Buscar

A Nova História Política e a Retomada da Biografia

Prévia do material em texto

Aula 7 – A Derrocada dos Macromodelos e a Proposta da “Nova” História Política
Como vimos na aula 2, o movimento historiográfico francês que aprendemos a chamar de Escola dos Annales marginalizou, no século XX, a História Política e biográfica. Esta foi definida como sintoma de um tipo de abordagem historiográfica que na época era identificada com os historiadores oitocentistas e considerada ultrapassada.
Durante as décadas em que a proposta da História Social foi hegemônica, as investigações interessadas nos fatos políticos e nas biografias foram consideradas menos importantes pelas universidades francesas. Esse quadro vem se transformando desde a década de 1980, quando, na esteira da crise dos paradigmas estruturalistas, as perspectivas política e biográfica foram retomadas pelos historiadores profissionais.
O principal objetivo desta aula é apresentar a você as principais características dessa proposta analítica, que é conhecida como “nova” Histórica Política, que inclui, entre outras coisas, o interesse pela biografia.
Diferenças entre a História Política tradicional e a “Nova” História Política
Da mesma forma como vimos na última aula, não podemos nos esquecer que o termo “nova” deve ser pensado com muito cuidado, já que possui certa dimensão estratégica que visa desqualificar o tipo de História Política praticado anteriormente. Por isso, nos debruçamos nesta aula sobre as diferenças entre essas duas modalidades de História Política: aquela praticada no século XIX, que chamamos aqui de “tradicional”, e aquela que cada vez mais influencia os trabalhos que atualmente estão sendo produzidos nas universidades ocidentais.
Após a década de 1980, um grupo de estudiosos, entre os quais podemos citar René Remond, Beatriz Sarlo, Serge Berstein e Michel Winock, começou a trazer para a pauta dos estudos históricos, os eventos políticos e as trajetórias biográficas. Esses temas não faziam parte do cânone historiográfico da História Social francesa proposta pela “Escola” dos Annales. Porém, seria um equívoco supor que tal tipo de abordagem foi uma invenção desses autores. Se formos considerar apenas a fase científica da História do conhecimento histórico, encontraremos no século XIX uma grande quantidade de estudos dedicados à política e à biografia.
Renné Remond
A história política que hoje é considerada nova não pode negar que buscou no passado da ciência histórica alguns exemplos daquilo que precisava ser retomado. A geração que redescobriu a importância da História Política teve percursores, tanto é verdade é que quase nunca existe um começo absoluto e que na ordem do conhecimento as descobertas frequentemente são redescobertas (Remond, p. 26).
Essa advertência foi feita por Renné Remond, que é um dos principais representantes dessa “nova” História Política. Ao formular a reflexão nesses termos, o autor chama atenção para o fato de que a Ciência Histórica é marcada pela presença dos estudos sobre os fenômenos políticos. Isso fica claro se analisarmos a produção dos historiadores do século XIX, como, por exemplo, Charles Seignobos, André Siegfried, para ficarmos somente nos autores franceses, já que os alemães foram examinados na primeira aula desta disciplina.
Charles Seignobos
O nome Charles Seignobos tem destaque nos estudos a respeito da História Política desenvolvida no século XIX. Trata-se de um autor que foi um tanto esquecido na memória disciplinar formulada dentro dos quadros da “Escola” dos Annales. Nosso interesse aqui é apresentar, ainda que brevemente, as principais características dos estudos políticos desenvolvidos por Seignobos, visando destacar as semelhanças e diferenças desse tipo de abordagem com aquela que caracterizaria a renovação da História Política após a década de 1980.
Para Renné Remond: Ele foi o primeiro a se dar conta de dois fatos importantes cuja constatação foi determinante nos primórdios da sociologia eleitoral: a diversidades dos “temperamentos” políticos regionais e a profundidade do seu enraizamento, o que fez com que o autor apresentasse uma abordagem do político que causa estranhamento no leitor que se acostumou a ler os textos do século XIX a partir da lente dos Annales. (Remond; p. 27). Mais uma vez, Renné Remond nos apresenta uma importante advertência: o cuidado com o risco de supor que a intepretação que os Annales propuseram a respeito da Ciência Histórica é a única possível. De acordo com essa interpretação, a História Política proposta no século XIX era sempre ligada ao Estado, elitista, biográfica e não interessada no movimento das massas.
É claro que essa imagem não está completamente equivocada, mas sim incompleta, principalmente se tivermos em vista autores como Seignobos, que foi um dos primeiros a se interessar pela análise das práticas eleitorais.
André Siegfried
Os estudos políticos desenvolvidos por André Siegfried podem ser colocados na mesma esteira daqueles que foram produzidos por Seignobos. Siegfried é considerado por muitos o pai da geografia eleitoral, o que demonstra a presença do interesse (Esse interesse traduz a concepção de poder que era comum entre esses autores e servia como fundamento para o tipo de História Política que eles desenvolviam: o poder era considerado o desdobramento lógico da ação do Estado.) pelo exame das eleições entre os historiadores franceses durante a Terceira República.
Para Siegfried, é no comportamento político dos eleitores e dos candidatos que é possível compreender os valores que condicionam o funcionamento do poder (Sempre que o poder está em disputa, há a movimentação daqueles que desejam ocupar o controle do Estado, que é a manifestação mais acabada do poder que podemos conhecer. Por isso, o controle dos dados eleitorais é fundamental, principalmente quando permite visualizar as preferências eleitoras nas vilas, onde os interesses são mais imediatos e concretos (Siegfried, 1985, p. 37).), o que para o autor significava também o funcionamento do Estado. Essa perspectiva, então, priorizava o exame das disputas pelas posições de poder na estrutura do Estado, que no século XIX havia se consolidado como o fundamento dos nacionalismos.
Ao examinar os textos historiográficos oitocentistas que estiveram interessados nos estudos políticos, Renné Remond afirmou que: Durante séculos, a chamada “História Política” – a do Estado, do poder e das disputas por sua conquista ou conservação, das instituições em que ele se concentrava, das revoluções que o transformavam – desfrutou durante algum tempo de um prestígio inigualável entre os historiadores devido a uma convergência de fatores [...]. Mas também se refletia nesse tipo de História o brilho que emanava do Estado, realidade suprema e transcendente que é a manifestação do sagrado em nossas sociedades secularizadas (Remond, 2003, p. 15).
Se a História Política tradicional esteve preocupada com a manifestação do poder na estrutura e na atuação do Estado moderno burocratizado, a “nova” História Política tornou essa questão mais complexa e propôs, baseada na concepção de poder desenvolvida pro Michel Foucault, outro tipo de abordagem dos fenômenos políticos.
A Expansão da Política
Como já dissemos, o historiador francês Renné Remond é um dos principais representantes da tendência de pesquisa que hoje chamamos de “nova” História Política. No livro Por uma História Política, de 2003, o autor organizou o trabalho de um grupo de historiadores que têm em comum o interesse em sistematizar teoricamente os objetivos desse tipo de abordagem historiográfica.
Para Remond, a historiografia precisa ser pensada a partir do diálogo entre as interrogações internas à comunidade dos historiadores profissionais e as inquietações que caracterizam a realidade na qual o conhecimento histórico é produzido. É a partir dessa proposta que o autor examina a retomada, a partir da década de 1980, dos interesses da comunidade científica dos historiadores pela História Política.
Na medida em que as duas grandes guerras (A experiência dasguerras, cujo desencadeamento não pode ser explicado apenas pelos dados da economia, as pressões cada vez mais perceptíveis das relações internacionais na vida interna dos Estados lembraram que a política tinha uma incidência sobre o destino dos povos e das existências individuais. Tudo isso contribuiu para dar crédito de que o político tinha uma consistência própria e dispunha mesmo de certa autonomia em relação aos outros componentes da vida social (Remond, 2003, p. 23).) mundiais foram motivadas pelos conflitos entre os Estados nações rivais, a ação política foi considerada fundamental para os rumos da História contemporânea. Remond afirma ainda que a situação de guerra provocou o aumento da necessidade de intervenção do Estado (Outra coisa atuou no mesmo sentido para reintegrar os fatos políticos ao campo de observação da História: a ampliação do domínio da ação política com o aumento das atribuições do Estado. As fronteiras que delimitam o campo do político não são eternas: seu traçado conheceu muitas variações em nosso século, a evolução se deu no sentido da extensão; podemos dizer que também o mundo da política está em expansão. (Remond, p. 25).) no cotidiano das sociedades e que isso também provocou a valorização do elemento político.
Em uma situação histórica marcada pelo trauma da guerra total, os Estados foram pressionados pela opinião pública no sentido de atender algumas demandas que antes não faziam parte da agenda administrativa da maioria dos governos. Nesse sentido, materializando-se sob a forma da intervenção do Estado, a política se apropriou de uma série de questões que antes não eram consideradas propriamente políticas. Isso gerou, ainda segundo o autor, a consequente expansão dos estudos históricos interessados em fenômenos políticos, tais como as relações internacionais, as organizações sindicais e religiosas e a relação entre as pressões da opinião pública e a eficácia da ação do Estado. Com isso, desabou a principal objeção a esse tipo de História: como sustentar ainda que o político não se refere às realidades quando ele tem por objetivo geri-las? A prova disso está na atração cada vez maior que a política e as relações com o poder exercem sobre agrupamentos sociais cuja finalidade primeira não era, contudo, política (Remond, p. 25).
Conceito Foucaultiano de Poder
A abrangência da esfera de atuação do poder do Estado e a consequente expansão dos elementos considerados pertencentes ao campo da política tiveram desdobramentos no plano do pensamento filosófico, tipo de reflexão da qual Michel Foucault é um dos nomes mais representativos. Os estudos de Foucault a respeito do poder e das suas diversas formas de atuação e manifestação foram fundamentais para o desenvolvimento da “nova” História Política.
A principal contribuição de Foucault para a formulação teórica da “nova” História Política foi: a complexificação do conceito de poder, que se tornou plural e diversificado o suficiente para não mais se enquadrar apenas na esfera de atuação do Estado, como afirmavam os historiadores do século XIX.
Na vasta obra de Foucault, dois livros se destacam: Ainda que as reflexões a respeito do poder possam ser encontradas na totalidade da obra de Michel Foucault, esses dois estudos demonstram o esforço do autor em diversificar a concepção tradicional do conceito de “poder”. Mostram ainda que os poderes se manifestam em diversos planos, sendo as manifestações mais óbvias, como, por exemplo, a ação coerciva do Estado, apenas uma forma de materialização do poder.
A Revitalização da Escrita Biográfica na Historiografia Contemporânea
No século XIX, de acordo com o historiador francês François Dosse, a escrita biográfica e a História Política eram abordagens historiográficas tão próximas que chegavam a se confundir uma com a outra; escrever História Política era, na maioria dos casos, escrever também a biografia dos grandes personagens. O tempo passou e esse tipo de pesquisa foi se enfraquecendo na medida em que se fortalecia o estruturalismo da História Social francesa, sendo revitalizado, como estamos vendo nesta aula, a partir da década de 1980.
Hoje, quando a análise dos fenômenos políticos voltou a ser frequente na prática de trabalho dos historiadores, a biografia também foi retomada, sendo atualmente um dos estilos de escrita mais apreciados no nosso campo disciplinar. Nesse sentido, é importante que você saiba que as pesquisas biográficas vivem um momento de intenso fortalecimento, podendo servir, inclusive, como um possível tema para o seu Trabalho de Conclusão de Curso. Por isso, examinamos agora as propostas teóricas de dois importantes autores que se dedicaram ao estudo da escrita biográfica no atual momento das Ciências Humanas: o já citado François Dosse e Pierre Bourdieu.
Pierre Bourdieu
O artigo A ilusão biográfica, escrito por Bourdieu em 1988, é uma das principais referências teóricas para todos aqueles que têm o interesse em escrever uma biografia científica (Apesar de ser a mais conhecida, a crítica de Pierre Bourdieu à abordagem biográfica não foi propriamente original. Dez anos antes, Daniel Berteaux, no livro “Histoire de viés ou récits de pratiques?”, publicado originalmente em 1976, já tinha apontado as fragilidades da narrativa biográfica.). O autor foi um grande sociólogo e, por questões de ofício, tinha certa tendência a negar a perspectiva biográfica, criticando especialmente a biografia que Jean Paul Sartre escreveu sobre a vida de Gustav Flaubert.
Contudo, ao fazer essa crítica, Bourdieu apresentou uma recomendação metodológica que até hoje é levada a sério por aqueles que se aventuram pela escrita biográfica. Para Bourdieu: A história de vida é uma dessas noções do senso comum que entraram como contrabando no universo científico; inicialmente, sem muito alarde entre os etnólogos, depois, mais recentemente, com estardalhaço, entre os sociólogos. Falar da história de vida é pelo menos pressupor – e isso não é pouco – que uma vida é uma história que pode ser narrada. (Bourdieu, 2006, p. 183).
Para o autor, os biógrafos incorrem no erro de supor que a trajetória individual pode ser analisada de forma isolada das outras instâncias da vida social, como se fosse possível ao sujeito viver só e sem nenhum tipo de interação com o mundo. A crítica do sociólogo francês não para por aí.
François Dosse
Como vimos, as críticas de Bourdieu foram bem recebidas pelos historiadores/ biógrafos, que tentam na sua prática inserir o elemento caótico que cerca toda experiência social, inclusive a trajetória individual.  Já o livro O desafio biográfico: escrever uma vida é uma referência fundamental para todo pesquisador que tenha interesse em escrever a biografia de algum personagem histórico.
François Dosse, o autor, propõe a divisão da história da biografia em três partes: as fases retórica, moral e hermenêutica. Atualmente, quando a biografia se tornou parte importante das pesquisas desenvolvidas no campo científico da História, Dosse afirma que os historiadores precisam fugir das ilusões literárias e tratar da escrita biográfica em uma perspectiva hermenêutica.
A despeito das críticas feitas pelos biógrafos contemporâneos, o autor afirma que o estudo de Sartre sobre a vida de Gustav Flaubert foi fundamental para a revitalização da biografia no espaço acadêmico francês. Sartre abre, então, desde essa época, uma perspectiva nova e fecunda para o gênero biográfico, que porá de lado a alternativa entre elementos exteriores ao sujeito e elementos próprios à sua psicologia interior.
Numa abordagem já existente, ele internaliza o externo e exterioriza o interno (Dosse, 2009, p. 231). Apesar de valorizar a perspectiva existencialista de Sartre como um importante elemento de estímulo à revitalização da abordagem biográfica, o autor aponta que as críticas a esse tipo de perspectiva, como, por exemplo, aquela apresentada por Pierre Bourdieu, foram fundamentais para a consolidação da biografia pós-estruturalista.
Práticas de Pesquisa em HistóriaPolítica na Historiografia Brasileira
Apresentamos agora a você dois exemplos de práticas de pesquisa que dialogaram com a perspectiva da História Política. O primeiro é o livro Capítulos de História do Império, de Sérgio Buarque de Holanda, que mostra como a História Política jamais esteve completamente ausente da agenda da historiografia brasileira. O trabalho de Sérgio Buarque de Holanda, que foi publicado postumamente em 2010, mas que foi escrito ao longo das décadas de 1960 e 1970, deixa claro a necessidade de tomarmos cuidado com os grandes esquemas explicativos sobre a teoria da história e história da historiografia. Esses esquemas apontam para a marginalização da História Política na França e nos países marcados pela influência da historiografia francesa após o final dos 1940, quando a história social dos Annales se consolidou como o cânone historiográfico.
Não há dúvidas de que o espaço acadêmico brasileiro foi bastante inspirado pelas propostas dos Annales, mas mesmo assim podemos encontrar a presença do exercício da História Política, como, por exemplo, o apresentado por Sérgio Buarque de Holanda. Com isso, não desejamos afirmar a inutilidade desses esquemas explicativos, mas sim dizer que eles precisam ser testados o tempo inteiro pela análise de casos específicos.
O segundo é o livro Duque de Caxias: o homem por trás do monumento, de Adriana Barreto de Souza, que nos apresenta um exercício de narrativa biográfica típico da historiografia pós-estruturalista. O livro foi escrito sob outras circunstâncias e já se aproxima das discussões que marcaram a renovação da abordagem política e a revitalização da biografia. A autora examina a biografia de um dos principais personagens da história política brasileira oitocentista: Luiz Alves de Lima e Silva, o Duque de Caxias.
Adriana Barreto deixa claro que não se trata de uma biografia laudatória vinculada aos interesses do Estado nacional, como podemos perceber nos escritos biográficos do século XIX. Trata-se sim do esforço de examinar a trajetória de um sujeito na dinâmica específica do seu tempo, aferindo com cuidado as estratégias de negociação do biografado com as circunstâncias sociais que possibilitaram e limitaram as suas ações. Desse modo, o que se propõe é uma inversão no procedimento mais usual entre os historiadores, que consiste em partir de um contexto geral para situar a atuação de alguns personagens.
Aqui, o contexto será sempre particular, desenhado em função da circulação do personagem examinado pelo Império brasileiro e dos episódios em que se envolveram (Souza, 2008, p. 49). Ao acompanhar a vida do Duque de Caxias, começando pela chegada do seu avô paterno ao Brasil e terminando com o retorno do personagem da pacificação da Revolução Farroupilha, a autora escreveu uma espécie de História da Monarquia brasileira a partir da biografia de um dos seus líderes mais importantes.
A grande hipótese defendida pela autora é que o Duque de Caxias não nasceu Duque de Caxias, mas se transformou nessa figura. Somente mais tarde ele seria monumentalizado pelo Exército republicano, ao longo de sua trajetória, e em nenhum momento teve seu desfecho predeterminado. A autora parece ter ouvido com cuidado as advertências de Pierre Bourdieu.
Conclusão
Como já é comum nesta disciplina, temos o interesse de apresentar a você as propostas teóricas e metodológicas fundamentais para a produção do conhecimento histórico, assim como mostrar a operacionalização prática dessas propostas. Por isso, temos sempre o cuidado de comentar, ainda que de forma bastante sucinta, alguns estudos que se relacionam ao modelo analítico examinado durante a aula. Mais uma vez, deixamos clara a advertência de que os comentários sobre os autores e os textos citados nessa aula, sob aspecto algum, dispensam o aluno da leitura desses materiais. O bom exercício historiográfico, que se materializará na produção do seu TCC, demanda um grande esforço de leitura, para que os procedimentos da pesquisa se tornem claros para o autor, que no caso será você.
�PAGE \* MERGEFORMAT�2�

Continue navegando