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(RE)DISCUTINDO O OBJETO DO PROCESSO PENAL COM JAIME GUASP E JAMES GOLDSCHMIDT Página 1 (RE)DISCUTINDO O OBJETO DO PROCESSO PENAL COM JAIME GUASP E JAMES GOLDSCHMIDT Revista Brasileira de Ciências Criminais | vol. 39 | p. 103 | Jul / 2002 DTR\2002\735 ___________________________________________________________________________ Aury Celso Lima Lopes Junior Área do Direito: Geral Sumário: - 1.Introdução - 2.Determinação do objeto do processo penal - 3.Estrutura da pretensão jurídica - 4.Conteúdo da pretensão jurídica no processo penal: punitiva ou acusatória? - 5.Conclusões - Bibliografia Resumo: O estudo do objeto é crucial para a captação lógica do desenvolvimento do processo penal enquanto situação jurídica dinâmica. O presente trabalho faz um resgate temático partindo de dois referenciais teóricos (James Goldschmidt e Jaime Guasp), através dos quais se pretende desconstruir a teoria dominante de Karl Binding, que considera a pretensão punitiva como objeto do processo penal. A percepção do histórico equívoco permite a construção de uma nova estrutura fundada numa pretensão meramente acusatória, em perfeita harmonia com o sistema acusatório. Palavras-chave: Processo penal - Objeto - Pretensão jurídica - Ação penal. 1. Introdução O presente trabalho visa rediscutir o objeto do processo penal a partir de dois referenciais teóricos: James Goldschmidt e Jaime Guasp. Partimos do conceito de pretensão jurídica de Guasp para cotejá-lo com a visão de Goldschmidt e sua crítica à teoria de Binding (pretensão punitiva), por ser inadequada e desrespeitar as categorias jurídicas próprias do processo penal. Esse resgate temático é crucial para a perfeita captação lógica do desenvolvimento do processo penal. Sua clara definição impediria - v.g. - que o sistema de justiça negociada fosse levado a extremos (com o acusador negociando um quantum de pena), contrariando o fundamento da existência do processo penal e os próprios limites do objeto. Ademais, aceitando-se a tese aqui defendida (pretensão acusatória), daríamos um importante passo em direção ao modelo acusatório, pois, sendo o Ministério Público titular exclusivo 1do poder de proceder contra alguém ( ius ut procedatur), deixando de exercê-lo, não caberia ao juiz caminho diverso que o arquivamento (extinção do feito sem julgamento do mérito) ou a absolvição. Da mesma forma, na ação penal privada, o querelante deixaria de ser visto como um substituto processual (categoria do processo civil) e passaria a ser (RE)DISCUTINDO O OBJETO DO PROCESSO PENAL COM JAIME GUASP E JAMES GOLDSCHMIDT Página 2 tratado como titular da pretensão acusatória articulada em juízo. Como identificou J. Goldschmidt, 2grave problema existe no paralelismo entre processo civil e processo penal, principalmente quando são buscadas categorias e definições do processo civil e pretende-se sua aplicação automática no processo penal, como ocorre na captação lógico-normativa do objeto. O fenômeno do processo civil é bastante claro e distinto do fenômeno do processo penal. Assim, é necessário respeitar as categorias jurídicas próprias para o processo penal, adequadas às particularidades de seu objeto. O tema é complexo e a finalidade do presente trabalho é ressuscitar a discussão, contribuindo para a desconstrução do dogma da pretensão punitiva, concebido por Binding e repetido pelo mofado discurso do senso comum teórico "manualístico", que segue fazendo transmissões mecânicas 3das categorias do processo civil para o processo penal sem qualquer reflexão. 2. Determinação do objeto do processo penal Partindo da lição de Guasp, 4consideramos que o objeto do processo é a matéria sobre a que recai o complexo de elementos que integram o processo e não se confunde com a causa ou princípio, nem com o seu fim. Por isso, não é objeto do processo o fundamento a que deve sua existência (instrumentalidade garantista) 5nem a função ou fim a que, ainda que de forma imediata, está chamado a realizar (a satisfação jurídica da pretensão). Buscando explicar o verdadeiro objeto do processo, debate-se a doutrina em teorias que podem ser sistematizadas em três grupos: 6 a) Teorias Sociológicas (conflito de interesses, de vontades e de opiniões); b) Teorias Jurídicas (subjetiva e objetiva); c) Teoria da Satisfação Jurídica das Pretensões. 2.1 Teorias sociológicas Para as Teorias Sociológicas, 7a função do processo é resolver o conflito social, intersubjetivo. As relações que se estabelecem entre os homens originam, inevitavelmente, roces ou fricções, isto é, conflitos. Esses conflitos sociais devem ser regulados pelo direito (no caso o direito penal), pois, se assim não fosse, estariam em risco a paz da comunidade e a própria justiça. Na concepção carneluttiana, o processo é a justa composição de uma lide, entendendo por lide o conflito intersubjetivo de interesses qualificados por uma pretensão resistida (contradita). Constitui objeto do processo não só a estrita colisão de interesses - elemento material -, mas também a pretensão e a resistência que dela emana (elemento formal). Dentro das Teorias Sociológicas encontramos a do Conflito de Interesses de Carnelutti; a do Conflito de Vontades, também de Carnelutti; 8e a do Conflito de Opiniões, de Calamandrei. (RE)DISCUTINDO O OBJETO DO PROCESSO PENAL COM JAIME GUASP E JAMES GOLDSCHMIDT Página 3 A crítica que se faz a estas teorias é que são materialmente excessivas, pois recorrem a uma complexa noção do choque social para explicar o nascimento do processo, quando é possível que exista processo sem prévio conflito. O importante para o processo não é, evidentemente, o conflito, que não resulta necessário que exista, mas sim a reclamação ao juiz, que pode ir ou não ligada àquele. No aspecto formal também é insuficiente, pois não basta a existência do conflito. O simples fato de ter ocorrido um crime não é, por si só, o bastante para que nasça o processo. É imprescindível a reclamação jurídica ou a invocação da tutela jurisdicional através do respectivo instrumento processual. Daí por que não concordamos com aqueles que apontam para o fato delituoso (ou caso penal) como sendo o objeto do processo penal. Como explicaremos a continuação, o fato delituoso é o elemento objetivo da pretensão, e isoladamente não é capaz de explicar a fenomenologia do processo penal. Para que o processo nasça, é imprescindível que ao caso penal seja acrescentada a declaração petitória. 2.2 Teorias jurídicas As Teorias Jurídicas 9deixam de lado o fenômeno social e colocam como prioridade a explicação do processo como figura jurídica pura. Em síntese, é a idéia geral do processo como instrumento para a atuação do direito, a missão de realizar ou atuar o direito. No processo penal, a que melhor se adapta é a concepção processual objetiva, 10pois concebe o processo como um instrumento de atuação do direito objetivo (penal) genericamente considerado. Para essa teoria, o que o processo protege ou tutela não são os direitos dos particulares, senão o próprio direito objetivo (incluindo a proteção constitucional do inocente). O processo penal, em última análise, tutela o direito material de penar aqueles ataques aos bens juridicamente protegidos, tendo em vista que o direito penal é de coerção indireta, 11necessitando do processo para tornar efetiva a sanção. A principal crítica 12é de que essa teoria também é insuficiente, pois ignora o fundamento ou razão social que possa ter a atuação do direito, de modo que não se pode explicar o fenômeno do objeto a partir de um ponto de vista puramente jurídico. Em outras palavras, falta para essa teoria uma maior valoração do conflito social. 2.3 Teoria da satisfação jurídica das pretensõesÉ a que melhor explica o verdadeiro objeto do processo penal, pois resulta da fusão das duas teorias anteriores. Corresponde a Guasp 13o acerto de fazer da pretensão o conceito fundamental da idéia do processo, de modo que o objeto do processo penal é uma pretensão jurídicae a sua função é a satisfação jurídica das pretensões. Como esclarece Pedro Aragoneses Alonso, 14a pretensão, entendida como conduta de um sujeito juridicamente atuada para a obtenção de um reparto, que se afirma como justo, sobre a base de critérios normativos preestabelecidos, constitui sem dúvida o objeto sobre o qual gira a atividade processual. Como a tese, em qualquer tipo de controvérsia, é o objeto da discussão e não o é a discussão em si mesma. (RE)DISCUTINDO O OBJETO DO PROCESSO PENAL COM JAIME GUASP E JAMES GOLDSCHMIDT Página 4 Para definir o objeto do processo deve-se encontrar uma dupla base: 15de um lado, sociológica, que proporcione o dado social ao qual o processo está devidamente vinculado; e de outro lado, uma base jurídica, que, recolhendo o material sociológico, esclareça o tratamento peculiar que o direito lhe proporciona. A pretensão jurídica é reflexo ou uma substituição da pretensão social, que nasce exatamente do delito, visto como um conflito ou problema social complexo, pois a conduta ilícita representa um ataque a determinados bens jurídicos que o direito entendeu necessário tutelar. O delito ataca um sentimento básico da comunidade e gera uma reação social. Por isso, não configura nenhum absurdo dizer que, no plano fático, a ilicitude material antecede cronologicamente a própria tipicidade, que nasce a partir do desvalor social de determinada conduta. Em outras palavras, primeiro uma conduta é reprovada pela sociedade e a partir desse juízo de desvalor (social) surge uma necessidade de coibir tais atos através de uma norma, é dizer, da pressão ou necessidade social advém a atividade legislativa que cria o tipo penal. 16Com a tipicidade, se presume a ilicitude formal e material (salvo se existir uma causa de justificação). Partindo de uma premissa distinta (pois dirigida ao processo civil), Guasp chegou a uma conclusão acertada que pode ser perfeitamente aplicada também ao processo penal. Explica o autor que o direito se aproxima da sociologia sempre da mesma maneira: toma-lhe os problemas cuja solução postula a comunidade e estabelece um esquema de instituições artificiais, em que busca substituir as estruturas e funções puramente sociais do fenômeno e realiza um trabalho de alquimia, para criar novas fórmulas, mas se despreocupa depois com o material social. Na síntese do autor, o direito, para salvar a sociologia, não tem mais remédio que matá-la. 17 Ruth Gauer, 18na mesma linha, aponta que a justiça positiva chega tarde demais e se distorce, como uma desfiguração imposta pelo grande aparato jurídico todo-poderoso ao fraco violentado, tornando-o mesquinho, bruto, miserável no corpo e no espírito. A conclusão final é que a pretensão jurídica é um produto que o direito retira da pretensão social. O delito é um fenômeno social, exteriorizado pelo ataque aos sentimentos e valores básicos da comunidade e que gera uma reação social. O direito retira a questão do âmbito social em que aparece cravada e cria, no lugar da figura sociológica que suscita o problema, uma forma jurídica específica, que pretende refletir aquela. Mas o direito penal não é auto-executável e por isso necessita de um instrumento para realizar-se. Dessarte, o processo deve buscar a satisfação jurídica da pretensão. O único reparo, ou melhor, complemento, que nos parece necessário fazer à tese de Guasp é considerar também como função do processo a satisfação de resistências. 19O choque intersubjetivo entre a pretensão acusatória e a resistência 20do acusado (ius libertatis) é o que deve ser resolvido pelo juiz na sentença, e a ele corresponde satisfazer a pretensão do autor ou acolher a resistência do acusado. A resistência vem materializada no exercício do direito de defesa, com todos os instrumentos processuais que lhe oferece o ordenamento jurídico. Especificamente no processo penal, a satisfação da resistência resulta um imperativo do contexto político-constitucional e dos postulados de garantia do indivíduo. Por isso, é inegável que em pé de igualdade com a pretensão se encontra a resistência oferecida pela (RE)DISCUTINDO O OBJETO DO PROCESSO PENAL COM JAIME GUASP E JAMES GOLDSCHMIDT Página 5 defesa, e a função do processo penal estará igualmente satisfeita com a condenação ou absolvição. Como sintetiza Gimeno Sendra, 21a função do processo penal não pode limitar-se a aplicar o direito de penar, pela simples razão de que também está destinado a declarar o direito a liberdade do cidadão inocente. O processo penal constitui um instrumento neutro da jurisdição, cuja finalidade consiste tanto em atuar o poder de penar e a função punitiva, como também em declarar de forma ordinária (pela sentença) ou restabelecer pontualmente a liberdade (através do habeas corpus). O direito à liberdade é um valor superior no ordenamento jurídico (art. 5.º, caput, da CF/1988 (LGL\1988\3)), e inclusive ocupa, graças a presunção de inocência, uma posição preferente quando comparado ao poder de punir. Ademais, a pretensão acusatória e o poder de penar, em última análise, encontram respaldo jurídico no direito penal e não podemos esquecer que este tem uma dupla função: punir o culpado e ao mesmo tempo assegurar a liberdade do inocente. A pretensão é uma declaração de vontade, uma declaração petitória, que adquire caráter jurídico ao encontrar suporte no direito objetivo. No caso do processo penal, a pretensão acusatória é jurídica por descrever uma conduta humana que atenta ou lesiona um bem jurídico tutelado e que se amolda perfeitamente a um tipo penal abstrato. Ou melhor, está sustentada pelo fumus commissi delicti. A existência de um fundamento jurídico (tipo penal) qualifica de jurídica a pretensão articulada. Sem embargo, a veracidade do alegado não é uma condicio sine qua non, pois, como ocorre no processo civil, podem existir tanto pretensões sinceras e fundadas como pretensões falsas ou infundadas. Com o delito surgem o conflito social e a pena pública como resposta estatal e em nome da coletividade ao autor da conduta. Instala-se um conflito de vontades em torno de um interesse - o de penar - entre o Estado e indivíduo ( ius puniendi versus ius libertatis). Diante desse conflito, surge o processo como instrumento hábil para a justa composição dessa lide. 22 Desde logo, destacamos que somos partidários da existência de uma lide de natureza penal, pois, no processo penal, como aponta Leone, 23existe sempre um conflito, um contraste de interesses, e a atuação das partes pode ser delineada no conflito entre o poder de penar do Estado e o direito de liberdade do imputado. Até porque, para o conceito de lide, basta um conflito potencial, isto é, uma lide latente. No mesmo sentido, Guarnieri 24afirma ser suficiente o contraste sólo en apariencia. Em definitivo, basta o conflito in potentia. O conceito de lide nos leva à idéia de interesse, visto como a relação entre o homem e determinados bens ou valores. No processo penal, o interesse está relacionado com a noção de bem jurídico e a necessidade do processo para chegar-se à pena como resposta estatal àquela conduta que atentou contra um bem jurídico. Surge um conflito de interesses: de um lado, do Estado (poder de penar), e de outro, do particular (direito de liberdade). A pretensão processual, em essência, é o ato de se exigir a subordinação do interesse do particular (liberdade) ao interesse estatal de perseguir e punir. Contudo, a inexistência de uma lide concreta não gera a simples extinção do processo, pois (RE)DISCUTINDOO OBJETO DO PROCESSO PENAL COM JAIME GUASP E JAMES GOLDSCHMIDT Página 6 basta uma lide potencial. Assim, é irrelevante para a existência do processo penal que o réu confesse ou concorde com a pena pretendida pelo Ministério Público (nos sistemas de plea negotiation). O processo vai necessariamente existir e desenvolver-se de forma completa e válida, posto que somente após percorrermos seu curso é que poderá surgir uma sentença. O processo penal está calcado no princípio da necessidade (nulla poena et nulla culpa sine iudicio) e na correlata noção de instrumento de garantia, de modo que jamais pode existir uma pena sem sentença, nem mesmo pela simples e voluntária submissão do réu. Sem embargo, quando o Ministério Público deixa de exercer a pretensão acusatória (ou pede a absolvição), a situação é diferente. Neste caso, esvazia-se o próprio objeto do processo penal e o juiz, conforme a fase em que o feito se encontrar, deverá arquivar ou absolver o réu. Convém recordar que a base indispensável do processo não é a lide ou o conflito de interesses, mas sim o exercício de uma pretensão (logo, se o acusador deixar de exercê-la, o processo perde sua sustentação). Ademais, para o processo penal basta a existência de uma lide potencial, isto é, uma lide latente. Com razão, Afrânio Jardim 25define a lide como elemento acidental do processo. Por fim, o conceito de pretensão não é um tema pacífico, principalmente porque existe uma tendência em confundir o objeto com a causa da qual o processo parte, ou com o fim mais ou menos imediato que tende a obter (pena); e de outro lado, porque alguns confundem o elemento objetivo (fato) com o poder para sua verificação processual, ou ainda com o ato procedimental no que vai inserido (ação). 26 Ensina Guasp que, se considerarmos que o objeto não é o princípio ou causa de que parte o processo, nem o fim, mais ou menos imediato que tende a obter, mas sim a matéria sobre a qual recai o complexo de elementos que o integram, parece evidente que - tendo em vista que o processo se define como uma instituição jurídica destinada a satisfação de uma pretensão - é esta pretensão mesma que cada um dos sujeitos processuais, desde seu peculiar ponto de vista, trata de satisfazer, o que determina o verdadeiro objeto processual. 27 Destarte, o objeto do processo não é a lide, mas sim a pretensão processual (acusatória), através da qual o autor deduz uma parcela da lide em juízo. E sua finalidade é a satisfação de pretensões e resistências, atendendo ao princípio da necessidade. 3. Estrutura da pretensão jurídica A pretensão é uma declaração petitória 28ou afirmação 29de que o autor tem direito a que se atue a prestação pedida. É, no processo penal, uma declaração petitória de que existe o direito de acusar e que procede a aplicação do poder punitivo estatal. Por isso é uma pretensão acusatória, conforme explicaremos mais detidamente a continuação, ao analisar o "conteúdo da pretensão jurídica no processo penal". Não é um direito subjetivo, mas uma conseqüência jurídica de um estado de fato ou um estado de fato com conseqüências jurídicas. (RE)DISCUTINDO O OBJETO DO PROCESSO PENAL COM JAIME GUASP E JAMES GOLDSCHMIDT Página 7 Como assinalou Rosenberg, o processo se dirige a decidir sobre uma pretensão cuja admissão depende meramente de requisitos formais, constituídos por determinadas afirmações, prescindindo que as mesmas sejam verdadeiras e concludentes. A pretensão é admissível tão-só com tais requisitos formais, e a missão do processo será examinar sua consistência, para afirmar a existência do delito ou não. Essa regra, de plena eficácia no processo civil, deve ser interpretada com reservas, pois no processo penal o recebimento da acusação está submetido a que o fato narrado revista de uma mínima aparência de delito. Nesse sentido, o art. 43, I, do CPP (LGL\1941\8) determina que a denúncia ou queixa será rejeitada quando o fato narrado evidentemente não constituir crime. Por isso, é fundamental que a acusação tenha um mínimo de fumus commissi delicti. Ao contrário do que acontece no processo civil, no penal o juiz deve verificar se a acusação tem verossimilitude e indica um suporte probatório mínimo que justifique sua admissão. Trata-se de um juízo de probabilidade que se reveste de uma importância fundamental, pois o processo penal, em si mesmo, já é uma pena. É inegável que o processo penal significa um etiquetamento com clara estigmatização social e por isso o juízo de pré-admissibilidade da acusação é tão importante. 30 Para compreender melhor o tema é essencial analisar, ainda que brevemente, os três elementos 31que compõem a pretensão jurídica: subjetivo, objetivo e modificador da realidade (ou declaração petitória). 3.1 Elemento subjetivo O elemento subjetivo se refere aos entes que figuram como titulares: o pretendente é aquele contra quem se pretende fazer valer essa pretensão. No processo penal, quem formula a pretensão, titular ativo, pode ser o próprio Estado, representado institucionalmente pelo Ministério Público ou o acusador privado (delitos de ação penal privada). No pólo passivo da relação jurídica está o acusado, a pessoa contra quem é formulada a pretensão. A estes sujeitos acrescenta o ordenamento um terceiro supra-ordenado, a quem se confere a função de receber as pretensões e proceder a sua satisfação. Esse terceiro é o juiz. No processo penal o elemento subjetivo determinante é exclusivamente a pessoa do acusado, pois não vige a doutrina de tripla identidade da coisa julgada civil. Dessa forma, nem o pedido (que será sempre de condenação) nem a identidade da parte acusadora são essenciais para a eficácia da pretensão. Mas sim são fundamentais a clara individualização e determinação do sujeito passivo, uma tarefa que será tanto mais clara quanto mais eficaz for a investigação preliminar. Não existe processo penal sem sujeito passivo, mas, sim, pode existir sem a sua presença física (ausência, art. 367 do CPP (LGL\1941\8)). 3.2 Elemento objetivo O elemento objetivo da pretensão é o bem da vida, o bem em litígio. No processo penal é (RE)DISCUTINDO O OBJETO DO PROCESSO PENAL COM JAIME GUASP E JAMES GOLDSCHMIDT Página 8 o fato aparentemente punível, aquela conduta que reveste uma verossimilitude de tipicidade, ilicitude e culpabilidade. Desde logo é importante esclarecer que o fato aparentemente punível não é o objeto do processo, mas um elemento integrante da pretensão. É preciso destacar essa afirmativa porque uma respeitável e numerosa doutrina, contagiada pela importância do elemento objetivo, considera que o objeto do processo é o fato punível, 32esquecendo-se que isso, por si só, não tem aptidão para fazer nascer o processo. O fato que compõe a pretensão é o natural - factae nudae -, visto como a soma de acontecimentos concretos, históricos, despidos da qualificação jurídica. O que importa é a identidade do fato histórico, individualizado em sua unidade natural e não jurídico-penal. 33Nessa linha, segue o sistema brasileiro o princípio jura novit curia amparado pela regra do narra mihi factum dabo tibi jus - ao acusador cabe narrar o fato, para que o juiz diga o direito aplicável. Em definitivo, o conceito jurídico-processual de fato não coincide com o conceito jurídico-penal. O elemento objetivo da pretensão não é uma qualificação jurídica, tampouco um tipo penal abstrato, cuja autoria se imputa ao acusado. A identificação do objeto do processo não vem dada nem pela qualificação jurídica do fato nem pela quantidade de pena eventualmente pedida; mas sim pelo complexo de circunstâncias fáticas que compõem o atuar físico do sujeito. Esse fato natural 34corresponde a um fragmento concreto da realidade e a ele se refere a pretensão,como elemento determinante da mesma. Funcionará como delimitador da pretensão articulada na ação penal e, como define Guasp, funciona não como cimento em que se embasa, mas como muros que a delimitam. 3.3 Declaração petitória O terceiro elemento da pretensão jurídica é o ato capaz de causar a modificação da realidade que a pretensão leva consigo. É o conteúdo petitório, a declaração de vontade que pede a realização da pretensão. Estamos de acordo com Guasp 35quando afirma que tal ato poderia receber o nome técnico de ação, terminologia que devolveria a esta palavra o significado literal que lhe corresponde; mas isso poderia induzir a confusões, por ir de encontro a uma tradição secular que se esforçou em averiguar a essência do poder jurídico a que dita ação está vinculada e não a sua verdadeira função. Sem dúvida que a polêmica em torno do conceito de ação se desviou a um caráter extraprocessual, buscando explicar o fundamento do qual emana o poder, afastando-se do instrumento propriamente dito. Feito esse esclarecimento, empregamos o termo ação no sentido literal, de instrumento portador de uma manifestação de vontade, por meio do qual se narra um fato com aparência de delito e se solicita a atuação do órgão jurisdicional contra uma pessoa determinada. Em alguns sistemas, como o espanhol, ainda que dividido em duas fases (instrução (RE)DISCUTINDO O OBJETO DO PROCESSO PENAL COM JAIME GUASP E JAMES GOLDSCHMIDT Página 9 preliminar e juízo oral 36), existe um certo confusionismo sobre o momento exato em que se exerce a ação penal, porque a instrução preliminar está a cargo de um juiz, que investiga de oficio ou mediante invocação. A divisão entre as duas fases é tênue, ainda que felizmente marcada pela separação das tarefas de investigar/julgar. 37O fato de o juiz instrutor atuar de ofício e decretar o "processamento" do imputado, muito antes de dar vista ao MP para formalmente exercer a ação penal, é um dos fatores que contribui para a confusão. Ademais, o particular (vítima ou qualquer pessoa pelo sistema de ação popular) pode exercer uma notícia-crime qualificada ( querella) e com isso habilitar-se desde o início da investigação para exercer a acusação. Felizmente, no sistema brasileiro, a divisão entre as duas fases é clara e inequívoca. O processo penal só começa pelo exercício e a admissão de uma ação penal, pública ou privada, conforme o caso. Não obstante, isso não significa que nosso processo seja acusatório, todo o oposto. O processo penal brasileiro é inquisitivo, em que pese a separação de atividades, pois a iniciativa probatória está (também) nas mãos do juiz. Esse é o princípio fundante do sistema: se a iniciativa probatória está nas mãos das partes, o processo é acusatório; ao contrário, se a iniciativa probatória está nas mãos do juiz, o processo é inquisitivo. Exemplo desse ranço inquisitivo é o art. 156, do CPP (LGL\1941\8), e todos os demais que, na mesma linha, permitem que o juiz assuma o papel de inquisidor, indo atrás da prova e até decretando medidas cautelares reais e pessoais de ofício. No processo penal o conteúdo do pedido é sempre igual. A atuação que se pede será especificamente a condenação do acusado pelo fato narrado, conforme a pena estabelecida no respectivo tipo penal abstrato. Por isso, o pedido não constitui um elemento essencial da pretensão. A declaração 38petitória contida na ação penal solicitará que o órgão jurisdicional: 39 - declare a existência do fato narrado, afirmando sua tipicidade, ilicitude e culpabilidade; - declare a responsabilidade penal do acusado pelos fatos narrados e provados; - condene ao acusado pela prática do fato típico e imponha a respectiva pena ou medida de segurança aplicável; - determine a execução da pena ou medida de segurança imposta. 4. Conteúdo da pretensão jurídica no processo penal: punitiva ou acusatória? Delimitado o objeto, analisadas a pretensão e sua estrutura, resta determinar qual será o conteúdo dessa pretensão jurídica no processo penal: punitiva ou acusatória. A determinação do conteúdo da pretensão jurídica, objeto do processo penal, gravita em torno da existência do poder de penar e a função punitiva do Estado. 40Esse poder nasce com a ocorrência do delito e é exercido contra o autor do injusto típico, depois que sua responsabilidade penal foi reconhecida no processo, pois, como apontamos anteriormente, o processo penal é o caminho necessário para a pena. Para a construção dogmática do objeto do processo penal, a teoria dominante é a de (RE)DISCUTINDO O OBJETO DO PROCESSO PENAL COM JAIME GUASP E JAMES GOLDSCHMIDT Página 10 Binding, que parte do conceito de uma exigência punitiva (pretensão punitiva) que o Estado deve fazer valer por meio do processo penal. Dessa forma, o processo é uma exigência para que o Estado efetive seu direito subjetivo de punir, como uma construção técnica artificial. Ademais de titular de um direito de punir, o Estado aparece no processo como titular da jurisdição e muitas vezes também como titular da ação penal (através do Ministério Público). Segundo Binding, o Estado é titular de um triplo direito: direito punitivo; direito de ação penal e direito ao pronunciamento da sentença penal. 41Dessa forma, a tese do autor é a de que o juiz penal encontra-se perante o Estado, titular do direito punitivo, na mesma posição que o juiz civil, diante do credor titular de uma pretensão de direito privado. O grande mérito da teoria de Binding foi o de isolar o conceito de ação penal, como um instituto independente do direito de punir. Por isso, é considerado o fundador da teoria da ação penal como direito abstrato. Apesar da valiosíssima contribuição, a teoria de Binding está imperfeita, como muito bem demonstrou J. Goldschmidt, para quem a construção anteriormente explicada representa uma transmissão mecânica das categorias do processo civil ao penal, pois o Estado está concebido de forma igual ao indivíduo que comparece ante o Tribunal para pedir proteção. Isto é, para Binding, o Estado comparece no processo penal através do MP da mesma forma que o particular no processo civil, como se a exigência punitiva fosse exercida no processo penal de igual modo que no processo civil atua o titular de um direito privado. Essa concepção é fruto de um momento da evolução do processo, que não se adapta à atual realidade, em que o processo penal está completamente separado do civil e possui suas categorias jurídicas próprias. Como explica J. Goldschmidt, a pena se impõe mediante um processo porque é uma manifestação da justiça, e porque o processo é o caminho da mesma; a jurisdição penal é a antítese da jurisdição civil, porque ambas representam os dois ramos da justiça estabelecidos por Aristóteles: justiça distributiva (jurisdição civil) e corretiva (jurisdição penal). Como a pena é uma manifestação da justiça, corresponde o poder de penar ao próprio tribunal, isto é: o poder de penar coincide com o poder judicial de condenar o culpado e executar a pena. A concepção da exigência punitiva (Binding) desconhece que o Estado, titular do direito de penar, realiza seu direito no processo não como parte, mas como juiz. O poder de condenar ao culpável é um direito potestativo, anterior ao processo, porque nasce do delito, conforme a lei penal. Por isso, o conteúdo da pretensão jurídica no processo penal é acusatório e não punitivo. O direito punitivo não é outra coisa que o direito concreto da justiça penal - personificado no juiz -, de condenar o culpado e executar a pena. O titular da pretensão acusatória exige à justiça penal que exerça o direito punitivo e não que se atribua a ele mesmo ou a um terceiro, como ocorre no processo civil. Por isso, J. Goldschmidt considera que o direito penal é um derecho justicialmaterial, posto que o Estado adjudicou o exercício do seu poder de punir à Justiça. Existe dessa forma uma relação jurídica entre a justiça estatal e o indivíduo. O direito processual penal também é um derecho justicial (formal), pois existe (RE)DISCUTINDO O OBJETO DO PROCESSO PENAL COM JAIME GUASP E JAMES GOLDSCHMIDT Página 11 no processo uma relação jurídica entre o tribunal e as partes. A teoria proposta por J. Goldschmidt fica assim representada: O poder jurisdicional de condenar o culpado é um direito potestativo, no sentido de que necessita de uma sentença condenatória para constituir uma situação nova (de condenado) que permita aplicar a pena ao condenado. Como correspondente, a sentença condenatória do processo civil é constitutiva com relação ao direito de execução. Depois da sentença penal condenatória transitar em julgado, o direito de penar se converte em direito de executar a pena, que é um direito de potestas. Isso porque, ademais de julgar e determinar a pena, também corresponde ao poder jurisdicional a função de executar a pena. 42Não devemos esquecer que o símbolo da justiça não é só a balança, mas também a espada, que está nas mãos do juiz e pende sobre a cabeça do réu. Nessa linha de raciocínio, o objeto do processo penal é uma pretensão acusatória, pois a ação penal deve ser vista como um "direito ao processo" 43- ius ut procedatur - distinto do direito nascido do delito de impor a pena mediante a sentença condenatória e torná-la efetiva mediante a execução. O direito do particular ou do Estado-acusador (através do Ministério Público) é um "direito ao processo", completamente distinto do poder de punir que corresponde exclusivamente ao Estado-tribunal (exercido através do juiz). Dessa forma, continuamos entendendo que a ação é um direito abstrato, que existe ainda que não exista o direito de penar. A ação penal é vista como um poder jurídico-político de iniciativa processual, como instrumento de invocação, que gera o poder-dever do órgão jurisdicional de comprovar a situação do fato que lhe é submetido a análise, para declarar a existência ou não de um delito. Afirmando a existência do delito, poderá exercer o poder de penar. Sem embargo, é importante esclarecer que o objeto do processo penal é uma pretensão acusatória e não a ação penal. Na estrutura da pretensão anteriormente explicada, pode-se comprovar que a ação penal é um mero poder político de invocação da tutela jurisdicional que corresponde a uma declaração petitória. Logo, é um mero ato procedimental no qual se inserta a pretensão acusatória. Como ao acusador corresponde um mero direito de acusar, não lhe cabe pedir uma pena em concreto, tampouco negociá-la com o acusado, pois a pena é uma manifestação da função punitiva que é uma exclusividade do Estado-tribunal. Por isso o elemento objetivo da pretensão é o fato natural e a qualificação jurídica não pode vincular o juiz, pois a pena (RE)DISCUTINDO O OBJETO DO PROCESSO PENAL COM JAIME GUASP E JAMES GOLDSCHMIDT Página 12 é uma conseqüência dela e só ao juiz incumbe o exercício do poder de penar. O tribunal só está vinculado ao fato narrado na ação penal e à pessoa indicada no pólo passivo (elemento subjetivo da pretensão), por ser esta vinculação um imperativo do sistema acusatório e das garantias do contraditório e ampla defesa. Assim, o erro de Binding foi o de colocar o MP na mesma posição que ele assume no processo civil: como "credor", que pede a adjudicação de um direito próprio. Na ele realidade, ele não possui um direito próprio de punir (o denominado ius puniendi não está nas suas mãos), tampouco pede sua adjudicação. Ele detém um outro poder, autônomo, mas limitado exclusivamente a proceder contra alguém (ius ut procedatur). 5. Conclusões - Bibliografia O objeto do processo penal é uma pretensão acusatória, vista como a faculdade de solicitar a tutela jurisdicional, afirmando a existência de um delito, para ver ao final concretizado o poder punitivo estatal pelo juiz através de uma pena ou medida de segurança. O titular da pretensão acusatória será o Ministério Público ou o particular. Ao acusador (público ou privado) corresponde apenas o poder de invocação (acusação), pois o Estado é o titular soberano do poder de punir, que será exercido no processo penal através do juiz e não do Ministério Público (tampouco do acusador privado). Dessa forma, nos delitos de ação penal pública, o Estado realiza dois direitos distintos (acusar e punir) através de dois órgãos diferentes (Ministério Público e julgador). Essa duplicidade do Estado (como acusador e julgador) é uma imposição do sistema acusatório (separação das tarefas de acusar e julgar) e não encontra nenhum obstáculo nos princípios de direito público, tampouco na lógica. É a mesma duplicidade que permite ao Estado aceitar as leis emanadas de si mesmo, executá-las e julgar a sua correta aplicação. Nessa linha de raciocínio, na ação penal pública, Ministério Público é o titular da pretensão acusatória. Por questão de política criminal, o modelo brasileiro adota o princípio da legalidade e indisponibilidade 44(agora mitigados nos crimes de menor potencial ofensivo) e não oportunidade. Por esse motivo, o MP não possui plena disposição sobre a pretensão acusatória, quando na verdade deveria ter. É inerente a titularidade de um direito ao seu pleno poder de disposição. Não há argumento - que não uma pura opção política - que justifique tais limitações impostas pela legalidade e indisponibilidade da ação penal pública. Sem embargo de tais limitações, entendemos que, se o MP pedir a absolvição (já que não pode desistir da ação), a ela está vinculado o juiz. O poder punitivo estatal está condicionado à invocação feita pelo MP através do exercício da pretensão acusatória. Logo, o pedido de absolvição equivale ao não-exercício da pretensão acusatória, isto é, o acusador está abrindo mão de proceder contra alguém. Como conseqüência, não pode o juiz condenar, sob pena de exercer o poder punitivo sem a necessária invocação, no mais claro retrocesso ao modelo inquisitivo. Além disso, estará avocando um poder que ele não tem e não deve ter. Sepulta, assim, o princípio supremo do processo: 45a imparcialidade. Como conseqüência, fulminada está a estrutura dialética do (RE)DISCUTINDO O OBJETO DO PROCESSO PENAL COM JAIME GUASP E JAMES GOLDSCHMIDT Página 13 processo, a igualdade das partes, o contraditório etc. Outro argumento invocado pelo senso comum teórico, para justificar uma sentença condenatória, ainda que o Ministério Público tenha postulado a absolvição, é o velho e mofado discurso da verdade real. Cumpre frisar que o moderno processo penal está orientado pela instrumentalidade garantista. Esse aspecto realça a importância da adoção do princípio da verdade formal e não da verdade substancial, pois a verdade substancial, como explica Ferrajoli, 46ao ser perseguida fora das regras e controles e, sobretudo, de uma exata predeterminação empírica das hipóteses de indagação, degenera o juízo de valor, amplamente arbitrário sobre o fato, assim como o cognoscitivismo ético sobre o qual se embasa o substancialismo penal, e resulta inevitavelmente solidário com uma concepção autoritária e irracional do processo penal. Em sentido oposto, a verdade perseguida pelo modelo formalista, como fundamento de uma condenação, é, por sua vez, uma verdade formal ou processual e só pode ser alcançada mediante o respeito das regras precisas e relativas aos fatos e circunstâncias considerados como penalmente relevantes. Como explica Ferrajoli, 47a verdade processual não pretende ser a verdade (até porque impossível de ser atingida). Não é obtida mediante indagações inquisitivas alheias ao objeto processual, mas sim condicionada em si mesmapelo respeito aos procedimentos e garantias da defesa. A verdade formal é mais controlada quanto ao método de aquisição e mais reduzida quanto ao conteúdo informativo que qualquer hipotética verdade substancial. Dessa forma, pedida a absolvição pelo Ministério Público, necessariamente a sentença deve ser de extinção do feito sem julgamento do mérito (ou ao menos absolutória, considerando a lacuna legislativa), pois na verdade o acusador está deixando de exercer sua pretensão acusatória, impossibilitando assim a efetivação do poder (condicionado) de penar. Seria importante uma mudança legislativa para que o Ministério Público pudesse dispor da ação penal pública, pedindo o arquivamento a qualquer tempo. Quando se afirma que o acusador deve dispor da ação penal, estamos fazendo referência à pretensão acusatória, que simplesmente pode ser exercida ou não. Como foi explicado, não se confunde com o poder de penar (do Estado-juiz e não do Estado-acusador), de modo que o acusador não pode pedir um determinado quantum de pena, tampouco negociá-la. A pena está fora do poder das partes. Como disse Carnelutti, 48ao acusador não lhe compete a potestas de castigar, mas só de promover o castigo. Nos delitos de ação penal privada, o senso comum teórico "manualístico" segue repetindo que "institui-se a ação penal privada, uma das hipóteses de substituição processual, em que a vítima defende interesse alheio (direito de punir) em nome próprio". 49 Trata-se de um erro imperdoável de quem partiu de uma premissa equivocada. Nos delitos de ação penal privada, o particular é titular de uma pretensão acusatória e exerce o seu direito de ação, sem que exista delegação de poder ou substituição processual. Em outras palavras, atua um direito próprio (o de acusar) da mesma forma que o faz o Ministério Público nos delitos de ação penal pública. Ao ser regida pelos princípios da oportunidade/conveniência e disponibilidade, se o querelante deixar de exercer sua pretensão acusatória, deverá o juiz extinguir o feito sem julgamento do mérito ou, pela (RE)DISCUTINDO O OBJETO DO PROCESSO PENAL COM JAIME GUASP E JAMES GOLDSCHMIDT Página 14 sistemática do Código de Processo Penal (LGL\1941\8), declarar a extinção da punibilidade pela perempção (art. 60 do CPP (LGL\1941\8)). Como se vê, a sistemática do Código de Processo Penal (LGL\1941\8) está em plena harmonia - no que tange a ação penal privada -, como a posição aqui defendida. Concluindo, se no processo civil o conteúdo da pretensão é a alegação de um direito próprio e o pedido de adjudicação do mesmo, no processo penal é a afirmação do nascimento de um direito judicial de penar e a solicitação de que o Estado exerça esse direito. O acusador tem exclusivamente um direito de acusar, afirmando a existência de um delito e, em decorrência disso, pede ao juiz (Estado-tribunal) que exercite o seu poder de condenar o culpado e executar a pena. O Estado realiza seu poder de penar no processo penal não como parte, mas como juiz, e esse poder punitivo está condicionado ao prévio exercício da pretensão acusatória. A pretensão social que nasceu com o delito é elevada ao status de pretensão jurídica de acusar, para possibilitar o nascimento do processo. Nesse momento também nasce para Estado o poder de punir, mas seu exercício está condicionado à existência prévia e total do processo penal. Se o acusador deixar de exercer a pretensão acusatória - desistindo ou pedindo a absolvição -, cai por terra a possibilidade de o Estado-juiz atuar o poder punitivo e a extinção do feito é imperativa. Bibliografia ALONSO, Pedro Aragoneses. Instituciones de derecho procesal penal. 5. ed. Madri: Editorial Rubí Artes Gráficas, 1984. ---. 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O erro consiste na transmissão mecânica dos conceitos do processo civil ao processo penal, exatamente em um ponto em que devemos respeitar as categorias jurídicas próprias do processo penal, pois não é possível tal analogia. Constitui uma impropriedade jurídica afirmar que para a decretação de uma prisão cautelar é necessária a existência de fumus boni iuris. Como se pode afirmar que o delito é uma "fumaça de bom direito"? No processo penal, o requisito para a decretação de uma medida coercitiva não é a probabilidade de existência do direito de acusação alegado. O que legitima a decretação de uma medida cautelar não é um direito, senão a necessidade da segregação diante da prática de um fato aparentemente punível. Logo, o correto é afirmar que o requisito para decretação de uma prisão cautelar é a existência do fumus commissi delicti, ou seja, a probabilidade da ocorrência de um delito e nunca de um direito. A fumaça é de um injusto típico e não de um direito, até porque o crime é a própria negação do direito, sua antítese. Seguindo a mesma linha de Calamandrei, o senso comum teórico considera equivocadamente que o periculum in mora é outro requisito das cautelares. A confusão aqui não é apenas terminológica, mas sim fruto da equivocada valoração do perigo decorrente da demora no sistema cautelar penal. O perigo não é gerado pelo tempo, pois não é este o critério determinante do perigo. O risco reside na permanência, em liberdade, do imputado. Na realidade, o que existe é um periculum libertatis, ou seja, o perigo que decorre da situação de liberdade em que se (RE)DISCUTINDO O OBJETO DO PROCESSO PENAL COM JAIME GUASP E JAMES GOLDSCHMIDT Página 17 encontra o sujeito passivo. É o estar em liberdade o gerador do perigo ao normal desenvolvimento do processo (perigo de fuga, destruição da prova, alarma social e reiteração delitiva). Superada essa confusão, verifica-se ainda que o periculum libertatis não é requisito das medidas cautelares, mas sim o seu fundamento. As medidas cautelares são instrumentos a serviço do processo com a função de garantir a presença da parte passiva. (4) "La pretensión procesal". Estudios jurídicos, p. 593 et seq. (5) Sobre o tema veja-se nossa obra Sistemas de investigação preliminar no processo penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001. (6) Seguindo a sistemática de Pedro Aragoneses Alonso. Proceso y derecho procesal, p. 158 et seq. (7) Seguindo Guasp. "La pretensión procesal", p. 570 et seq. (8) Essa "segunda versão" surgiu no trabalho Litis-proceso quando, tratando de rebater as críticas de Calamandrei, Carnelutti retifica sua teoria e identifica a lide não mais com o conflito de interesses, mas com um conflito de vontades em torno de um interesse. Sobre o tema, Pedro Aragoneses Alonso. Proceso y derecho procesal, p. 173. (9) Segundo Pedro Aragoneses Alonso ( Proceso y derecho procesal, p. 159 et seq.), as Teorias Jurídicas podem ser divididas em dois grupos: a) Concepção processual subjetiva (tutela do direito subjetivo): sustentada por Rocco, Gerber, Kisch, Manfredi e Simoncelli. b) Concepção processual objetiva (tutela do próprio direito objetivo): defendida por Wach, Shimdt, Langheineken e Chiovenda. (10) Dominante no direito processual moderno, em contraste com a Teoria Subjetiva, que defende que o processo cumpre a função de tutela dos direitos subjetivos - da parte. (11) Ao contrário do direito civil, o direito penal não tem poder coercitivo imediato nem realidade concreta fora do processo pena. A pena é efeito do delito e do processo, mas o processo não é efeito do delito, senão da necessidade de impor a pena ao delito por meio do processo. É o que Gomez Orbaneja denomina de principio de la necesidad del proceso penal. (12) Segundo aponta Guasp, "La pretensión procesal", p. 579. (13) Sem embargo, a tese não é inédita, pois, como reconhece o próprio autor, a doutrina alemã de Rosenberg e a italiana de Carnelutti já haviam dado mostras do conceito de pretensão, mas não com plenos frutos. Pode-se afirmar que a base jurídica da teoria foi dada por Rosenberg e o aspecto sociológico do conflito foi dado por Carnelutti, no seu estudo sobre a lide. Como explica Guasp ("Pretensión procesal", p. 587, nota de rodapé n. 44), seu conceito pode ser concebido como uma fusão das idéias básicas de Rosenberg e Carnelutti, "tomando del primero el estricto carácter procesal, no material, de la reclamación, y del segundo su desvinculación de la idea del derecho (que tampoco es (RE)DISCUTINDO O OBJETO DO PROCESSO PENAL COM JAIME GUASP E JAMES GOLDSCHMIDT Página 18 contradicho por aquél)". (14) Proceso y derecho procesal, p. 184. (15) Jaime Guasp. A continuação, analisaremos os fundamentos expostos pelo autor no trabalho "La pretensión procesal". (16) Isso no plano ideal, muito distante da realidade brasileira, em que a diarréia legislativa causada por legisladores que não sabem e não querem resolver o grave problema social faz o que é mais fácil e barato: normas penais. Influenciados pelos movimentos repressivistas de extrema direita, como o law and order, recorrem á ideologia do repressivismo saneador. É o fracasso do simbólico punitivo. (17) Por vezes, as instituições artificiais que utiliza o direito penal e o processo penal acabam por criar um problema (do ponto de vista sociológico) de igual ou até maior gravidade que o próprio delito. Nesse sentido está o problema da pena de prisão (um sistema falido); da reinserção social do presidiário; a estigmatização social e jurídica que causa a pena e o próprio processo penal; as chamadas penas processuais etc. (18) "Alguns aspectos da fenomenologia da violência". A fenomenologia da violência, p. 14. (19) Victor Fairén Guillén. "El proceso como función de satisfacción jurídica". Revista de Derecho Procesal Iberoamericana 1, 1969. p. 17-95. (20) Com isso não estamos condicionando a existência do processo ao conflito. Para o processo penal basta o conflito potencial (lide latente) entre a pretensão acusatória e o direito de liberdade do imputado. Nesse sentido, Leone ( Trattado di diritto processuale penal, vol. 1, p. 181 et seq.) explica que no processo penal sempre existe um conflito, um contraste de interesses e a atuação das partes pode ser delineada no conflito entre o poder punitivo do Estado e o direito de liberdade do acusado. (21) Na obra coletiva Derecho procesal penal, p. 26. (22) Apesar dessa concepção carneluttiana, o próprio Carnelutti ( Derecho procesal civil y penal, p. 301) entende que no processo penal o contraste que se pode admitir entre o Ministério Público e o acusado responde ao conceito de controvérsia e não de lide, pois é um contraste de opiniões em torno de um mesmo interesse, que é o interesse do acusado. Em uma concepçãomuito particular, Carnelutti defende que "o acusado tem no processo penal o mesmo interesse que tem o enfermo na comprovação e na cura de sua enfermidade. Falar de um interesse do acusado a liberdade, entendido como interesse a ser absolvido, mesmo quando seja culpado, equivaleria a admitir o interesse do enfermo em que o médico não descubra sua enfermidade. Por outro lado, supor um interesse do Ministério Público em castigar ao acusado, ainda que inocente, é atribuir-lhe nada menos que uma desonestidade". Entendemos que a idéia de Carnelutti, nesse particular aspecto, não merece acolhida. É inegável que existe no processo penal um conflito de interesses entre acusado e acusador, talvez o mais autêntico de todos os conflitos. Ademais, não nos (RE)DISCUTINDO O OBJETO DO PROCESSO PENAL COM JAIME GUASP E JAMES GOLDSCHMIDT Página 19 parece que metáfora com a enfermidade seja adequada á realidade, pois com a falência da pena de prisão ela está muito longe de curar. O próprio autor em outro momento ( As misérias do processo penal, p. 68-69) afirma que a infeliz distinção entre o cárcere e o hospital consiste em que a prova do progresso da enfermidade não tem importância, pois, se o juiz disse dez, vinte ou trinta anos, isto é o que deve ser, ainda que a prova demonstre que é pouco, ou que o doente ficou curado antes do cumprimento total da pena. No mesmo sentido, Guarnieri ( Las partes en el proceso penal, p. 24) afirma que tampouco parece que a equação pena = remédio da alma (cuja frase original é de Platão) seja aceita pelos interessados e menos ainda pelo sentimento do povo. (23) Giovanni Leone. Trattado di diritto processuale penale, vol. 1, p. 181 et seq. (24) Las partes en el proceso penal, p. 33. (25) Direito processual penal, p. 166. (26) Pedro Aragoneses Alonso. Instituciones de derecho procesal penal, p. 181. (27) Jaime Guasp. Derecho procesal civil, vol. 1, p. 201 et seq. (28) Jaime Guasp. "La pretensión procesal". Estudios jurídicos, p. 604. (29) Leo Rosenberg. Tratado de derecho procesal civil, vol. 2 , p. 27 et seq. (30) É crucial que o processo penal brasileiro passe a contar com uma autêntica fase intermediária contraditória, em que, após uma cognição sumária, o juiz decida fundamentadamente se recebe ou não a acusação. O caminho foi aberto, timidamente, pela resposta prévia no rito dos crimes cometidos por funcionários públicos, posteriormente pela Lei 9.099 e recentemente pela Lei 10.409, mas ainda não é o suficiente. (31) Seguindo Guasp, "La pretensión procesal". Estudios jurídicos, p. 600 et seq. (32) Florian ( Elementos de derecho procesal penal, p. 49) entende que o objeto fundamental do processo penal é uma determinada relação de direito penal que surge de um fato que se considera como delito. Nessa linha, Beling ( Derecho procesal penal, p. 79) assinala que o assunto da vida constitui o objeto do processo. É importante destacar que Frederico Marques ( Elementos de direito processual penal, vol. 1, p. 68), ao falar na "finalidade e objetivo do processo penal" (pois não trata claramente do objeto), cita Beling e lhe imputa uma frase: "Donde dizer Ernst Belling que o objeto do processo é a tutela da lei penal". Realmente Beling diz isso, mas em outro contexto, ao comentar "la función general político-jurídica del derecho procesal penal" e para definir a função institucional do processo penal. Sobre o objeto, dedica um capítulo específico, em que desde o início define como "el asunto de la vida (causa, res), en torno del cual gira el proceso, y cuya resolución (mediante decisión sobre el fondo) constituye la tarea propia del proceso (los merita causae o materialia causae, en la terminología de la ciencia pandectista)". Ademais de tirar uma frase do contexto, Frederico Marques incidiu no grave erro de identificar finalidade (RE)DISCUTINDO O OBJETO DO PROCESSO PENAL COM JAIME GUASP E JAMES GOLDSCHMIDT Página 20 com objeto. (33) Emilio Gómez Orbaneja. Comentarios a la Ley de enjuiciamiento criminal, vol. 1, p. 51 et seq. (34) O estudo do elemento objetivo da pretensão - fato natural - também é importante para determinar a existência da correlação (ou congruência) entre acusação/defesa/sentença. Essa correlação do fato natural contido na acusação com aquele que será objeto da sentença deve ser interpretado como uma garantia de que não se produzirá uma situação de indefesa para o sujeito passivo. O réu se defende do fato natural contido na denúncia ou queixa e sobre esse fato deverá recair o juízo de valoração do juiz. Para eventuais retificações, prevê o Código de Processo Penal (LGL\1941\8) a emendatio libelli (art. 383) e a mutatio libelli (art. 384). Sobre o tema, destacamos que o caput do art. 384 deve ser interpretado com cuidado para não afrontar o sistema acusatório e a titularidade constitucional da ação penal. Brevemente, frisamos a necessidade de aditamento mesmo no caso do caput do art. 384 e também a impropriedade de o juiz "baixar o processo" para manifestação do Ministério Público. É um absurdo que o juiz, ontologicamente concebido para ser invocado, saia da sua posição de alheamento para prejulgar e invocar a atuação do acusador. É um imenso prejuízo pelo pré-juízo que realiza e uma flagrante violação ao sistema acusatório. Em suma, não cabe tal invocação, em nenhum caso. O MP é parte e, como tal, incumbe-lhe, com exclusividade, livrar-se de suas cargas processuais para caminhar em direção a uma sentença favorável, sem que para isso o juiz tenha de invocá-lo ou impulsioná-lo. (35) "La pretensión procesal". Estudios jurídicos, p. 588. (36) O termo "juicio oral" é empregado no sentido de fase processual em sentido estrito. Não é adotado o termo "fase judicial" (como no Brasil) porque na Espanha a instrução preliminar está a cargo de um juiz instrutor, logo, tem natureza judicial (ainda que não jurisdicional). (37) Sobre o tema, veja-se nossa obra Sistemas de investigação preliminar no processo penal. (38) Seguindo a Classificação Quinária de Pontes de Miranda, cabe recordar que a sentença, ademais de declaratória, constitutiva e condenatória, também será mandamental e executiva. (39) James Goldschmidt. Problemas jurídicos y políticos del proceso penal, p. 7 et seq. (40) O que segue, veja-se J. Goldschmidt. Problemas jurídicos y políticos del proceso penal, p. 22 et seq., e também Derecho justicial material, p. 54 et seq. (41) Como explica J. Goldschmidt ( Derecho justicial material, p. 52 et seq.) ao analisar a obra de Binding ( Handbuch des Strafrechts, vol. I, 1885. p. 189 et seq.). (42) Com isso não estamos defendendo a adoção do sistema inquisitivo no processo de (RE)DISCUTINDO O OBJETO DO PROCESSO PENAL COM JAIME GUASP E JAMES GOLDSCHMIDT Página 21 execução, todo o oposto. A idéia é reforçar a jurisdicionalidade e a própria estrutura dialética que deve nortear a execução da pena. Cabe assim, ao Ministério Público, invocar o Estado-juiz para que concretize o poder punitivo. Sobre o tema, remetemos o leitor para nosso trabalho "A instrumentalidade garantista do processo de execução". Crítica à execução penal, Lumen Juris, 2002. (43) Esse tema foi muito bem tratado por Gómez Orbaneja ( Comentarios a la ley de enjuiciamiento criminal, vol. 1, p. 187 et seq.), em cuja lição nos baseamos a continuação. (44) No processo penal brasileiro vigoram os princípios de legalidade, indisponibilidade e indivisibilidade da ação penal pública, de modo que o MP está obrigado (arts. 24 e 42) a oferecer a denúncia quando o fato narrado na notícia-crime revista uma verossimilitude mínima de tipicidade, ilicitude e culpabilidade. Nessa denúncia, deverá descrever o fato criminoso com todas as suas circunstâncias (art. 41). Isso significa nãosó a obrigação de acusar por todos os fatos que revistam aparência de delito, senão também a obrigação de trazer para dentro do processo todas as circunstâncias fáticas que tenha conhecimento e que possam apresentar alguma relevância para a instrução e o julgamento. Interpretamos o art. 42 a partir de uma visão garantista e por isso entendemos que ele também estabelece uma obrigação por parte do MP deincluir na denúncia os fatos e circunstâncias que beneficiem ao acusado. Isto é, não só os elementos de cargo, mas também de descargo; não só para inculpar, mas também para exculpar. (45) A expressão é de Pedro Aragoneses Alonso, na obra Proceso y derecho procesal. 2. ed. Madri, 1997. p. 127. É notória e reconhecida pelo próprio autor a marcante influência de Werner Goldschmidt na construção de seu pensamento, especialmente da magistral obra Dikelogia - La ciencia de la justicia, Buenos Aires: DePalma, 1958. (46) Luigi Ferrajoli. Derecho y razón, p. 44 et seq. (47) Idem, ibidem. (48) Derecho procesal civil y penal, p. 301. (49) Julio Fabbrini Mirabete. Processo penal, p. 117.
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