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casos práticos de Direito Educacional - para professores 34 34 casos práticos de direito educacional Autor: Marcelo de Faria Corrêa Andreatta, Advogado e Mestre em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul Ebook Setembro de 2018 Escola de Direito Educacional O Autor autoriza a reprodução desta obra, desde que referida a fonte e resguardados os direitos autorais. Faça do direito o melhor aliado da prática docente 3 PARTE I: TEMAS DE DIREITO E EDUCAÇÃO RESPONSABILIDADE CIVIL E EDUCAÇÃO 1. Acidente em aula de educação física na escola: de quem é a responsabilidade? ............................................................................................ 7 2. Viagem ou passeio escolar e a responsabilidade legal do docente e da escola ........................................................................................................................ 10 3. Atropelamento em horário de aula e a responsabilidade da escola .............. 12 4. Aluno se machucou com bola no intervalo na escola e ficou cego. Responsabilidade de quem? ......................................................................... 15 5. Bullying na escola e a responsabilidade civil pela omissão dos professores gestores ......................................................................................................... 17 6. Expulsão de estudante configura ato ilícito? ................................................. 20 PEDAGOGIA E DIREITO 7. Regimento disciplinar não deve ser subestimado pela comunidade escolar ........................................................................................................................ 24 8. “Coxinhas, petralhas e fascistas...”. Mas e a escola com tudo isso?............. 27 9. Qual é a diferença entre ato indisciplinar e ato infracional? .......................... 30 10. O limite entre medida pedagógica e excesso em um caso de falta disciplinar de aluno que teve repercussão nacional ....................................................... 32 11. Sujar a classe de aula é indisciplina e o professor pode chamar a atenção ....................................................................................................................... 35 12. Avaliação à luz da LDB – Lei de Diretrizes e Bases (lei 9.394/1996) ........... 38 Faça do direito o melhor aliado da prática docente 4 13. ‘Escola Sem Partido’ sob o crivo jurídico e pedagógico ................................ 41 14. Multa aos pais por abandono intelectual e evasão escolar. É possível? ............................................................................................................................. 48 15. Trabalho na escola e educação face à LDB .................................................. 50 16. Proposta pedagógica e direito educacional, um diálogo promissor .............. 52 17. Atos infracionais nas escolas são reduzidos graças a projeto inovador ........................................................................................................................ 55 18. O que o docente deve saber sobre a base nacional comum curricular (BNCC)? ........................................................................................................ 57 19. Bullying na LDB: novidade da lei 13.663/18 que o professor deve saber ........................................................................................................................ 61 20. Reprovação de aluno às vésperas da formatura e sua (i)legalidade ............ 63 DIREITOS DO PROFESSOR 21. Jornada de trabalho do magistério público: 1/3 extraclasse? ....................... 65 22. Assédio moral e síndrome de burnout entre professores nas escolas ........................................................................................................................ 69 23. É lícito demissão de professor no início do ano letivo? ................................. 72 24. Atividades extraclasse contam para aposentadoria do professor? ........................................................................................................................ 74 25. Ofensa à docente em redes sociais e o dano moral? ................................... 76 26. Indenização por assédio moral no ambiente escolar: a resposta do direito ........................................................................................................................ 79 27. Agressão à professora em sala de aula: o poder público é responsável? ........................................................................................................................ 81 28. Redução do salário de professor sem motivo gera danos morais ........................................................................................................................ 84 Faça do direito o melhor aliado da prática docente 5 29. Horas extras por supervisão de estágio é direito de professora universitária ........................................................................................................................ 86 30. Rio grande do sul não implementou o direito à 1/3 extraclasse. Por quê? O que fazer? ...................................................................................................... 88 31. Compensação de aulas em razão de licença-saúde é lícito? ....................... 91 DIREITO CONSTITUCIONAL E EDUCAÇÃO 32. Porque o professor deve conhecer a Constituição Federal? Parte I ..............95 33. Por que o professor deve conhecer a Constituição Federal? – parte II ........................................................................................................................ 98 34. Escola pública próxima e o fechamento de escolas: uma flagrante ilegalidade? .................................................................................................. 107 PARTE II: JUDICIALIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO: ASPECTOS PRÁTICOS............................................................................................................. 110 Faça do direito o melhor aliado da prática docente 6 PARTE I TEMAS DE DIREITO E EDUCAÇÃO Faça do direito o melhor aliado da prática docente 7 1. ACIDENTE EM AULA DE EDUCAÇÃO FÍSICA NA ESCOLA: DE QUEM É A RESPONSABILIDADE? Acidente em aula de educação física na escola pode ter maior repercussão do que se imagina. A discussão do incidente pode chegar na esfera jurídica por uma questão eminentemente de direito. A responsabilidade civil envolvida deve ser conhecida pelos professores e pelos gestores educacionais para evitar problemas. O caso analisado contribui para compreensão do tema. Ocorreu que a família de um aluno de Escola Municipal de Ensino Fundamental ajuizou ação de danos morais, materiais e estéticos contra o Município de Alambari/SP. O jovem sofreu um grave acidente na aula de educação física. Uma queda de uma goleira de futebol. O aluno estava jogando futebol com os meninos enquanto um monitor praticava atividades com o grupo de meninas. Em certo momento, a bola de futebol teria ficado presa acima de um gol da quadra. Quando o referido aluno teria subido em uma das traves para pegá-la, aconteceu o acidente. Ao subir no gol a estrutura quebrou, e o aluno,depois de ter ficado pendurado pela pele no gancho da goleira por alguns instantes, caiu no chão. O indesejado acidente causou ferimentos na região pubiana que deixaram cicatrizes no estudante, passíveis de reparação apenas com cirurgia plástica. A pergunta que fica é: de quem é a responsabilidade por um acidente em aula de educação física na escola? Há que se lembrar que o acidente na aula de educação física aconteceu em uma escola pública de um município de São Paulo. Em primeira instância, o ente público municipal foi condenado a indenizar o aluno e a sua família. Em segunda Faça do direito o melhor aliado da prática docente 8 instância, o Tribunal de Justiça de São Paulo reduziu o valor da indenização, mas manteve a obrigação de indenizar do município. O órgão julgador fundamentou que é dever da instituição de ensino, seja pública ou privada, zelar pela integridade física e moral do aluno regularmente matriculado sempre que estiver nas suas dependências. Tratando de ente público, a responsabilidade por acidente em aula de educação física na escola se dá conforme o artigo 37, § 6º, da Constituição Federal. Assim, os desembargadores do TJSP entenderam que a escola municipal é responsável por qualquer dano ou acidente que o aluno venha a sofrer, seja qual for a sua natureza, nas suas dependências. O dever de guarda e incolumidade física e moral do educando é de responsabilidade dos funcionários (monitores, professores, diretores, etc.) nas dependências da escola. Por isso, foi reconhecida omissão no dever de cuidado, na medida em que ocorreu o acidente na aula de educação física. O professor responsável não percebeu que o aluno subiu na trave para resgatar a bola de futebol presa. A decisão considerou ainda que medidas adequadas de segurança e vigilância poderiam ter impedido o acidente e as lesões resultantes deste evento. O dano moral nestes casos é o chamado dano in re ipsa de presunção absoluta. Isto é, fica dispensada a formação de qualquer prova concreta, tendo em vista que o dano decorre do próprio fato. É a chamada responsabilidade objetiva. Confira o resumo da decisão judicial: Ementa: Responsabilidade Civil do Estado – Indenização por danos morais e materiais – Lesão sofrida pelo autor decorrente de queda em escola municipal durante aula de educação física – Responsabilidade do Poder Público pela integridade física e moral da criança – Caracterizada a falha na prestação do serviço público, em razão do descumprimento do Faça do direito o melhor aliado da prática docente 9 dever de vigilância – Configurado o dano moral passível de reparação e o dever de fornecer a cirurgia reparadora [...]. (Apelação nº 1002088- 75.2014.8.26.0269, TJSP, 13/06/2017). Faça do direito o melhor aliado da prática docente 10 2. VIAGEM OU PASSEIO ESCOLAR E A RESPONSABILIDADE LEGAL DO DOCENTE E DA ESCOLA O professor que conduz uma turma de alunos em viagem de estudos ou lazer é responsável pela integridade de todos os estudantes. A escola também é responsável. Entenda a diferença. Em viagem ou passeio escolar, o professor assume os deveres de guarda, devendo zelar pela incolumidade física de todos que estão sob sua responsabilidade. Sua responsabilidade é subjetiva, isto é, responde culposamente por ação ou omissão, devendo ser examinada a sua conduta sob o aspecto da culpa. Já a Escola que autorizou e/ou consentiu com a viagem de estudos tem responsabilidade objetiva, isto é, a responsabilidade da Escola não depende das ações ou omissões dos professores, diretores ou prepostos, mas ocorre ipso facto, isto é, caracteriza-se tão somente por ter ocorrido o evento danoso, dispensando-se a prova da culpa. Quando estão em cena alunos e professores de escola municipal, a responsabilidade é do município. Quando se tratam de alunos e professores de escola estadual, a responsabilidade é do estado. Quando se tratam de alunos e professores de estabelecimentos particulares de ensino a responsabilidade é dos estabelecimentos particulares. Nesses casos, que envolvem alunos e professores de escolas da rede pública, diz-se que a responsabilidade dos entes de direito público é objetiva e o dano é in re ipsa (da própria coisa), isto significa que o dano é presumido e emerge tão só da consumação do fato, sendo inexigível a prova da culpa por eventual dano. Faça do direito o melhor aliado da prática docente 11 O mesmo ocorre com os estabelecimentos particulares de ensino, sejam eles de primeiro, segundo ou terceiro graus. Nesse sentido são as decisões judiciais dos tribunais brasileiros, que clarificam a compreensão dessa responsabilidade, como a decisão do Superior Tribunal de Justiça: CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. ACIDENTE OCORRIDO COM ALUNO DURANTE EXCURSÃO ORGANIZADA PELO COLÉGIO. EXISTÊNCIA DE DEFEITO. FATO DO SERVIÇO. RESPONSABILIDADE OBJETIVA. AUSÊNCIA DE EXCLUDENTES DE RESPONSABILIDADE. 1. É incontroverso no caso que o serviço prestado pela instituição de ensino foi defeituoso, tendo em vista que o passeio ao parque, que se relacionava à atividade acadêmica a cargo do colégio, foi realizado sem a previsão de um corpo de funcionários compatível com o número de alunos que participava da atividade. 2. O Tribunal de origem, a pretexto de justificar a aplicação do art. 14 do CDC, impôs a necessidade de comprovação de culpa da escola, violando o dispositivo ao qual pretendia dar vigência, que prevê a responsabilidade objetiva da escola. [...]. 4. Os estabelecimentos de ensino têm dever de segurança em relação ao aluno no período em que estiverem sob sua vigilância e autoridade, dever este do qual deriva a responsabilidade pelos danos ocorridos. [...]. (REsp 762.075/DF, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 16/06/2009, DJe 29/06/2009). Faça do direito o melhor aliado da prática docente 12 3. ATROPELAMENTO EM HORÁRIO DE AULA E A RESPONSABILIDADE DA ESCOLA A escola tem o dever de zelar pela integridade física e psíquica dos alunos. Esse dever tem início no momento em que o aluno é entregue à instituição e só termina no instante em que está sob a guarda de familiares e ou responsáveis. Enquanto o estudante permanecer na escola, ou nas suas imediações na espera de transporte autorizado pelos pais, permanece a escola com a responsabilidade de oferecer aos alunos os cuidados indispensáveis à sua integridade. Portanto, há responsabilidade da instituição se um aluno sofrer um atropelamento no horário de aula. O Tribunal de Justiça do RS assim decidiu sobre um caso de atropelamento no horário de aula: Apelação cível. Responsabilidade civil em acidente de trânsito. ação indenizatória. Preliminar de ofensa ao princípio do juiz natural rejeitada. Atropelamento. Responsabilidade objetiva do município. CF/88, ARTIGO 37, PARÁGRAFO 6º. Dever de vigilância. MESMO QUE A CONDUTA DA VÍTIMA TENHA SIDO DETERMINANTE PARA O EVENTO EM QUESTÃO, foi fruto da NEGLIGÊNCIA POR PARTE DOS PROFESSORES E funcionários da escola, que não disponibilizaram as CONDIÇÕES DE SEGURANÇA necessárias à aluna. RESPONSABILIDADE DO ESTADO PELO BEM ESTAR E INTEGRIDADE FÍSICA DOS ALUNOS DO ENSINO PÚBLICO QUANDO ESTES ESTIVEREM NAS INSTITUIÇÕES DE ENSINO OU SOB A GUARDA DOS PROFESSORES RESPONSÁVEIS. REPARAÇÃO POR DANO MORAL DEVIDA. DEVER DE INDENIZAR. DANO IN RE IPSA. DESNECESSIDADE DE PROVA. [...]. (Apelação cível Nº 70042454066 2011, julgado em 1º de junho de 2011).Faça do direito o melhor aliado da prática docente 13 Nesse julgado, paradigmático por abordar diversas situações que ocorrem nas instituições de ensino ou em suas imediações, ou de qualquer forma relacionadas à prestação do serviço educacional, envolvendo, ainda, atores da municipalidade, os desembargadores condenaram o ente público ao pagamento de verba indenizatória por atropelamento no horário de aula de aluna de seis anos, na saída da escola. Assim manifestou-se a douta Des.ª Katia Elenise Oliveira da Silva, relatora: Na hipótese dos autos trata-se de morte decorrente de atropelamento ocorrido em frente à escola municipal, no momento em que a vítima ao sair da aula, dirigia-se ao ônibus que realizava seu transporte, também oferecido pela Prefeitura de Condor/RS. Inicialmente cumpre referir que o caso em tela trata-se de típica hipótese de responsabilidade civil objetiva. Tal assertiva tem por base a redação dada pelo artigo 37, § 6°, da Constituição Federal que, de maneira inquestionável, sedimentou em nossa doutrina a responsabilidade objetiva da Administração Pública, embasada na teoria do risco administrativo, pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, venham a provocar a terceiros. A família da aluna, que tinha apenas seis anos, ajuizou a Ação de Indenização contra o Município, a Empresa de Transporte Público e o motorista do ônibus, em razão do atropelamento no horário de aula que ocasionou a morte da filha. O fato se deu enquanto a criança esperava o ônibus na saída da aula, em frente à escola municipal, onde estudava. A ação foi julgada improcedente em primeiro grau de jurisdição e a família recorreu. Ao relatar o caso, a desembargadora registrou a responsabilidade objetiva do Estado em caso de atropelamento no horário de aula, pelo dever de guarda e segurança adequadas que deveria ter sido ofertado à criança, fazendo parte do acórdão a seguinte fundamentação: Faça do direito o melhor aliado da prática docente 14 Desta forma resta indubitável a negligência por parte dos professores e funcionários da escola, que não ofertaram à vítima, uma criança de seis anos de idade, as condições de segurança adequadas. Assim, levando-se em conta que a partir do momento do embarque no ônibus, até o momento em que devolvida ao lar estava a aluna sob a custódia do Município, cabia ao Estado zelar pelo seu bem estar e integridade física, restando claramente caracterizada sua responsabilidade pelo ocorrido. Faça do direito o melhor aliado da prática docente 15 4. ALUNO SE MACHUCOU COM BOLA NO INTERVALO NA ESCOLA E FICOU CEGO. RESPONSABILIDADE DE QUEM? Uma bolada no olho esquerdo de estudante no intervalo entre as aulas deixou ele cego. O aluno se machucou na escola e ela não foi responsabilizada. Vamos entender por quê? A família de um aluno de escola pública ajuizou ação indenizatória contra a escola. O aluno machucou o olho esquerdo por acidente com uma bola de futebol durante o intervalo das aulas. Este episódio causou dor e cegueira no aluno. O aluno disse que logo após se machucar um professor se negou a levá- lo ao hospital. Ele passou por três cirurgias para correção do deslocamento de retina. Por outro lado, a escola defendeu que os danos que o estudante sofreu decorreram do tempo que seus familiares levaram para procurar recurso médico: sete meses depois que o aluno se machucou. Também ressaltaram que a gravidade do caso não era aparente quando o aluno se machucou. Ainda, alegou que tomaram as primeiras providências necessárias depois do ocorrido. Em primeira instância, a ação foi julgada improcedente e não reconhecendo qualquer obrigação de indenizar. Em segunda instância, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul manteve a decisão do juiz de primeiro grau, afirmando que o aluno se machucou em atividade alheia ao controle da escola. O órgão julgador fundamentou que a bolada no olho ocorreu de forma acidental e não poderia ter sido evitada pela escola, o que faz com que não tenha havido omissão no dever de guarda e zelo pela integridade física quando o aluno se machucou. Acrescentou que ficou comprovado que a escola prestou os primeiros socorros devidamente e que os pais do aluno só procuraram o serviço médico sete meses depois que ele se machucou. Faça do direito o melhor aliado da prática docente 16 Nesse sentido, observaram que a perícia destacou que a demora foi decisiva para o agravamento da lesão no olho do estudante. A demora dos pais que fez com que a situação de cegueira restasse irreversível. Assim, os desembargadores do TJRS entenderam que os primeiros socorros foram devidamente prestados pela escola quando o aluno se machucou. Mais ainda, a gravidade da lesão não era aparente quando do ocorrido, tanto que os próprios pais dele demoraram sete meses para buscar recurso médico. Portanto, concluíram que não houve omissão no dever de guarda da escola. Veja, pois, a decisão: Ementa: RESPONSABILIDADE CIVIL. ESCOLA PÚBLICA. TEORIA DA GUARDA. ALUNO ATINGIDO NO OLHO POR BOLA DE FUTEBOL. PERDA DA VISÃO. VIGILÂNCIA DILIGENTE DOS PROFESSORES. ACIDENTE INERENTE À ATIVIDADE ESPORTIVA. ATENDIMENTO POSTERIOR ADEQUADO, DENTRO DO POSSÍVEL. OBRIGAÇÃO DE INDENIZAR NÃO CONFIGURADA. A escola pública assume o dever de guarda do aluno que lhe é confiado, respondendo, na forma do art. 37, § 6º, da Constituição Federal, pela omissão específica que venha a causar lesão à integridade física do mesmo. Caso em que o autor, com 16 anos de idade, teve o olho esquerdo atingido por uma bola durante uma partida de futebol. [...]. Prova pericial segundo a qual o retardamento no atendimento cirúrgico agravou a lesão, pois o descolamento da retina evoluiu para a perda da visão monocular. Esta demora, todavia, não é atribuída à escola, pois a gravidade da lesão não era aparente - tanto que os pais levaram o filho ao hospital sete meses depois - e os professores adotaram as medidas que reputaram necessárias para o momento (bolsa de gelo e repouso). [...]. (Apelação Cível Nº 70072876527, Décima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Túlio de Oliveira Martins, Julgado em 25/05/2017). Faça do direito o melhor aliado da prática docente 17 5. BULLYING NA ESCOLA E A RESPONSABILIDADE CIVIL PELA OMISSÃO DOS PROFESSORES GESTORES A família de uma aluna de um grupo educacional privado ajuizou ação de danos morais contra a instituição de ensino. A estudante foi alvo de ofensas, perseguição e discriminação por parte de algumas colegas de sala de aula. Situação esta que começou aos poucos e foi se agravando. Bullying. Diante disso, os pais da aluna comunicaram ao colégio. Mesmo assim, o bullying se agravou ao ponto de ser necessário trocar a aluna de instituição. As ofensas, que antes eram somente em horários de aula, continuaram por meios digitais. A intimidação sistêmica está conceituada no artigo 2º da Lei 13.185/15 – Lei do Bullying. Como a conduta hostil começou no ambiente escolar e se propagou para além do colégio, a família disse que houve sério prejuízo moral. Por isso, alegaram ter sofrido graves danos na esfera moral a partir do bullying na escola, que não foi devidamente solucionado. Em primeira instância, a instituição particular de ensino foi condenada a indenizar a aluna e a sua família pelo bullying. Em segunda instância, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios reduziu o valor da indenização, mas manteve a obrigação de indenizar. Os julgadoresestabeleceram que a relação entre aluna e instituição de ensino particular é de consumo. Isso com base nos artigos 2º e 3º do Código de Defesa do Consumidor. Para eles, o bullying sofrido pela estudante se configura em falha na prestação de serviço por parte do colégio. Os desembargadores entenderam ainda que restou caracterizada a prática reiterada de bullying, fato que dá ensejo à indenização à titulo de danos morais à aluna. Por outro lado, o Tribunal não acolheu a tese de responsabilidade Faça do direito o melhor aliado da prática docente 18 de terceiros. Entendeu que a responsabilidade da instituição de ensino por bullying é objetiva, conforme o artigo 14, § 1º do CDC. Ao final, os julgadores ressaltaram que o colégio faltou com o dever de guarda ao não proporcionar um ambiente seguro aos alunos. Os responsáveis pela instituição não deveriam permitir que o bullying fosse praticado na escola. Confira o resumo da decisão judicial sobre o caso: Ementa: CONSUMIDOR. APELAÇÃO CÍVEL. BULLYING. VIOLAÇÃO A DIREITOS DA PERSONALIDADE EVIDENCIADOS. FALHA DA PRESTAÇÃO DE SERVIÇO. EXCLUDENTE DE RESPONSABILIDADE POR ATO DE TERCEIRO. AFASTADA. DANO MORAL CONFIGURADO. VALOR DA INDENIZAÇÃO REDUZIDO. SENTENÇA PARCIALMENTE REFORMADA. 1. Segundo a Lei nº 13.185/2015 ataques físicos, insultos pessoais, comentários sistemáticos e apelidos pejorativos, ameaças por quaisquer meios, grafites depreciativos, expressões preconceituosas, isolamento social consciente e premeditado, pilhérias (zombarias) são alguns exemplos de atos que podem ser considerados bullying. [...] 3. Comprovada a ocorrência de intimidações sistemáticas contra a Apelada, patente é a violação aos seus direitos da personalidade, razão pela qual restam configurados os danos extrapatrimoniais, os quais são, portanto, passíveis de serem compensados. 4. O Apelante, como centro de ensino, é incumbido do dever de guarda, devendo, assim, proporcionar um ambiente seguro e voltado às práticas educacionais, de modo a assegurar o saudável desenvolvimento cognitivo dos estudantes. No entanto, ao deixar de fiscalizar e apurar de forma efetiva os fatos ocorridos em suas dependências, permitindo-se, assim, a prática reiterada de bullying contra a apelada, a qual não lhe restou outra alternativa a não ser mudar de colégio, tem-se por evidenciada a conduta negligente do apelante e a prestação de um serviço defeituoso, na medida em que o ambiente escolar ofertado pelo apelante não ofereceu a segurança razoável que Faça do direito o melhor aliado da prática docente 19 dele se podia esperar. [...]. (Processo nº 0011617-45.2015.8.07.0006, TJDFT, 01/06/2016). Faça do direito o melhor aliado da prática docente 20 6. EXPULSÃO DE ESTUDANTE CONFIGURA ATO ILÍCITO? Com frequência recebo este questionamento ao dialogar com professores a respeito do tema da judicialização da educação. Por isso resolvi escrever a respeito dos fundamentos jurídicos envolvidos na expulsão de aluno. Vamos lá, confira. Inicialmente, adotando o correto pressuposto de que a educação é um direito inscrito no rol dos direitos sociais. Direito este protegido pelo texto constitucional e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, expulsão de aluno do âmbito escolar não seria ato eivado de ilicitude, passível de reparação no Poder Judiciário? Assim, importa consignar que nossa compreensão de educação não se coaduna com ‘expulsar’ ou ‘excluir’ sujeitos dos processos educativos. Uma das tarefas da escola é promover a humanização, a vocação ontológica do ser humano de ‘ser mais’, no sentido pugnado por Freire. Em termos jurídicos, poderíamos entender tal vocação a partir de um dos objetivos da educação: a promoção da cidadania. E neste ponto não há espaço para expulsão. À despeito desta posição pedagógica, há circunstâncias excepcionais que autorizam a expulsão, ao passo que há situações em que expulsão de aluno é absolutamente incompatível com o ordenamento jurídico vigente. A partir da análise de dois casos concretos, entenderemos alguns parâmetros que a coordenação deve observar ao avaliar a expulsão de aluno como providência. Expulsão de aluno constitui-se em medida excepcional. Do ponto de vista pedagógico, importa a garantia de que a escola envidou os melhores esforços para Faça do direito o melhor aliado da prática docente 21 incluir o estudante no processo de formação. Do ponto de vista jurídico, veda-se a arbitrariedade, o desrespeito ao Regimento Escolar e aos princípios elementares do direito ao contraditório e à ampla defesa. Há, enfim, um conjunto de protocolos e medidas imprescindíveis que os gestores devem adotar, mormente em um cenário em que cada vez mais estas temáticas, como expulsão de aluno, passam pelo crivo do Poder Judiciário. Veja a seguir os dois casos de expulsão: CASO 1 (EXPULSÃO DE ALUNO): DANOS MORAIS. “Expulsão” de aluno. Processo conduzido em conformidade com as normas do Regulamento Comum da unidade escolar. Ampla defesa devidamente oportunizada. Ausência de ato ilícito por parte da instituição de ensino. Ação julgada improcedente. Sentença mantida. Recurso desprovido. (Apelação n. 1001870-68.2014.8.26.0068, TJSP, 10/04/2017) CASO 2 (EXPULSÃO DE ALUNO): REEXAME NECESSÁRIO. MANDADO DE SEGURANÇA. DIREITO À EDUCAÇÃO. EXPULSÃO DO ALUNO DE ESCOLA MUNICIPAL. 1. Não sendo observado o disposto no Regimento Interno Escolar, bem como não sendo oportunizado ao adolescente e seus pais exercerem o direito de defesa, mostra-se descabida a expulsão sumária do adolescente da instituição de ensino. 2. É cabível o reexame de sentença pelo segundo grau de jurisdição, pois enquadra-se o presente caso na exigência legal. Inteligência do art. 14, §1º, da Lei nº 12.016/09. Sentença confirmada. (Nº 70060776903, TJRS, 27/08/2014) ANÁLISE DO CASO 1 – EXPULSÃO DE ALUNO No primeiro caso, a expulsão da escola ocorreu em razão de o aluno ter cometido uma série de atos indisciplinares. Estas ocorrências foram objetos de apuração pela gestão pedagógica da escola, com os devidos registros de Faça do direito o melhor aliado da prática docente 22 desentendimentos com alunos e professores, indisciplina e agressividade, comportamento perigoso, agressões a alunos e funcionários, dentre outros. (Acórdão). Em síntese, a escola comprovou que tentou dialogar com os pais, solicitou apoio do Conselho Tutelar e fez o que julgou possível para manter o estudante inserido nos processos de aprendizagem. Tais medidas, entretanto, foram insuficientes e esbarraram na impossibilidade de a escola realizar um acompanhamento e tratamento na área da saúde, imprescindível para a situação verificada. Por tudo isso, o desligamento do estudante não foi entendido pelo Poder Judiciário como ato ilícito. Destaca-se que todos passos administrativos que levaram à expulsão do aluno foram acompanhados pelos pais, que tiveram garantidos o contraditório e a ampla defesa. ANÁLISE DO CASO 2 – EXPULSÃO DE ALUNO Por outra senda, no segundo caso restou claro que a escola agiu arbitrariamente na expulsão do aluno, que sequer foi ouvido. Verificou-se que o estudante não estava adotando comportamento compatível com o ambiente escolar. Entretanto, a escola não demonstrou ao Juízo qualquer providência no sentido de apurar as ocorrências identificadas. Além disso, não observou o Regimento Escolar, que prevê uma escala de punições disciplinares, sendo a expulsão do estudante a derradeira alternativa.Igualmente, os gestores pedagógicos não avaliaram a necessidade de um apoio psicológico. Tratou-se, portanto, de expulsão de aluno sumária, visto que sequer o direito à ampla defesa e ao contraditório foi respeitado. Expulsão de estudante constitui-se em medida excepcional. Do ponto de vista pedagógico, importa a garantia de que a escola envidou os melhores esforços para incluir o estudante no processo de formação. Do ponto de vista Faça do direito o melhor aliado da prática docente 23 jurídico, veda-se a arbitrariedade, o desrespeito ao Regimento Escolar e aos princípios elementares do direito ao contraditório e à ampla defesa. Há, enfim, um conjunto de protocolos e medidas imprescindíveis que os gestores devem adotar, mormente em um cenário em que cada vez mais estas temáticas passam pelo crivo do Poder Judiciário. Faça do direito o melhor aliado da prática docente 24 7. REGIMENTO DISCIPLINAR NÃO DEVE SER SUBESTIMADO PELA COMUNIDADE ESCOLAR Percebemos no cotidiano escolar uma violência latente, física e simbólica. Mas e qual é o papel do Regimento Disciplinar neste cenário? Entenda no texto abaixo. Há uma grande confusão na escola em face da violência. Há dúvidas sobre a correção de procedimento frente a ato infracional e ato indisciplinar. A comunidade escolar ainda subestima o regimento disciplinar. Primeiramente temos que diferenciar ato infracional de ato indisciplinar. Ato infracional é o ato descrito como crime ou contravenção penal, conforme artigo 103 do ECA. Ato indisciplinar, por sua vez, consiste em ações perpetradas por estudantes no contexto da escola que estão em desacordo com as condutas preconizadas pela instituição no regimento disciplinar. REGIMENTO DISCIPLINAR E ATO INDISCIPLINAR Devemos destacar aqui a importância do Regimento Disciplinar, verdadeiro balizador do comportamento esperado. O Regimento Disciplinar dispõe sobre os atos indisciplinares, sua descrição e as sanções correspondentes a estes atos. Nele deve estar previsto, por exemplo, o horário que a direção dispõe para conversas individuais com docentes. Ou em qual dia a equipe diretiva ou pedagógica está à disposição dos pais. Caras professoras, caros professores. O regimento disciplinar deve ser público, quiçá disponível no site ou em redes sociais, pois é o balizador das condutas dos estudantes. Tem, ainda, o condão de normatizar o funcionamento e a organização da vida escolar, do ponto de vista institucional, prático. Faça do direito o melhor aliado da prática docente 25 Cada ato indisciplinar previsto no regimento disciplinar deve estar acompanhado de uma sanção determinada. Além disso, é importante que se tenha a previsão de uma comissão escolar responsável pela apuração do ato indisciplinar. Com estes cuidados a escola supera a discricionariedade das punições aplicadas. Discricionariedade significa tratar aleatoriamente, sem padrão, cada situação. O poder discricionário é o poder arbitrário, livre de qualquer fundamento ou justificativa anterior. Para evitá-lo, nada melhor que um regimento disciplinar transparente que tipifique condutas indisciplinares e suas respectivas punições. REGIMENTO DISCIPLINAR E ATO INFRACIONAL Do ponto de vista estritamente legal, não é correta a afirmativa reproduzida pelo senso comum de que “com adolescente não dá nada”. O ECA contém um sistema de responsabilização juvenil cuja carga é indiscutivelmente penal, pois versa sobre a liberdade do sujeito. No limite, um jovem de doze anos pode sofrer uma medida socioeducativa de meio fechado e ficar até três anos preso. Ao vislumbrar a ocorrência de ato infracional, a gestão pedagógica e os responsáveis pela disciplina escolar devem fazer uma primeira apuração, buscando aclarar os fatos. Estando obscura a autoria do delito, o Boletim de Ocorrência pode ser confeccionado, mas a escola deve se abster de indicar autores, sob pena de imputação indevida. Em se confirmando o ato infracional, é imprescindível que existam elementos probatórios suficientes para fazer o registro do Boletim de Ocorrência. O restante da apuração e responsabilização, no que toca ao ato infracional, é do sistema de justiça da infância e juventude. Ocorre que se o ato infracional perpetrado também estiver disposto nas condutas indisciplinares previstas no Regimento Disciplinar, a escola tem todo o direito de adotar o procedimento frente a ato infracional disposto e promover a sanção correspondente. Faça do direito o melhor aliado da prática docente 26 A sanção disciplinar no âmbito da escola, portanto, independe da apuração do ato infracional no sistema de justiça. Tal procedimento frente a ato infracional tem, inclusive, mais celeridade, pois decorrente de um procedimento mais simplificado previsto no Regimento Disciplinar. Faça do direito o melhor aliado da prática docente 27 8. “COXINHAS, PETRALHAS E FASCISTAS...”. MAS E A ESCOLA COM TUDO ISSO? Coxinhas, petralhas e fascistas são expressões que revelam intolerância e acirramento de posicionamentos políticos. E qual o papel da escola neste cenário? Cabe aos docentes da Educação Básica fomentar a discussão, problematizando tais questões? A solução é o diálogo plural na escola, moderado e respeitoso. É inegável que passamos por tempos de crescente intolerância e acirramento de posicionamentos políticos. Como norte, extraímos um caminho de reflexão nas diretrizes do Plano Nacional de Educação. Seus princípios apontam na direção da cidadania, promoção humanística, gestão democrática, o respeito aos direitos humanos e à diversidade. Um diálogo plural na escola. Pretendemos não nos estender no aspecto legal, visto que poderíamos abordá-lo inclusive do ponto de vista constitucional. No entanto, importa sublinhar que os preceitos normativos de direito educacional são transparentes no sentido de uma escola democrática e dialógica. Em outras palavras, se aposta num diálogo plural na escola para promoção da cidadania. Neste sentido, como proceder? Acreditamos que este cenário abre diversas oportunidades de debates, não apenas em sala de aula. Se o noticiário recente é farto em abordar a Justiça e o Poder Judiciário, por que não aproveitar para discutir regras de comportamento no ambiente escolar? Nessa linha, em última análise se discute hodiernamente condutas de agentes políticos e as sanções respectivas, oportunidade ímpar para que se discuta um novo Regimento Escolar - RE, ao menos no que toca a condutas inadequadas e suas respectivas sanções. Então um documento que afirme o diálogo plural na escola pode ser uma boa ideia. Faça do direito o melhor aliado da prática docente 28 Discussão coletiva, cujo desiderato não é simplesmente o resultado final (uma reescrita deste capítulo do RE). Porém o exercício do debate democrático substancial e consequente. Substancial porque os estudantes terão que discutir temas pertinentes a seu contexto imediato. Consequente, pois tais deliberações terão repercussão na vida escolar. O espírito democrático e o respeito genuíno à diferença se constroem na prática, no seu exercício cotidiano. E não há espaço mais adequado a este exercício que as instituições educacionais. Ou seja, através de um diálogo plural na escola. Aí reside um dos grandes equívocos do autodenominado “escola sem partido”, que quer o silêncio diante das grandes questões contemporâneas. Importante, pois, fazer uma ressalva: a democracia não podeservir de blindagem para autorizar a promoção de discursos de ódio, autoritário ou discriminatório. Ao abordar temas quentes do Brasil contemporâneo, necessário que o docente faça uma espécie de preliminar, indicando tais restrições e moderando ativamente qualquer troca de ideias que resvale para este caminho. A construção de um espaço dialógico e de um diálogo plural na escola exige redobrada atenção. Particularmente, ao tempo em que exerci a docência (seja na Educação Básica ou no ensino superior) sempre organizei minhas aulas de modo a garantir um “tempo para o nosso tempo”. E o fazia de duas maneiras. A primeira, mais simples, consistia em fazer pontes entre o período histórico estudado e a realidade. Quando não havia esta possibilidade, e o tema realmente estava na ordem do dia, preservava alguns minutos iniciais para instaurar o diálogo. Momento este não raras vezes extraordinário de participação discente. Minha intervenção nestes instantes? Aclarar equívocos conceituais e históricos e moderar os ânimos mais acalorados. Enfim, para usar a clássica assertiva da teoria pedagógica, a escola não é uma ilha. Os fundamentos jurídicos do trabalho pedagógico autorizam o debate democrático e o diálogo plural na escola. O tão festejado pluralismo de ideias. Faça do direito o melhor aliado da prática docente 29 Por fim, o direito educacional preconiza uma escola que aposte nos valores da cidadania. Este sim é corolário maior do Estado Democrático e Social de Direito instituído na Constituição de 1988, não por outra razão chamada de constituição cidadã. Por isso insistimos que é importante o docente conhecer a Constituição. Faça do direito o melhor aliado da prática docente 30 9. QUAL É A DIFERENÇA ENTRE ATO INDISCIPLINAR E ATO INFRACIONAL? Indisciplina na escola é fato comum nas escolas do Brasil. Nem tão raro também são os casos de infrações. Por isso, é importante para professoras e professores entender a diferença entre ao indisciplinar e ato infracional na escola. Aparentemente simples esta questão merece toda a atenção dos gestores educacionais na apuração de infração ou indisciplina na escola cometida por estudantes. Ato indisciplinar não pode ser confundido com ato infracional. Ato indisciplinar diz respeito às condutas que ferem as normas de comportamento escolar, ou o regimento disciplinar. Já ato infracional versa sobre fato descrito como crime no Código Penal, conforme previsão do art. 103 do Estatuto da Criança e do Adolescente. Diz o artigo que “considera-se ato infracional a conduta descrita como crime ou contravenção penal”. Ou seja, quando um adolescente comete dano ao patrimônio público, quebrando vidros ou destruindo classes, à rigor não se trata apenas de indisciplina. O aluno, na realidade, está cometendo ato infracional, pois é crime previsto no art. 163, inciso III, “destruir, inutilizar ou deteriorar coisa alheia”. Neste caso, o encaminhamento devido é o registro de Boletim de Ocorrência em Delegacia de Polícia Especializada, para formação do Inquérito Policial. A finalidade é a apuração de autoria e materialidade. O Inquérito será encaminhado pelo Ministério Público que fará a denúncia na respectiva Vara de Infância e Juventude. A condenação poderá resultar em medida socioeducativa, verdadeira sanção de natureza penal, visto sua carga retributiva. Há acaloradas discussões sobre a natureza das medidas socioeducativas. A nosso juízo, não temos dúvidas se Faça do direito o melhor aliado da prática docente 31 tratar de sanção de natureza eminentemente penal, por ser compulsória e, no limite, prever a privação de liberdade. Ato indisciplinar, por sua vez, geralmente não é um fato cujo apuramento sai da alçada da instituição. Por outro lado, quando um adolescente comete ato indisciplinar, o correto procedimento é a sua apuração por uma comissão que desempenhe esta atribuição por certo período. Esta comissão deve ser subsidiada pelo regimento disciplinar, que deve conter sanções a respectivos comportamentos descritos como indisciplina na escola. Evidentemente, o aluno autor do ato de indisciplina na escola deve ser ouvido pela comissão, que apresentará um breve relato seguido (ou não) de sanção. Com o regimento disciplinar, a comissão de apuração acima descrita e a oitiva do acusado, protege-se a legalidade das eventuais sanções e a instituição de ensino se afasta da arbitrariedade no enfrentamento da questão. Faça do direito o melhor aliado da prática docente 32 10. O LIMITE ENTRE MEDIDA PEDAGÓGICA E EXCESSO EM UM CASO DE FALTA DISCIPLINAR DE ALUNO QUE TEVE REPERCUSSÃO NACIONAL Professoras e professores diariamente têm dúvidas acerca de qual é a medida pedagógica correta para cada situação. O medo da responsabilização por excesso pode frear atitudes dos docentes. O texto a seguir resume um caso de repercussão nacional. A família de um aluno de Escola Estadual de Ensino Médio ajuizou ação de danos morais contra o Estado do Rio Grande do Sul. O aluno, segundo os pais, teria sido humilhado pela professora em frente aos colegas. Para eles, a atitude da professora teria ultrapassado os limites de uma medida pedagógica. No processo, foi comprovado que o adolescente pichou o seu apelido em uma parede da escola. Isso ocorreu logo após uma ampla mobilização da comunidade para revitalização da instituição através da pintura das paredes das salas de aula. Diante deste fato, a vice-diretora solicitou ao aluno que pintasse novamente a parede, em frente a seus colegas. Neste momento, o aluno teria ironizado a situação, ao tempo em que a professora teria lhe chamado a atenção para levar a situação a sério. Inconformada com o claro desrespeito, a professora teria chamado o jovem de “bobo da corte” no contexto dos atos praticados. O evento foi filmado por outro aluno com o celular e ganhou repercussão na internet e na mídia com o questionamento da medida pedagógica. Por isso, a família disse que o aluno ficou muito abalado, envergonhado e sem ir à aula por algum tempo. No juízo de primeiro grau, o ente público foi condenado a indenizar o aluno e a sua família. Em segunda instância, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Faça do direito o melhor aliado da prática docente 33 Sul, reformou a decisão, concluindo que a atitude se tratou de medida pedagógica enérgica no contexto dos fatos. Após ponderarem a situação sob aspectos do direito educacional e fazerem uma análise do caso concreto, os julgadores desobrigaram o Estado a pagar indenização. Concluíram que a resposta da professora não excedeu os limites de uma medida pedagógica. Os Desembargadores entenderam que restou demonstrada a intenção disciplinar da docente. Reconheceram que não houve qualquer intenção de humilhar o aluno, mas de lhe aplicar uma medida pedagógica adequada à transgressão cometida. O Tribunal lembrou que pichação se constitui em dano ao patrimônio público, com previsão no Código Penal. Portanto, o adolescente poderia ser responsabilizado pelo cometimento de ato infracional, sujeito à aplicação de medida socioeducativa. O que, geralmente, é mais forte que uma medida pedagógica. O julgador relator da decisão lembrou que tanto o aluno quanto seus pais não participaram do mutirão para revitalização da escola. Observou ainda que a repercussão pública do caso decorreu da “tentativa dos pais do educando de tirar proveito da situação”. O Tribunal pontuou, aofinal, que a conduta reprovável do estudante se deve à omissão dos pais, destacando que a medida pedagógica da professora não causou danos efetivos ao aluno. A extensa decisão abordou a situação sob o ponto de vista do direito e da cidadania. Confira o resumo da decisão judicial: Ementa: APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL. FALTA DISCIPLINAR PRATICADA POR ALUNO DE ESCOLA PÚBLICA ESTADUAL. APLICAÇÃO DE MEDIDA PEDAGÓGICA POR Faça do direito o melhor aliado da prática docente 34 PROFESSORA. REPARAÇÃO INDEVIDA. [...] Realizada a pintura em toda escola, o autor pichou uma das paredes com o seu apelido, atitude deveras reprovável, especialmente diante do contexto dos fatos. Em razão disso, a então Vice-Diretora lhe aplicou uma medida pedagógica determinando que realizasse a pintura do espaço que havia pichado e também que a ajudasse a realizar outras pinturas pequenas em demais locais da escola, assim como os demais colegas tinham realizado no dia anterior. In casu, muito embora a professora possa ter sido indelicada na forma como aplicou a medida pedagógica, restou evidenciado que sua atitude não foi de constranger o aluno. [...]. (Apelação Cível nº 70070165360, TJRS, 09/11/2016). Faça do direito o melhor aliado da prática docente 35 11. SUJAR A CLASSE DE AULA É INDISCIPLINA E O PROFESSOR PODE CHAMAR A ATENÇÃO A família de um aluno de escola particular ajuizou ação de danos morais contra a instituição de ensino e um professor de geografia que nela trabalha. O aluno disse que se sentiu humilhado quando o professor lhe chamou a atenção por estar sujando a classe de aula. O episódio aconteceu durante uma aula de geografia. O docente pediu que o aluno limpasse a classe que riscou com “errorex”. Este episódio, segundo o que disse a família em juízo, teria causado danos e prejuízos de relacionamento ao aluno. O aluno afirmou que o professor foi ofensivo lhe acusando injustamente na frente da turma de sujar a classe. O estudante disse que o “errorex” respingou no seu material quando ele foi abri-lo e acabou por sujar a classe. Os pais do referido aluno exigiram a demissão do professor para manter o seu filho na escola. Eles disseram que o docente humilhou seu filho em frente aos colegas ao chamar a atenção do jovem por sujar a classe de aula. Por outro lado, o colégio e o professor defenderam que o aluno estava escrevendo o seu nome na mesa propositalmente. Alegaram que, mesmo assim, apenas lhe foi chamada atenção pelo comportamento inadequado de forma respeitosa. O colégio também ressaltou que o referido professor é muito querido pelos alunos, devido ao seu tratamento afetuoso e digno. Além disso, alguns colegas confirmaram que viram o referido aluno sujar a classe. Em primeira instância, a ação foi julgada improcedente e não reconheceu qualquer obrigação de indenizar. Em segunda instância, o Tribunal de Justiça do Rio Faça do direito o melhor aliado da prática docente 36 Grande do Sul manteve a decisão do juiz de primeiro grau entendendo que sujar a classe de aula não é uma conduta adequada, nem esperada, de um estudante. O órgão julgador fundamentou que as testemunhas ouvidas não deixaram dúvidas de que a versão do aluno era inverídica. Por outro lado, se comprovou que o aluno riscou a classe. Os julgadores acrescentaram que o aluno não chamou qualquer colega que tenha presenciado o episódio para testemunhar, mesmo que tenha mantido amizade com vários. Em sentido contrário, concluiu que as testemunhas foram coerentes ao dizerem que o colega estava riscando a mesa com “errorex” e o professor lhe chamou atenção educadamente. Assim, os desembargadores do TJRS entenderam que não há qualquer ato ilícito que enseje o dever de indenizar. Igualmente, com base no pensamento de filósofos contemporâneos (como Zygmunt Bauman, Leandro Carnal e Mario Sérgio Cortella) dissertaram que sujar a classe de aula é conduta completamente inadequada. O Tribunal referiu que o processo foi o produto de uma verdadeira inversão de valores. Ainda, que este problema assola a sociedade moderna, onde passou a se confundir autoridade com autoritarismo. Em que fazer e ensinar o certo (não sujar a classe) passou a ser considerado abusivo. Nesse sentido, concluíram que o professor buscou educar o aluno ao constatar o fato. Inclusive foi procurada ajuda dos pais que, por outro lado, se voltaram contra o colégio e o educador. Confira o resumo da decisão judicial, que ressaltou o caráter disciplinar da atitude do professor: Ementa: APELAÇÃO CIVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. INSTITUIÇÃO DE ENSINO. Faça do direito o melhor aliado da prática docente 37 ALEGADO TRATAMENTO DESRESPEITOSO DE PROFESSOR EM FACE DE ALUNO. PROVA ROBUSTA EM SENTIDO CONTRÁRIO. PRETENSÃO QUE BEIRA A MÁ-FÉ. [...]. O docente apenas se limitou a ordenar que o aluno limpasse a classe escolar que havia rabiscado, o que fez em tom apropriado e com a firmeza que a situação exigia. Não se pode confundir autoridade com autoritarismo. Ensinar um jovem a assumir a responsabilidade de seus atos e consertar o dano cometido é tarefa primeira dos pais, tendo a escola função supletiva/complementar. Nesse contexto, a ordem para que o autor limpasse a sujeira feita não teve qualquer viés de humilhação, mas objetivou apenas educá-lo, transformando-o num cidadão consciente de seus deveres e limites, ciente das conseqüências de seus atos. [...]. (Apelação Cível Nº 70073219685, Nona Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Eugênio Facchini Neto, Julgado em 24/05/2017). Faça do direito o melhor aliado da prática docente 38 12. AVALIAÇÃO À LUZ DA LDB – LEI DE DIRETRIZES E BASES (LEI 9.394/1996) É consenso que a avaliação de aluno cumpre função de relevo nos processos educativos escolares. Na realidade, cotidianamente constitui-se em argumento central do docente para atenção em sala de aula, ou para que sejam realizadas as tarefas escolares. Qual professor nunca utilizou a expressão ‘prestem atenção, porque vai cair na prova’? Há, ainda, uma miríade de teorias pedagógicas: a compreensão advinda da tradição, em que avaliação confunde-se com provas pontuais, cumulativas e classificatórias; a leitura de que a avaliação deve ser processual e diversificada, abarcando atividades extraclasse, trabalhos de pesquisa, comunicação de resultados; ou de que ela é o verdadeiro coração do processo de aprendizagem. Pois aí reside o poder docente. Pode-se ainda referir a percepção de que a avaliação é o mecanismo de disciplinamento da criança ou do adolescente, o que desautorizaria seu manejo. Nesta cena, o que a legislação educacional dispõe sobre a avaliação de aluno? Vejamos o inciso V do art. 24 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional: Art. 24. A educação básica, nos níveis fundamental e médio, será organizada de acordo com as seguintes regras comuns: (...) V - a verificação do rendimento escolar observará os seguintes critérios: a) avaliação contínua e cumulativa do desempenho do aluno, com prevalência dos aspectos qualitativos sobre os quantitativos e dos resultados ao longo do período sobre os de eventuais provas finais; Faça do direito o melhor aliado da prática docente 39 b) possibilidade de aceleração de estudos para alunos com atraso escolar; c) possibilidade de avanço nos cursos e nas séries mediante verificação do aprendizado;d) aproveitamento de estudos concluídos com êxito; e) obrigatoriedade de estudos de recuperação, de preferência paralelos ao período letivo, para os casos de baixo rendimento escolar, a serem disciplinados pelas instituições de ensino em seus regimentos; Da leitura deste dispositivo é possível concluir que a avaliação de aluno como tradicionalmente é concebida não se alinha aos valores dispostos na legislação. A ideia contida na LDB é que a avaliação seja feita processualmente (ao contrário de pontualmente). Veja a alínea “a”, em que o legislador tem o cuidado de expressamente afastar as provas finais. Depreende-se também o descompasso com a legislação na reprovação de ano em razão da insuficiência em uma ou duas disciplinas, conforme a dicção da alínea “d”, “aproveitamento dos estudos concluídos com êxito”. Assim, o sujeito reprovado em matemática ou história não deve, em respeito ao dispositivo em comento, repetir todas as disciplinas, visto que os outros componentes, a rigor, foram concluídos com êxito. Na perspectiva legal, a avaliação é parte de um plano de trabalho. Isso na medida em que propicia ao docente fazer um diagnóstico das dificuldades da turma a respeito do conteúdo ministrado, dos avanços e das dificuldades enfrentadas pelos estudantes. Uma espécie de termômetro. Neste sentido, a avaliação é ferramenta indispensável para o bom desenvolvimento das atividades escolares, visto que a partir de um bom diagnóstico é possível ao docente planejar (e replanejar...) as atividades de sala de aula. Vejam, nenhuma menção à classificação de estudantes. Foco dirigido aos processos de aprendizagem. Melhor, foco na qualificação dos processos de aprendizagem. Faça do direito o melhor aliado da prática docente 40 Na realidade, o escopo da LDB, no que toca à avaliação, é incluí-la no bojo de um projeto pedagógico inclusivo e democrático, sem descuidar da qualidade dos processos de aprendizagem. Para tanto, a avaliação é entendida como um processo permanente, contínuo, em que a aprendizagem não é verificada no fim do percurso, mas no curso de toda a caminhada. Faça do direito o melhor aliado da prática docente 41 13. ‘ESCOLA SEM PARTIDO’ SOB O CRIVO JURÍDICO E PEDAGÓGICO Pretendemos analisar sob o prisma jurídico e o debate pedagógico as propostas articuladas em torno do movimento (?) ‘Escola Sem Partido’ (ESP). É legítimo do ponto de vista jurídico? É correto do ponto de vista pedagógico? Vejam o que a Escola de Direito Educacional entende a respeito do movimento. Em um primeiro momento, definiremos o tema, utilizando-nos das palavras de seus protagonistas. Sujeitos cujo lócus de trabalho é o direito e a política.1 Na sequência, pretende-se abordá-lo a partir do direito educacional. Área jurídica que toma corpo nos últimos anos. Além disso, faremos uma análise preliminar dos propósitos do movimento Escola Sem Partido. Neste ponto tendo por pano de fundo o complexo debate pedagógico contemporâneo, em que várias tendências se complementam e se opõem, em um mosaico desprovido de verdades inquestionáveis. Segundo artigo publicado pelo ‘El País’,2 o movimento Escola Sem Partido iniciou em decorrência de um episódio em São Paulo, no qual um professor teria comparado Che Guevara a São Francisco de Assis. Tal analogia foi compreendida como doutrinação ideológica de esquerda, motivando críticas, em meados de 2003. Em 2004 foi criado o movimento Escola Sem partido com 3 objetivos definidos pelos seus idealizadores.3 Um, a descontaminação e desmonopolização política e ideológica das escolas. Dois, o respeito à integridade intelectual e moral dos estudantes. Três, o 1 Note-se que aqui não se faz qualquer juízo de valor. É fato. O pioneiro deste movimento é o Dr. Miguel Nagib, advogado paulista e articulador do ESP, na medida em que criou uma associação para fins de multiplicação de suas ideias. Outrossim, tais ideias tem sido repercutidas eminentemente por vereadores e deputados alinhados ao Dem e ao PP, inexistindo notícia de que instituições de pesquisa acadêmica a corroboram. 2 Artigo: Movimento Escola Sem Partido foi criado a partir da indignação de um pai com um professor. Fonte: http://brasil.elpais.com/brasil/2016/06/23/politica/1466654550_367696.html 3 Consulta ao site http://www.escolasempartido.org/objetivos em 28 de março de 2017. Faça do direito o melhor aliado da prática docente 42 respeito ao direito dos pais de dar aos seus filhos a educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções. Para levar a cabo tais objetivos, o Escola Sem Partido propõe uma estratégia eminentemente jurídica. Assim destacando no seu site um modelo de notificação extrajudicial. Além disso, indica um “dia nacional de luta contra a doutrinação política e ideológica nas escolas”. ESCOLA SEM PARTIDO E O PRISMA JURÍDICO Particularmente, admito que subestimei o Escola Sem Partido. Há cerca de dois anos, provocado por colega de longa data, resumi-o apontando sua flagrante inconstitucionalidade. Esta foi reconhecida recentemente pelo Ministro Luís Roberto Barroso, do STF. Nessa linha, deferindo liminar para suspender Lei promulgada pelo Estado de Alagoas cujo teor alinha-se ao Escola Sem Partido, Barroso foi enfático. Disse ele: “A norma [lei inspirada no Escola Sem Partido] é, assim, evidentemente inadequada para alcançar a suposta finalidade a que se destina: a promoção de educação sem ‘doutrinação’ de qualquer ordem. É tão vaga e genérica que pode se prestar à finalidade inversa: a imposição ideológica e a perseguição dos que dela divergem. Portanto, a lei impugnada limita direitos e valores protegidos constitucionalmente sem necessariamente promover outros direitos de igual hierarquia.”4 Deste modo, tais considerações dariam conta de encerrar o tema. Ocorre que os sucessivos embates criados pelo Escola Sem Partido faz crescer a preocupação dos professores que exercem diariamente seu ofício. Pretende o Escola Sem Partido que o ensino seja ministrado com neutralidade. Ainda, que os docentes se abstenham de compartilhar qualquer opinião que diga respeito a credo, ideologia e gênero. 4 Site do Supremo Tribunal Federal: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=338884 Faça do direito o melhor aliado da prática docente 43 Ademais, aos militantes do Escola Sem Partido propõe-se que primeiramente notifiquem os docentes e as escolas que diretamente ou por omissão deixem que tal ocorra.5 Acompanhado por Barroso, reconhecido constitucionalista e Ministro do STF, entendo que os objetivos do Escola Sem Partido são ilegais e inconstitucionais. Isso porque pretendem cercear a liberdade do docente no exercício de seu trabalho, nos exatos limites do componente curricular do qual é titular. De igual modo, a Constituição Federal não autoriza a censura. Ao contrário, aposta na liberdade de expressão, condição para o pleno exercício do magistério. Tal direito constitui-se em garantia fundamental. Veja-se, pois, o teor do artigo 5º, IV e IX, da CF, por exemplo: Art. 5º: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) IV: É livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;IX: é livre a expressão artística, científica e de comunicação, independente de censura ou licença. Sobre a questão educacional, vejamos o que dispõe o texto constitucional: Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: (...) II – liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber; III – pluralismo de ideias e concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino; 5 Diga-se de passagem que esta notificação, a nosso juízo, contém inequívoco intento intimidatório. Faça do direito o melhor aliado da prática docente 44 Forçoso concluir, portanto, não haver espaço para censura no ambiente escolar. Educação é sinônimo de liberdade, diálogo, pluralismo de ideias e concepções pedagógicas. De antemão, sujeitos que não detém formação acadêmica na área da educação, não participaram dos inúmeros colegiados legítimos que debatem e deliberam sobre a temática educacional Brasil afora, estabelecer o que pode ser dito em uma aula consiste, sem sombra de dúvidas, em censura. Assim, o Escola Sem Partido não se consegue se legitimar sequer nos seus próprios fundamentos. Seguindo este itinerário, a LDB, inspirada pela Constituição Federal, apresenta a seguinte principiologia: Art. 2º. A educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. Art. 3º. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: I - igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; II - liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber; III - pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas; IV - respeito à liberdade e apreço à tolerância; V - coexistência de instituições públicas e privadas de ensino; VI - gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais; VII - valorização do profissional da educação escolar; VIII - gestão democrática do ensino público, na forma desta Lei e da legislação dos sistemas de ensino; IX - garantia de padrão de qualidade; X - valorização da experiência extra-escolar; XI - vinculação entre a educação escolar, o trabalho e as práticas sociais. XII - consideração com a diversidade étnico-racial. Faça do direito o melhor aliado da prática docente 45 Diante do exposto, inolvidável concluir que as proposições do Escola Sem Partido revestem-se de manifesta inconstitucionalidade. Igualmente de notória ilegalidade. Por esta razão os docentes e escolas eventualmente notificados podem se utilizar destes fundamentos e encaminhar uma contra notificação, já que é nesta seara que o embate está se realizando. ESCOLA SEM PARTIDO E O PRISMA PEDAGÓGICO Acerca das questões pedagógicas, os fundamentos epistemológicos do Escola Sem Partido remontam o medievo. Seguramente, seus proponentes não estudaram o acervo pedagógico produzido ao longo do século XX. Confundem, pois, formar cidadãos com doutrinação (!!). Atacam Paulo Freire, afirmando estarem nesta pedagogia as causas dos problemas educacionais brasileiros. Poderíamos escrever muito sobre a pedagogia freireana. Sobre a compreensão dos processos de aprendizagem que Freire, a partir de uma longa caminhada que combinou teoria e prática, exemplarmente elaborou. Poderíamos nos estender ao descrever a trajetória admirável deste teórico, reconhecido mundialmente como um dos grandes teóricos da educação do século XX e vilipendiado por estultices como as observadas no site do Escola Sem Partido. Em razão dos limites deste artigo, limitaremo-nos a apontar duas inconsistências teóricas do Escola Sem Partido. Então, deixemos as outras para outro momento. O último lócus em que se propõe a resoluta neutralidade no mundo do conhecimento é o Escola Sem Partido. A neutralidade, no âmbito científico, notavelmente nas ciências humanas, é uma quimera.6 Ao abordar um fenômeno histórico, por exemplo, é humanamente impossível restringir assepticamente o conteúdo, de modo que se possa atingi-lo com neutralidade. 6 Boaventura de Sousa Santos alerta para a impossibilidade da neutralidade também nas chamadas ciências duras. Faça do direito o melhor aliado da prática docente 46 Imaginemos, caros leitores já enfastiados com a extensão deste artigo, uma aula sobre o nazismo, a Revolução Francesa ou a chamada Era Vargas. O historiador, para ministrá-la, seguramente estudou tais processos. Carrega leituras, impressões, eventualmente pré-conceitos, de sorte que resta impossível neutralizá- los. Nessa linha, impor a neutralidade é impor o silêncio. Olvida, assim, o Escola Sem Partido que o ambiente escolar agrega uma profusão de atores que carregam suas convicções ideológicas, morais e éticas. Este movimento (movimento?) ignora que a vida pulsante da comunidade escolar decorre exatamente das diferenças que a constituem. A alteridade educa, e é no bojo das diferenças que o processo educativo acontece. Observando os objetivos do Escola Sem Partido, constata-se uma desconexão com esta realidade. Deste modo, não há razões para “descontaminação política e ideológica” porque não há pensamento único institucionalizado. A sabedoria popular já ensinou que quando João fala mal de Pedro, sabemos mais de João do que de Pedro. Certamente os protagonistas do Escola Sem Partido não conhecem o dia a dia escolar. Assim, reduzem a um debate vergonhosamente simplório um cenário extremamente complexo e variado, multifacetado, em que não há lugar para determinismos oriundos da guerra fria. Por outra senda, o conceito que o Escola Sem Partido tem dos estudantes em seus escritos é anacrônico, remontando o século XIX. Os estudantes não são – na realidade nunca foram... – marionetes manipuláveis que assimilam passiva e voluntariamente o que lhes é imposto por “espertos e ardilosos” professores, de esquerda ou de direita. Ao contrário, o sujeito da educação contemporânea está em posição de diálogo. Mais que isso, é protagonista de seu processo formativo. E vejam bem, tais considerações são consensuais no ambiente da pesquisa acadêmica. Qualquer manual de pedagogia editado no século XXI explica isso. Faça do direito o melhor aliado da prática docente 47 Por derradeiro, constato o que muitos colegas já apontam. O Escola Sem Partido é pura e simplesmente um movimento político. Por isso, deve ser enfrentado pelo conjunto dos docentes que hoje estão desafortunadamente sendo por ele atacados na esfera do debate político. Jurídica e pedagogicamente, é anacrônico, inconsistente e, no limite, inconstitucional. Melhor seria que estes militantes se ocupassem substancialmente com a melhoria da educação brasileira, apoiando, por exemplo, a legítima demanda por uma remuneração justa dos professores, respeitando-os e, quem sabe, estudando um pouco. Faça do direito o melhor aliado da prática docente 48 14. MULTA AOS PAIS POR ABANDONO INTELECTUAL E EVASÃO ESCOLAR. É POSSÍVEL? Abandono intelectual de aluno que não frequentava escola resulta em condenação dos pais ao pagamento de multa. A responsabilidade pela evasão escolar recaiu sobre os genitores, com base na Lei 8.069/1990, que instituiu o Estatuto da Criança e do Adolescente. O Ministério Público doEspírito Santo ajuizou ação de apuração de infração administrativa às normas do Estatuto da Criança e do Adolescente. O objetivo era investigar suposto abandono intelectual de aluno. Os pais do aluno foram condenados ao pagamento de multa de 3 salários mínimos em razão da evasão escolar do filho. Em segunda instância, o Tribunal de Justiça do Espírito Santo manteve a decisão do juiz de primeiro grau. Os julgadores ressaltaram que, mesmo quando chamados ao processo judicial, os pais não tomaram nenhuma providência em relação à evasão escolar de seu filho. O Direito Educacional é claro em casos como este. O Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei 8.069/90, estabelece como dever dos pais de crianças e adolescentes zelar pela sua educação. O artigo 249 do ECA, que prevê multa administrativa de três a vinte salários mínimos, dispõe: “Descumprir, dolosa ou culposamente, os deveres inerentes ao poder familiar ou decorrentes de tutela ou guarda, bem assim determinação da autoridade judiciária ou Conselho Tutelar”. Confiram abaixo a ementa do acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Espírito Santo: Ementa: RECURSO DE REVISTA INTERPOSTO NA VIGÊNCIA DA LEI 13.015/2014. INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL. PERDA DE UMA Faça do direito o melhor aliado da prática docente 49 CHANCE. PROFESSORA. DISPENSA NO INÍCIO DO ANO LETIVO. De acordo com a teoria da responsabilidade civil pela perda de uma chance, o prejuízo material indenizável é aquele decorrente de uma probabilidade séria e real de obtenção de um resultado positivo legitimamente esperado pela vítima que é obstado por ato ilícito praticado pelo ofensor. A despedida de empregado sem justa causa encontra-se dentro do poder potestativo do empregador, não caracterizando, por si só, ato ilícito ou abuso de direito. No presente caso, todavia, conforme se depreende do acórdão do Tribunal Regional, restou demonstrado o uso abusivo do exercício do direito de rescisão contratual por parte do reclamado. Com efeito, a dispensa da reclamante no início do ano letivo, quando ela já tinha a expectativa justa e real de continuar como professora da instituição de ensino reclamada e auferir daí os ganhos correspondentes, evidencia o abuso do poder diretivo do empregador de dispensa, notadamente pela dificuldade que a reclamante teria em lograr vaga em outra instituição de ensino, tendo em vista o início das aulas. Recurso de revista não conhecido. (Recurso de Revista nº 246-65.2013.5.04.0531, Segunda Turma do TST, Relatora: Álvaro Manoel RosindoBourguignon, Julgado em 30/01/2018) Faça do direito o melhor aliado da prática docente 50 15. TRABALHO NA ESCOLA E EDUCAÇÃO FACE À LDB Tema controvertido é a questão do trabalho na escola. Este texto tem o objetivo de apontar os fundamentos jurídicos da questão traçando um paralelo com o conceito de educação contido na LDB. A legislação educacional autoriza os estudantes a exercerem tarefas afetas ao mundo do trabalho na escola? Não restam dúvidas que a resposta é positiva, na forma do §2º do art. 1º da Lei 9394/96 (LDB): “A educação escolar deverá vincular-se ao mundo do trabalho e à prática social”. O próprio texto constitucional aborda o trabalho na escola como elemento fundamental. Assim dispõe o art. 205 da Constituição: “A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. Entretanto, não é qualquer trabalho que deve estar presente no cotidiano pedagógico. Evidentemente, veda-se a exploração (comercial/industrial/agrária) do trabalho da criança e do adolescente, visto que o objetivo do legislador foi eleger o trabalho como um dos princípios educativos que devem informar o currículo escolar. Note-se que uma das finalidades do Ensino Médio previstas na LDB é a compreensão dos fundamentos científico-tecnológicos dos processos produtivos, relacionando a teoria com a prática, no ensino de cada disciplina (Art. 35, IV). Salvo raras exceções, sabemos que o trabalho na escola não é percebido como elemento relevante de formação humana. Ao bem da verdade, a origem desta dissociação entre o mundo da escola e o mundo do trabalho remonta há pelo menos dois séculos, quando as instituições escolares foram progressivamente se afastando do mundo da vida e as salas de aula passaram a ser percebidas como o lugar por excelência dos processos de aprendizagem. Faça do direito o melhor aliado da prática docente 51 À despeito de hegemônica, esta concepção sobre trabalho na escola tem sido verdadeiramente bombardeada por um muitos docentes e teóricos. Note-se também que os sujeitos da educação são outros, crianças e jovens hiperconectados, nascidos no século XXI. A tríade sala de aula, quadro negro e monólogo docente cada vez mais cede espaço a aulas interativas, recheadas com pesquisas, apresentações, experimentos e comunicação. Neste cenário, a dimensão do trabalho na escola como elemento constituinte do currículo pode oferecer excelentes possibilidades de aprendizagem. Não nos referimos à formação técnica de nível médio (outro segmento previsto na LDB), mas de oportunidades de aprendizagem de conhecimentos científicos a partir de processos produtivos reais, concretos. O inciso XI do art. 3º da LDB aponta a vinculação entre a educação escolar, o trabalho e as práticas sociais como um dos princípios do ensino. O desafio da gestão pedagógica, em diálogo com os docentes das disciplinas ou áreas de conhecimento, é viabilizar estratégias pedagógicas que contemplem o mundo do trabalho. Tal providência, indubitavelmente, trará mais vida à escola, abrindo novos horizontes para a juventude. Faça do direito o melhor aliado da prática docente 52 16. PROPOSTA PEDAGÓGICA E DIREITO EDUCACIONAL, UM DIÁLOGO PROMISSOR Este texto inaugura uma questão que será recorrentemente abordada pela Escola de Direito Educacional. Proposta pedagógica e direito, o que um tem a dizer para o outro? Tal pergunta abre janelas para um sem número de questionamentos. Há um leque de abordagens verdadeiramente inesgotável, pois os preceitos normativos de Direito Educacional iluminam a vida escolar. Por isso, fizemos um recorte de algumas dimensões que julgamos mais pertinentes sobre proposta pedagógica e direito. Vamos lá! Seguidamente somos questionados sobre as responsabilidades do professor no que toca à elaboração da proposta pedagógica. Cabe ao docente de uma determinada área do conhecimento redigir o PPP ou estudar pedagogia? A resposta exige que se conceitue proposta pedagógica. Em apartada síntese, e desde logo pedindo escusas aos estudiosos de tão relevante assunto, proposta pedagógica diz respeito ao perfil de ser humano que a instituição educacional pretende formar e o modo pelo qual pretende fazê-lo. Neste sentido, o PPP contém um conjunto de valores, conhecimentos, habilidades e competências que a escola elencou como importantes para a vida do estudante. Igualmente, prevêem-se neste documento estratégias pedagógicas com o potencial para atingi-los. Se aceitarmos esta incipiente definição de proposta pedagógica, não restam dúvidas que é imprescindível a participação do docente na sua elaboração. Ao menos, é necessário que este se aproprie do PPP. Faça do direito o melhor aliado da prática docente 53 Como uma professora
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