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Pó s- gr ad ua çã o em E du ca çã o FUNDAMENTOS FILOSÓFICOS E PEDAGÓGICOS DO ENSINO SUPERIOR Sandro Marcos Castro de Araújo Diretores Diretoria Executiva Luiz Borges da Silveira Filho Diretoria Operacional Marcelo Antonio Aguilar Diretoria Acadêmica Francisco Carlos Sardo Editora Coordenação Editorial Raquel Andrade Lorenz Projeto Gráfico Evelyn Caroline dos Santos Betim Arte-Final Evelyn Caroline dos Santos Betim Capa Vitor Bernardo Backes Lopes Direitos desta edição reservados à Fael. É proibida reprodução total ou parcial desta obra sem autorização expressa da Fael. ARAÚJO, Sandro Marcos Castro de RESUMO O presente artigo apresenta considerações teóricas acerca dos fundamentos filosóficos e pedagógicos do ensino superior. No que concerne aos fundamentos filosóficos são discutidas as temáticas da reflexão filosófica, da complexidade e da racionalidade comunicativa habermasiana. Da mesma forma, quando se trata da dimen- são pedagógica dessa fase de ensino são abordados, dentre outros elementos constitutivos da práxis docente, a necessidade da pesquisa, o desenvolvimento contínuo de competências e habilidades, destacando-se entre essas a utilização das novas tecnologias e o incremento da utilização da criatividade no espaço da sala de aula. Palavras-chave: Fundamentos. Filosofia. Pedagogia. Fundamentos Filosóficos e Pedagógicos do Ensino Superior Faculdade Educacional da Lapa - FAEL 4 1 JUSTIFICATIVA A educação no Brasil atravessa um período de significativas mudanças. Refletir acerca dessas trans- formações, de seu alcance e das suas influências sobre as concepções e práticas pedagógicas implantadas pelo segmento dos docentes, em todos os níveis escolares, bem como, dos fundamentos epistemológicos presen- tes nessas novas configurações da educação, é tarefa premente, indispensável, apresentando-se como um dever ético de todos os atores sociais envolvidos em tal constructo humano. De fato, desde a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), em 23 de dezembro de 1996, muitas foram as alternâncias, as regulamenta- ções e as interpretações sobre o processo educacional efetivamente encontrado no país. Não há dúvida de que a última década do século XX apresentou à socie- dade brasileira, ou pelo menos, para uma parcela dela, sobretudo para aquela fração que vislumbra na educa- ção um poderoso instrumento de emancipação indivi- dual, social, política, uma presença avaliativa cada vez mais acentuada do Estado. Os processos e práticas avaliativas da educação tornaram-se foco central de interesse dos órgãos res- ponsáveis por essa área, sobretudo, do Ministério da Educação e Cultura. Desses rearranjos e elaborações/avaliações é pos- sível encontrar elementos extremamente positivos no sentido de uma democratização cada vez maior do acesso à educação1, isso em todas as fases do processo formativo do cidadão, destacando-se aqui o ingresso no ensino universitário, a busca da excelência das prá- ticas pedagógicas, a valorização e o incentivo à for- mação constante de professores e professoras, sensível aumento das verbas públicas destinadas ao financia- mento de projetos educacionais, etc. Evidentemente que, como é plausível naquilo que se apresenta como novo, verificam-se também algumas incoerências, alguns vícios advindos da própria história de como a educação sempre foi tratada em nossa cultura, desa- certos presentes em medidas administrativas e peda- gógicas implantadas. Como ilustram bem Frauches e Fagundes nessa reflexão: A flexibilidade da LDB, num país acostumado a leis detalhistas, e sua abertura para o novo, para a criatividade do mundo acadêmico 1 Destaca-se aqui o trabalho que a Educação a Distância (EaD) vem desen- volvendo, no sentido de possibilitar democraticamente o acesso à educação para milhares de brasileiros. e das autoridades educacionais, em todos os níveis, proporcionou avanços consideráveis no processo educacional de crianças, jovens e adultos, apesar das indevidas e fre- quentes interferências do Estado, nem sempre de forma coerente (2007, p. 23). E ainda, Os avanços para a “abertura para o novo” foram decisivos para a ins- talação de novas IES2 inovadoras e criativas e para o incremento de cursos de programas de educação superior também inovadores, des- tacando-se a expansão do ensino a distância, dos cursos superio- res de tecnologia e da cultura da avaliação, como instrumento de melhoria permanente das funções universitárias e de gestão acadêmi- co-administrativa (2007, p. 29). Essas considerações introdutórias apresentam aquilo que será a tarefa central desse artigo, ou seja, analisar como essas mudanças no sistema educacio- nal brasileiro adentram o espaço da sala de aula e as práticas docentes. O recorte de análise será feito na educação superior e sua reforma3, em que se procu- rará identificar quais são os fundamentos pedagógicos e filosóficos que estariam a orientar, ou não, as ativida- des pedagógicas nessa fase da formação do estudante. A reflexão acerca das bases pedagógicas e filosó- ficas do ensino superior se constitui em um instru- mento de aperfeiçoamento/construção de projetos político-pedagógicos mais democráticos e compromis- sados com o desenvolvimento pleno das pessoas que ingressam no sistema educacional, assim como, con- tribui na elaboração de estratégias utilizadas em sala de aula, capazes de fortalecer a qualidade da educação superior no país. Além disso, como destacado anteriormente, a reflexão acurada, crítica e fundamentada da educação superior, especialmente por educadores e educadoras, constitui-se como momento privilegiado e estratégico para as pretensões de um novo projeto de nação, para o desenvolvimento e amadurecimento de cidadãos éti- cos, competentes e solidários. De fato, o desenvolvi- 2 Instituições de Ensino Superior. 3 Dependendo do alcance das mudanças propostas pela nova LDB no ensino universitário é possível questionar a própria expressão reforma universitária, sendo que, para alguns autores, a expressão mais adequada seria uma (re)fundação das instituições universitárias brasileiras. Além disso, é possível falar em reforma apenas naquilo que convencionamos chamar de educação superior? Não seria algo de natureza mais abrangente, devendo alcançar todo o sistema educacional? Fundamentos Filosóficos e Pedagógicos do Ensino Superior 5Faculdade Educacional da Lapa - FAEL mento de um país está condicionado à qualidade de sua educação e de seu povo. 2 CARACTERIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO SUPERIOR E SUAS FINALIDADES O capítulo IV da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) trata da educação superior e suas especificidades. É importante destacar que por edu- cação superior se deve entender, do ponto de vista da legislação brasileira, não apenas os conhecidos cursos de graduação. Segundo o Art. 44, ela abrangerá os seguintes cursos e programas: I. cursos sequenciais por campo de saber, de diferentes níveis de abrangência, abertos a candidatos que atendam aos requisitos esta- belecidos pelas instituições de ensino4 [...]; II. de graduação, abertos a candidatos que tenham concluído o ensino médio ou equi- valente e tenham sido classificados em pro- cesso seletivo5; III. de pós-graduação, compreendendo programas de mestrado, doutorado, cursos de especialização, aperfeiçoamento e outros, abertos a candidatos diplomados em cursos de graduação e que atendam às exigências das instituições de ensino; IV. de extensão, abertos a candidatos que aten- dam aos requisitos estabelecidos em cada caso pelas instituições de ensino (BRASIL, 1996). Além da abrangência da educação superior, a Lei n. 9.394/96 estabelece, de maneira clara, em seu Art. 43, quais são as finalidades dessa fase daformação escolar. São elas: I. estimular a criação cultural e o desenvol- vimento do espírito científico e do pensa- mento reflexivo; II. formar diplomados nas diferentes áreas de conhecimento, aptos para a inserção em setores profissionais e para a participação no 4 O parecer n. 968/98, da Câmara de Educação Superior do Conselho Nacional de Educação (CNE), transformado na resolução CES/CNE 1/99, dispõe que os cursos sequenciais por campo de saber são um conjunto de atividades sistemáticas de formação alternativas ou complementares aos cursos de graduação. 5 A nova legislação substitui o termo vestibular, previsto na Lei n. 5.540, de 1968, por “processo seletivo”, dando maior flexibilidade no que concerne aos modos como as instituições de ensino selecionam os candidatos pretendentes ao ingresso em cursos ofertados. desenvolvimento da sociedade brasileira, e colaborar na sua formação contínua; III. incentivar o trabalho de pesquisa e inves- tigação científica, visando ao desenvolvi- mento da ciência e da tecnologia e da cria- ção e difusão da cultura, e, desse modo, desenvolver o entendimento do homem e do meio em que vive; IV. promover a divulgação de conhecimentos culturais, científicos e técnicos que consti- tuem patrimônio da humanidade e comuni- car o saber através do ensino, de publicações ou de outras formas de comunicação; V. suscitar o desejo permanente de aperfeiço- amento cultural e profissional e possibilitar a correspondente concretização, integrando os conhecimentos que vão sendo adquiridos numa estrutura intelectual sistematizadora do conhecimento de cada geração; VI. estimular o conhecimento dos problemas do mundo presente, em particular os nacionais e regionais, prestar serviços especializados à comunidade e estabelecer com esta uma rela- ção de reciprocidade; VII. promover a extensão, aberta à participação da população, visando à difusão das conquistas e benefícios da criação cultural e da pesquisa científica e tecnológica geradas na instituição (BRASIL, 1996). Merece destaque, pela natureza e objetivos deste artigo, evidenciar que em todas as finalidades expli- citadas pelo corpo da lei fica suficientemente claro e como condição sine qua non para o alcance de uma formação plena, a importância do desenvolvimento do espírito científico, do pensamento reflexivo, da criação e difusão da cultura, desenvolvimento do homem e do meio em que está inserido, em que estabelece relações com outros homens e seres, temas esses, tão valoriza- dos e trabalhados e que, como será verificado, são os principais fundamentos filosóficos e pedagógicos do ensino universitário. Além desses aspectos, é oportuno apresentar algumas considerações do trabalho das professoras Maria Auxiliadora Oliveira e Maria Virgínia Freitas. No artigo intitulado “Políticas contemporâneas para o Ensino Superior: precarização do trabalho docente?”, as autoras destacam que a reforma do ensino superior, promovida pela Lei n. 9.394/96 (nova LDB), aper- Faculdade Educacional da Lapa - FAEL 6 feiçoada num contínuo processo hermenêutico, pelo Decreto n. 3.860/2001, possui como premissas bási- cas o tratamento da educação superior como política de Estado e a regulamentação, por parte do Estado, do sistema de ensino superior. Assim sendo, é notória a importância de políticas públicas compromissadas verdadeiramente com o desenvolvimento da nação como um todo, de onde se pressupõe que A educação de nível superior deve ser concebida como política de Estado, por um lado, para não ser mudada segundo os interesses de cada novo governo; por outro, por ter uma dimensão estraté- gica, na medida em que não se pode pensar em um projeto de desenvolvimento sustentável, prescindindo das contribui- ções das instituições de ensino superior. Em outras palavras, o ensino superior, deve ser reco- nhecido como fundamental a um projeto de nação, pois é respon- sável tanto pela capacitação de recursos humanos, quanto pela expansão do conhecimento téc- nico-científico, imprescindível aos setores societário e produ- tivo e à inserção soberana do país no cenário internacional (OLI- VEIRA; FREITAS, 2008, p. 49). Do mesmo modo, dentre as mudanças propostas/ sugeridas pelo Decreto n. 3.860/2001, destacam-se, em função de sua íntima relação com a temática cen- tral dessa análise, as seguintes: I. expansão do Sistema Federal de Ensino, consolidação de sua qualidade e preservação de seu caráter meritocrático, sempre acom- panhado do espírito da Lei n. 9.394/96, ou seja, que em seu segundo artigo aponta que “a educação escolar deverá vincular-se ao mundo do trabalho e à prática social”; II. adoção de políticas de inclusão, que preten- dam reverter uma dívida social para com os sujeitos historicamente marginalizados6; III. consideração de que o conhecimento deve ser tratado como uma forma mais global e 6 Não se deve pensar essas políticas públicas de inclusão apenas como aquelas que habitualmente são relatadas na mídia, apesar de sua importância política e social, tais como, cotas para afrodescendentes, cotas para descendentes de aborígi- nes, cotas para alunos advindos do sistema público de ensino, etc., mas, sobretudo, em estratégias de democratização do acesso à educação a todos os cidadãos brasileiros. Destaca-se aqui a relevante contribuição que a Educação a Distância tem prestado nesse sentido. menos disciplinar, enfatizando a necessidade da utilização de modelos de ensino mais flexíveis, mas cada vez mais personalizados. O ensino deve ter um eixo, mas precisa ser aberto para que os alunos possam se adaptar às rápidas transformações do conhecimento e do mundo do trabalho; IV. instauração do Ciclo Básico, que deverá ser constituído por três instâncias para propiciar aos alunos uma formação mais ampla e mul- tidisciplinar. O primeiro ciclo dedicar-se-á à cultura humanística, o segundo contemplará a cultura artística e o terceiro ciclo estará vol- tado para a cultura científica (OLIVEIRA; FREITAS, 2008). Fica evidenciada, portanto, pelas orientações da legislação e pelas transformações culturais por que passa a sociedade hodierna, inserindo aqui as constantes e sempre novas exigências a que são sub- metidos todos aqueles que adentram o mundo do trabalho, tais como, uma qualificação constante, uma habilidade crescente em desenvolver com- petências para a solução de dilemas no convívio socioprofissional, desenvolvimento de multilingua- gens, especialmente as relacionadas ao mundo da tecnologia da informação, e discursos polissêmicos, em que os valores éticos sejam balizas de práticas pessoais virtuosas, que a formação do indivíduo no Ensino Superior precisa possuir como premissa básica a noção de sistema, de integração, de com- plexidade, ou seja, o que se quer ao estabelecer um ciclo básico (cultura humanística, cultura artística e cultura científica) é uma formação integral, uma preparação que forme intelectualmente, tecnica- mente e possibilite a excelência naquilo que se faz e no que se é. Assim sendo, essas propostas e mudanças ocorri- das no sistema educacional apontam, sobretudo, para novas perspectivas quanto ao futuro da educação bra- sileira. Evidentemente que esse futuro, e em qualquer projeção que se faça do mesmo, a educação deve mere- cer destaque, deve ser antecedido por debates, encon- tros, seminários, simpósios, enfim, discussões onde todos os cidadãos, especialmente educadores e educa- doras, tentem responder a indagações fundamentais, tais como: qual escola, qual universidade se pretende construir? Que aluno e que professor serão formados nesse contexto/ambiente? Que perspectivas possui o futuro da educação nesse começo de século? Fundamentos Filosóficos e Pedagógicos do Ensino Superior 7Faculdade Educacional daLapa - FAEL 3 FUNDAMENTOS PEDAGÓGICOS DO ENSINO SUPERIOR O processo de ensino-aprendizagem requer do educador e da educadora, em todos os níveis em que ocorra, além de uma sólida formação na sua área espe- cífica de conhecimento (conhecimento esse que é cumulativo ao longo do desenvolvimento da cultura humana), uma constante busca de aperfeiçoamento nas metodologias e técnicas utilizadas na arte de ensi- nar e de aprender. Trata-se, portanto, do necessário desenvolvimento de um conjunto de competências e habilidades para se alcançar o telos do ensino. De fato o magistério é construído e reconstruído no cotidiano da sala de aula e, especialmente, pela dialeticidade das relações estabelecidas nesse espaço social. Para aquelas perguntas formuladas anteriormente urge o aparecimento de respostas significativas e efica- zes. Tais respostas só poderão surgir dentro de espaços fomentadores de reflexão e construção solidária e cole- tiva, geradores de instrumentos adequados à realidade dos acadêmicos e de toda a comunidade que está no entorno da universidade. Dessa forma, considerar como tema relevante nessa análise a identificação, discussão e crítica daque- les que são, ou poderão ser, os fundamentos pedagó- gicos do Ensino Superior é determinante e premente. Se de um lado é necessário tal aprofundamento e análise, também se faz explícita de maneira quase que imediata a dificuldade dessa tarefa. Essas dificuldades se originam, especialmente, da pluralidade das práticas pedagógicas adotadas pelos docentes do Ensino Supe- rior. Haverá apenas uma forma de se manifestar o pro- cesso de ensino-aprendizagem nesse nível escolar? Se a resposta for afirmativa, que fundamentos pedagógicos estariam subsidiando tal prática? Por outro lado, se a resposta conduzir para a existência de uma plêiade de modelos de ensino-aprendizagem, como parece ser e existir, seria possível encontrar elementos fundantes nessa diversidade? Evidencia-se, dessa forma, que a análise e até mesmo a identificação dos fundamentos pedagógicos da educação universitária é missão complexa, porém, fundamental para o incremento qualitativo das prá- ticas educacionais e dos resultados de aprendizagem. Sem dúvida, a reflexão pedagógica possui relevância social e estratégica, tomando para si a tarefa de inter- pretar as relações sociais de uma sociedade historica- mente determinada para transformá-las. O papel do educador e da educadora, quando devidamente pre- parados, é de extrema importância para o desenvolvi- mento de uma nação. O magistério é construído e reconstruído no cotidiano da sala de aula e, especialmente, pela dialeticidade das relações estabelecidas nesse espaço social. De maneira didática e com o objetivo de tornar possível a análise proposta neste artigo, acredita-se que a reflexão, ainda que de maneira introdutória, das principais tendências pedagógicas presentes na educação brasileira, especialmente as implantadas no sistema educacional do século XX e início deste novo século, será colaborativa para o alcance do que se pre- tende nessa reflexão. É possível identificar, segundo Luckesi (1994), dois grupos de tendências pedagógicas nas práticas escolares no Brasil. Ressalta-se, seguindo o raciocí- nio desse autor, que essas tendências não são puras e nem exclusivas, sendo mais adequado afirmar que em muitas situações elas se complementam e, em outros, divergem, sendo que, “a posição que cada tendên- cia adota em relação às finalidades sociais da escola” (LUCKESI, 1994, p. 54), seria o verdadeiro parâme- tro para situá-las. Haveria, portanto, uma pedagogia classificada de liberal, isto é, vinculada ao desenvolvimento do libera- lismo7 na sociedade moderna capitalista. Para Luckesi, A doutrina liberal apareceu como justificação do sistema capitalista que, ao defender a predominância da liberdade e dos interesses indi- viduais da sociedade, estabeleceu uma forma de organização social baseada na propriedade privada dos 7 O surgimento de políticas e práticas liberais remontam à segunda metade do século XVII, tendo como marco inicial a Revolução Gloriosa na Inglaterra. De maneira geral, é possível identificar na condenação de qualquer prática intervencionista por parte do Estado, especialmente na área econômica, a bandeira central dos liberais. Salienta-se que ao longo desses 400 anos de história, o liberalismo passou por algumas mudanças, sempre almejando se adequar às transformações da sociedade e seus fins. O liberalismo político de John Locke, o liberalismo econômico de Adam Smith, o novo liberalismo, ou utilitarismo, de John Stuart-Mill, o liberalismo social, também, conhecido como keynesianismo advindo das ideias de John Maynard Keynes e, finalmente, o neoliberalismo, vertente contemporânea e mais conhecida, que, por sua vez, foi iniciada com a obra O caminho da servidão de Friedrich Hayek, constituem essas fases. Faculdade Educacional da Lapa - FAEL 8 meios de produção, também deno- minada de sociedade de classes. A pedagogia liberal, portanto, é uma manifestação própria desse tipo de sociedade (1994, p. 54). Trilhando a ideologia liberal se encontrariam qua- tro tendências pedagógicas: a tradicional, a renovada progressista, a renovada não-diretiva e a tecnicista. Na tendência tradicional é realçado o ensino humanista e universalista. Acredita-se que a trans- missão dos conteúdos por parte do professor, autori- dade máxima e inquestionável no processo de ensino- -aprendizagem, levará o educando a desenvolver suas potencialidades e se realizar plenamente como pessoa. O que se constata, nessa concepção pedagógica, é a existência, na maior parte das situações, de um abismo separando a realidade do discente, individual e coleti- vamente, e o que se ministra em sala de aula. Outro elemento extremamente valorizado nessa tendência liberal tradicional é o da disciplina e do esforço. Como o que predomina é a autoridade do professor, cabe a ele manter a ordem em sala de aula, exigindo dos alunos uma atividade receptiva constante, mesmo que sob ameaças e imposição de casti- gos (LIBÂNEO, 1994, p. 24). As tendências renovadas, seja a progressista ou a não-diretiva, continuam a valorizar um saber universal como forma de realização do indivíduo e de sua ade- quada inserção no mundo social. À escola é atribuída a tarefa de preparar indivíduos plenos e competentes para o desempenho de funções sociais. Faz-se necessário destacar que o aparecimento dessas tendências renovadas acompanha um estágio de desenvolvimento de pesquisas acerca da psicolo- gia infantil e da psicologia evolutiva8. Novas teorias e técnicas experimentais possibilitaram um crescimento sensível no que concerne ao conhecimento de como as atividades cognitivas se processam na vida dos indiví- duos ao longo de seu crescimento pessoal e social. As teorias desenvolvimentistas da cognição cola- boram na explicação de uma passagem radical da cen- 8 Os trabalhos desenvolvidos pelo psicólogo suíço Jean Piaget (1896-1980) e do também psicólogo bielo-russo Lev S. Vygotsky (1896-1934) foram decisivos nessa área do conhecimento. Piaget desenvolveu a chamada Epistemologia genética ou, como é mais conhecida, a teoria construtivista do conhecimento. Por sua vez, Vygotsky acentua em suas análises o papel que a linguagem possui no processo de desenvolvimento cognitivo do indivíduo. Recomenda-se o aprofundamento do estudo desses autores para uma compreensão mais apurada dos fundamentos e teorias relacionadas às tendências pedagógicas liberais renovadas. tralidade da figura do professor, como observado na tendência liberal tradicional, para a figura da criança, do sujeito aprendente, constituindo uma espécie de paidocentrismo9. Como o aprendiz ganha papel cen- tral e ativo na aprendizagem, issotambém alterou substancialmente a própria configuração da sala de aula, transformando-a em sala de “reunião”, de pes- quisa e de intercâmbio interpessoal. A tendência liberal tecnicista, muito próxima de nosso contexto histórico-social, especialmente porque foi implantada no Brasil no final dos anos 60 do século XX e, oficializada pela Lei n. 5.692/71, acompanha o desenvolvimento do sistema capitalista de produção. Sem dúvida, essa visão tecnicista da educação foi a mais explícita no sentido do alcance dos ideais liberais apresentados anteriormente. A principal meta e papel da escola, nessa pers- pectiva, é a preparação do indivíduo para o mercado de trabalho, isto é, educar é habilitar o aluno para o desempenho, de maneira eficaz, de técnicas e proce- dimentos para a produção de bens e serviços. Como afirma Luckesi, a sociedade industrial e tecnoló- gica estabelece (cientificamente) as metas econômicas, sociais e polí- ticas, a educação treina (também cientificamente) nos alunos os comportamentos de ajustamento a essas metas (1994, p. 56). Caberia, portanto, aos educadores e educandos, a execução e recepção de projetos elaborados de forma arbitrária e sem qualquer vínculo com o contexto social a que se destinavam. A escola seria um anexo da fábrica. Frisando a necessidade de aprofundamento das características dessas tendências, bem como da influên- cia que elas continuam a exercer na atividade docente contemporânea, ressaltando que elas não são exclusi- vas e se encontram na maior parte das vezes presen- tes de forma concomitante, o que pode obscurecer a percepção delas nas práticas pedagógicas efetivamente estabelecidas e vivenciadas em sala de aula, passar-se-á a apresentação de outro grupo de tendências presentes 9 O paidocentrismo e seus excessos, advindo das chamadas tendências reno- vadas e, ainda, encontrado em muitos métodos de ensino no Brasil, foi duramente criticado por pedagogos e filósofos da educação. O educador Paulo Freire, por exemplo, via com reservas essa postura, ou seja, a do aluno como centro exclusivo do processo de ensino-aprendizagem. Para ele a direção educativa (não se trata da perpetuação de posturas autoritárias) não pode ser renunciada em face de um autodeterminismo do estudante. Fundamentos Filosóficos e Pedagógicos do Ensino Superior 9Faculdade Educacional da Lapa - FAEL na pedagogia brasileira. São as tendências progressis- tas. O progressismo dessas posturas pedagógicas é verificado na convicção que elas possuem naquilo que seria a finalidade principal da educação, isto é, a transformação da realidade social e dos atores sociais envolvidos no processo de ensino-aprendizagem. Essa práxis transformadora, oriunda da educação, especial- mente a desenvolvida no Ensino Superior, foco dessas considerações, rejeita de forma contundente um modelo de universidade que não exercita a criatividade, não identifica nem analisa problemas concretos a serem estudados, que não incentiva o hábito do estudo crítico [...]. Não queremos uma universidade desvinculada, alheia à realidade onde está plantada, sim- plesmente como um parasita ou um quisto (LUCKESI et al., 1998, p. 39). No cenário da educação brasileira, três são as ten- dências progressistas: a libertadora, a libertária e a crí- tico-social dos conteúdos. De maneira geral as tendências libertadora10 e libertária possuem em comum o antiautoritarismo, a valorização da experiência vivida como base da relação educativa e a ideia de autogestão pedagógica. O ensino não formal é extremamente valorizado, surgindo daí toda uma reflexão acerca dos conteúdos de ensino a serem ofertados, dos métodos de ensino utilizados, bem como da relação entre docentes e discentes. O papel político dessas tendências é explicitado em todas as suas manifestações. Isso faz com que ocor- ram dificuldades de implantação, em termos sistemá- ticos, nas instituições oficiais de ensino. O que acaba acontecendo na prática é a aplicação de alguns de seus pressupostos por numerosos educadores. Ficam explícitas, nessas tendências pedagógicas, as críticas feitas ao modelo de educação implantado sob o viés ideológico do capitalismo liberal, sobretudo em sua versão atual, ou seja, neoliberal. A importância de um conhecimento vinculado à realidade social e, por isso, capaz de fomentar transformações nas formas como todo o sistema de vida está organizado é eviden- ciada nesta reflexão de Frigotto, Neste sentido, no plano da luta contra-hegemônica, as organiza- 10 A concepção libertadora também é conhecida como pedagogia Paulo Freire. Ressalta-se que essa pedagogia foi implantada, com sucesso, em outros países da América Latina e da África. ções políticas e sindicais que se arti- culam com os interesses de classe trabalhadora necessitam entender, cada vez mais, que o conhecimento científico e a informação crítica são algo fundamental para suas lutas. O senso comum e a opinião (doxa) ou a experiência acumulada por longo tempo da prática (sofia), são elementos importantes, mas insufi- cientes. A nova realidade histórica demanda conhecimentos calcados na episteme – conhecimento crí- tico (1998, p. 105). Uma terceira tendência progressista verificada nas práticas docentes é a crítico-social dos conteúdos. Uma de suas premissas fundamentais é a valorização das ações pedagógicas enquanto, verdadeiramente, inseridas na prática social concreta. Isso significa, por exemplo, que aquilo que é ministrado enquanto con- teúdo na sala de aula deve encontrar vida nas reali- dades sociais de onde advêm os ingressos no sistema escolar. Essa visão é explicada por Libâneo, para quem, em síntese, a atuação da escola consiste na preparação do aluno para o mundo adulto e suas contradições, fornecendo-lhe um instrumental por meio da aquisição de conteúdos e da socialização, para uma participação organizada e ativa na democratização da sociedade (1994, p. 39). Após essa suscinta apresentação fica evidente que cada educador terá no exercício de suas atividades pedagógicas traços desta ou daquela tendência, sendo equivocado o entendimento de um purismo ideológi- co-metodológico. O que se mostra com maior grau de importância é a percepção de que a prática pedagógica está sujeita aos condicionamentos da ordem social que sugere múltiplas concepções de ser humano e de socie- dade e, por consequência, de diferentes fundamentos e pressupostos sobre o papel da escola, no caso especí- fico dessa argumentação, da universidade e dos proces- sos de ensino-aprendizagem aí vivenciados. 4 PROCESSO FORMATIVO NA EDUCAÇÃO SUPERIOR: O FUNDAMENTO DA PESQUISA A tradição cultural brasileira pri- vilegia a condição da universidade como lugar de ensino, entendido e sobretudo praticado como trans- Faculdade Educacional da Lapa - FAEL 10 missão de conhecimentos. Mas apesar da importância dessa fun- ção, em nenhuma circunstância pode-se deixar de entender a uni- versidade igualmente como lugar priorizado da produção do conhe- cimento e, consequentemente, como lugar da pesquisa (SEVE- RINO, 2009, [s. p.]). O entendimento da universidade como lugar pri- vilegiado da pesquisa aponta para um elemento fun- damental do Ensino Superior, ou seja, o alcance e a natureza dessa fase educacional. Longe de querer per- petuar uma indevida e equivocada separação/confron- tação entre educação básica e educação superior, como se uma fosse prioridade e outra não, até porque como indica Demo, “uma postura mais equilibrada veria, primeiro, o todo e, somente a seguir, destacaria possí- veis realces em cada parte” (1996, p. 101), é necessário conceber a educação na sua complexidade, isto é, no todo que se manifesta de forma única em cada uma de suas partes e que somando-se possibilitam uma forma- çãoautêntica, produtiva e flexível. O espaço da universidade caracteriza-se por ser pesquisante. Conforme Severino, “na universidade, ensino, pesquisa e extensão efetivamente se articulam, mas a partir da pesquisa, ou seja, só se aprende, só se ensina pesquisando” e, ainda, O professor precisa da prática da pesquisa para ensinar eficazmente; o aluno precisa dela para apren- der eficaz e significativamente; a comunidade precisa da pesquisa para poder dispor de produtos do conhecimento; e a universidade precisa da pesquisa para ser media- dora da educação (SEVERINO, 2009, [s. p.]). Dessa epistemologia da pesquisa nasce uma ciên- cia comprometida com a transformação da realidade em função da melhoria da qualidade de vida da maio- ria da população, isto é, uma ciência engajada com projetos emancipadores da sociedade. Essa é a essência da pedagogia universitária, o fun- damento sem o qual se descaracteriza o Ensino Supe- rior. O ensino e a aprendizagem só serão motivadores se seu processo se der como processo de pesquisa. E qual seria então o telos da ação docente nesse contexto de ensino como atividade de pesquisa? O professor Pedro Demo, analisando as características do professor pesquisador, destaca a) ocupar espaço científico próprio, no qual rea- liza produção original e aparece como pala- dino de teorias e práticas; significa ter projeto próprio, uma história de evolução constante, nome construído pelo mérito reconhecido; e, b) orientar alunos a construir conhecimento com qualidade formal e política, atingindo aí o sentido educativo da pesquisa; significa capacidade de agir como motivador central do processo formativo do aluno, colaborando na arquitetura de sua emancipação (DEMO, 1996, p. 104). 5 EXCELÊNCIA E COMPETÊNCIA PROFISSIONAL NA AÇÃO DOCENTE Apresentar um profissional competente é situá-lo no caminho contínuo da busca da excelência. Apre- sentar um professor excelente é situá-lo dentro de um contexto de competências, em que a da pesquisa cons- tante é o fator que mais se destaca. E que outras com- petências o professor deve desenvolver e possuir para alcançar a excelência (entendida como o que supera o comum, o realizado ordinariamente) de sua prática profissional? O trinômio excelência, competência e qualidade11 constitui algo de natureza insubstituível para qualquer empreendimento e, na educação superior, tais noções adquirem um valor ainda maior. Como visto anteriormente, o desenvolvimento de novas competências e habilidades é preconizado na legis- lação educacional brasileira. Todavia, essas expressões (competências e habilidades) viraram uma espécie de modismo, de lugar-comum, chavões esvaziados de sen- tido em muitos discursos pretensamente pedagógicos. A banalização desses conceitos, assim como do ensino como pesquisa, gera lacunas sensíveis e perigo- sas na formação universitária e, consequentemente, na prática profissional dos acadêmicos, sobretudo, os que se preparam para a docência. Resgatar a riqueza con- ceitual dessas expressões também é ação primordial do educador e da educadora. 11 Segundo Juliatto, em A universidade em busca da excelência: um estudo sobre a qualidade da educação, o conceito de qualidade está em franca mudança. Para o autor “a qualidade deve, então, ser definida em consonância e coerência com certa escala de valores, objetivos e exigências da sociedade em dado tempo e lugar. Cumpre estabelecer claramente que o conceito de qualidade da educação passou de uma visão estática e burocrática para outra, crítica, dinâmica, de engenharia progressiva e pronta para reagir às reivindicações da sociedade” (2005, p. 50). Fundamentos Filosóficos e Pedagógicos do Ensino Superior 11Faculdade Educacional da Lapa - FAEL O próprio termo competência é polissêmico e engendra uma multiplicidade de entendimentos, esquemas e diferenciações. No que tange ao universo da docência a celeuma pode ser ainda maior, sendo que, dado a natureza didática deste artigo, julgou-se ser mais adequado escolher uma linha de reflexão acerca da noção de competência. Para tanto, são importan- tes as considerações de Paiva, para quem competência profissional deve ser entendida como Mobilização de forma particular pelo profissional na sua ação pro- dutiva de um conjunto de saberes de natureza diferenciados (que for- mam as competências intelectual, técnico-funcionais, comportamen- tais, éticas e políticas) de maneira a gerar resultados reconhecidos indi- vidual (pessoal), coletiva (profissio- nal) e socialmente (comunitário). Concebe-se, então, competência profissional como a metarreunião de maneira singular e produtiva de competências compostas por sabe- res variados (PAIVA, 2007, p. 45). No que diz respeito ao conjunto de habilidades e competências do docente do Ensino Superior, a pro- blemática e os desafios são ainda maiores. De fato, para muitos autores, existe uma acentuada dificuldade em definir competência do ponto de vista pedagó- gico. Para Cunha apud Paiva, por exemplo, o conceito de competência docente é muito mais uma “ideação de um papel socialmente localizado no tempo e no espaço” (2007, p. 47). Em outros termos, mesmo que de forma não expressa, há uma concepção de professor competente feita pela sociedade e, mais precisamente, pela comuni- dade escolar. Ela é fruto do jogo de expectativas e das práticas que se aceita como melhores para a escola do nosso tempo (PAIVA, 2007, p. 47). O trinômio excelência, competência e qualidade constitui algo de natureza insubstituível para qualquer empreendimento. De qualquer modo, parece ser unânime entre os filósofos da educação que o desenvolvimento contí- nuo do educador se constitui como a mais importante das competências pedagógicas. Essa constante forma- ção permite ao docente desenvolver saberes que con- templem a docência em si (dominar conteúdos, acom- panhar alunos, trabalhar valores, etc.), a atuação na organização e na gestão da escola (participação efetiva em reuniões e conselhos, cooperação, solidariedade, respeito mútuo, diálogo, etc.) e a produção de conhe- cimento pedagógico (elaboração e desenvolvimento de projetos de investigação). Conforme Grillo apud Paiva, existe uma singularidade da situação de ensino O cotidiano da sala de aula é sempre instável e exige do professor a rein- terpretação de cada situação pro- blemática em decorrência do con- fronto desta com outra experiência já vivida, a qual nunca se repete. As condições de ensino mudam dia a dia e não existe segurança do que dá “certo”. Nesta perspectiva, o pro- fessor necessita ser um pesquisador que questiona o seu pensamento e sua prática, age reflexivamente no ambiente dinâmico, toma decisões e cria respostas mais adequadas por- que construídas na própria situação concreta (2007, p. 48). Para o sociólogo Philippe Perrenoud, em sua obra Dez novas competências para ensinar, dez seriam os gru- pos de competências necessárias para um ensinar efi- caz, a saber, I. organizar e dirigir situações de aprendizagem; II. administrar a progressão das aprendizagens; III. conceber e fazer evoluir os dispositivos de diferenciação; IV. envolver os alunos em suas aprendizagens e em seu trabalho; V. trabalhar em equipe; VI. participar da administração da escola; VII. informar e envolver os pais; VIII.utilizar novas tecnologias; IX. enfrentar os deveres e os dilemas éticos da profissão; X. administrar sua própria formação contínua (PERRENOUD, 2000, p. 14). Deve-se salientar, segundo Perrenoud, que essas competências, quando desenvolvidas e executadas, não contemplam todas as relações que se estabelecem Faculdade Educacional da Lapa - FAEL 12 em sala de aula, sendo por isso mesmo, como mencio- nado anteriormente, fundamental o constanteaperfei- çoamento do educador e da educadora. Portanto, destacam-se, ou reforçam-se, mais duas competências a serem efetivadas na prática pedagó- gica dos docentes do ensino universitário12. Trata-se da competência da criatividade e da competência da utilização das novas tecnologias no processo de ensi- no-aprendizagem. Sobre essa primeira é necessário refletir acerca do tratamento que sempre foi destinado na universi- dade aos processos criativos dos acadêmicos. Consta- ta-se que universidades estão produzindo um grande número de graduados, porém, a maioria deles trei- nados simplesmente para aplicar o já conhecido de maneira convencional. Como afirma Rosas, “é no ter- ceiro grau onde menos se fala e pensa em criatividade” (1985, p. 122). Castanho, considerando sobre essa temática e as práticas adotadas em muitas das nossas instituições de ensino superior, destaca: Podemos afirmar que nossas facul- dades são, no geral, pouco ou nada criativas. Desenvolver a criativi- dade parece ser um objetivo tão simples e é uma das características mais raras de se encontrar na maio- ria de nossos jovens, educados para a atitude conformista e homogênea que os sistemas escolares os conde- nam (2000, p. 77). Estabelecer espaços fomentadores da criatividade é, portanto, fundamental para se alcançar a excelência e qualidade da educação superior. Isso pode ser alcan- çado através de atividades mais flexíveis no que diz res- peito à produção do conhecimento, com o incentivo à participação dos acadêmicos em trabalhos e pesquisas científicas, manifestações artístico-culturais, incen- tivo e respeito a formas alternativas de se expressar e produzir ciência, com o envolvimento mais próximo e humanizado do docente em relação ao aluno e seu universo, com a apresentação de planos de ensino mais flexíveis e que contemplem essas vias de desenvolvi- mento da criatividade, bem como, com atividades que levem à reflexão e a criticidade das próprias atividades e da realidade social onde se está inserido. Como destacado por Perrenoud, a utilização das novas tecnologias é uma das competências a serem 12 Fala-se em práticas pedagógicas do docente universitário em função dos objetivos deste artigo, o que não significa em hipótese alguma que essas competên- cias sejam exclusivas dessa fase escolar. Pelo contrário, tais competências devem estar presentes em todos os níveis da formação. desenvolvidas pelo docente contemporâneo. De fato, vive-se num mundo altamente marcado pela utiliza- ção da tecnologia, especialmente as da informação. Fechar os olhos a essa realidade é abrir espaço para procedimentos obsoletos e desajustados a uma sempre nova realidade profissional e social. Da mesma forma é fundamental evitar uma pos- tura acrítica frente a essas novas tecnologias. Uma pos- tura de subserviência é tão nefasta quanto a rejeição radical das possibilidades que essas novas ferramentas tecnológicas possibilitam para uma educação de qua- lidade. As novas tecnologias têm um grande potencial para trazer significativas mudanças para a educação. Entretanto, percebe-se que o paradigma da educação tradicional tem preponderado em grande número de instituições de ensino. Na verdade, o que se verifica é o disfarce das velhas práticas pedagógicas encapsuladas em mídias eletrônicas sofisticadas. Isso com certeza não é elemento positivo e colaborativo no sentido de se melhorar a qualidade do ensino. Portanto, não basta introduzir tecnologias, é fundamental, sobretudo na modalidade do Ensino a Distância13, preparar alunos e docentes para saber utilizá-las de forma eficaz e competente, atendendo aos objetivos encontrados no plano de ensino de cada área, respeitando suas especificidades. 6 FUNDAMENTOS FILOSÓFICOS DA EDUCAÇÃO SUPERIOR Da mesma maneira que é determinante para o exercício com excelência da atividade docente que se reconheçam, até porque assim é possível pensar em mudança dos mesmos quando necessário, os princí- pios e teorias pedagógicas que orientam os trabalhos de educadores e educadoras do Ensino Superior, é imprescindível identificar e analisar quais são os fun- damentos filosóficos que subsidiam a forma com que se enxerga a educação, suas finalidades e importância dentro de uma sociedade. Sem dúvida, das concepções de homem, de cul- tura, de vida, de universo, é que surgem os posiciona- mentos adotados pelos diversos atores sociais na con- cretude de sua existência pessoal e social. Da filosofia, 13 No Ensino a Distância, a utilização de tecnologias é preponderante, o que não significa, necessariamente, que elas por si só mudarão concepções e métodos de ensino e aprendizagem. Essas tecnologias devem levar o melhor das práticas de ensino e não simplesmente reproduzir o pior, os vícios e as deficiências do método tradicional de ensino. Fundamentos Filosóficos e Pedagógicos do Ensino Superior 13Faculdade Educacional da Lapa - FAEL no caso específico dos interesses desta análise, de uma filosofia da educação, emergem respostas e possibi- lidades reflexivas para aquelas indagações acerca do futuro da educação brasileira, relembrando-as: qual universidade se pretende construir? Que docente/ discente será formado nesse ambiente cultural/insti- tucional? Que perspectivas de futuro são vislumbra- das para o Ensino Superior? As próprias concepções pedagógicas apresentadas revelam de forma singular e em grau de diferenciação entre si, uma visão de mundo, um posicionamento filosófico perante os fatores determinantes no que con- cerne ao futuro que se pretende para um grupo social, especialmente no caso de seu desenvolvimento cultu- ral. Assim, tendências e posturas pedagógicas, liberais ou progressistas, engendram dentro de sua constitui- ção epistemológica e axiológica, uma visão filosófica, um modo particular de pensar e fazer a educação. O ambiente escolar não está fora da real idade social e, consequentemente, não é concebível pen- sar a educação como um elemento dissociado dos demais componentes da vida e da cultura de um grupo humano. A educação não é neutra, apolítica, pelo contrário, ela é fator de mudança e/ou conserva- ção de estruturas sociais, dependendo, evidentemente, de suas orientações e posicionamentos ideológicos. A educação se perde quando é praticada sem consciên- cia de sua historicidade e dentro de uma pedagogia alienada, distante da experiência com o real. Portanto, sempre haverá dentro do processo de ensino-aprendi- zagem um tópos filosófico, uma postura pedagógica e política decorrente da maneira como cada sujeito concebe a educação e suas finalidades sociais. Para Luckesi, a educação é uma instância dialética que serve a um projeto, a um ideal de sociedade, “ela medeia esse projeto, ou seja, trabalha para realizar esse projeto na prática. Assim, se o projeto for conservador, medeia a conservação; contudo, se o projeto for transformador, medeia a transformação” (1994, p. 48). O mapeamento e apresentação de todos os fun- damentos filosóficos da educação universitária é tarefa extremamente complexa e não se constitui como meta dessas considerações. Na verdade, em tudo o que já foi analisado nesse texto, é notória a presença de uma fun- damentação filosófica. O contrário seria inconcebível e manifestaria uma visão equivocada acerca dos funda- mentos da educação e da cultura. Uma visão simplista e reducionista não contribui em nada para um exercí- cio mais competente da ação pedagógica. Por isso mesmo, almejando uma didaticidade e clareza necessárias, serão destacados alguns daqueles que podem ser considerados os fundamentos filosó- ficos do Ensino Superior, a saber: a competência da reflexão filosófica e seu papel na formação de educa- dores e acadêmicos mais críticos e conscientes de sua condição de produtores de cultura e das consequênciasque esses saberes culturais tem sobre o tecido social onde se inserem; a necessidade de um pensamento complexo em relação aos fins da educação e suas mani- festações na sociedade, buscando a superação de um paradigma tradicional, cujos pressupostos principais são a simplicidade, a objetividade e a estabilidade; e o necessário desenvolvimento de uma razão aberta ao diálogo, de uma razão comunicativa, que por sua vez, substitua uma razão instrumental tão presente no modo moderno de se produzir ciência. A educação em todas as culturas e sociedades sem- pre visou o homem e sua forma de viver coletivamente. Pode-se afirmar que da relação intrínseca entre educa- ção e filosofia é que emergem as concepções pedagó- gicas que norteiam, cada uma a seu modo e dentro de sua ideologia, as práticas educacionais presentes no cotidiano da escola e da universidade. A reflexão filo- sófica acerca dos fundamentos da educação apresen- ta-se, portanto, como uma das competências a serem desenvolvidas pelos educadores compromissados com um desenvolvimento pleno das potencialidades que a educação tem sobre o modo de ser e agir do homem. Mas como deve ser entendida essa reflexão? Em que sentido uma reflexão de fato se torna filosófica? Como desenvolver essa competência? Como utilizá-la de forma adequada no contexto, sempre dinâmico e inédito, da sala de aula? A palavra reflexão vem do verbo latino “reflectere” que significa “voltar atrás”. Entende-se reflexão como um repensar, como “um pensamento consciente de si mesmo, capaz de se avaliar, de verificar o grau de adequação que mantém com os dados objetivos, de medir-se com o real” (SAVIANI, 1996, p. 16). Quem reflete busca, de maneira incessante, os significados do já pensado, analisa com paciência e cuidado os dados do próprio pensamento, retoma e reconsidera o que, em um primeiro impulso da mente, era tido como a realidade, a verdade. No Dicionário de Filosofia, de Nicola Abbagnano, verifica-se que de maneira geral existe um entendi- mento de reflexão como “ato ou processo por meio do qual o homem considera suas próprias ações” (1998, Faculdade Educacional da Lapa - FAEL 14 p. 837). Trata-se, portanto, de uma atividade perti- nente ao gênero humano, em que se conclui que o homem ao refletir se dobra sobre suas ideias, exami- na-as, modifica-as, combina-as de maneiras diferentes, altera sua consciência e ciência do que o cerca. A refle- xão é, de forma inequívoca, o fundamento do conhe- cimento científico-filosófico. Todavia, nem todo pensamento é reflexivo, assim como nem toda reflexão se caracteriza como filosó- fica. Pensar que todos os processos reflexivos podem ser caracterizados como filosóficos, no plano das rela- ções estabelecidas no entorno da educação e das suas modalidades – Ensino Fundamental, Ensino Médio e Ensino Superior –, é correr o risco de banalizar o pró- prio entendimento da filosofia e, no caso específico, de uma filosofia da educação. É necessário entender a filosofia como “uma forma de conhecimento pela qual o ser humano toma consciência de si, do sentido da sua história, do significado do projeto do futuro” (LUCKESI et al.,1998, p. 66). Também a ação consciente e reflexiva exige sem- pre do sujeito cognoscente o estabelecimento de pres- supostos. Esses, por sua vez, estarão agindo sobre a realidade multifacetada desse indivíduo, ou seja, serão pressupostos filosóficos, políticos, científicos, eco- nômicos, psicológicos, pedagógicos, etc., dos quais dependerá a visão de mundo que se terá, bem como, sua capacidade de reflexão sobre o detectado. Quais são, portanto, dentro da discussão estabelecida nesta análise, os pressupostos que movem os educadores na busca da excelência de suas práticas didáticas? Na construção da universidade do futuro, quais são os pressupostos filosófico-pedagógicos a embasar e soli- dificar essa tarefa? Que papel é reservado à reflexão filosófica no espaço universitário? Nem todo pensamento é reflexivo, assim como nem toda reflexão se caracteriza como filosófica. A reflexão filosófica, diferentemente de outras formas estabelecidas nos demais campos do saber, possui algumas condições e características que a qua- lificam dessa forma. Essa adjetivação decorre funda- mentalmente de três requisitos, a saber: a radicalidade, o rigor e a globalidade. Esses elementos constituintes da reflexão filosófica são apresentados por Saviani da seguinte maneira: Radical: em primeiro lugar, exi- ge-se que o problema seja colo- cado em termos radicais, enten- dida a palavra radical no seu sentido mais próprio e imediato. Quer dizer, é preciso que se vá até as raízes da questão, até seus fun- damentos. Em outras palavras, exige-se que se opere uma refle- xão em profundidade. Rigorosa: em segundo e como que para garantir a primeira exigência, deve-se proceder com rigor, ou seja, sistematicamente, segundo méto- dos determinados, colocando-se em questão as conclusões da sabe- doria popular e as generalizações que a ciência pode ensejar. De Conjunto: em terceiro lugar, o problema não pode ser examinado de modo parcial, mas numa pers- pectiva de conjunto, relacionando- -se o aspecto em questão com os demais aspectos do contexto em que está inserido (1996, p. 17). Essas categorias não se mostram autossuficientes e nem sempre são facilmente percebidas no cotidiano das atividades humanas. No caso da universidade, a problemática pode ser ainda mais grave, sobretudo, porque nem sempre existe por parte de dirigentes, educadores e acadêmicos o hábito, a disposição de refletir em profundidade, com rigor e sistematica- mente. É notória na tradição da educação brasileira, fruto de uma epistemologia assentada sobre outros fundamentos, tais como uma lógica da disjunção em que um elemento investigado sempre é separado do outro, como se a concomitância dos mesmos fosse uma heresia gnosiológica, algo do tipo “ou/ou”14, de onde decorrem operações como as de análise e síntese, frutos do modelo cartesiano/mecanicista de se produ- zir conhecimento; o que obviamente dificulta a obser- vância dos fenômenos investigados na sua totalidade. No caso da educação superior, isso gera consequ- ências que dificultam a suplantação dos problemas his- tóricos do sistema de ensino. Por exemplo, não é difí- cil de ser percebido os altos índices de desistência ao longo do processo formativo de graduação nas univer- sidades e faculdades brasileiras. Tal fenômeno, longe 14 Essa concepção está de acordo com aquilo que praticou (pratica-se em alguns ambientes e ramos do saber) de princípios da lógica formal de Aristóteles. Destaca-se aqui o princípio da não contradição, cuja configuração pode ser apre- sentada da seguinte forma: “algo não pode ser e deixar de ser ao mesmo tempo e sobre o mesmo aspecto”. Ressalta-se que na modernidade se desenvolveu outras formas de compreensão da lógica e de seus pressupostos, tais como a lógica dialé- tica hegeliana. Fundamentos Filosóficos e Pedagógicos do Ensino Superior 15Faculdade Educacional da Lapa - FAEL de ter uma explicação/causalidade unívoca, decorre, entre outros fatores, da falta de estrutura desses cursos, da necessidade do acadêmico em trabalhar para poder garantir condições mínimas de subsistência, o que cer- tamente prejudica seu desempenho escolar, de propos- tas inadequadas e desmotivadoras de ensino, da ausên- cia de políticas públicas de inserção desse estudante no mundo do trabalho, das altas mensalidades praticadas no sistema privado de ensino, etc. A pretensão, por- tanto, de analisar o problema da desistência ao longo dos cursos, de maneira sintética e elegendo apenas um fator como ele se fosse a causa do mesmo, mostra-se inadequada, equivocada e, sem dúvida, perpetuadora da problemática. Assim, o desenvolvimento da reflexãofilosófica (radical, rigorosa e de conjunto) é fundamental no processo formativo e pedagógico de educadores e educadoras. Se, como apresentado anteriormente, a universidade é o lugar privilegiado da pesquisa, constituindo-se como sua característica fundamen- tal, também deve ser ambiente de profunda reflexão, onde a ciência e a tecnologia são entendidas como fenômenos sociais e, por isso mesmo, explicitações singulares de todos os elementos constituintes da cultura de um povo. O pensamento complexo é outro fundamento filosófico da educação superior atual. Mas o que é pen- samento complexo? O que é complexidade? Que rela- ção a complexidade possui com o ensino universitário, seus atores sociais e sua produção de conhecimento? Normalmente, ao se deparar com a expressão complexo/complexidade o indivíduo é levado a ima- ginar algo de natureza difícil, hermética. Nos dicioná- rios da língua portuguesa, usados por grande parte da população, o verbete complexo tem como um de seus sinônimos a ideia de algo complicado. No entanto, não é isso a que será referido, neste texto, quando se mencionar a complexidade, pelo contrário, seria um contrassenso entender e encerrar a riqueza desse conceito e fato da vida numa querela meramente semântica. Essas dificuldades de compreensão acerca do pen- samento complexo por parte da sociedade e também de muitos intelectuais em diferentes campos do saber são apontadas por Edgar Morin15 no artigo “Comple- xidade e ética da solidariedade”. Para ele, 15 O nome de Edgar Morin está vinculado ao desenvolvimento/ entendimento de um novo paradigma de ciência. Normalmente, esse paradigma é conhecido como paradigma da complexidade, paradigma sistêmico, paradigma holístico, paradigma Utilizamos frequentemente a palavra complexidade, mas somos incapazes de separar e rejun- tar os elementos dos quais esta- mos falando. Não conseguimos encontrar uma explicação e uma definição. É por isso que a p ala- vra complexidade torna-se uma palavra vazia, que tapa buracos” (MORIN, 1997, p. 15). Destaca-se ainda, acompanhando o entendi- mento do autor, que a sociedade fica como que per- plexa e desarmada perante a discussão da comple- xidade e seus efeitos no cotidiano das pessoas, em função, sobretudo, do modelo educacional e cultural que vem sendo imposto à boa parcela da população mundial nos últimos quatro séculos16. Nossa educação nos ensinou a separar e isolar as coisas. Separa- mos os objetos de seus contextos, separamos a realidade em discipli- nas compartimentadas umas das outras. Mas, como a realidade é feita de laços e interações, nosso conhecimento é incapaz de perce- ber o complexus – o tecido que junta o todo. Ao mesmo tempo, nosso sistema de educação nos ensinou, a saber: as coisas deterministas, que obedecem a uma lógica mecânica; coisas das quais podemos falar com muita clareza e que permitem, evi- dentemente, a previsão e a predição (MORIN, 1997, p. 15). Para o filósofo francês, complexidade “refere-se a um conjunto, cujos constituintes heterogêneos estão inseparavelmente associados e integrados, sendo ao mesmo tempo uno e múltiplo” (MORIN apud VAS- CONCELLOS, 2002, p. 110). A complexidade se apresenta como algo que transcende um mero con- ceito teórico, ela se manifesta como um fato da vida e, por isso, alcança todas as suas esferas, a biológica, emergente. Embora existam muitas obras de Morin que tratem dessa temática, por exemplo, Ciência com consciência, é na obra publicada em 1990, Introdução ao pensamento complexo, que se encontram as bases conceituais de seu posiciona- mento teórico. Todavia, não se pode atribuir a Morin a descoberta da palavra “com- plexidade”, sendo mais correto identificar em Gaston Bachelard (O novo espírito científico) as primeiras referências a essa expressão. 16 Em termos científicos e filosóficos, a modernidade, especialmente após a Revolução Científica do século XVII, é marcada por pressupostos teóricos da filo- sofia mecanicista de Galileu e Descartes, assim como pelos postulados da física newtoniana. Para alguns autores como Maria José Esteves de Vasconcellos, em Pensamento sistêmico: o novo paradigma da ciência, esses pressupostos podem ser identificados no trinômio: simplicidade, objetividade e estabilidade. Ressalta-se que esses elementos estariam presentes em todos os fenômenos naturais e sociais, o que permitiria entendê-los como os últimos parâmetros no que se refere à com- preensão racional dos referidos fenômenos. Faculdade Educacional da Lapa - FAEL 16 a social e a mental. A experiência humana é um todo bio-psico-social que não pode, portanto, ser dividido em partes nem reduzido a nenhuma delas. Isso é o pensar complexo. Do ponto de vista pedagógico, apesar de parecer o contrário, a complexidade sempre foi praticada, ainda que de maneira assistemática e deficitária, por parte de alguns educadores. Por exemplo, todas as vezes que o docente busca contextualizar a temática de uma aula com os demais assuntos trabalhados ou que virão a ser desenvolvidos, ele está pensando o processo de ensi- no-aprendizagem de forma sistêmica, complexa. Da mesma forma isso ocorre quando ele evita pensar sua participação nesse processo como o de responsável por uma disciplina estanque e separada das demais. Evitar essa compartimentação do saber, a fragmentação do conhecimento científico, é fundamental no sentido de desenvolver um conhecimento contextualizado, repleto de significado para o discente. Contextualizar é, portanto, reali- zar operações lógicas contrárias às de disjunção e redução, contrárias às operações de simplificação que produzem uma simplicidade ato- mizada. As operações lógicas que constituem esse movimento con- trário à disjunção e à redução são as de distinção e conjunção, que permitirão ver uma complexidade organizada (VASCONCELLOS, 2002, p. 113). Em termos didáticos essas lógicas podem ser verificadas em situações concretas do fazer aula. Por exemplo, ao se pensar de forma disjuntiva usamos a lógica do “ou/ou”, isto é, ou esse conteúdo ou outro, ou essa metodologia ou outra, ou essa forma de avaliar ou outra, ou minha disciplina ou aquela outra, e assim por diante. A complexidade na educação sugere pen- sar de forma conjuntiva. Essa metodologia e a outra também, essa forma avaliativa e outra que se mostrar necessária e adequada à realidade do aluno também, etc. Substitui-se o “ou/ou” por um “e/e”, produtivo e democrático. Assim sendo, é possível pensar num novo papel e perfil do professor universitário, caracterizado, agora, dentro do fundamento da complexidade e de forma coadunante com a legislação educacional brasileira, como possuidor de duas outras importantes tarefas, a saber: Uma diz respeito à reconstrução de seu próprio perfil enquanto profissional da educação: a morte do sujeito narcisicamente inves- tido de poder é o mínimo que se espera para reformatar-se os espa- ços discursivos do diálogo profes- sor-aluno. Essa tarefa amplia-se numa outra, sem dúvida investida de maior envergadura e desafio. Trata-se de exercitar uma verda- deira aeróbica dos neurônios no sentido de descobrir e descons- truir os imprintings paradigmáticos que impedem novas e ampliadas “sinapses cognitivas” de alunos cada vez mais ávidos em expor suas subjetividades, seus mapas cogniti- vos autobiográficos e de compre- ender o conteúdo das disciplinas científicas pela via da partilha e da coprodução (ALMEIDA, 1997, p. 42). E, da mesma forma que se espera uma nova fun- damentação para as práticas pedagógicas executadas na educação superior, advindas de forma sistêmico-com- plexa de percebê-la, verifica-se mais uma dimensão da atividade docente nesse nível de ensino. Na verdade, é mais correto do ponto de vista epistemológico dizer quese trata da continuidade lógica do pensar a edu- cação como uma atividade de reflexão filosófica e de complexidade. Esse terceiro fundamento filosófico da educação superior que passará a ser apresentado, ressaltando que já foi destacado que muitos outros são os fundamentos existentes nesse nível de ensino e que juntamente a estes aqui analisados subsidiam educadores e educado- ras na busca da excelência de sua ação docente, encon- tra, na crítica feita a um modelo de racionalidade, tido como instrumental e coisificante do homem e dos demais seres, sua gênese. Destacam-se nessa análise as críticas feitas, principalmente, a partir das primeiras décadas do século passado, pelos pensadores ligados à Escola de Frankfurt17. Como analisado anteriormente, a educação é um produto histórico-social. Ela ocorre dentro de uma 17 A Escola de Frankfurt é responsável pela produção da chamada Teoria Crí- tica, que, congregando a partir do início do século XX pensadores com origens intelectuais e influências teóricas distintas, passaram a analisar os efeitos para a humanidade do projeto emancipador da filosofia iluminista. De fato, o pensamento frankfurtiano se consolidou como uma das mais contundentes críticas feitas aos resultados da filosofia da identidade, ou, como eles mesmos identificavam, Teoria Tradicional. Destacam-se nesse trabalho a reflexão filosófica de autores como Max Horkheimer, Theodor Adorno, Herbert Marcuse, Walter Benjamim, Leo Lowenthal, Friedrick Pollock, entre outros. Nas considerações feitas neste artigo serão apresen- tados alguns elementos da teoria de Jurgen Habermas, também conhecida como racionalidade comunicativa / ação comunicativa. Fundamentos Filosóficos e Pedagógicos do Ensino Superior 17Faculdade Educacional da Lapa - FAEL determinada realidade social e, por isso, reproduz, em certa medida, os pressupostos constitutivos da cultura de sua época. No caso da modernidade, pode-se afirmar, por- tanto, que a educação seguiu as matrizes teórico-práti- cas que nortearam o desenvolvimento técnico-cientí- fico desse período e, mais do que isso, uma concepção de homem, de sociedade, de universo, que se instalava como antítese do período anterior, a Idade Média, e pretendia ser o ápice do desenvolvimento da huma- nidade. Não foram poucos os autores modernos que, ao considerarem o papel da ciência no desenvolvimento das potencialidades humanas, acreditaram estar frente ao momento de maior evolução da história da humani- dade. O exemplo de Galileu Galilei é pertinente nesse sentido. Para o cientista italiano a sociedade, livre do obscurantismo da metafísica medieval, encontraria na ciência moderna a descrição verdadeira da realidade. Outro legítimo representante dessa “crença” no poder redentor da educação e da ciência foi João Comênio18, para quem a instrução de crianças e de jovens poderia redimir a sociedade. Todavia, foi no movimento iluminista que se alcançou o ápice da confiança no poder emancipatório da razão. A razão, entenda-se aqui a ciência e a técnica, levaria a sociedade, inevitavelmente, ao progresso, à felicidade e a um desenvolvimento moral e intelectual antes nunca visto na história da humanidade, assim como uma verdadeira liberdade política. O progresso, por meio da utilização dos recursos técnicos, do desenvolvimento científico e da aplicação cada vez maior de investimentos financeiros nessas áreas, tornou-se a meta de todas as sociedades tidas como evoluídas e, consequentemente, a última finali- dade de, praticamente, todos os sistemas educacionais esclarecidos. O conhecimento operacional, pragmá- tico, capaz de subjugar, por intermédio de equações, fórmulas e instrumentos tecnológicos, a natureza, des- mistificando-a e desencantando-a, passou a ser visto como o principal objetivo da educação. Da subjugação e transformação da natureza num imenso laboratório de onde o homem deveria tirar o máximo de recursos para a aplicação dessa mesma lógica nas relações sociais foi um passo relativamente tênue. O desencanto e a desmistificação passaram a 18 Educador do século XVII, autor de diversas obras abordando a temática da educação e o desenvolvimento social, sendo Didática Magna sua obra mais conhe- cida. fazer parte da relação do homem consigo mesmo, com os outros e com os demais seres. Para os intelectuais da Escola de Frankfurt, o projeto emancipatório da filosofia das luzes se trans- formou em uma ideologia, em uma forma de instru- mentalização do homem pelo homem. A razão, que na perspectiva iluminista, era vista como luz e esclareci- mento, na ótica frankfurtiana, teria se obscurecido e se tornado ferramenta nas mãos dos detentores do capi- tal que, por sua vez, controlavam a ciência e a técnica. Eventos como o imperialismo das nações euro- peias, no final do século XIX, sobre o continente afri- cano e asiático, as grandes guerras, a ascensão ao poder de regimes totalitários em governos europeus, como a Alemanha e Itália, a perseguição nazista aos judeus, ciganos, homossexuais, negros, e os horrores dos cam- pos de concentração, bem como as crises decorrentes das formas estratégicas de dominação do poder finan- ceiro, seriam fenômenos decorrentes desse eclipse da razão19, gestado sob a ideologia iluminista. No caso da produção e difusão do conhecimento, foco de nossas análises, esse processo teria alcançado o espaço da educação de formas diversas. Uma des- sas maneiras foi por meio do cientificismo, que pode ser explicado como uma postura, dominante em boa parcela da população, de total e irrestrita confiança na ciência e nos seus discursos. Associado a isso também se verifica a construção de novos mitos, tais como o da neutralidade científica, em que elementos como os interesses econômicos e políticos não estariam pre- sentes e nem determinariam os rumos das pesquisas científicas e suas utilizações. Por intermédio de postu- ras como essas acaba ocorrendo, auxiliada pelos meios de comunicação de massa e da escola e seu papel de reprodutora das ideologias dominantes, sobretudo a do capitalismo liberal, uma espécie de institucionali- zação do progresso técnico e científico. Outro exemplo dessa instrumentalização no sis- tema educacional está na hierarquização dos saberes, em que alguns são tidos como ineficazes e, portanto, destituídos de significância para a formação dos edu- candos, tais como o conhecimento tácito, o conheci- mento religioso, as experiências e tradições culturais transmitidas de forma oral, etc. O próprio conheci- mento filosófico é destituído de importância, mas aqui por outros fatores, como o projeto de alienação e mas- sificação intelectual. O exemplo da legislação educa- 19 Esse termo é emprestado e faz relação com a obra de Max Horkheimer, também intitulada Eclipse da Razão. Horkheimer foi um dos mais importantes repre- sentantes da Teoria da Crítica Social. Faculdade Educacional da Lapa - FAEL 18 cional brasileira durante o período de ditadura militar é clássico, pois sob a influência da tendência pedagó- gica liberal tecnicista se substituiu cursos de filosofia, sociologia, por conteúdos tidos como formadores do patriotismo nacional, isto é, educação moral e cívica, estudos dos problemas brasileiros, entre outros. O que se pode verificar é a existência de uma forma de racionalidade que privilegia ações estraté- gicas de domínio e exploração, de embrutecimento e desumanização. A educação não está imune a isso. Dessa complexa realidade, portanto, advém a necessidade do desenvolvimento de educadores e edu- cadoras, de uma consciência crítica sobre essas dimen- sões da vida moderna. Essa criticidade encontra espaço real de efetivação em uma sólida formação intelectual, no exercício da reflexão filosófica e na consolidação de uma forma sistêmica de se pensar e produzir ciência.O próprio conhecimento filosófico é destituído de importância, mas aqui por outros fatores, como o projeto de alienação e massificação intelectual. As contribuições do filósofo alemão Jürgen Habermas parecem se mostrar adequadas nesse pro- jeto, que também é um projeto educacional. Para Habermas, filósofo ligado a Teoria Crítica desenvol- vida pela Escola de Frankfurt, o projeto iluminista de emancipação do homem por meio da razão está ina- cabado. Todavia, esse projeto deve estar calcado sobre outras bases que não a razão instrumental. Para ele, no lugar de uma razão totalitária e egocêntrica é funda- mental a instalação de uma razão comunicativa ou de uma teoria da ação comunicativa. No entendimento habermasiano, a ação comu- nicativa se caracteriza não apenas pela comunicação bilateral, dialógica, mas, principalmente, pelo objetivo desta ação que visa ao consenso, ao entendimento e à emancipação. A ação comunicativa tem função essen- cialmente libertadora entre os sujeitos que interagem por intermédio da linguagem. Fica explícita na teoria de Habermas que a lin- guagem é determinante para a construção de um novo paradigma de ciência e de uma nova racionalidade. É a linguagem que concretiza a ação comunicativa onde os sujeitos são atores, dotados de capacidade para se relacionar com o mundo objetivo, social e também sub- jetivo. Assim, dois tipos de ação podem ser distintos: o agir instru- mental e o agir comunicativo. O primeiro é dominado pelo sucesso e resultado imediato; o segundo, pelo entendimento. Surgem, então, dois interesses: dominar a natureza por fins instrumentais ou organi- zar relações entre os homens que se conversam e que se entendem (BASTOS, 1997, p. 17). A razão comunicativa de Habermas consiste pri- meiramente na superação de uma forma de pensar estratégico e de dominação, em que as diversas formas de poder, inclui-se aqui o conhecimento, são utilizadas em um processo de reificação e instrumentalização. Em um segundo momento, ela se abre para o pressu- posto da dialogicidade, do entendimento entre falan- tes que querem se fazer entender, em um processo de interação produtiva. No caso da educação superior e das práticas que a mesma encerra no que tange ao processo de ensi- no-aprendizagem, parece ser adequado e enrique- cedor pensar a teoria da ação comunicativa como um de seus fundamentos filosóficos, especialmente porque essa fase da formação escolar do indivíduo, como a LDB estabelece, o prepara para o mundo do trabalho e é nesse mundo que se processam relações sociais que podem ser fomentadoras de um novo espaço social. A atuação da universidade, então, é decisiva para a instauração de novos modelos de ações sociais e pro- fissionais. A educação universitária, na perspectiva da racionalidade comunicativa, além da formação de indivíduos mais críticos e éticos, permite uma quali- ficação profissional não mais calcada em um mundo sociocêntrico e no indivíduo egocêntrico, que sempre constituíram uma sociedade hierarquizada e marcada pela divisão do trabalho, mas em um novo espaço pro- dutivo, dinâmico e aberto a novos conceitos de produ- ção e visões de mundo. Nesse sentido, cabe ao educador fazer da sua ação docente uma atividade dialógica e democrática, em que não se confundam papéis sociais, isto é, o papel e a responsabilidade do professor não é a mesma que a do formando, mas que numa parceria produtiva podem estabelecer planos pedagógicos eficazes e profunda- Fundamentos Filosóficos e Pedagógicos do Ensino Superior 19Faculdade Educacional da Lapa - FAEL mente humanos, no sentido de se alcançar a excelência da educação. 7 CONSIDERAÇÕES O filósofo francês Edgar Morin, atendendo a um convite da Unesco20, escreveu a obra Os sete saberes necessários à Educação do futuro, onde sistematiza um conjunto de reflexões acerca da educação do futuro, do que se espera ser a educação do século XXI. Esses saberes, de forma sintética, são: as cegueiras do conhe- cimento: o erro e a ilusão; os princípios do conhe- cimento pertinente; ensinar a condição humana; ensinar a identidade terrena; enfrentar as incertezas; ensinar a compreensão; e a ética do gênero humano. Da mesma forma, em 1998, é editado no Brasil o documento “Educação: um tesouro a descobrir. Rela- tório da Comissão Internacional sobre a educação para o século XXI”, também conhecido como Relatório Delors21. Nesse documento, acompanhando a reflexão de Morin, são apresentados os quatro pilares da educa- ção contemporânea, a saber: aprender a ser, a fazer, a viver juntos e a conhecer. Como se conclui da análise desses documentos, a educação encontra seu telos, sua dimensão verda- deiramente humana, quando se dirige à totalidade do homem, quando é integral, quando é complexa. Um saber que é perpassado pela dimensão da ética, pelo desejo da compreensão que se abre num comunicarse livre de interesses de dominação, ou como nos recorda Maturana: “o verdadeiro conhecimento não leva ao controle ou à tentativa de controle, mas leva ao enten- dimento, à compreensão, a uma forma de vida harmô- nica e ajustada aos outros e ao meio” (1998, p. 18). Como é sabido, a pedagogia universitária no Bra- sil é exercida por professores que não tem uma iden- tidade única. Suas características são extremamente complexas, como complexo e variado é o sistema de educação superior brasileiro. Essa realidade, que passa por significativas mudanças, advindas de constantes reformulações pedagógicas e legais, exige, portanto, a constituição de novas posturas acadêmicas, de papéis sociais, por parte de educadores e educandos, mais definidos e solidários entre si. 20 Trata-se de um órgão dentro da Organização das Nações Unidas (ONU), criado em 16 de novembro de 1945, cuja área de atuação se concentra nos temas da educação, da ciência e da cultura. 21 Seu principal organizador é o educador francês Jacques Delors, razão pela qual esse documento tenha recebido, de forma não oficial, a alcunha de Relatório Delors. Da análise dos fundamentos pedagógicos e filosó- ficos do ensino superior, proposta desenvolvida neste artigo, deve restar, além do conhecimento, que com certeza passa a fazer parte do arcabouço teóricoprático dos que a ele tiveram acesso, sobretudo, uma postura compromissada, um desejo sincero e produtivo de que em todas as ações pedagógicas das quais for partícipe, vislumbrese a excelência da educação. É a tarefa de todos os educadores e educadoras. REFERÊNCIAS ABBAGNANO. N. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1998. ALMEIDA, M. da C. de. Complexidade, do casulo à borboleta. In: CASTRO, G. (Org.). Ensaios de com- plexidade. Porto Alegre: Sulina, 1997. BASTOS, J. A. de S. L. A. Educação e tecnologia. Revista Educação e Tecnologia, Curitiba, v. 1, p. 429, 1997. BRASIL. Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Brasília, 1996. CASTANHO, M. E. L. M. A criatividade na sala de aula universitária. In: VEIGA, I. P. 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