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Aula 1 - O DIREITO DO CONSUMIDOR
■ 1.1. EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO DO CONSUMIDOR
■ 1.1.1. A importância das Revoluções Industrial e Tecnológica
Com o advento da Revolução Industrial do aço e do carvão houve grande migração da população residente na área rural para os grandes centros urbanos. Este novo contingente populacional começou, ao longo dos tempos, a manifestar ávido interesse pelo consumo de novos produtos e serviços capazes de satisfazer suas necessidades materiais. Ante esse novo modelo de sociedade que se formava, os fabricantes e produtores, além dos
prestadores de serviços, começaram a se preocupar com o atendimento da demanda que houvera aumentado em seu aspecto quantitativo, mas deixaram para um segundo plano o caráter qualitativo. Com efeito, a novel sociedade de consumo substitui a característica da bilateralidade de produção — em que as partes contratantes discutiam cláusulas contratuais e eventual matéria-prima que seria utilizada na confecção de determinado produto — pela unilateralidade da produção — na qual uma das partes, o fornecedor, seria o responsável exclusivo por ditar as regras da relação de consumo, sem a participação efetiva, e em regra, do consumidor. Ao vulnerável da relação apresentada cabe:
■ aderir ao contrato previamente elaborado pelo fornecedor — contrato de adesão; ou
■ adquirir produto confeccionado com material de origem e qualidade desconhecidas na maioria das vezes.
Com a nova filosofia de mercado, problemas começaram a surgir. Evidentemente, quando o
fornecedor passa a prezar pela quantidade em detrimento da qualidade, o consumidor depara-se com produtos e serviços viciados ou portadores de defeitos que lhe causarão prejuízos de ordem econômica ou física, respectivamente.
O novo modelo de sociedade de consumo ora apresentado ganhou força com a Revolução Tecnológica decorrente do período Pós-Segunda Guerra Mundial. Realmente, os avanços na tecnologia couberam na medida ao novel panorama de modelo produtivo que se consolidava na história. Tendo por objetivo principal o atendimento da enorme demanda no aspecto quantitativo, o moderno maquinário industrial facilitou a produção e atendeu a este tipo de expectativa.
■ 1.1.2. A quebra com o paradigma do direito civil clássico
Se vícios e defeitos começaram a se tornar recorrentes no novo modelo de sociedade apresentado, cumpre destacar inicialmente que o Direito da época não estava “apto” a proteger a parte mais fraca da relação jurídica de consumo, pois, no Brasil, por exemplo, a legislação aplicável na ocasião era o Código Civil de 1916, que foi elaborado para disciplinar relações individualizadas, e não para tutelar aquelas oriundas da demanda coletiva, como ocorre nas relações consumeristas.
Assim, o direito privado de então não tardaria a sucumbir, pois estava marcadamente influenciado por princípios e dogmas romanistas,[1] tais como:
■ pacta sunt servanda;
■ autonomia da vontade; e
■ responsabilidade fundada na culpa.
De fato, a obrigatoriedade dos termos pactuados, analisada como um postulado praticamente
absoluto, é manifestamente incompatível com as relações de consumo, pois, conforme analisaremos ainda neste capítulo, o Direito do Consumidor traz em seu conteúdo normas de ordem pública e de interesse social que possuem, como uma de suas principais repercussões, a impossibilidade de as partes derrogarem tais direitos.
Desta forma, não há falar em autonomia de vontade se o contrato de consumo possuir cláusula abusiva, por serem estas nulas de pleno direito, podendo, inclusive, ser assim reconhecidas de ofício pelo Juiz de Direito, numa das manifestações da intervenção estatal.
No tocante à responsabilidade, ressalta-se aí outra diferença em relação ao Direito Civil clássico. Enquanto neste modelo prevalecia a responsabilidade subjetiva — pautada na comprovação de dolo ou culpa —, no Código de Defesa do Consumidor a responsabilidade é, em regra, quase que absoluta, objetiva — que independe da comprovação dos aspectos subjetivos, conforme será estudado no Capítulo 5 deste livro.
DIREITO CIVIL CLÁSSICO DIREITO DO CONSUMIDOR
Nesse sentido é a posição consolidada no Superior Tribunal de Justiça a respeito da quebra com o paradigma do Direito Civil clássico ao entender que: “A jurisprudência do STJ se posiciona firme no sentido que a revisão das cláusulas contratuais pelo Poder Judiciário é permitida, mormente diante dos princípios da boa-fé objetiva, da função social dos contratos e do dirigismo contratual, devendo ser mitigada a força exorbitante que se atribuía ao princípio do pacta sunt servanda” (AgRg no Ag 1.383.974/SC, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, 4ª T., DJe 1º-2-2012).
■ 1.1.3. A intervenção estatal
Constatado então que o Direito da época não era suficiente para disciplinar as relações jurídicas de consumo, fez-se necessária a intervenção estatal para a elaboração e implementação de legislações específicas, políticas públicas e jurisdição especializada de defesa do consumidor em todo o mundo.
Foi a interferência do:
■ Estado-Legislador, elaborando as leis de tutela do consumidor.
■ Estado-Administrador, implementando tais leis de forma direta ou indireta.
■ Estado-Juiz, dirimindo conflitos de interesses oriundos das relações jurídicas de consumo.
■ 1.1.4. Citações históricas do direito do consumidor
Sobre as origens do Direito do Consumidor, a doutrina lembra:
■ Sergio Cavalieri Filho
“Em Nova York, por exemplo, Josephine Lowell criou a New York Consumers League, uma associação de consumidores que tinha por objetivo a luta pela melhoria das condições de trabalho locais e contra a exploração do trabalho feminino em fábricas e comércio. Essa associação elaborava “Listas Brancas”, contendo o nome dos produtos que os consumidores deveriam escolher preferencialmente, pois as empresas que os produziam e comercializavam respeitavam os direitos dos trabalhadores, como salário mínimo, horários de trabalho razoáveis e condições de higiene condignas. Era uma forma de influenciar a conduta das empresas pelo poder de compra dos consumidores. (...) Já no século XX (1906), Upton Sinclair publica o
romance socialista The jungle (A selva), no qual descreve, de maneira bastante realista, as condições de fabricação dos embutidos de carne e o trabalho dos operários dos matadouros de Chicago, bem assim os perigos e as precárias condições de higiene que afetavam tanto os trabalhadores como o produto final.” [2]
■ Claudia Lima Marques
“Considera-se que foi um discurso de John F. Kennedy, no ano de 1962, em que este presidente norteamericano enumerou os direitos do consumidor e os considerou como novo desafio necessário para o mercado, o início da reflexão jurídica mais profunda sobre este tema. O novo aqui foi considerar que ‘todos somos consumidores’, em algum momento de nossas vidas temos este status, este papel social e econômico, estes direitos ou interesses legítimos, que são individuais, mas também são os mesmos no grupo identificável (coletivo) ou não (difuso), que ocupa aquela posição de consumidor. (...) A ONU (Organização das Nações Unidas), em 1985, estabeleceu diretrizes para esta legislação e consolidou a
ideia de que se trata de um direito humano de nova geração (ou dimensão), um direito social e econômico, um direito de igualdade material do mais fraco, do leigo, do cidadão civil nas suas relações privadas frente aos profissionais, os empresários, as empresas, os fornecedores de produtos e serviços,
que nesta posição são experts, parceiros considerados ‘fortes’ ou em posição de poder (Machtposition).” [3]
■ Bruno Miragem
“Em 1972 realizou-se, em Estocolmo, a Conferência Mundial do Consumidor. No ano seguinte, a Comissão das Nações Unidas sobre os Direitos do Homem deliberou que o Ser Humano, considerado enquanto consumidor, deveria gozar de quatro direitos fundamentais (os mesmos enunciados por Kennedy, anos antes): o direito à segurança; o direito à informação sobre produtos, serviços e suas condições de venda; o direito à escolhade bens alternativos de qualidade satisfatória a preços razoáveis; e o direito de ser ouvido nos processos de decisão governamental. Neste mesmo ano, a Assembleia Consultiva da Comunidade Europeia aprovou a Resolução 543, que deu origem à Carta Europeia de Proteção ao Consumidor.” [4]
No tocante aos precedentes legislativos mundiais que de forma direta ou indireta inspiraram a
elaboração do Código de Defesa do Consumidor no Brasil — pioneiro na codificação do assunto[5] —, podemos citar: 
“(...) leis francesas: (a) Lei de 22-12-1972 que permitia aos consumidores um período de sete dias para refletir sobre a compra; (b) Lei de 27-12-1973 — Loi Royer, que em seu art. 44 dispunha sobre a proteção do consumidor contra a publicidade enganosa; (c) Leis ns. 78, 22 e 23 (Loi Scrivener), de 10/1/1978, que protegiam os consumidores contra os perigos do crédito e cláusulas abusivas”.[6]
“Projet de Code de la Consommation, redigido sob a presidência do professor Jean Calais-Auloy.vTambém importantes no processo de elaboração foram as leis gerais da Espanha (Ley General para la Defensa de los Consumidores y Usuarios, Lei n. 26/1984), de Portugal (Lei n. 29/81, de 22 de agosto), do México (Lei Federal de Protección al Consumidor, de 5 de fevereiro de 1976) e de Quebec (Loi sur la Protection du Cosomateur, promulgada em 1979). Visto agora pelo prisma mais específico de algumas de suas matérias, o Código buscou inspiração, fundamentalmente, no Direito comunitário europeu: as Diretivas ns. 84/450 (publicidade) e 85/374 (responsabilidade civil pelos acidentes de consumo). Foram utilizadas, igualmente, na formulação do traçado legal para o controle das cláusulas gerais de contratação, as legislações de Portugal (Decreto-lei n. 446, de 25 de outubro de 1985) e Alemanha (Gesetz zur Regelung des Rechts der Allgemeinen Geschaftsbedingungen — AGB Gesetz, de 9 de dezembro de 1976).”[7]
■ 1.1.5. A importância da revolução da informática e da globalização
Com efeito, além dos marcos históricos da Revolução Industrial do aço e do carvão e da Revolução Tecnológica do período Pós-Segunda Guerra Mundial, outro importante momento balizador do surgimento de um Direito específico de tutela do consumidor foi a Revolução da Informática e da Globalização que vivemos no mundo contemporâneo.
As relações de consumo via meio eletrônico estão cada vez mais presentes na vida do consumidor nacional e, enquanto não for editado o marco regulatório das relações pela internet, imprescindível a aplicação na íntegra do Código de Defesa do Consumidor.[8]
Por fim, cumpre registrar ainda a título de introdução histórica que o dia 15 de março representa a data escolhida para a comemoração do “Dia Mundial dos Direitos dos Consumidores”.
■ 1.1.6. Maneiras de introduzir o direito do consumidor
Existem diversas maneiras de se introduzir determinado ramo do Direito, a depender da perspectiva que lhe for dada. No tocante à disciplina tutelar das relações de consumo, concordamos com Claudia Lima Marques ao ensinar que existem três maneiras de introduzir o Direito do Consumidor. Por meio da:
“Origem constitucional, que poderíamos chamar de introdução sistemática através do sistema de valores (e direitos fundamentais) que a Constituição Federal de 1988 impôs no Brasil.
Filosofia de proteção dos mais fracos ou do princípio tutelar favor debilis, que orienta o direito dogmaticamente, em especial as normas do direito que se aplicam a esta relação de consumo. Esta segunda maneira de introduzir o direito do consumidor poderíamos chamar de dogmático-filosófica. Sociologia do direito, ao estudar as sociedades de consumo de massa atuais, a visão econômica dos mercados de produção, de distribuição e de consumo, que destaca a importância do consumo e de sua regulação especial. Essa terceira maneira poderíamos denominar de introdução socioeconômica ao direito do consumidor”.[9]
A primeira maneira de introduzir o Direito do Consumidor deve ser vista sob o enfoque
constitucional, na medida em que a defesa do vulnerável das relações de consumo é um direito
fundamental. A importância do tema é tamanha que será analisada no próximo tópico.
Em relação à introdução filosófica de proteção ao mais fraco, cumpre destacar que fundamenta os inúmeros princípios e direitos básicos elencados no CDC, na medida em que tais institutos buscam conferir direitos ao vulnerável da relação — o consumidor — e impor deveres à parte mais forte — o fornecedor.
Já a introdução socioeconômica do Direito do Consumidor leva em consideração não apenas aspectos históricos como a quebra de ideologias, por exemplo a de Adam Smith de que o consumidor seria o rei do mercado, mas também questões do mundo contemporâneo, como as recorrentes práticas abusivas de alguns setores do mercado econômico.
■ 1.2. FUNDAMENTO CONSTITUCIONAL DO DIREITO DO CONSUMIDOR
■ 1.2.1. Mandamentos constitucionais de defesa do consumidor
No Brasil, o Direito do Consumidor tem amparo na Constituição Federal de 1988, que, aliás, trouxe dois mandamentos em seu corpo principal (arts. 5º, XXXII, e 170, V) e um no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (art. 48):
■ CF/88: “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) XXXII — o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor”.
■ CF/88: “Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre
iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social,
observados os seguintes princípios: (...) V — defesa do consumidor”.
■ ADCT: “Art. 48. O Congresso Nacional, dentro de cento e vinte dias da promulgação da
Constituição, elaborará código de defesa do consumidor”.
■ 1.2.2. O direito do consumidor como direito fundamental
Como a relação jurídica de consumo é uma relação desigual, onde se encontra o consumidor vulnerável de um lado e o fornecedor detentor do monopólio dos meios de produção do outro, nada melhor que ser alçado o Direito do Consumidor ao patamar de Direito Fundamental.
A constitucionalização ou publicização do direito privado tem consequências importantes na
proteção do consumidor e, segundo palavras de Claudia Lima Marques, “certos estão aqueles que consideram a Constituição Federal de 1988 como o centro irradiador e o marco de reconstrução de um direito privado brasileiro mais social e preocupado com os vulneráveis de nossa sociedade, um direito privado solidário. Em outras palavras, a Constituição seria a garantia (de existência e de proibição de retrocesso) e o limite (limite-guia e limite-função) de um direito privado construído sob seu sistema de valores e incluindo a defesa do consumidor como princípio geral”.[10]
Sobre o tema, vale lembrar de Konrad Hesse e a força normativa da Constituição. Pedro Lenza
observa que dentro “da ideia de força normativa (Konrad Hesse), pode-se afirmar que a norma
constitucional tem status de norma jurídica, sendo dotada de imperatividade, com as consequências de seu descumprimento (assim como acontece com as normas jurídicas), permitindo o seu cumprimento forçado”.[11]
Logo, o amparo constitucional que possui o Direito do Consumidor traz uma conotação imperativa no mandamento de ser do Estado a responsabilidade de promover a defesa do vulnerável da relação jurídica de consumo.
Ademais, ao longo do tempo muito se falou em eficácia vertical dos Direitos Fundamentais — respeito pela Administração dos Direitos Fundamentais de seus administrados.
Como o advento do Direito do Consumidor foi alçado ao patamar constitucional, é possível tratar na atualidade da eficácia horizontal dos direitos ora em estudo, ou seja, mesmo sem a existência de hierarquia entre as partes envolvidas na relação, como ocorre entre fornecedor e consumidor, o respeito aos Direitos Fundamentais tambémse faz necessário. 
Contudo, não poderemos generalizar a constitucionalização do Direito Privado, sob pena de corrermos o risco de tornarmos secundário este ramo do Direito.
Assiste razão a André Ramos Tavares quando trata da eficácia horizontal dos direitos fundamentais ao acentuar que “com a eficácia direta e imediata corre-se o grave risco, especialmente no Brasil, de constitucionalizar todo o Direito e todas as relações particulares, relegando o Direito privado a segundo plano no tratamento de tais matérias. Como produto dessa tese ter-se-ia, ademais, a transformação do STF em verdadeira Corte de Revisão, porque todas as relações sociais passariam imediatamente a ser relações de índole constitucional, o que não é desejável. Mas, de outra parte, não se pode negar, em situações de absoluta missão do legislador, que os direitos ‘apenas’ constitucionalmente fundados sejam suporte para solução imediata de relação privada”.[12]
■ 1.2.3. O direito do consumidor como princípio da ordem econômica
Conforme visto, o art. 170, inciso V, da Constituição Federal prevê como um dos princípios da ordem econômica a defesa do consumidor. Interessante ressaltar que o inciso IV do aludido dispositivo constitucional estabelece também como princípio a livre concorrência.
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
I — soberania nacional;
II — propriedade privada;
III — função social da propriedade;
IV — livre concorrência;
V — defesa do consumidor;
VI — defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto
ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação; (Redação dada
pela Emenda Constitucional n. 42, de 19-12-2003)
VII — redução das desigualdades regionais e sociais;
VIII — busca do pleno emprego;
IX — tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País. (Redação dada pela Emenda Constitucional n. 6, de 1995).
 Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.
Da interpretação dos incisos IV e V, a conclusão a que se chega é a de ser plenamente livre explorar a atividade econômica em nosso país, desde que de forma lícita — em respeito, por exemplo, aos demais princípios da ordem econômica —, e que, para ganhar da concorrência, não poderá colocar um produto ou prestar um serviço no mercado de consumo com violação dos direitos dos consumidores.
Sobre o tema, concordamos com Claudia Lima Marques ao ensinar que a “opção da Constituição Federal de 1988 de tutela especial aos consumidores, considerados agentes econômicos mais vulneráveis no mercado globalizado, foi uma demonstração de como a ordem econômica de direção devia preparar o Brasil para a economia e a sociedade do século XXI”.[13]
A respeito de o princípio da defesa do consumidor estender-se a todo o capítulo constitucional da atividade econômica, já decidiu o Supremo Tribunal Federal:
EMENTA: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. DANOS MORAIS DECORRENTES DE ATRASO OCORRIDO EM VOO INTERNACIONAL. APLICAÇÃO DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. MATÉRIA INFRACONSTITUCIONAL. NÃO CONHECIMENTO. 1. O princípio da defesa do consumidor se aplica a todo o capítulo constitucional da atividade econômica. 
Afastam-se as normas especiais do Código Brasileiro da Aeronáutica e da Convenção de Varsóvia quando implicarem retrocesso social ou vilipêndio aos direitos assegurados pelo Código de Defesa do Consumidor. 3. Não cabe discutir, na instância extraordinária, sobre a correta aplicação do Código de Defesa do Consumidor ou sobre a incidência, no caso concreto, de específicas normas de consumo veiculadas em legislação especial sobre o transporte aéreo internacional. Ofensa indireta à Constituição de República. 4. Recurso não conhecido (RE 351.750/RJ, Rel. p/ Acórdão Ministro Carlos Britto, 1ª T., DJe 25-9-2009).
■ 1.2.4. O ADCT e a codificação do direito do consumidor
O art. 48 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias conferiu um prazo de cento e vinte dias da promulgação da Constituição Federal para o Congresso Nacional elaborar o Código de Defesa do Consumidor. Demorou um tempo maior, mas temos uma referência de Diploma Consumerista na ordem mundial, com destaque especial na América do Sul.
O legislador constituinte optou pela elaboração codificada do Direito do Consumidor, e não pela edição de leis específicas, cada uma disciplinadora de assuntos afetos às relações jurídicas de consumo.
Apesar de existirem outras leis especiais dentro do sistema de proteção do consumidor, no momento da elaboração do Diploma de defesa do consumidor a opção pela codificação foi a mais acertada.
Sobre os benefícios da opção pelo Código, ensinam Ada Pellegrini Grinover e Antônio Herman de Vasconcellos e Benjamin que permite a reforma do Direito vigente e apresenta, ainda, outras vantagens:
“Primeiramente, dá coerência e homogeneidade a um determinado ramo do Direito, possibilitando sua autonomia. De outro, simplifica e clarifica o regramento legal da matéria, favorecendo, de uma maneira geral, os destinatários e os aplicadores da norma”.[14]
■ 1.3. CARACTERÍSTICAS DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR
O Código de Defesa do Consumidor, Lei n. 8.078/90, possui três características principais:
■ lei principiológica;
■ normas de ordem pública e interesse social;
■ microssistema multidisciplinar.
■ 1.3.1. O CDC como lei principiológica
O Código de Defesa do Consumidor é considerado uma lei principiológica, isto é, está constituído de uma série de princípios que possuem como objetivo maior conferir direitos aos consumidores, que são os vulneráveis da relação, e impor deveres aos fornecedores.
Analisaremos no Capítulo 4 deste livro que os princípios — quer na conotação de norma com grau de generalidade relativamente alto ou de mandamento nuclear, quer no sentido de alicerce do sistema jurídico e de disposição fundamental — estão disciplinados no CDC da seguinte forma:
■ princípios gerais do CDC — previstos em seu art. 4º;
■ direitos básicos do consumidor — estipulados no art. 6º da Lei n. 8.078/90;
■ princípios específicos do CDC — em especial aqueles referentes à publicidade e aos contratos de consumo; e
■ princípios complementares do CDC — com destaque para os princípios constitucionais afetos às relações de consumo.
A eleição de certos princípios pelo legislador ordinário buscou, em última análise, o reequilíbrio de uma relação jurídica que é muito desigual. Busca-se, então, a concretização da igualdade material.
Sobre o assunto, ensina Claudia Lima Marques que o “favor debilis é, pois, a superação da ideia — comum no direito civil do século XIX — de que basta a igualdade formal para que todos sejam iguais na sociedade, é o reconhecimento (presunção de vulnerabilidade — veja art. 4º, I, do CDC) de que alguns são mais fortes ou detêm posição jurídica mais forte (em alemão, Machtposition), detêm mais informações, são experts ou profissionais, transferem mais facilmente seus riscos e custos profissionais para os outros, reconhecimento de que os ‘outros’ geralmente são leigos, não detêm informações sobre os produtos e serviços oferecidos no mercado, não conhecem as técnicas da contratação de massa ou os materiais que compõem os produtos ou a maneira de usar os serviços, são pois mais vulneráveis e vítimas fáceis de abusos”.[15]
O Superior Tribunal de Justiça pacificou posicionamento no sentido de coibir práticas abusivas de fornecedores no mercado de consumo quando violadoras de princípios do CDC, conforme entendimento assentado pela Segunda Seção desta Corte no sentido de que “a pretensão da seguradora de modificar abruptamente as condições do seguro, não renovando o ajuste anterior,ofende os princípios da boa-fé objetiva, da cooperação, da confiança e da lealdade que deve orientar a interpretação dos contratos que regulam relações de consumo” (REsp 1.073.595/MG, Rel. Ministra Nancy Andrighi, DJe 29-4- 2011).
■ 1.3.2. O CDC como norma de ordem pública e interesse social
O Código de Defesa do Consumidor prevê em seu art. 1º: “O presente código estabelece normas de proteção e defesa do consumidor, de ordem pública e interesse social, nos termos dos arts. 5º, inciso XXXII, 170, inciso V, da Constituição Federal e art. 48 de suas Disposições Transitórias”. Além do triplo mandamento constitucional já estudado neste capítulo, o dispositivo citado deixa claro que o CDC traz em seu conteúdo normas de ordem pública e de interesse social.
Mas qual seria a abrangência da expressão? Três são, basicamente, as consequências que a
característica de ser o CDC uma norma de ordem pública e de interesse social pode trazer no tocante à sua abrangência:
■ as decisões decorrentes das relações de consumo não se limitam às partes envolvidas em litígio;
■ as partes não poderão derrogar os direitos do consumidor;
■ juiz pode reconhecer de ofício direitos do consumidor.
É evidente que as decisões proferidas em litígios decorrentes das relações de consumo não se limitam às partes envolvidas. Muitas delas repercutem perante interesses difusos, coletivos ou individuais homogêneos, além de servirem de caráter educativo para toda a sociedade e de alerta para os demais fornecedores não continuarem com práticas ilícitas nas relações de consumo.
Ademais, as partes da aludida relação jurídica não poderão derrogar direitos do consumidor. Segundo pontuado anteriormente, a autonomia da vontade e a pacta sunt servanda, institutos muito presentes no Direito Civil clássico, foram mitigadas no CDC em razão da necessidade do intervencionismo estatal que buscou atingir, em última análise, o reequilíbrio da relação de consumo que é muito desigual.
Desta forma, sendo abusiva uma cláusula contratual, ela será anulada, não cabendo a alegação de que o consumidor estava consciente e de que gozava da plenitude de sua capacidade mental. Por fim, não podemos deixar de lembrar que o juiz pode reconhecer de ofício direito do consumidor, inclusive declarar a nulidade de cláusula abusiva, exatamente em razão do caráter ora em estudo. Apesar da pacificação do tema na doutrina,[16] cumpre relembrar que o Superior Tribunal de Justiça não admite o reconhecimento de ofício de nulidade de cláusula contratual pelo juiz, tratando-se de contratos bancários.
O assunto foi sumulado no ano de 2009 pelo Enunciado 381 da Segunda Seção do STJ, in verbis: “Nos contratos bancários, é vedado ao julgador conhecer, de ofício, da abusividade das cláusulas”. Discordamos desta posição, data máxima vênia, e não encontramos até o momento fundamentação jurídica para tal entendimento.[17]
■ 1.3.3. O CDC como microssistema multidisciplinar
O Código de Defesa do Consumidor é considerado um microssistema multidisciplinar porque alberga em seu conteúdo as mais diversas disciplinas jurídicas com o objetivo maior de tutelar o consumidor, que é a parte mais fraca — o vulnerável — da relação jurídica de consumo. Com efeito, encontraremos no CDC normas de:
■ Direito Constitucional — ex.: princípio da dignidade da pessoa humana.
■ Direito Civil — ex.: responsabilidade do fornecedor.
■ Processo Civil — ex.: ônus da prova.
■ Processo Civil Coletivo — ex.: tutela coletiva do consumidor.
■ Direito Administrativo — ex.: proteção administrativa do consumidor.
■ Direito Penal — ex.: infrações e sanções penais pela violação do CDC.
Sobre o tema, lembramos a doutrina de Sergio Cavalieri Filho ao ensinar que microssistema: “é uma expressão cunhada pelo Prof. Natalino Irti, da Universidade de Roma, nos anos 1970, para indicar a transformação ocorrida no âmbito do direito privado”.[18] Explica o autor em apertada síntese que, do monossistema característico no Código Civil, mudou-se para o polissistema, próprio da sociedade pluralista contemporânea.
■ 1.4. DIÁLOGO DAS FONTES
■ 1.4.1. Rompimento com os critérios clássicos de resolução de conflito aparente de
Normas
Ante a existência de um conflito aparente de normas, ou seja, em razão da possibilidade de se
aplicar mais de uma lei perante um mesmo caso, os critérios clássicos de resolução desse conflito sempre prezaram pela exclusão de uma das leis, e não pela conformação de todas as existentes na busca de tutelar da melhor forma possível o sujeito de direitos.
Assim, as técnicas utilizadas classicamente sempre foram pautadas no:
■ critério hierárquico — lei de hierarquia superior prevalece em relação à lei de hierarquia inferior;
■ critério da especialidade — lei especial prevalece sobre a lei geral, ainda que não seja capaz de revogar esta;
■ critério cronológico — lei mais recente prevalece sobre a lei mais antiga.
Sobre o tema, estabelece a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, Decreto-lei n.
4.657/42, com redação dada pela Lei n. 12.376, de 2010, em seu art. 2º, in verbis:
Art. 2º Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou
revogue.
§ 1º A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela
incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior.
§ 2º A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não
revoga nem modifica a lei anterior.
§ 3º Salvo disposição em contrário, a lei revogada não se restaura por ter a lei revogadora perdido a vigência.
Percebam que o § 2º do citado dispositivo deixa bem clara a visão de sistema jurídico e,
consequentemente, a necessidade de o Direito ser analisado como um todo.
■ 1.4.2. A visão da doutrina alemã
Nesse contexto, a doutrina alemã apresentou no ano de 1995 uma solução alternativa para a resolução de conflito aparente entre normas com o objetivo de conformar a aplicação de todos os Diplomas vigentes na busca de proteger de maneira mais apropriada o sujeito de direitos, realizando verdadeiro diálogo entre as fontes existentes.
A maior expoente no direito pátrio que muito bem estudou o assunto de coexistência e aplicação
simultânea e coerente do Código de Defesa do Consumidor com outras normas, como o Código Civil e demais legislações especiais, é Claudia Lima Marques.
Segundo ensina a aludida autora, o mundo contemporâneo exigiu a necessidade de se “introduzir um conceito diferente (o de conflito de leis no tempo), um conceito de aplicação simultânea e coerente de muitas leis ou fontes de direito privado, sob a luz (ou com os valores-guia) da Constituição Federal de 1988. É o chamado ‘diálogo das fontes’ (di + a = dois ou mais; logos = lógica ou modo de pensar), expressão criada por Erik Jayme, em seu curso de Haia (JAYME, Recueil des Cours, 251, p. 259), significando a atual aplicação simultânea, coerente e coordenada das plúrimas fontes legislativas, leis especiais (como o CDC, a lei de seguro-saúde) e gerais (como o CC/2002), com campos de aplicação convergentes, mas não mais iguais”.[19]
A expressão “diálogo” decorre exatamente da relação de influências recíprocas que se estabelece
entre normas como critério de melhor solucionar eventuais conflitos e com o objetivo de proteger o vulnerável da relação jurídica de consumo.
Estando respaldado o Direito do Consumidor por um Direito Fundamental Constitucional, com maior razão é necessário buscar a conformação da aplicação de todas as leis existentes, sem a exclusão de qualquer delas.
■ 1.4.3. Os tipos de “diálogo” existentes
Mas a grande questão que se levanta no momento é: como concretizar esta conformação de leis por meio do diálogo das fontes? Claudia Lima Marques nos dá a resposta ao trazer sua visão sobre os três tipos de “diálogo” possíveis entre CDC e Código Civil:
“1) na aplicação simultânea das duas leis, uma lei pode servir de base conceitual para a outra
(diálogo sistemáticode coerência), especialmente se uma lei é geral e a outra especial, se uma é a lei central do sistema e a outra um microssistema específico, não completo materialmente, apenas com completude subjetiva de tutela de um grupo da sociedade;[20]
2) na aplicação coordenada das duas leis, uma lei pode complementar a aplicação da outra, a
depender de seu campo de aplicação no caso concreto (diálogo sistemático de complementaridade e subsidiariedade em antinomias aparentes ou reais), a indicar a aplicação complementar tanto de suas normas, quanto de seus princípios, no que couber, no que for necessário ou subsidiariamente;[21]
3) ainda há o diálogo das influências recíprocas sistemáticas, como no caso de uma possível
redefinição do campo de aplicação de uma lei (assim, por exemplo, as definições de consumidor
stricto sensu e de consumidor equiparado podem sofrer influências finalísticas do Código Civil, uma vez que esta lei vem justamente para regular as relações entre iguais, dois iguais-consumidores ou dois iguais-fornecedores entre si — no caso de dois fornecedores, trata-se de relações empresariais típicas, em que o destinatário final fático da coisa ou do fazer comercial é um outro empresário ou comerciante —, ou, como no caso da possível transposição das conquistas do Richterrecht (direito dos juízes), alçadas de uma lei para a outra. É a influência do sistema especial no geral e do geral no especial, um diálogo de double sens (diálogo de coordenação e adaptação sistemática)”.[22]
Com efeito, é importante destacar ainda que o diálogo das fontes poderá estabelecer-se não apenas entre o Código Civil e o Código de Defesa do Consumidor, mas, ainda, entre o Diploma Consumerista e outras leis especiais, tais como:
■ CDC e Lei dos planos e seguros de assistência à saúde — Lei n. 9.656, de 1998.
■ CDC e Lei das mensalidades escolares — Lei n. 9.870, de 1999.
■ CDC e Lei dos consórcios — Lei n. 11.795, de 2008.
■ 1.4.4. O diálogo das fontes e a jurisprudência superior
O diálogo das fontes também vem sendo aplicado expressamente em alguns julgados do Superior Tribunal de Justiça, conforme posicionamento insculpido no julgamento do Recurso Especial 1.216.673/SP: “Deve ser utilizada a técnica do ‘diálogo das fontes’ para harmonizar a aplicação concomitante de dois diplomas legais ao mesmo negócio jurídico; no caso, as normas específicas que regulam os títulos de capitalização e o CDC, que assegura aos investidores a transparência e as informações necessárias ao perfeito conhecimento do produto” (Rel. Ministro João Otávio de Noronha, 4ª T., DJe 9-6-2011).
Segundo visto ao final do subitem anterior, os contratos de planos e seguros de assistência à saúde estão disciplinados por legislação específica, Lei n. 9.656, de 1998, mas nem por isso estará excluída a incidência do CDC. Sobre o tema, o STJ editou a Súmula 469 com o seguinte teor: “Aplica-se o Código de Defesa do Consumidor aos contratos de plano de saúde”.
O próprio Supremo Tribunal Federal teve no voto do Ministro Joaquim Barbosa a fundamentação do diálogo das fontes para julgar improcedente a Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 2.591 e entender pela incidência do CDC às atividades bancárias.[23]

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