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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO OESTE DO PARANÁ - UNIOESTE GABRIELLA DEBASTIANI RODRIGUES ABANDONO AFETIVO PARENTAL: O CUIDADO COMO DEVER JURÍDICO E A (IM)POSSIBILIDADE DA RESPONSABILIDADE CIVIL Francisco Beltrão - PR 1 GABRIELLA DEBASTIANI RODRIGUES ABANDONO AFETIVO PARENTAL: O CUIDADO COMO DEVER JURÍDICO E A (IM)POSSIBILIDADE DA RESPONSABILIDADE CIVIL Monografia apresentada como pré- requisito de conclusão do curso de Bacharelado em Direito pelo Centro de Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Estadual do Oeste do Paraná, campus de Francisco Beltrão - UNIOESTE. Orientadora: Profª. Ma. Liliane Gruhn. Francisco Beltrão - PR 2017 2 GABRIELLA DEBASTIANI RODRIGUES ABANDONO AFETIVO PARENTAL: O CUIDADO COMO DEVER JURÍDICO E A (IM)POSSIBILIDADE DA RESPONSABILIDADE CIVIL Monografia apresentada como pré- requisito de conclusão do curso de Bacharelado em Direito pelo Centro de Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Estadual do Oeste do Paraná, campus de Francisco Beltrão – UNIOESTE, sob a apreciação da seguinte banca examinadora: Aprovada em 16/11/2017. ___________________________________ Profª. Ma. Liliane Gruhn (Orientadora) __________________________________ Profº. Dr. Adilson Francelino Alves _____________________________ Profª. Ma. Paula Regina Antunes 3 Agradeço, inicialmente, a toda minha família, por contribuir, cada um ao seu modo, na formação de quem sou e pelos ensinamentos que foram passados a mim ao longo da vida. Em especial, aos meus pais, minha irmã e minha avó paterna, por todo apoio, amor, cuidado e compreensão durante as dificuldades encontradas neste ano. Aos meus amigos da graduação, por todos os momentos que passamos juntos, sejam os de alegria e muitas risadas, sejam os de angústia e desespero. O período deste curso foi incrível por ter vocês. Ao meu namorado, que com toda a sua calma e amor, conseguiu trazer paz a este ano tão difícil. A minha professora orientadora, por todo incentivo, auxílio e contribuição, sendo que os ensinamentos obtidos foram fundamentais para realização deste trabalho. 4 RESUMO Objetiva-se analisar a possibilidade de imputar-se ao genitor condenação a título de danos morais em decorrência do abandono afetivo de sua prole, para tanto, utilizou- se o método dedutivo, utilizando-se como principal fonte materiais bibliográficos, a legislação e pesquisa jurisprudencial. O exame foi inicialmente centralizado no estudo da entidade familiar, sua evolução histórica, formação atual e, bem assim, as novas entidades familiares reconhecidas pela doutrina, além da conceituação contemporânea a partir dos princípios constitucionais intrinsecamente relacionados ao direito de família. Na sequência, dedicou-se à análise das crianças e adolescentes, sujeitos de direito vulneráveis e em desenvolvimento, oportunidade em que se explanou acerca da doutrina da proteção integral, do princípio do melhor interesse da criança e do adolescente e, também, acerca do marco legal da primeira infância (Lei 13.257/16). Ainda, versou-se acerca do poder familiar e, consequentemente, sobre os deveres inerentes aos pais, por estarem nesta condição. Na sequência, passou-se a explanar acerca das espécies de abandono presentes no ordenamento jurídico e, em especial sobre o abandono afetivo paterno-filial no que diz respeito aos filhos menores de idade. A fim de caracterizar o abandono afetivo como um ato ilícito, relacionou-se o mencionado instituto com o dever de cuidado, distinguindo-se, inicialmente, obrigação e dever e, em seguida, explanando-se sobre o cuidado, seu conceito e seu reconhecimento como dever jurídico. Versou-se sobre os reflexos do abandono afetivo no desenvolvimento e formação da criança e adolescente. Em seguida, narrou-se sobre a responsabilidade civil, sinteticamente e, acerca dos pressupostos para sua caracterização na modalidade extracontratual, subjetiva e direta, passando-se a analisar o abandono afetivo como fato ensejador de responsabilidade civil, expondo os argumentos favoráveis e contrários. Diante da percepção de que a doutrina diverge sobre a possibilidade ou não de responsabilização, passou-se a analisar a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e dos Tribunais de Justiça do Paraná, de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul, com o intuito de observar o posicionamento acerca do tema. Estudou-se, por fim, sobre o Projeto de Lei 3212/2015, que visa o reconhecimento do abandono afetivo em ato ilícito. Palavras-chave: Família. Abandono afetivo. Responsabilidade civil. Cuidado. 5 LISTA DE ABREVIAÇÕES E SIGLAS ADI Ação Direita de Inconstitucionalidade Art. Artigo CC Código Civil de 2002 CF Constituição Federal de 1988 ECA Estatuto da Criança e do Adolescente IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística ONU Organização das Nações Unidas Nº Número REsp Recurso Especial STF Supremo Tribunal Federal STJ Superior Tribunal de Justiça TJPR Tribunal de Justiça do Paraná TJRS Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul TJSC Tribunal de Justiça de Santa Catarina 6 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 7 1. ASPECTOS INTRODUTÓRIOS ACERCA DO INSTITUTO DA FAMÍLIA ............ 10 1.1. EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA FAMÍLIA E SEU CONCEITO ATUAL .................. 10 1.1.1 Entidades familiares....................................................................................... 19 1.2. CONCEITO DE FAMÍLIA A PARTIR DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS .. 27 1.2.1. Princípio da dignidade da pessoa humana ................................................. 28 1.2.2. Princípio da solidariedade familiar .............................................................. 30 1.2.3. Princípio da paternidade responsável ......................................................... 32 1.2.4. Princípio da afetividade ................................................................................ 34 2. OS DIREITOS INERENTES AOS INFANTES EM VIRTUDE DA CONDIÇÃO DE DESENVOLVIMENTO EM QUE SE ENCONTRAM ................................................. 37 2.1. DOUTRINA DA PROTEÇÃO INTEGRAL ........................................................... 37 2.1.1 Lei nº 13.257/16: A primeira infância ............................................................ 41 2.2. PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE . 44 2.3. PODER FAMILIAR ............................................................................................. 46 2.4. DIREITO FUNDAMENTAL DA CONVIVÊNCIA FAMILIAR E AO AFETO.......... 53 3. ABANDONO AFETIVO E A RESPONSABILIDADE CIVIL .................................. 58 3.1 ABANDONO: CONCEITO E ESPÉCIES ............................................................. 58 3.2 CUIDADO COMO DEVER JURÍDICO ................................................................ 62 3.2.1 Obrigação e deverjurídico: distinções ........................................................ 62 3.2.2 Abandono afetivo e a ofensa ao dever de cuidado ..................................... 63 3.3 RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL E SUBJETIVA: PRESSUPOSTOS ..................................................................................................... 69 3.4 ABANDONO AFETIVO COMO FATO ENSEJADOR DO DEVER DE INDENIZAR .................................................................................................................................. 74 4. POSICIONAMENTO JURISPRUDENCIAL E LEGISLATIVO ACERCA DO TEMA .................................................................................................................................. 82 4.1 ANÁLISE DE JULGADOS ACERCA DA REPARAÇÃO DE DANOS POR ABANDONO AFETIVO ............................................................................................. 82 4.1.1 O primeiro caso de grande repercussão ...................................................... 83 4.1.2 Da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça..................................... 86 4.1.3 Da jurisprudência do Tribunal de Justiça do Paraná .................................. 90 4.1.4 Da jurisprudência do Tribunal de Justiça de Santa Catarina ..................... 92 4.1.5 Da jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul ............... 95 4.2 PROJETO DE LEI Nº 3212/2015 ........................................................................ 99 CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................... 103 REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 110 7 INTRODUÇÃO Casos de indiferença, negligência e abandono afetivo dos filhos por parte de um dos genitores, quando não pelos dois, são frequentes e, é manifesto que tal fato influencia negativamente no desenvolvimento e na formação de crianças e adolescentes. Com base no sofrimento suportado por serem menosprezados e, amparados pelos princípios da dignidade da pessoa humana, da proteção integral da criança e do adolescente, da paternidade responsável, da afetividade, da solidariedade familiar e no direito fundamental da convivência familiar, inúmeros filhos, na última década, demandaram judicialmente contra o genitor que praticou o abandono afetivo, pugnando por uma compensação pelos danos morais sofridos. Diante disso, a fim de direcionar o estudo e revelando-se a importância do presente trabalho, expõe-se que o problema enfrentado nesta pesquisa consiste no fato de indagar se o descumprimento da obrigação legal de cuidar da prole importa na possibilidade de compensação por danos morais decorrentes do abandono afetivo. Desse modo, tem-se como principal objetivo analisar a possibilidade de incidência do instituto da responsabilidade civil nos casos de abandono afetivo dos filhos pelos pais, quando aqueles são crianças e adolescentes, tendo em vista os danos causados na formação da personalidade deles, diante da conduta dos genitores que descumprem com os deveres inerentes a condição de pais. Para tanto, a pesquisa baseia-se no método de abordagem dedutivo e, como procedimento instrumental, tem-se que a pesquisa será bibliográfica, além da análise de legislação e pesquisa de jurisprudência, sendo essa última realizada exclusivamente no quarto capítulo. Como forma de instrumentalizar a pesquisa, o primeiro capítulo deste trabalho, buscará explanar acerca do instituto da família, notadamente da sua evolução histórica, desde a antiguidade até o presente momento, em se baseia na afetividade entre seus membros, razão pela qual, irá se expor, também, as novas entidades familiares tratadas pela doutrina. Ainda, no primeiro capítulo, se estudará o conceito atual de família a partir dos princípios constitucionais relacionados intrinsecamente ao instituto da família e a importância dessa com seus integrantes e, também, com a sociedade. 8 O segundo capítulo se dedicará, especialmente, a tratar dos direitos das crianças e adolescentes, em razão da condição em desenvolvimento em que se encontram, no qual irá se explanar acerca da doutrina da proteção integral, narrando- se a respeito das disposições elencadas no ordenamento jurídico brasileiro que asseguram os direitos dos infantes, bem como, mais especificamente sobre a Lei nº 13.257/16, em virtude de ser a mais nova legislação brasileira acerca do assunto. A seguir, se tratará do princípio do melhor interesse da criança e do adolescente e de como ele deve reger as ações que envolvam tais indivíduos. Ademais, tendo em conta que os pais têm o dever de garantir aos seus filhos que seus direitos sejam resguardados, irá se narrar sobre o poder familiar, seu conceito e sua evolução histórica, além da disposição acerca dele na legislação pátria, o rol de deveres atribuídos aos pais e, também, acerca das causas de suspensão, modificação e extinção do instituto. Por fim, o capítulo tratará a respeito do direito dos infantes à convivência familiar e ao afeto, os quais estão assegurados pela Constituição Federal de 1988, embora não haja disposição expressa no que concerne ao afeto. O terceiro capítulo, por sua vez, tecerá a respeito do abandono afetivo, e a sua relação com a responsabilidade civil. Para tanto, inicialmente, se fará uma conceituação dos tipos de abandono reconhecidos no Brasil e, em seguida, especialmente sobre o abandono afetivo paterno-filial, seu conceito e os seus reflexos e efeitos na formação dos filhos. Na sequência, relacionar-se-á o abandono afetivo com o dever de cuidado imposto aos pais, sendo, também, narrado sobre o dever jurídico atribuído ao cuidado. Posteriormente, abordará noções gerais sobre a responsabilidade civil extracontratual e subjetiva. De modo a relacionar o anteriormente exposto, busca-se analisar o abandono afetivo como ato ilícito ensejador da responsabilização civil, expondo os argumentos favoráveis e, também, os contrários expostos pela doutrina. No quarto e último capítulo, haverá uma análise do entendimento da jurisprudência no tocante ao objetivo principal deste trabalho, no intuito de se visualizar se a doutrina majoritária e os tribunais adotam o mesmo posicionamento, ocasião em que estudará o primeiro caso de grande repercussão, o qual chegou até o Supremo Tribunal Federal, além de se mostrar os acórdãos do Superior Tribunal de Justiça e dos tribunais de justiça dos estados da região sul. Outrossim, busca-se, também, expor o posicionamento legislativo sobre a questão, notadamente, 9 explanando sobre o Projeto de Lei nº 3212/2015, que visa tornar expresso o fato de o abandono afetivo ser um ato ilícito. Esclarece-se que, com o presente trabalho, almeja-se contribuir com a discussão a respeito do abandono afetivo e a aplicabilidade da responsabilidade civil e, consequentemente, sobre quais são, efetivamente, os deveres dos pais com os filhos, salientando, especialmente, o dever maior do cuidado. 1. ASPECTOS INTRODUTÓRIOS ACERCA DO INSTITUTO DA FAMÍLIA 1.1. EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA FAMÍLIA E SEU CONCEITO ATUAL O instituto da família, na contemporaneidade, tem como função básica a realização pessoal da afetividade, no âmbito de convivência e solidariedade e é composta na complexidade das relações afetivas, as quais o ser humano constrói equilibrando a liberdade e a responsabilidade (LÔBO, 2015, p. 18-26). Ocorre, porém, que a família, só se encontra dessa forma atualmente em razão das evoluçõesque passou, ao longo da história, conforme se expõe a seguir. Partindo da origem etimológica, tem-se que “a palavra família deriva do latim ‘familia’, que se origina de ‘famulus’, designando ‘o servidor’, ‘o criado’” (MALUF, 2010, p. 04). Os grupos sociais das sociedades primitivas, isto é, os primeiros agrupamentos de pessoas de que se tem notícia não formaram a família como ela é conhecida atualmente, no quesito organizacional. Muito provavelmente, constituíram- se com base no instinto sexual, sem dar importância para a durabilidade da união, fosse passageira ou prolongada, monogâmica ou poligâmica, poliândrica ou poligínica (MALUF, 2010, p. 09-10), sendo que nessas duas últimas, respectivamente, havia uma mulher ligada a dois ou mais homens e, um homem que mantinha vínculo com duas ou mais mulheres. Gagliano e Pamplona Filho (2015, p. 50) explanam no mesmo sentido, afirmando que na Antiguidade os grupos familiares eram formados na instintiva luta pela sobrevivência, e não com fundamento na afetividade, que afirmam ser o princípio básico do direito de família atual. Assim, acerca do assunto, afirma que “por esse largo período da Antiguidade, família era um grupo de pessoas sob o mesmo lar, que invocava os mesmos antepassados” (VENOSA, 2011, p. 04). Posteriormente, houve uma mudança nesses agrupamentos, a qual construiu a base para o reconhecimento da família, sendo uma transição da fase de satisfação individual das necessidades básicas dos indivíduos, como comida, bebida, sono e sexo, para a composição de um conglomerado de pessoas que se identificavam, de maneira mútua, como membros de uma efetiva coletividade e, não 11 mais, somente uma reunião de individualidades (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2015, p. 47). O início dessa fase descrita por Gagliano e Pamplona Filho se deu com a família no Direito Romano. Examina-se que nesse período, a família tinha uma estrutura tipicamente patriarcal. O denominado pater era o ascendente mais velho vivo, o qual reunia os descendentes sob sua autoridade, constituindo a família. Essa organização familiar abrangia desde os filhos até os descendentes mais distantes, independentemente de terem atingido a idade viril, tendo em vista que enquanto o pater estivesse vivo era o chefe da comunidade familiar, tendo poder sobre os demais, sendo que tal poder se estendia, inclusive, sobre os escravos e as mulheres (DANTAS, 1991, p. 18). Nesse modelo, a família “era organizada sob o princípio da autoridade. O pater familias exercia sobre os filhos direito de vida e de morte (ius vitae ac necis). Podia [...] vendê-los, impor-lhes castigos e penas corporais e [...] tirar-lhes a vida” (GONÇALVES, 2010, p. 31). O pater figurava, simultaneamente, como chefe político, sacerdote e juiz, tendo em vista que comandava, oficiava o culto dos deuses domésticos e disseminava a justiça (PEREIRA, C., 2013, p. 31). Dantas (1991, p. 26) faz um paralelo entre o poder do pater sobre os filhos com o pátrio poder adotado no Brasil, o qual, atualmente, é chamado de poder familiar, dissertando que: A potestas sobre os filhos, a “patria potestas”, interessa muito de perto. A primeira coisa a observar-se é que ela tinha uma índole completamente oposta ao pátrio poder. Hoje, o pátrio poder é um munus, um encargo, uma obrigação que pesa sobre o titular, e que o obriga a dar cabal desempenho às suas funções no interesse do incapaz. A “patria potestas” romana não era um munus, era uma “auctoritas”, um direito do pater, direito construído do mesmo modo que o domínio, de modo que o pater estava em face do “filius” como o proprietário em face da coisa: ele é que é o titular do direito, o interesse protegido é o dele, e o “filius” está apenas como um paciente da “auctoritas”, não tem direitos a reclamar, tem uma posição de mera submissão jurídica. No tocante ao papel da mulher na família romana, tem-se que ela era “totalmente subordinada à autoridade marital (‘in manu mariti’), nunca adquirindo autonomia, pois que passava da condição de filha à de esposa, sem alteração na sua capacidade; não tinha direitos próprios” (PEREIRA, C., 2013, p. 31), além do fato de 12 que o marido tinha permissão para repudia-la unilateralmente (GONÇALVES, 2010, p. 31). No que diz respeito a família na Idade Média, tem-se que ela recebeu três grandes influências, quais sejam, a do Direito Romano, do Direito Canônico e a do Direito Bárbaro, isso é, da cultura germânica. O primeiro, continuava a reger os povos dominados; o segundo, por sua vez, se expandia a cada dia, tendo em conta o prestígio da Igreja; e o último era levado pelos povos conquistadores nas invasões realizadas e continuava regendo-os depois de haverem se submetido aos romanos (DANTAS, 1991, p. 54). Nessa mesma linha, é o narrado por Gonçalves (2010, p. 32), no entanto, especifica que o Direito Canônico era o de influência mais forte, como se pode observar: Durante a Idade Média as relações de família regiam-se exclusivamente pelo direito canônico, sendo o casamento religioso o único conhecido. Embora as normas romanas continuassem a exercer bastante influência no tocante ao pátrio poder e às relações patrimoniais entre os cônjuges, observava-se também a crescente importância de diversas regras de origem germânica. De maneira semelhante, Pereira, C. (2013, p. 32), narra que a família pós- romana passou a ter contribuição do direito germânico, todavia, adotou também a espiritualidade cristã, diminuindo-se o grupo familiar aos pais e filhos, bem como, alcançou um cunho sacramental. Acerca dessa questão, vale ressaltar a diferença entre o matrimônio para o mundo romano e para a Igreja, uma vez que para aquele tratava-se apenas de uma união entre o marido e a mulher, podendo ser de maneira livre, enquanto que para a instituição eclesiástica, o matrimônio é um sacramento (PEREIRA, C., 2013, p. 43). Dessa feita, verifica-se, ainda, que “o Cristianismo condenou as uniões livres e instituiu o casamento como sacramento” (VENOSA, 2011, p. 04). Posteriormente, na Idade Moderna, as instituições romanas, canônicas e germânicas, conquanto tenham convivido durante a Idade Média, separaram-se, em virtude dos pontos conflitantes entre elas, veja-se: [...] a revogação do Édito de Nantes, em 1685, conduziu à perda do caráter sacramental do casamento. Assim, como o monopólio da Igreja, em matéria de casamento, posto em cheque, abriu-se espalho para a regulamentação dos mesmos pelo Estado, levando a uma secularização e laicização do 13 casamento, geradas pelos ideais da Revolução Francesa e dos seus efeitos no Código Civil de 1805 (MALUF, 2010, p. 22). Na sequência, com a Revolução Industrial, a família de caráter extensiva, a qual integrava todos os parentes e era uma verdadeira comunidade rural e unidade de produção, cujos componentes representavam força de trabalho e que tinha um núcleo familiar hierarquizado e patriarcal, alterou-se significativamente. Isso em razão de a Revolução ter criado a necessidade de mão de obra, principalmente, nas atividades terciárias. Diante da Revolução Industrial e dessa modificação na família, ocorreu o ingresso da mulher no mercado de trabalho, tendo ela se tornado, também, fonte da subsistência familiar, deixando esse de ser papel exclusivo do homem. A partir disso, a estrutura familiar passou a ser nuclear, limitando-se ao casal e seus filhos, bem assim, a família migrou do campo para as cidades e adaptou-se a viver em lugares menores, o que acarretou na aproximação de seus membros e, consequentemente, aumentou o vínculo afetivo entre os familiares (DIAS, 2015, p. 30). Nesse mesmo sentido,tem-se que: A passagem da economia agrária à economia industrial atingiu irremediavelmente a família. A industrialização transforma drasticamente a composição da família, restringindo o número de nascimentos nos países mais desenvolvidos. A família deixa de ser uma unidade de produção na qual todos trabalhavam sob a autoridade de um chefe. O homem vai para a fábrica e a mulher lança-se para o mercado de trabalho (VENOSA, 2011, p. 05). Mais adiante, especificadamente no século XIX, de acordo com Brahinsky (1994, p. 10, apud, MALUF, 2010, p. 24) “a introdução de uma concepção mais individualista [...] valorizou, na Europa, o nascimento da família nuclear; surge também a família monoparental, [...] passando assim a coexistirem várias modalidades [...]”. Examina-se que houveram grandes modificações a partir do século XIX. No tocante a família brasileira, nesse período, é válido atentar-se ao relatado por Hironaka (2006, p. 164): O século XIX, contudo, especialmente na sua segunda metade, testemunhou uma significativa mudança no perfil da família brasileira que, graças a uma série de fatores importantes como, por exemplo, a urbanização das cidades, a chegada da luz elétrica, a introdução de modos e costumes europeus trazidos pela Corte portuguesa, a mesclagem de culturas por força do aumento do ciclo imigratório, adquiriu um retrato mais afetivo, diga-se assim, 14 mais voltado à formação de família a partir da própria e pessoal escolha do par conjugal, o que refletiu na reformulação de papéis do homem e da mulher no cenário doméstico, bem como no mercado de trabalho. Sendo assim, a família que chegou à contemporaneidade, passou a ter uma formação mais enraizada no afeto e na valorização da dignidade da pessoa humana, atentando-se as peculiaridades que contornam o ser individualmente apreciado, levando em consideração as modificações dos costumes e dos valores (MALUF, 2010, p. 25). Tem-se que a organização patriarcal que figurou no Brasil durante todo o século XX, no direito e, principalmente, nos costumes, desapareceu. O pai, tal como um pater romano, tinha autoridade ampla sobre a prole, a qual não praticava ato nenhum sem a permissão do genitor. Ocorre, porém, que com o grupo familiar reduzido, a necessidade econômica ou a simples conveniência, a mulher passou a desenvolver atividades fora do lar, enfraquecendo o dirigismo da autoridade do pai dentro dele (PEREIRA, C., 2013, p. 33). A mulher, munida da sua independência econômica, saiu de trás do patriarca e, ergueu-se confiante, ao lado de seu parceiro, demonstrando que ambos são capazes de organizar e administrar o grupo familiar. Por sua vez, os filhos também ascenderam economicamente na relação familiar, bem como passaram a ser mais valorizados pelas próprias qualidades e características, pelo preparo intelectual e aptidão de decisão progressiva. Novos valores foram introduzidos no vínculo familiar, tais como o divórcio, o controle de natalidade, a concepção assistida e a reciprocidade alimentar, tornando-o mais hospitaleiro, arejado, flexível e adaptável aos conceitos atuais da humanidade e da vida dos humanos (HIRONAKA, 2006, p. 154). Lôbo (2015, p. 18) aponta a urbanização acelerada ao longo do século XX e a emancipação feminina, especificamente a profissional e econômica, como os dois fatores principais para o fim da família patriarcal. Nesse ponto, faz-se necessário observar as palavras de Hironaka (2006, p. 155): [...] mas, acima de tudo, espalha-se a ideia de afetividade, como o grande parâmetro modificador das relações familiares, estando a querer demonstrar que o verdadeiro elo entre as pessoas envolvidas nessas relações, nesse núcleo, nesse tecido, consubstancia-se no afeto. 15 Calderon (2011, p. 162) também explana acerca do assunto, afirmando que a maneira que os membros da família passaram a se relacionar foi mais sentimental, igualitária e liberal que anteriormente, elucidando, ainda, que a religião, o meio social e o interesse da família enquanto instituição passaram a interferir menos, motivo pelo qual se conferiu mais liberdade para as pessoas escolherem a sua opção de vida familiar. Na legislação brasileira as modificações ao longo da história também são perceptíveis. Por meio das Constituições brasileiras é possível denotar que elas reproduzem as fases históricas vividas pelo país, no que diz respeito à família, na migração do Estado liberal para o social. As Constituições de 1824 a 1891, por exemplo, são liberais e individualistas e não legislam acerca das relações familiares (LÔBO, 2015, p. 29). Assinala-se, ainda, que, por outro lado, tem-se as Constituições do Estado social, de 1934 a 1988, tanto o autoritário quanto o democrático, tutelaram sobre a família. Isso em virtude de que o Estado social, desenvolvido no decorrer do século XX, evidenciou-se pela intervenção nas relações privadas e no controle econômico, visando proteger os mais frágeis. A característica prevalecente desse modelo de Estado é a solidariedade social ou a promoção da justiça social (LÔBO, 2015, p. 30). Nesse viés, a intervenção se estende também à família, objetivando a diminuição dos poderes domésticos, da inclusão e equalização de seus componentes, e no entendimento do seu lugar para a efetivação e desenvolvimento da dignidade humana. No Brasil, em todas as Constituições sociais há normas destinadas à família, as quais garantem a liberdade e a igualdade (LÔBO, 2015, p. 30). Conquanto a família tenha sido protegida juridicamente desde a Constituição Federal de 1934, foi com o advento da Constituição de 1988 que “o Direito de Família passou a ser balizado pela ótica exclusiva dos valores maiores da dignidade e da realização da pessoa humana, sem desconsiderar os notáveis avanços da ciência [...]” (MADALENO, 2015. p. 02). Dessa forma, verifica-se que a família patriarcal, que foi modelo da legislação civil brasileira, desde a colônia, passando pelo Império e por grande parte do século XX, adentrou em crise, ocasionando seu desabamento, no âmbito jurídico, pelos valores incorporados na Constituição de 1988. É cediço que em toda crise ocorre a perda dos princípios de um paradigma, uma vez que há o surgimento de outros, sendo assim, no âmbito de evolução da família, tem-se que a atual tem como 16 base o paradigma fundamentado na afetividade, o qual traduz a função desse instituto na contemporaneidade (LÔBO, 2015, p. 15). Algumas das principais mudanças trazidas nos dispositivos da Constituição Federal podem ser entendidas como a instauração da igualdade entre os cônjuges; a extensão da proteção da família formada pelo casamento para a união estável entre homem e mulher e para a chamada família monoparental, consistente em um dos pais e seus descendentes; bem como a equiparação dos filhos, sejam concebidos no casamento ou não, além dos adotados, sendo dirigidos a eles os mesmos direitos (DIAS, 2015, p. 32). Assim, tem-se que “a Constituição de 1988 consagra a proteção à família no art. 226, compreendendo tanto a família fundada no casamento, como a união de fato, a família natural e a família adotiva” (VENOSA, 2011, p. 06). Tal proteção é, atualmente, princípio universalmente aceito e abordado nas constituições da maioria dos países, independentemente de qual seja o sistema político ou ideológico adotado, sendo, inclusive, ponto tutelado no art. 16.3 da Declaração Universal dos Direitos do Homem (LÔBO, 2015, p. 15). Na esfera civilista, sucedeu-se que o Código Civil de 1916 foi confeccionado na época da República Velha, em que havia a predominância política das elites agrárias,sendo que o Código externava as convicções dessa comunidade, baseada principalmente no ter, em detrimento do ser. No referente à família, reinava o conservadorismo, no qual só eram reconhecidas famílias oriundas do casamento. Nesse ponto, ressalta-se que o matrimônio era indissolúvel, inspirado no Direito Canônico, bem assim, as relações ocorridas fora do molde formal eram marginalizadas, tanto que os filhos constituídos nessas relações eram considerados ilegítimos. De se frisar, ainda, que nessa sociedade imperava a visão paternalista e hierarquizada da família, cabendo ao homem mandar na sociedade conjugal (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2015, p. 64-65). No que concerne ao Código Civil de 2002, Dias (2015, p. 33) explana que, embora em vigor a partir de janeiro de 2003, em verdade, já nasceu velho. Isso em razão de que seu projeto original foi de 1975, anterior a Lei do Divórcio (1977) e a Constituição Federal de 1988, a qual pregou diversos valores evidenciando a dignidade da pessoa humana. Assim, foram necessárias diversas modificações profundas no projeto, objetivando a adequação às normas constitucionais. 17 Assevera-se que as diversas mudanças realizadas não foram suficientes para que o texto tivesse a atualidade e clareza necessárias para conduzir a sociedade nos dias atuais. Observa-se que o Código Civil buscou atualizar os pontos elementares do direito de família, todavia, sequer deu um passo em direção aos tópicos constitucionalmente destacados. Por fim, tem-se que talvez o grande proveito do código civilista foi o de retirar expressões e conceitos que geravam mal-estar e não podiam mais subsistir com a estrutura jurídica atual (DIAS, 2015, p. 33) Interessante atentar-se, também, ao exposto por Lôbo (2015, p. 21) no concernente ao Código Civil de 2002, haja vista ter relatado que embora tenha ocorrido uma mudança de paradigma, passando-se do individualismo para a solidariedade social, ainda manteve enraizada presença dos interesses patrimoniais em detrimento dos pessoais, desprezando-se o móvel da “afectio”. Por sua vez, Venosa (2011, p. 07) explana que embora o Código Civil ora analisado tenha completado o ordenamento, a real revolução legislativa no direito de família ocorreu com a promulgação da Constituição Federal de 1988. Isso em razão de que, a Constituição Federal de 1988 foi um ordenamento jurídico inovador, que trouxe à tona a discussão, reflexão e, também, o fundamento, para a constitucionalização do Direito Privado, no qual está inserido o Direito Civil e, em decorrência disso, o Direito de Família. Essa constitucionalização do Direito Civil gerou a sua despatrimonialização, uma vez que as suas normas, assim como todos os outros sistemas e microssistemas legislativos e demais leis infraconstitucionais, devem ser analisados e interpretados à luz da Constituição Federal e, por conseguinte, sob a ótica do princípio da dignidade da pessoa humana, o qual é a base de todos os direitos fundamentais (AMARAL, 2015, p. 162). No alusivo à conceituação de família, é preciso ter em conta que: [...] a definição de família não é uma tarefa fácil devido à grande abrangência do termo. É valido ressaltar que sua composição observa ainda no mundo atual, em seu consequente estágio de evolução e internacionalização dos direitos humanos, que em muitas áreas do globo a estrutura familiar obedece a ditames religiosos extremamente regidos e entrelaçados com a formação política do Estado e estágio civilizacional (MALUF, 2010, p. 06). Embora seja difícil chegar a um consenso acerca do conceito de família, é necessário entender que a família, na atualidade “[...] não é um fim em si mesmo, mas o meio para a busca da felicidade, ou seja, da realização pessoal de cada indivíduo, 18 ainda que existam [...] arranjos familiares constituídos sem amor” (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2015, p. 45). No mesmo sentido, é o explanado por Perlingieri (2007, p. 243, apud, MALUF, 2010, p. 04) o qual definiu a família como “formação social, sociedade natural, garantida pela Constituição Federal, não como portadora de um interesse superior e individual, mas, sim, em função da realização das exigências humanas, como o lugar onde se desenvolve a pessoa”. Outrossim, contempla-se que “a família atual busca sua identificação na solidariedade, [...] como um dos fundamentos da afetividade, após o individualismo triunfante dos dois últimos séculos” (LÔBO, 2015, p. 17). Desse modo tem-se que a repersonalização do direito civil e, especialmente, do direito de família, deve ser buscada sob à ótica da solidariedade social, voltando sua atenção para a coexistência das pessoas, e não mais sob o aspecto individualista (CALDERON, 2011, p. 190). Posto isso, observa-se que, resumidamente [...] a família pode ser definida como o organismo social a que pertence o homem pelo nascimento, casamento, filiação ou afinidade, que se encontra inserido em determinado momento histórico, observadas a formação política do Estado, a influência dos costumes, da civilização, enfim, em que se encontra inserida (MALUF, 2010, p. 06). À vista de todo o exposto no presente capítulo, destaca-se o pensamento de Renon (2009, p. 62-63), que explana sobre a função principal da família na contemporaneidade, narrando que o instituto deve ser o local no qual os integrantes possuam liberdade para o desenvolvimento de suas personalidades, o que ocorre quando se há uma família democrática, sistematizada na igualdade e na solidariedade. Portanto, resta claro que a instituição família passou por uma grande evolução ao longo dos séculos, percorrendo desde a antiguidade, quando as pessoas se reuniam baseadas nos instintos naturais, transpondo a era patriarcal na qual o pater famílias tinha o total controle sobre os membros, além de ultrapassar a fase em que o fundamento principal do instituto era o “ter” e não o “ser”, chegando até o presente momento, em que se funda na afetividade e na solidariedade familiar – ou ao menos é o que deveria acontecer -, buscando-se o desenvolvimento de seus integrantes. Por fim, com base na análise histórica feita nesta pesquisa, verifica-se que a família está em constante evolução, conforme se pode verificar por meio das novas 19 entidades familiares que estão se formando na sociedade brasileira, sobre as quais, passar-se-á a explanar em seguida. 1.1.1 Entidades familiares No que diz respeito às entidades familiares que permeiam a sociedade brasileira atualmente, observa-se que estão alicerçadas na pluralidade familiar tutelada pela Constituição Federal de 1988, sendo tal proteção justificada pelo papel da promoção da pessoa humana, deixando de lado o precedente biológico e o viés econômico ligados e valorizados no âmbito familiar do passado, e focando, ao revés, em enaltecer os elos psicológicos do afeto e sua comunhão contígua e solidária (MADALENO, 2015, p. 28). Acerca dessa tutela constitucional da família, Lôbo (2015, p. 75-76) expõe que a maior transformação ocorreu no caput do artigo 226 da CF/88, uma vez que não há qualquer menção ao tipo específico de família, como outrora se operou nas Constituições. Assim, ao omitir a expressão “constituída pelo casamento”, como figurava nas Constituições de 1967/1969, sem que essa fosse substituída por outra, colocou-se sob tutela constitucional “a família”, isso é, qualquer família, tendo em vista o desaparecimento da cláusula de exclusão. Dessa forma, o Lôbo (2015, p. 75-76) continua elucidando que, conquanto nos parágrafos do artigo haja a referência a determinados tipos de família (oriunda do casamento,a união estável e a família monoparental), não quer dizer que a cláusula de exclusão foi reinserida, isso em virtude de que não se pode interpretar uma norma ampla de forma a restringir direitos subjetivos. Assim, o doutrinador, conclui que com o exame minucioso das normas e princípios insertos no artigo 226 da CF/88, tendo em conta os critérios de interpretação constitucional, principalmente do princípio da concretização constitucional, entende-se pela superação do “numerus clausus” das entidades familiares. Nesse ponto, Dias (2015, p. 131), afirma que os modelos de entidades familiares elencados no artigo 226 da CF/88, são puramente exemplificativos, apesar de serem os comumente mais vistos, gerando a necessidade de referência expressa. Ademais, a autora afirma que atualmente o componente que faz com que a instituição 20 familiar esteja protegida juridicamente é o vínculo afetivo, que liga os indivíduos que partilham de pensamentos, propósitos e projetos de vida, criando um engajamento recíproco. De acordo com Lôbo (2015, p. 73), para configurar uma entidade familiar são necessárias quatro características, quais seja, a) afetividade, que deve ser tida como fundamento e finalidade da entidade, desconsiderando-se o móvel econômico; b) estabilidade, descartando-se as relações episódicas, casuais e sem comprometimento com a vida em comunhão; c) convivência pública e ostensiva, dispondo que a unidade familiar deve-se apresentar como tal de maneira pública, e; d) escopo indiscutível de constituição de família, a fim de diferenciar as entidades familiares das demais relações afetivas, como por exemplo, a amizade. Vale atentar-se, ainda, as seguintes palavras de Madaleno (2015, p. 07): Por isso não é admissível preordenar espécies estanques de unidade familiar e destiná-las como emissárias únicas da proteção estatal, quando a sociedade claramente acolhe outros significantes modelos de núcleos familiares e demonstra que aquelas previamente taxadas não espelham todo o alicerce social da família brasileira. Por fim, examina-se que não é o instituto da família “per se” que é protegido pela Constituição, mas o “locus” imprescindível para o desenvolvimento e promoção da pessoa humana. Assim, não é possível que apenas algumas entidades familiares sejam protegidas, uma vez que a exclusão das demais entidades repercutiria nos membros dessas famílias, isso é, nas pessoas, que por opção ou por circunstâncias da vida integram essa relação, prejudicando a realização do princípio da dignidade da pessoa humana (LÔBO, 2015, p. 77). No tocante a legislação existente referente as entidades familiares, Hironaka (2013, p. 200) afirma que ante a ausência do ordenamento jurídico necessário e completo, o Poder Judiciário tem se manifestado de maneira perspicaz, veja-se: Esta inércia do Poder Legislativo, contudo, tem sido oposta a um proficiente ativismo do Poder Judiciário, cuja atuação eficiente tem estabelecido o liame imprescindível entre as expectativas sociais e o ordenamento jurídico, principalmente para garantir a dignidade dos membros de tais arranjos familiares e o alcance da justiça. 21 Embora o poder legislativo não tenha se atentado, ainda, as novas entidades familiares que estão surgindo na sociedade brasileira, verifica-se que os legisladores, ao longo do tempo, passaram a se preocupar com os membros das famílias, reconhecendo que eles possuem direitos, buscando, desta forma, proteger os grupos dotados de maior vulnerabilidade e/ou discriminação. Isso pode ser exemplificado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90) sobre o qual se tecerá maiores comentários ao decorrer do presente trabalho, pelo Estatuto do Idoso (Lei nº 10.741/03)1, o qual prevê direitos específicos para as pessoas acima de 60 (sessenta) anos e, ainda, pela lei comumente conhecida como “Maria da Penha” (Lei nº 11.340/06), que pretende criar mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, tendo como um dos fundamentos o art. 226, §8º da Constituição Federal de 1988, segundo o qual “O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações” (BRASIL, 1988). Merece atenção o explanado por Renon (2009, p. 44-45), ao afirmar que “a família é composta por pessoas, mostra-se necessário afirmar que cada um de seus membros merece a proteção e a garantia de preservação de sua dignidade, de forma a assegurar a comunhão plena de vida”. Destaca-se, no presente trabalho, as entidades familiares que não estão tuteladas expressamente pela Constituição Federal, ou seja, as novas entidades familiares que estão surgindo e o fato de elas se basearem no afeto, convivência e solidariedade. A primeira entidade familiar a ser tratada é a união homoafetiva, termo que prevaleceu no Brasil, por tratar da união afetiva estável entre pessoas do mesmo sexo, sobrepondo-se ao objetivo tão somente sexual (LÔBO, 2015, p. 79). Acerca do vocábulo adotado, Gagliano e Pamplona Filho asseveram que (2015, p. 484) “prefere o Direito, nos dias de hoje, utilizar a expressão mais precisa e profunda homoafetividade para caracterizar o vínculo que une e justifica a concepção de família derivada do núcleo formado entre pessoas do mesmo sexo”. 1 Do referido Estatuto, destaca-se o art. 2º, o qual dispõe acerca do que a lei procura assegurar, veja- se: “Art. 2o O idoso goza de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhe, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, para preservação de sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade” (BRASIL, 2003). 22 Dias (s.d., p. 6), acerca desta entidade, afirma que discriminação alicerçada na orientação sexual das pessoas caracteriza inequívoca desconsideração ao princípio maior determinado pela Constituição Federal, qual seja, a dignidade humana. Outrossim, a autora afirma ser: Totalmente descabido continuar pensando a sexualidade com preconceitos, isto é, “pré-conceitos”, ou seja, com conceitos fixados pelo conservadorismo do passado, que ainda se encontram encharcados da ideologia machista e discriminatória, própria de um tempo já totalmente ultrapassado pela história da sociedade humana. As relações sociais são dinâmicas, e é necessário pensar com conceitos jurídicos atuais, que estejam à altura dos tempos de hoje (DIAS, s.d., p. 10). Tem-se que não há legislação específica para essa entidade familiar, no entanto, tal lacuna legislativa não é empecilho para sua existência, tendo em vista que as regras impostas no artigo 226 da Constituição Federal de 1988 são autoaplicáveis (LÔBO, 2015, p. 80). No tocante a evolução jurisdicional quanto ao tema, observa que, inicialmente, havia relutância para se reconhecer juridicamente as uniões homossexuais e ainda, quando esse reconhecimento ocorria elas eram reguladas no âmbito do direito das obrigações, uma vez que eram conhecidas por sociedades de fato e limitavam-se a ter tutela jurisdicional de ordem patrimonial, as quais tramitavam nas varas cíveis. No ano de 1999, a justiça gaúcha começou uma modificação, definindo como competência para apreciar as uniões homoafetivas os juizados especializados da família e, em seguida, em 2000, as decisões gaúchas reconheceram a existência de vínculo familiar, afirmando a possibilidade jurídica do pedido (DIAS, s.d., p.13-14). A jurisprudência, progredindo gradualmente, no exercício do seu papel, passou a aceitar que as regras da união estável fossem aplicadas aos companheiros do mesmo sexo, o que foi reforçado pela decisão do Supremo Tribunal Federal na ADI 4.277 (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2015, p. 487). A referida Ação Direita de Inconstitucionalidade foi proposta pela Procuradoria-Geral da República e julgada em conjunto com a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 132, proposta por Sergio Cabral, governador do Rio de Janeiro, na época. O julgamento foi levado a efeito em 04 de maio de 2011 (SUPREMO..., 2011, s.p.), no qual se ponderou acerca da omissão legislativa e da controvérsia jurisprudencial sobre a questão, aplicando-se 23 diretamente a Constituição Federal, resultando na afirmação de que a união homoafetiva é espécie do gênero da união estável. De acordo com o STF, o artigo 1.723 do Código Civil de 2002, que dispõe que união estável é entre um homem e uma mulher, não impede que a união entre pessoas do mesmo sexo possa ser admitida como entidade familiar capaz de receber proteção estatal. Adiante, no ano de 2013, o Conselho Nacional de Justiça criou a Resolução 175, a qual veda que as autoridades competentes se recusem a habilitar, celebrar casamento civil ou converter união estável em casamento entre pessoas do mesmo sexo (LÔBO, 2015, p. 80). A respeito da decisão do STF, Madaleno (2015, p. 33) explana que: Ao impor efeito vinculante e declarar a obrigatoriedade do reconhecimento como entidade familiar da união entre pessoas do mesmo sexo, conquanto atendidos os mesmos pressupostos exigidos para a constituição da união entre o homem e a mulher, e estender com idêntica eficácia vinculante os mesmos direitos e deveres aos companheiros do mesmo sexo, o STF assegurou aos companheiros homoafetivos a plêiade dos direitos elencados no livro do Direito de Família do Código Civil brasileiro, prioritariamente consagrado aos casais heterossexuais. Portanto, mais importante do que especificar se a união homoafetiva é uma união estável ou uma nova modalidade familiar, é atentar-se para o fato de que ela é uma família que merece respeito e, considerando o seu reconhecimento constitucional, com fulcro na dignidade humana, também merece tutela jurídica, com a aplicação por analogia das disposições referentes ao companheirismo heterossexual, com seus os direitos e deveres. Dessa feita, “[...] não havendo mais dúvida alguma acerca da diversidade familiar depois do reconhecimento pelo STF das uniões homoafetivas que terminou com qualquer processo social de exclusão de famílias diferentes” (MADALENO, 2015, p. 28), adentra-se na família anaparental. Essa família é basicamente composta pela coabitação de parentes em um mesmo local e estrutura organizacional e psicológica, buscando a realização de objetivos compartilhados, seja pela afetividade que os enlaça ou, também, por necessidades financeiras ou emocionais (VIANNA, 2011, p. 522). Ainda, tem-se que em tal modalidade de família não há a presença de ascendente e nem de conotação sexual entre os membros, os quais estão juntos com o propósito de edificar vínculo familiar estável, como é o caso de convivência entre irmãos (MADALENO, 2015, p. 10). 24 Dias (2015, p. 140), traz como exemplo de família anaparental duas irmãs que convivem na mesma residência por longos anos e que dividem esforços para a constituição de um acervo patrimonial. Outrossim, levanta a hipótese da morte de uma delas, afirmando que é incabível que os bens sejam divididos igualmente entre os irmãos, na condição de herdeiros colaterais, em razão de que, conquanto inexista qualquer conotação sexual entre ambas, a convivência expressa a comunhão de esforços, sendo cabível a aplicação das disposições que se referem ao casamento e a união estável, por analogia. Acerca do caso exemplificado, Dias (2015, p. 140) aponta como solução mais justa que o patrimônio da falecida, deveria ser entregue, integralmente, à irmã com a qual ela convivia, tendo em conta a parceria de vida entre elas, razão pela qual a irmã em questão antecede os demais irmãos na ordem de vocação hereditária. A entidade familiar denominada de família reconstituída, recomposta ou mosaico, por sua vez, são “as que se constituem entre um cônjuge ou companheiro e os filhos do outro, vindos de um relacionamento anterior” (LÔBO, 2015, p. 82). Tem- se que em levantamento realizado pelo IBGE, no Brasil, no ano de 2010, constatou- se a existência de 4,5 milhões de famílias recompostas, das quais, metade era integrada por filhos remanescentes dos antigos relacionamentos e filhos comuns entre o casal (LÔBO, 2015, p. 84). Nesse ponto, tem-se que: O afeto é fundamental à subsistência desta modalidade familiar, exigindo de seus membros extraordinária capacidade de adaptação e paciência, considerando o fato de serem egressos de famílias anteriores, e, portanto, guardando o conjunto de valores da experiência familiar vivenciada (VIANNA, 2011, p. 523). De acordo com Madaleno (2015, p.12), “o Direto de Família e o vigente Código Civil não se prepararam para regulamentar os diversos efeitos decorrentes das famílias reconstituídas”. No entanto, essa entidade familiar vem tendo um reconhecimento jurídico, como o advento da Lei nº 11.924/2009, a qual em um de seus artigos, dispõe que é possível o enteado ou enteada pleitear junto ao juiz de registros públicos, que figure o sobrenome do padrasto ou madrasta no seu registro de nascimento, desde que haja expressa anuência desse e motivo razoável, não significando que o sobrenome do pai ou mãe biológico vai ser substituído ou suprimido, havendo, tão somente, um acréscimo (LÔBO, 2015, p. 85). 25 Além disso, a jurisprudência tem exercido importante papel, como por exemplo, a atribuição de encargos para o padrasto, como o direito a alimentos pelo filho do cônjuge ou companheiro, desde que certificada a existência de vínculo afetivo entre eles, denominado de paternidade alimentar (DIAS, 2015, p. 141). No tocante as entidades familiares chamadas de famílias paralelas, interessante o relatado por Dias (2015, p. 137-138), a qual afirma que, embora haja determinação legal impondo o dever de fidelidade no casamento e de lealdade na união estável, tal disposição não é suficiente para se sobrepor-se ao efetivo histórico de uma sociedade machista e patriarcal, na qual os homens, apesar de casados ou tendo uma companheira, buscam novas emoções sem desfazer os laços familiares já existentes. Desse modo, Dias (2015, p. 137-138) afirma que quem é hábil para desdobrar-se em pelo menos dois relacionamentos simultâneos, compartilhando-se entre dois lares, com duas mulheres e, eventualmente, tendo filhos com ambas, pertence as denominadas famílias paralelas (DIAS, 2015, p. 137-138). Nesse sentido, tem-se que “verificadas duas comunidades familiares – assim reputadas sociologicamente – que tenham entre si um membro em comum, operar-se-á a apreensão jurídica dessas realidades familiares” (PIANOVSKI, s.d., p. 08). O autor explana, ainda, que nos casos em que as famílias paralelas restam configuradas, deve-se ter em mente os deveres éticos de respeito e amparo aos âmbitos moral e patrimonial da entidade familiar que não é a principal (PIANOVSKI, s.d., p. 08). No que se refere aos efeitos jurídicos dessas entidades familiares, Hironaka (2013, p. 202-204) observa que, a tendência jurisprudencial, atualmente, ainda se mostra conservadora, senão preconceituosa, não admitindo, majoritariamente, a geração de efeitos. A autora, aduz que tal posicionamentose dá, pelo fato de se considerar a monogamia como princípio ou como regra do direito de família. Contudo, a autora relatou que, noutro norte, já se ampliam as decisões favoráveis ao reconhecimento e proteção dos casos em que há a simultaneidade conjugal, principalmente oriundos do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, o que a doutrinadora entende como uma incipiente demonstração de justiça. No sentido dos julgados favoráveis, Madaleno (2015, p. 17) explana que nos primeiros processos em que isso ocorreu não se ordenava que os bens fossem divididos entre os três integrantes da relação de maneira igualitária, mas atribuindo à 26 concubina o direito de partilhar a meação do concubino e, dessa forma, mantendo-se integral a meação da esposa, falando-se tão somente em meação da meação e não em triação. Não obstante, com o decorrer do tempo e evolução de raciocínio, os julgados foram modificando-se e passaram a permitir a partilha de bens em três porções (MADALENO, 2015, p. 17). Nesse ponto, de se frisar que os exemplos dados por Madaleno foram baseados na Oitava Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Todavia, o Superior Tribunal de Justiça, tem afastado os efeitos jurídicos relativos as famílias paralelas que não tenham indicação de separação de fato do cônjuge adúltero (MADALENO, 2015, p. 26). Por seu turno, a união poliafetiva, é composta por mais de duas pessoas que mantém convívio com um vínculo afetivo, os quais são isentos do dever imposto culturalmente de uma relação baseada na exclusividade entre somente duas pessoas vivendo um para o outro, mas sim, mais de duas pessoas vivendo livres das amarras de uma vida conjugal convencional. Tem-se que os conviventes vivem preponderando princípios, distanciando-se da monogamia e buscando a proteção do seu núcleo familiar que baseado no elo do afeto (MADALENO, 2015, p. 28). A discussão e reconhecimento, no Brasil, acerca dessa entidade familiar, se deu com a lavratura de uma escritura pública na cidade de Tupã, em São Paulo, no ano de 2012, a qual dava conta da união de um triângulo amoroso, formado por duas mulheres e um homem que viviam sob o mesmo teto, em uma relação afetiva consentida (MADALENO, 2015, p. 27). Posteriormente, a mesma tabeliã que registrou a primeira oficialização de união poliafetiva, Cláudia Domingues, realizou pelo menos mais sete uniões baseadas no poliamor, até janeiro de 2016 (AMÂNCIO, 2016, s.p.). Dias (2015, p. 139), a escritura pública pioneira foi tida por muitos como inexistente, nula e indecente, sendo rotulada como uma ofensa à moral e aos bons costumes. No entanto, a jurista afirma, ademais, que o pensamento de que as famílias poliafetivas são inexistentes é negar aos seus membros todos os direitos da seara das famílias e de sucessão. No ponto, tem-se que não há legislação específica reconhecendo a validade de uma união poliafetiva, contudo, também não há nenhum dispositivo que a proíba (MADALENO, 2015, p. 29). Portanto, verifica-se que as entidades familiares aqui expostas, “são as novas demandas que surgem na sociedade brasileira e que precisam merecer a atenção da jurisprudência e do legislador, de modo a garantir o adequado 27 cumprimento das funções familiares” (MADALENO, 2015, p. 13). Por fim, cabe o explanado por Dias (2015, p. 139), a qual afirma que “não havendo prejuízo a ninguém, de todo descabido negar o direito de as pessoas viverem com quem desejarem”. Dessa forma, é possível verificar que o conceito atual de família não está atrelado tão somente ao matrimônio ou a união estável, uma vez que o que mantém uma entidade familiar, na atualidade, é a solidariedade entre os membros e os laços de afetividade construídos. 1.2. CONCEITO DE FAMÍLIA A PARTIR DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS A concepção clássica de princípios, de acordo com Alexy (2009, p. 85) é a de que Os princípios são mandamento de otimização. Como tais, são normas que ordenam que algo seja realizado em máxima medida relativamente às possibilidades reais e jurídicas. Isso significa que elas podem ser realizadas em diversos graus e que a medida exigida de sua realização depende não somente das possibilidades reais, mas também das possibilidades jurídicas. Para Calderon (2011, p. 100), é fundamental que se reconheça que os princípios são fruto de uma construção do discurso jurídico, a fim de que se compreenda o papel deles na contemporaneidade. Isso em razão de que um princípio é gerado pelo conflito entre a teoria e a jurisprudência, sendo que o resultado dessas discussões exprime quais princípios serão considerados vigentes para um determinado sistema jurídico e, para além disso, qual o real significado dos princípios adotados para aquele sistema naquele momento. A legislação não é capaz de acompanhar a evolução social e realidade da família, considerando que a vida e as relações nela existentes são mais fartas e amplas do que os textos legislativos podem abarcar. Há uma constante reorganização do Direito de Família realizada pelos operadores do direito, a qual é impelida pelos costumes, determinando a busca de outras fontes do Direito a fim de alcançar os elementos necessários para aproximar-se do justo. Desse modo, afirma-se que os princípios gerais são as fontes do Direito que melhor viabilizam a adequação da justiça 28 no âmbito do Direito de Família. Ademais, tem-se que apenas será viável decidir sobre o que é justo ou injusto, se tais decisões forem fundamentadas com uma base principiológica, estando acima dos valores morais, os quais, por muitas vezes, são estigmatizantes (PEREIRA, R., 2004, p. 33). De maneira a continuar o pensamento de Pereira R., no que diz respeito ao fato de que as normas não se adequam tão facilmente a realidade social, é interessante a exposição do pensamento de Lôbo (s.d., p. 02), uma vez que afirma que os princípios: [...] sem mudança ou revogação de normas jurídicas, permitem adaptação do direito à evolução dos valores da sociedade. Com efeito, o mesmo princípio, observando-se o catálogo das decisões nos casos concretos, em cada momento histórico, vai tendo seu conteúdo amoldado, em permanente processo de adaptação e transformação. A estabilidade jurídica não sai comprometida, uma vez que esse processo de adaptação contínua evita a obsolescência tão frequente das regras jurídicas, ante o advento de novos valores sociais. Outrossim, observa-se que os princípios estão acima das regras legais, tendo em vista que absorvem as imposições de valores éticos e de justiça que compõem o suporte axiológico, dando harmonia a estrutura e coesão interna a todo o sistema jurídico (DIAS, 2015, P. 40). Assim, considerando que os princípios jurídicos norteadores do direito e, especialmente para os fins desta pesquisa, do direito de família, devem reger todas as decisões judiciais, no intuito de buscar a solução mais adequada e justa, explana- se, a seguir, neste tópico, acerca dos princípios constitucionais norteadores do Direito de Família ligados ao tema principal desta pesquisa. 1.2.1. Princípio da dignidade da pessoa humana O princípio da dignidade da pessoa humana é o maior de todos, sendo o fundador do Estado Democrático de Direito e fixado no primeiro artigo da Constituição Federal. Dessa forma, observa-se que é reconhecido como valor nuclear da ordem constitucional, tendo em conta a ascensão dos direitos humanos e da justiça social (DIAS, 2015, p. 44). No entanto, a dignidade da pessoa humana não é criação da 29 Constituição Federal, embora seja assegurada porela, haja vista que o ordenamento constitucional apenas considerou a eminência do princípio e o consagrou, passando ele a ter valor supremo de fundamento da ordem jurídica democrática (MORAES, 2006, p. 117). Como macroprincípio, a dignidade da pessoa humana abrange e difunde outros princípios e valores indispensáveis, sendo uma coleção de princípios éticos, como a liberdade, autonomia privada, cidadania, igualdade, alteridade e solidariedade (PEREIRA, R., 2004, p. 68). Nesse mesmo sentido, Moraes (2006, p. 119) afirma que são corolários do princípio da dignidade da pessoa humana os princípios jurídicos da igualdade, da liberdade, da solidariedade e da integridade física, moral e psicofísica. Acerca deste último, a autora assevera que ele tem o condão de garantir os direitos de personalidade, a fim de se proteger uma existência digna (MORAES, 2006, p. 127) Para Renon (2009, p. 38) o princípio da dignidade da pessoa humana é o primeiro de todos, sendo que seu valor ultrapassa qualquer outro direito, em razão de que a pessoa merece dignidade só pelo fato de ser pessoa e como tal, possui um valor moral inalienável e intransferível, independentemente de suas características individuais. Embora seja difícil conceituar o princípio em tela, Gagliano e Pamplona Filho (2015, p. 76), atrevem-se a explanar que o aludido princípio “[...] traduz um valor fundamental de respeito à existência humana, segundo as suas possibilidades e expectativas, patrimoniais e afetivas, indispensáveis à sua realização pessoal e à busca da felicidade”. De acordo com Cavalieri (s.d., p. 56, apud, Mores, 2006, p. 147) a dignidade Nada mais é do que a base de todos os valores morais, a síntese de todos os direitos do homem. O direito à honra, à imagem, ao nome, à intimidade, à privacidade, ou qualquer outro direito de personalidade, todos estão englobados no direito à dignidade, verdadeiro fundamento e essência de cada preceito constitucional relativo aos direitos fundamentais. Nas palavras de Lôbo (2015, p. 54), o princípio é “o núcleo existencial que é essencialmente comum a todas as pessoas humanas, como membros iguais do gênero humano, impondo-se um dever legal de respeito, proteção e intocabilidade”. Com o advento da Constituição Federal de 1988 e a escolha por alçar a dignidade da pessoa humana como fundamento da ordem jurídica, verifica-se que 30 houve uma despatrimonização, uma vez que os institutos passaram a focar na pessoa e na efetivação da personalidade, colocando a pessoa humana como o núcleo a ser protegido pelo direito (DIAS, 2015, p. 45). Nesse sentido, no que diz respeito a família, tem-se que ela passou a ter a função de instrumento e de ser o local no qual se assegura a dignidade da pessoa, de modo que toda a legislação que diz respeito ao direito de família deve ser analisada sob à ótica constitucional (MADALENO, 2015, p. 50). Assim, “a dignidade da pessoa humana encontra na família o solo apropriado para florescer” (DIAS, 2015, p. 45). Nesse sentido, atenta-se para o ensinamento de Pereira, R. (2004, p. 129), o qual expõe que: Sem dúvida, a família é o lugar privilegiado de realização da pessoa, pois é o locus onde ela inicia seu desenvolvimento pessoal, seu processo de socialização, onde vive as primeiras lições de cidadania e uma experiência pioneira de inclusão no laço familiar, a qual se reportará, mais tarde, para os laços sociais. Destarte, ressalta-se que o Direito de Família tem o escopo de garantir a comunhão plena da vida, não somente dos cônjuges ou dos que vivem em união estável, mas sim, de cada membro da entidade familiar (MADALENO, 2015, p. 50). Nesse viés, tem-se que “a dignidade significa o reconhecimento de cada pessoa, na sua singularidade, com tudo aquilo que é próprio da sua individualidade, enquanto ser único” (RENON, 2009, p. 43). Desse modo, tem-se que com o princípio da dignidade da pessoa humana no tocante a relação familiar, passou-se a explorar os membros da família como pessoas dotadas de direitos, sendo o núcleo familiar o lugar essencial para que os seres humanos se desenvolvam. 1.2.2. Princípio da solidariedade familiar O princípio da solidariedade familiar está elencado expressamente nos artigos 3º, inciso I, e 229, ambos da CF. Têm-se que ele é consequência da superação do individualismo jurídico e objetiva a construção de uma sociedade livre, justa e 31 solidária, sendo essa criada pelos elos de afetividades que permeiam as relações familiares, compreendendo as concepções de reciprocidade e fraternidade (MALUF, 2010, p. 40). Além disso, deve-se atentar ao que já foi dito neste presente trabalho acerca deste princípio, vale dizer, que ele decorre do macroprincípio da dignidade da pessoa humana. De acordo com Moraes (2006, p. 140-141), a solidariedade como princípio jurídico baseia-se na reciprocidade, não devendo fazer ao outro o que não deseja que lhe seja feito. Somado a essa ideia, a referida autora expõe que a solidariedade deve- se ser entendida como uma forma de os indivíduos compreenderem que as desigualdades de fato não são tão importantes, a fim de que se considerarem como iguais. Por fim, a autora explana que o princípio em questão “identifica-se, desse modo, com o conjunto de instrumentos voltados para garantir uma existência digna, comum a todos, em uma sociedade que se desenvolva livre e justa, sem excluídos” (MORAES, 2006, p. 142). Nesse ponto da reciprocidade, assevera-se que o mais importante é que haja a compreensão de que a solidariedade não é tão somente um dever do Estado, em relação as políticas públicas, mas, para além disso, consubstancia-se, também, em deveres recíprocos entre as pessoas (LÔBO, s.d., p. 02). No que diz respeito, especificamente, ao direito de família, Lôbo (s.d., p. 03), aduz-que este princípio “perpassa transversalmente os princípios gerais do direito de família, sem o qual não teriam o colorido que o destacam, a saber, o princípio da convivência familiar, da afetividade, e o do melhor interesse da criança”. Para Madaleno (2015, p. 99), “a solidariedade é o princípio e oxigênio de todas as relações familiares e afetivas, porque esses vínculos só podem se sustentar e se desenvolver em ambiente recíproco de compreensão e cooperação [...]”. Rosenvald e Farias (2015, p. 5), aduzem que o propósito essencial da família atual passou a ser a solidariedade e, também, as demais circunstâncias necessárias para progresso e aprimoramento humano, de modo que o núcleo familiar seja orientado pelo afeto. Sinteticamente, portanto, tem-se que a solidariedade estabelece o dever de amparo e assistência moral e material recíproca entre todos os integrantes da família, observando, para tanto, o macroprincípio da dignidade da pessoa humana (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2015, p. 95). 32 Isso posto, cabe breve exemplificação do princípio nas disposições do Código Civil de 2002: O art. 1.513 do Código Civil tutela “a comunhão de vida instruída pela família”, somente possível na cooperação entre os seus membros; a adoção (art. 1.618) brota não do dever, mas do sentimento de solidariedade; o poder familiar (art. 1.630) é menos “poder” dos pais e mais múnus ou serviço que deve ser exercido no interesse dos filhos; a colaboração dos cônjuges na direção da família (art. 1.567) e a mútua assistência moral e material entre ele (art. 1.566) e entre companheiros (art. 1.724) são deveres hauridos da solidariedade [...] (LÔBO, 2015, p. 57). Por fim, cabe o exposto de Dias (2015, p. 48) de que “a pessoa só existe enquanto coexiste”. À vistadisso, é notório que o princípio da solidariedade rege as famílias atuais, buscando a reciprocidade entre seus membros, no intuito de que todos se desenvolvam com o auxílio uns dos outros, sempre visando a existência com dignidade. 1.2.3. Princípio da paternidade responsável Inicialmente, cabe o esclarecimento que a expressão “paternidade responsável” pode resultar em mais de um sentido. A uma, pode ser relacionada com a liberdade de escolher de maneira responsável e consciente sobre ter ou não filhos, bem como, a quantidade de filhos que se deseja ter. A duas, pode também ser entendido sob a perspectiva da responsabilidade dos pais com os filhos, isto é, com o dever parental (SANDRI, 2006, p. 07). No presente trabalho, o enfoque se dá na segunda visão. Assim, nesse caso, “pode-se conceituar a paternidade responsável como a obrigação que os pais têm de prover a assistência moral, afetiva, intelectual e material aos filhos” (CARDIN, 2009, p. 5612). Todavia, não se preconiza que os pais devem fornecer requinte à prole, mas que possam assegurar o mínimo, isso é, afeto, alimentação básica, educação em escola pública e encaminhamento da personalidade em formação dos filhos por meio de princípios morais e éticos (CARDIN, 2009, p. 5623). 33 O princípio constitucional da paternidade responsável está elencado no artigo 226, §7º da Constituição Federal. No ECA, está disposto, de forma explícita, no artigo 27, ao determinar que o reconhecimento do estado de filiação é personalíssimo, indisponível e imprescritível (PIRES, 2013, s.p.). Cabe esclarecer que tal princípio “não se dirigiu apenas a uma prerrogativa masculina. Em nome [...] da igualdade entre os cônjuges e idêntico tratamento no exercício do poder familiar, a expressão envolve o masculino genérico e representa a responsabilidade dos genitores” (PEREIRA, T.; FRANCO, 2009, p. 350). Além disso, no tocante a legislação que tem como fundamento o princípio da paternidade responsável, atenta-se ao artigo 14 da Lei nº 13.257/16, o Marco Legal da Primeira Infância, o qual dispõe que as políticas e programas governamentais de suporte às famílias, incluindo os programas de promoção da paternidade e maternidade responsáveis visarão a articulação das áreas de saúde, nutrição, educação, assistência social, cultura, trabalho, habitação, meio ambiente e direitos humanos, entre outras, com vistas ao desenvolvimento integral da criança. Infere-se de todos esses dispositivos que o objetivo do legislador é que a paternidade seja exercida de modo responsável, uma vez que somente assim todos os princípios fundamentais, como a vida, a saúde, a dignidade da pessoa humana e a filiação serão honrados (CARDIN, 2009, p. 5612). Para Lôbo (2015, p. 282) o princípio ora em comento, estabelecido no ordenamento constitucional no art. 226, não se esgota no cumprimento na assistência material, mas também abarca a assistência moral, sendo essa um dever jurídico, que se for descumprido pode ensejar reparação indenizatória. Tem-se, dessa forma, que o mencionado princípio significa responsabilidade e deve ser exercido desde o momento da concepção e se estende até que haja necessidade e justificativa para a assistência dos pais para com seus filhos, obedecendo assim o dispositivo constitucional do artigo 227, constituindo-se em garantia fundamental (PIRES, 2013, s.p.). Assim, “se um filho veio ao mundo, seja de forma planejada ou não, os pais devem arcar com essa responsabilidade” (PRUNZEL; OLIVEIRA, 2013, p. 06). Por fim, aponta-se que o princípio da paternidade responsável está ligado intimamente com os princípios da dignidade da pessoa humana e com o planejamento familiar, os quais, concomitantemente, tem o intuito de proporcionar para os filhos um desenvolvimento e formação saudáveis. 34 1.2.4. Princípio da afetividade O princípio da afetividade é o que “fundamenta o direito de família na estabilidade das relações socioafetivas e na comunhão da vida” (LÔBO, 2015, p. 65). Nas palavras de Hironaka (2013, p. 201-202): [...] a “afetividade”, que ganhou foro de “princípio jurídico” na expressão e retrato da família como ela é nos dias atuais. Ao se falar em afeto, já não se o entende como antes, quer dizer, ao tempo da família patriarcal e hierarquizada, quando então significava apenas um sentimento fragilizado e até mesmo tido como secundário, nas relações de família. Hoje, o afeto – considerado como valor jurídico – promoveu a família de um status patriarcal para um status nuclear. Se, no anterior tempo, o afeto “era presumido em razão de o vínculo jurídico dar a existência de uma família”, no espaço atual “ele é um dos elementos responsáveis pela visibilidade e continuidade das relações familiais”. Dessa feita, verifica-se que “o afeto é um elemento essencial de todo e qualquer núcleo familiar, inerente a todo e qualquer relacionamento conjugal ou parental” (PEREIRA, R., 2004, p. 128). Tem-se que o princípio ora analisado é implícito, em virtude de que as expressões afetividade e afeto não constam no texto constitucional, entretanto, é inequívoco que a Constituição Federal elencou o afeto como princípio regedor. Com efeito, um exemplo a ser exposto é o reconhecimento da união estável como entidade familiar, uma vez que ela não se forma pelo matrimônio e, dessa forma, revela-se que a afetividade que permeia na relação das duas pessoas unidas estavelmente logrou reconhecimento e adentrou no sistema jurídico (DIAS, 2015, p. 52). Nesse sentido, também é o pensamento de Calderon (2011, p. 193), o qual assevera é possível notar que a afetividade está implícita nas disposições da Constituição Federal de 1988, pela análise dos valores adotados pela ela, uma vez que visam, em ultima ratio, assegurar situações subjetivas afetivas com passíveis de garantia e reconhecimento. Assim, o autor afirma que, após a Constituição Federal de 1988 é viável a sustentação do reconhecimento da afetividade como princípio jurídico implícito no ordenamento constitucional. Além disso, é de extrema relevância a observação dos fundamentos constitucionais do princípio da afetividade expostos por Lôbo (2015, p. 66): 35 [...] a) todos os filhos são iguais, independentemente de sua origem (art. 227, § 6º); b) a adoção, como escolha afetiva, alçou-se integralmente ao plano de igualdade de direitos (art. 227, §§ 5º e 6º); c) a comunidade formada por qualquer dos pais e deus descendentes, incluindo-se os adotivos, tem a mesma dignidade de família constitucionalmente protegida (art. 226, § 4º; d) convivência familiar (e não a origem biológica) é a prioridade absoluta assegurada à criança e ao adolescente (art. 227). De acordo com Renon (2009, p. 65), a afetividade é o elemento que define a família, tendo em vista que a função principal do núcleo familiar é a realização da afetividade pelas pessoas da família, baseada em um humanismo, construído pela solidariedade, sendo que essa finalidade afetiva da família faz com que os integrantes se unam e adquiram estabilidade, haja vista que o respeito, a igualdade e a liberdade permeiam as relações constantemente. De se frisar, contudo, que a afetividade em sede de princípio jurídico, não deve ser confundida com o afeto, no âmbito psicológico, uma vez que o princípio pode ser presumido nas relações familiares, ainda que o afeto esteja ausente e prevaleça a desafeição entre os integrantes do grupo familiar, em virtude de ser um dever estabelecido aos pais em relação aos seus filhos e a esses últimos em face dos primeiros. Ademais, entende-se que esse dever jurídico se opõe também entre os parentes,
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