvaldojá é segunda vez, né, Osvaldo? Que quando você me ligou é cinco dias antes da festa de São Barto, você alembra disso? 14 Professora Adjunta do Departamento de Educação, Política e Sociedade da Universidade Federal do Espírito Santo. Pesquisadora do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros NEAB-UFES. Fonte:Andrade, Patrícia G. Olhares sobre Jongos e Caxambus: Processos Educativos nas práticas religiosas afro-brasileiras. UFES, 2013. Certa vez, outro jongueiro, “Tatu” (Juscelino) recebeu a herança do comando do jongo de São BartHolomeu, porém, em virtude de estar sempre viajando a trabalho, passou para D. Carmem, sua tia, essa responsabilidade, já que o Jongo é “comandado” por mulheres e sua Finada mãe, não teve filhas para dedica-lo. Assim, com o jongo como conta D. Carmem assumiu o grupo colaborando com Tatu, então ele solicitou a ela que assumisse o compromisso do dia 24 de agosto, que é dedicado a São Bartho. Mesmo distante, Tatu sempre é respeitado como liderança. Um dos motivos deve-se ao fato de sua mãe, D. Tininha (Argentina dos Santos Guilherme) e seu pai, S. Caboquinho (Raulino Guilherme) serem dois líderes das brincadeiras. D. Tininha recuperou o jongo é foi mestra por muitos anos, reavivando a devoção. Seu desejo é que a neta Kelly assumisse um dia a brincadeira, mas, em sua morte, a neta ainda era muito pequena, coube, então, ao filho dar continuidade. A herança da responsabilidade assumida por Tatu deve-se a esse laço familiar. Assume, conforme sua narrativa, que, no dia 24 de agosto, seu compromisso é com o santo: por exemplo sobre o que se refere o relato acima. Dá-nos entender que houve uma reconfiguração no jongo e atualmente se apresenta como uma nova forma de “devoção” se é que podemos visualisar assim. Antes porém, haviam os festejos, mas de uma maneira mais caseira, entre as famílias, os vizinhos inclusive nesses procedimentos eram inseridas as ladainhas, rezas nas casas, atualmente essa organização deu lugar a uma procissão no entorno do bairro, Para Barth, esses padrões culturais são resultados de processos sociais específicos (p.112), se fizermos analogia das antigas configurações das devoções nos antigos quilombos para o que encontramos e atualmente. Reflitamos por exemplo sobre as transformações ocorridas desde as apresentações nos bailes atualmente nas procissões, e posteriormente nas reinvindicações feitas pelas comunidades para que o jongo acontecesse também na escola. A devoção continua, porém há modificação nos rituais. A escolha da Escola Deolinda Lage se deu em função de identificarmos na região uma escola dentro de uma comunidade remanescente de quilombos, em que a atividade do 15 Professora Adjunta do Departamento de Educação, Política e Sociedade da Universidade Federal do Espírito Santo. Pesquisadora do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros NEAB-UFES. jongo é conservada por muitos moradores antigos do bairro, possibilitando, portanto, que nos debrucemos sobre esse tema na escola. Pertencente à Rede Municipal de Ensino de Conceição da Barra e atualmente atendendo a 370 alunos entre os turnos matutino – de 6º ao 9º–, vespertino de 1º ao 5º– e noturno – EJA, a escola conta com 43 funcionários. Desses, 25 são professores. Possui nove salas de aula – atendendo, em média, nas turmas, cerca de 25 crianças –, uma biblioteca adaptada na sala de professores, um laboratório de informática com 20 máquinas com acesso à internet. Uma observação curiosa é que nessa escola quase não se veem crianças brancas A preocupação inicial com a pesquisa na escola se dava em função das abordagens que poderiam vir a partir do trabalho do jongo já realizado na comunidade. Fizemos um movimento de visita às casas, à igreja e muitas crianças nos acompanhavam. Na escola, a informação inicial à pesquisadora era de que o projeto de jongo na escola acontecia no contra turno das crianças, portanto, ao visitarmos os ensaios, observamos que algumas crianças do grupo estudavam pela manhã, mas foram autorizadas pelos professores a participarem dos ensaios, como é o caso de Flor de Liz e Flor de Laranjeira 1 , as cabeceiras do grupo. A propósito da comunidade de Santana, a contratação de Mestre Antônio – jongueiro antigo e morador da comunidade, foi uma proposta da Secretaria Municipal de Cultura de Conceição da Barra em parceria com a Secretaria Municipal de Educação de Conceição da Barra, para que se efetivasse a proposta na escola. A leitura dinâmica dos espaços-tempos das relações no/do cotidiano entre práticas jongueiras e não jongueiras aponta que a escola “observa” o movimento que acontece, porém essa percepção consta nos imaginários, reside no “saber” dos filhos, netos dos jongueiros que lá estão, ocupa uma temporalidade na dinamicidade do processo educativo. O espaço destinado para os ensaios, ficava bem longe das salas de aula, conforme informados pelas professoras, para não atrapalhar as aulas, de certa forma, haviam acordos intrínsecos entre o mestre e aos professoras para que “mantivessem a ordem”, ficando assim, cada um no seu canto, ou seja, durante os jongos as professoras permaneciam nas 1 Codinomes utilizados para preservar a identificação das jongueiras mirins. 16 Professora Adjunta do Departamento de Educação, Política e Sociedade da Universidade Federal do Espírito Santo. Pesquisadora do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros NEAB-UFES. salas de aula, e alguns poucos alunos, ao todo dezessete, eram retirados para ensaiarem jongo. O mestre, em sua fala, nos aponta algumas questões P: Seu Antônio, porque vocês ficam tão afastados das salas? Mestre Antônio: Porque as professoras reclamam do barulho e dizem que atrapalha as aulas, então... graças a Deus, esse pátio é grande a gente se espreme aqui, no fundo. Patrícia: Mas e quando chove? Mestre Antônio: Ah... quando chove as crianças já sabem que não tem ensaio, porque alaga tudo ali. A escola fica cheia e tem um esgoto também... Ahh, minha filha, ninguém aguenta... [risos]. E a gente vai tocando, não pode deixar morrer. (Mestre Antônio Conceição – Escola Deolinda Lage, 10 de agosto de 2012). Mestre Antônio deixa claro que há necessidade de maior compreensão e colaboração do corpo docente. No entanto também entende as limitações da escola e tem plena consciência de que o jongo, naquele lugar, cumpre uma importante função da continuidade das práticas. Perguntamos também em que momento eles conversam sobre o desenvolvimento das crianças, sobre as famílias, sobre o jongo, se acontece alguma reunião mensal, planejamento com a sua participação: P: Tem algum momento que vocês sentam pra conversar sobre as crianças, sobre os jongos? Mestre Antônio: Olha... [coçando a cabeça] hoje não tem não. Quando precisa de chamar a atenção, a gente resolve aqui mesmo! Mas quase não converso com as professoras, mas a „deretora‟ essa aí oh... é peça fina!(MESTRE ANTÔNIO CONCEIÇÃO – Escola Deolinda Lage, 10 de agosto de 2012). Contrastando com as falas de Mestre Antônio, na fala da Professora 1 e os projetos apresentados, observamos que, no discurso existente, há expectativa da ressonância e visibilidade do jongo na escola. No entanto, existe, sim, uma barreira entre as práticas educativas trabalhadas pelo mestre de jongo e as demais práticas desenvolvidas pelas professoras, não especificamente uma exclusão, mas há falta de diálogo sobre a coletividade nas atividades realizadas. Em relação aos saberes passados por Mestre Antônio, a ideia era pensarmos juntos de que maneira o jongo potencializaria os fazeres escolares cotidianos e se ascrianças identificam que esses saberes são importantes para a continuidade das práticas 17 Professora Adjunta do Departamento de Educação, Política e Sociedade da Universidade Federal do Espírito Santo. Pesquisadora do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros NEAB-UFES. jongueiras. Dessa forma, conversamos sobre as dificuldades enfrentadas pelo mestre no trato pedagógico da questão na escola e chamamos algumas crianças para dialogarmos sobre os acontecimentos na escola durante os ensaios, na proposição de contextualizarmos as práticas. Levamos para biblioteca algumas fotos da região de Santana, antigas, recentes, recortes de jornais e outras... lá, encontramos uma coleção de livros de história de personagens negros de São Mateus e Conceição da Barra, que nos serviram para iniciarmos uma conversa. Trocamos livros, histórias e até textos que alguns alunos prepararam em casa por sua conta. P: É que tem que lembrar porque a tia não gravou o de todo mundo ainda não, tá gente. É só falar rapidinho o que você pensou, o que pesquisou, onde pesquisou. Flor de Liz: Eu pesquisei na internet. P: Você pesquisou na internet. O que você pesquisou, Ana Paula? Flor de Liz: Pode ler não? Só um pouquinho? P: Só um pouquinho. Ana Paula: A comunidade de Linharinho é uma comunidade quilombola localizada no município de Conceição da Barra, no extremo norte. Submetidos a indiscutíveis processos de invisibilidades sociológicas, os quilombos permaneceram na história do Brasil. A pesquisa para casa foi uma estratégia encontrada para interligarmos um encontro ao outro minimamente com uma sistematização das práticas realizadas nos ensaios para levantarmos o que as crianças percebiam em relação às suas realidades. Enquanto Flor de Liz fazia a leitura, alguns prestavam atenção, outros estavam interessados em iniciar seus desenhos, o que rapidamente foi permitido. Tecendo novos caminhos 18 Professora Adjunta do Departamento de Educação, Política e Sociedade da Universidade Federal do Espírito Santo. Pesquisadora do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros NEAB-UFES. A prática dos jongos, presente nas comunidades quilombolas examinadas neste trabalho, constitui um movimento de resistência e permanência traduzido em dupla emergência: a da afirmação de costumes cujas raízes têm sofrido processo de silenciamento e de oposição ao racismo, manifestando-se e afirmando-se de modo poético. As organizações religiosas, com o passar do tempo, tomaram dimensões da vida política e cultural das comunidades jongueiras, conjugando a religiosidade a outras práticas culturais, dentre as quais o jongo. Nesse sentido, do ponto de vista das dimensões do recorte étnico-cultural, os segmentos negros desenvolveram uma postura política de enfrentamento. Essas negociações tomaram novas formas e proposições em outros espaços-tempos, permitindo construir imagens positivas do negro como contraponto à imagem etnocêntrica, estereotipada e estigmatizada produzida pela cultura hegemônica. O processo educativo para Educação Etnicorracial visa à formação do “negro”, considerando as interfaces afro-brasileiras, mas essa formação deve estar diretamente articulada com múltiplos contextos e possibilidades de se pensar a escola em todos os seus processos. Nesse sentido a escola quando situada em uma comunidade quilombola necessita contextualizar as vivências e aprendências desses sujeitos, e uma dessas formas é retomando suas próprias histórias. Transpor metanarrativas e redimensionar ações faz parte desse movimento em que a escola e a comunidade sejam percebidas como lugares políticos onde as práticas acontecem e que esses espaços-tempos produzem subjetividades, portanto os elementos que conjugam as tessituras de conhecimentos, as articulações e interdições de saberes e práticas são constantemente reformulados, traduzidos na dinamicidade dos cotidianos, constituindo outras fronteiras em que os territórios culturais se apresentam como territórios móveis. A postura política dos jongueiros diz respeito também ao processo de formação comunitária, principalmente à reivindicação de autonomia social e cultural e se constitui em um conjunto de ideais, valores e crenças que interagem nas modalidades da organização política das práticas culturais. 19 Professora Adjunta do Departamento de Educação, Política e Sociedade da Universidade Federal do Espírito Santo. Pesquisadora do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros NEAB-UFES. Dessa forma, os caminhos pedagógicos percorridos nesta pesquisa, no trabalho com as memórias, deram-se por meio dos percursos históricos de cada grupo. Essa concepção de aprendizagem como um processo de “mão dupla” foi necessária para que as práticas culturais dos jongueiros fossem pensadas em universos historicamente paralelos, na medida em que surgiram outros ingredientes que colaboraram com a desconstrução de uma prática unificada. REFERÊNCIAS ABREU, Martha; MATTOS, Hebe. Jongos, registros de uma história. In: LARA, S. H.; PACHECO, G. Memória do jongo: as gravações históricas de Stanley J. Stein, Vassouras, 1949. Rio de Janeiro/Campinas: Folha Seca/Cecult, 2007. AGUIAR, Maciel de. A divindade de São Benedito: o santo dos humildes e dos oprimidos. Revista Vitória, ano 1, n. 9, p. 46-53, jun. 1982. AGUIAR, Maciel de. O mestre de jongo de São Benedito. In. AGUIAR, Maciel de. Brincantes e quilombolas. São Mateus: Memorial, 2005. AGUIAR, Maciel de. 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