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Revista Psicolog Volume 1 Número 1 Editores Carlos Henrique da Costa Tucci e Andreza Cristiana Ribeiro Ribeirão Preto - SP - Brasil 2008 Revista Psicolog 1 Expediente Editores Andreza Cristiana Ribeiro (andrezaribeiro@psicolog.com.br) Carlos Henrique da Costa Tucci (henriquetucci@psicolog.com.br) Conselho Editorial Alice Maria de Carvalho Delitty Alexandre Dittrich Almir Del Prette Antonio Bento Alves de Moraes Antonio Pedro de Mello Cruz Deisy das Graças de Souza Edwiges Ferreira de Mattos Silvares Emmanuel Zagury Tourinho Fabiana Ferreira Guerrelhas Gonçalves Heloísa Helena Ferreira da Rosa Isaías Pessotti Jaime Eduardo Cecilio Hallak João Claudio Todorov José Alexandre de Souza Crippa Jose Antonio Damasio Abib Josele Regina de Oliveira Abreu Rodrigues Juliana Setem Carvalho Tucci Julio Cesar Coelho de Rose Kester Carrara Laercia Abreu Vasconcelos Lincoln da Silva Gimenes Lorismário Ernesto Simonassi Luiz Alberto Bechelli Hetem Maira Cantarelli Baptistussi Maria Martha Costa Hübner Regina Christina Wielenska Roberto Alves Banaco Roosevelt Riston Starling Rosmeire Borges Silvio Luiz Morais Silvio Morato de Carvalho Sonia Beatriz Meyer Vera Regina Lignelli Otero Zilda Aparecida Pereira Del Prette Capa Luis Henrique da Silva Cruz Revista Psicolog 2 Sumário Editorial 3 A evolução do manejo clínico dos problemas de conduta: do tratamento à pre- venção Edwiges Ferreira de Mattos Silvares e Márcia Helena da Silva Melo 4 O problema da “justificação racional de valores” na filosofia moral skinneriana Alexandre Dittrich 21 Colecionismo: fronteiras entre o normal e o patológico Mónica Ferreira Gomes Aires Oliveira e Regina Christina Wielenska 27 Entre a utopia e o cotidiano: uma análise de estratégias viáveis nos delineamentos culturais Kester Carrara 42 Procedimentos de observação em situações estruturadas para avaliação de ha- bilidades sociais profissionais de adolescentes Almir Del Prette e Camila de Sousa Pereira 55 Proposta de interpretação de operantes verbais na relação terapeuta-cliente, demonstrada em caso de dor crônica Rodrigo Nardi e Sonia Beatriz Meyer 69 Automonitoramento como técnica terapêutica e de avaliação comportamental Carlos Henrique Bohm e Lincoln da Silva Gimenes 89 O uso do “Stroop Color Word Test” na esquizofrenia: uma revisão da metodolo- gia. Jaime Eduardo Cecilio Hallak, João Paulo Machado de Sousa, Antonio Waldo Zuardi 102 Normas para submissão de artigos para publicação 120 Revista Psicolog 3 Editorial Segundo Skinner, em seu livro “O Comportamento Verbal”, os homens agem sobre o mundo, modificam-no e, por sua vez são modificados pelas consequências de sua ação. E ainda segundo este mesmo autor, as conseqüências que deveriam seguir a todo comportamento, público ou privado, deveriam ser os reforçadores positivos. Foi com estas premissas que buscávamos promover condições para aumentar a probabilidade de cientistas, como nós, serem reforçados positivamente por difundir seus dados científicos. E as condições para que esta iniciativa se concretizasse definitivamente se deram com a união de profissionais com estes mesmos ideais na cidade de Ribeirão Preto. O Psicolog - Instituto de Estudos do Comportamento de Ribeirão Preto é uma instituição particular que realiza atividades de ensino, pesquisa e atendimentos psicoterápicos sob o referencial teórico da Análise do Comportamento. As atividades do instituto são organizadas com o compromisso de apoiar e promover de forma sistemática o desenvolvimento da Análise do Comportamento em sua região e no Brasil, por meio de pesquisas e atividades realizadas por seus alunos e profissionais. Outra maneira encontrada para contribuir na divulgação de trabalhos científicos desta área do conhecimento foi a criação da Revista Psicolog. Esta publicação tem como objetivo criar condições para que alunos, pesquisadores e profissionais, do Brasil e da América Latina, exponham seus conhecimentos à comunidade científica. A Revista Psicolog terá periodicidade semestral e a forma de apresentação escolhida é a versão on-line, no intuito levar informações e conceitos da Análise do Comportamento, de forma dinâmica e irrestrita, a um número cada vez maior de pessoas. Os textos submetidos à publicação deverão ser originais em português e/ou espanhol, de qualquer área de aplicação da Análise do Comportamento, na forma de relatos de pesquisa, revisões teóricas, relatos de caso, comunicações breves e traduções de artigos científicos clássicos. A montagem do Conselho Editorial, que endossa a qualidade dos artigos apresentados pela Revista, foi uma tarefa muito prazerosa que nos permitiu manter contato próximo com um notável grupo de pesquisadores que generosamente nos apoiou e estimulou a assumir a responsabilidae desta importante empreitada. Na qualidade de Editores desta Revista, temos o imenso prazer de oferecer neste primeiro número uma seleta de artigos enviados por estes renomados profissionais. A partir desta edição, abrimos às comunidades científicas brasileira e latino-americana nossas páginas para que marquem sua presença e também contribuam para a manutenção desta tarefa que assumimos de promoção do conhecimento científico. Contamos com a ativa participação de todos. Andreza Cristiana Ribeiro e Carlos Henrique da Costa Tucci Editores Revista Psicolog 4 A evolução do manejo clínico dos problemas de conduta: do tratamento à prevenção Edwiges Ferreira de Mattos Silvares1, Márcia Helena da Silva Melo2 1Professora Titular do Departamento de Psicologia Clínica da Universidade de São Paulo Av. Prof. Mello Moraes, 1721, Bloco F, Cidade Universitária, São Paulo – SP CEP: 05508-900 . 2Pesquisadora do Laboratório de Terapia Comportamental da Universidade de São Paulo. São Paulo - SP - Brasil. efdmsilv@usp.br, mmelo@usp.br Abstract. Clinical works about treatments for conduct problems emphasizes the need for an early, comprehensive, and preventive intervention. This form of intervention should involve widespread relevant agents of the child universe. The present work undertakes a literature review, focusing on theoretical models adopted since 1950, to clarify the negative factors that affect children’s devel- opment c. These models are the base for several clinical interventions proposed since then by behavior therapy, such as parent training, child focused interven- tion and, more recently, teacher training added to peers intervention. Finally it is described a study and its dissemination involving an expanded Brazilian inter- vention model proposal, including parents, peers and teachers to the acquisition and consolidation of social skills, aiming to early stop children to engage in an- tisocial conducts. Keywords: conduct problems, prevention, behavior therapy Resumo. Os trabalhos clínicos voltados ao tratamento dos problemas de con- duta têm enfatizado, cada vez mais, a necessidade de uma intervenção precoce, preventiva e abrangente, envolvendo o maior número de agentes significativos do universo infantil. O presente artigo empreende uma revisão da literatura, enfocando os modelos teóricos adotados desde 1950 para esclarecer os fa- tores que influenciam negativamente o desenvolvimento da criança (aquisição de comportamentos de baixa competência social). Tais modelos embasam os diversos tipos de intervenção clínica propostos desde então pela terapia com- portamental, contemplando a orientação parental, o atendimento à criança e, mais recentemente, o treinamento de professores somado à intervenção com pares. Por fim, é apresentada uma proposta de disseminação de um modelo ampliado de intervenção brasileira (com estudo de disseminação já concluído), que inclui pais, pares e professores – tão importantes para a aquisição e con- solidação das habilidades sociais – com vistas a interromper precocemente a escalada da criança às condutas anti-sociais. Palavras-chave: problemas de conduta, prevenção, terapia comportamental. Revista Psicolog 5 Uma breve perspectiva histórica da TCCI (Terapia Cognitivo - Comporta- mental Infantil)voltada para o trabalho com os pais de crianças com problemas de conduta11 Desde os anos pioneiros de terapia cognitivo-comportamental infantil, quando seus objetivos eram menos clínicos e mais demonstrativos (Silvares, 1991), o trabalho dos psicólogos clínicos infantis têm en- volvido os pais no tratamento dos mais di- versos problemas das crianças que lhes são encaminhadas para tratamento psicológico. A título ilustrativo, podemos citar um dos primeiros estudos sobre orientação de pais, desenvolvido por Williams, em 1959. Não é demais lembrar, para os que são menos sintonizados com a história da Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC), ter sido o procedimento de extinção, executado pe- los pais e tia da criança, sob orientação de Williams, que levou ao alcance dos ob- jetivos de auxiliar uma criança com difi- culdades de permanecer sozinha no quarto após ter passado por internação em hospi- tal, durantes dois meses, em decorrência de problemas somáticos. Quase quarenta anos após esse trabalho pi- oneiro, McMahon (1996) considerou a ori- entação de pais no auxílio a crianças com dificuldades comportamentais e emocionais a estratégia para tratamento psicológico in- fantil mais extensamente ampliada e avali- ada nas últimas décadas. De acordo com Marinho e Silvares (1998) na primeira revisão crítica dos es- tudos sobre orientação de pais de crianças com problemas de comportamento disrup- tivo, O’ Dell (1974) concluiu que esta abor- dagem era vista como bem sucedida, o que foi confirmado em publicações pos- teriores, da década de noventa (e.g. Eisen- stadt, Eyberg, McNeil, Newcomb Funder- burk, 1993; Kazdin, 1991, 1994; Patterson, Reid Dishion, 1992; Sanders Dadds, 1993; Serketich Dumas, 1996; Webster-Stratton, 1991, 1994). O mesmo poderia ser dito para a década inicial do novo milênio (e.g. Webster Stratton Taylor, 2001). Nesse sentido, podemos mencionar o estudo de Frankel (1993), que “comparou a habilidade de pais, cujos filhos não es- tavam inscritos em clínicas psicológicas, mas que receberam orientação sobre como lidar com seus filhos (tipo 1); com a de pais de crianças que já haviam sido in- scritas em clínica psicológica (tipo 2)” (p. 8). Os resultados mostraram melhor de- sempenho dos pais tipo 1, sugerindo que estes possuíam melhores condições para resolução de conflitos com seus filhos. Com base nestes resultados, pode-se concluir que quanto mais adequados forem os pais na in- teração com os filhos, menor é a probabili- dade destes apresentarem dificuldades com- portamentais intensas. E, como afirmou Patterson (1986), quanto mais cedo os pais aprenderem a lidar com as dificuldades que têm com suas crianças, as chances destas desenvolverem comportamentos inadequa- dos, como por exemplo o comportamento delinqüente, são minimizadas. A receptividade a essa estratégia de tratamento psicológico infantil, pelos psicólogos clínicos pesquisadores, faz todo sentido se considerarmos que, além de sua eficácia demonstrada, dois outros pontos parecem explicá-la. Em primeiro lugar, a prevalência – nos Estados Unidos – dos problemas de comportamento, em idade pré-escolar e em anos iniciais da escola elementar é de 10% e de 25%, se a pop- 1Problemas de conduta aqui tem conotação ampla e se refere a uma classe de comportamentos chamada por Achenbach e Rescorla (2001) de problemas externalizantes, os quais envolvem predominantemente conflitos interpessoais, englobando duas classes: com- portamento de quebrar regras e comportamento agressivo. Revista Psicolog 6 ulação considerada for de crianças de nível socioeconômico desprivilegiado, segundo Webster-Stratton e Reid (2004). Taxas semelhantes foram encontradas no Brasil por Anselmi, Piccinini, Barros e Lopes (2004). Em segundo lugar, a queixa de dis- túrbios extemalizantes é a mais freqüente em clínicas-escola americanas (Achenbach Rescorla, 2001) e brasileiras (Silvares, San- tos, Meyer Gerencer, 2006). Se por um lado, é tácito que a ori- entação de pais é popular e eficaz, espe- cialmente no tratamento de crianças com problemas de conduta, e altamente justi- ficável em função da alta demanda por ela, por outro, é também verdadeiro o recon- hecimento de que o treinamento de pais no manejo dos problemas dos filhos em TCC, desde os dias de Williams até hoje, tem se alterado, alcançando significativa ampliação (Silvares, 1993), fruto da con- tínua construção de conhecimento dentro da própria área. Apresentar essas transformações e o caminho trilhado por pesquisadores e clíni- cos na área da psicologia – que de forma crescente saem em defesa de ações preven- tivas –, na direção de práticas que produzam efeitos mais abrangentes e mais duráveis no tempo ao lidar com problemas de con- duta, é o objetivo do presente estudo. Para tanto, as autoras ancoram sua explanação em três modelos explicativos sobre os de- terminantes do comportamento infantil que fornecem subsídios para o planejamento de intervenções. Por fim, são referidos como exemplos de intervenção dois programas, realizados pelas mesmas autoras, que reme- tem ao estágio atual dos programas destina- dos aos problemas de conduta. Um exame dos percursos de influência negativa dos agentes sociais sobre a cri- ança Quando se fala em ampliação na es- tratégia de orientação de pais de crianças com problemas comportamentais e emo- cionais, significa incluir mais elementos, tanto na avaliação quanto na intervenção que se promove, com vistas às melhorias psicológicas infantis. Tal ampliação tem sentido especial- mente se examinarmos os modelos de per- cursos da influência negativa sobre o com- portamento problemático em crianças, de- senvolvidos por estudiosos americanos, no final da década de noventa e início de 2000. É bom lembrar que esses percursos são traçados a partir de estudos metodologica- mente planejados e com uso de métodos de regressão estatística, os quais permitem definir os caminhos que unem variáveis pre- viamente mensuradas no trabalho de inves- tigação sobre tais percursos. Primeiro modelo: a influência negativa dos déficits de manejo de conflito conju- gal sobre o comportamento infantil O primeiro dos estudos sobre mod- elos de percurso descreve a trajetória da in- fluência negativa dos pais sobre seus filhos, delineada por Webster-Stratton e Hammond (1999). A figura 1 especifica as relações di- retas e as indiretas do manejo negativo do conflito marital com os problemas da cri- ança. O modelo indireto indica que o manejo negativo do conflito entre casais afeta tanto o comportamento crítico ado- tado na criação dos filhos como a baixa responsividade emocional dos pais, que por sua vez influencia no desenvolvimento dos problemas da criança. O estudo de Webster- Stratton e Hammond (1999) encontrou al- gumas diferenças entre pais e mães, princi- palmente sobre o empoderamento marital. Analisando o modelo em relação às mães, Revista Psicolog 7 ficou evidente que essa variável tem efeito direto sobre os problemas de conduta da cri- ança enquanto para os pais tal efeito não foi observado de nenhuma perspectiva. Além disso, para as mães o manejo negativo do conflito marital mostrou uma relação direta significante à criação crítica, sendo que este comportamento materno não influencia sig- nificativamente os problemas de conduta da criança. Já para os pais, o manejo negativo do conflito conjugal tem impacto significa- tivo sobre seu comportamento crítico, que por sua vez interfere nos problemas infantis. Com o desenvolvimento deste mod- elo (ilustrado na Figura 1) parece ter sido resolvida a questão que gerava conflito en- tre estudiosos de distúrbios psicológicos in- fantis, acerca do tipo de influência exercida pelos conflitos conjugais sobre os prob- lemas psicológicos das crianças. Parece ter ficado claro que o surgimento das di- ficuldades infantis tem tanto a influência direta do conflito marital sobre os proble- mas, como indireta, pela forma negativa e crítica de interação e baixa responsivi- dade emocional dos pais em conflito. Em decorrência, a ampliação dos programas deorientação de pais se justifica; tem sentido ir além do desenvolvimento de habilidades parentais e incluir recursos mais eficientes de manejo do conflito conjugal. É para garantir que as crianças que estão lutando com uma série de problemas sociais e emocionais recebam o ensino e su- porte que necessitam para serem bem suce- didas na escola e na vida, que se tem tra- balhado com seus pais – tanto para habilitá- los a ter melhores condições de manejo de conflito marital como para equipá-los de estratégias de interação familiar mais pos- itivas de modo que possam fazer de seus filhos crianças mais competentes do ponto de vista social e emocional e com maior prontidão acadêmica. Pesquisas (e.g. Cummings Davies, 2002) mostram que crianças com baixa competência emocional e social provêm de famílias onde os pais expressam um modo de criação mais hostil, se engajam com maior freqüência em conflito com o cônjuge e prestam maior atenção aos com- portamentos negativos das suas crianças do que aos positivos. Dependendo da forma como con- duzem suas divergências, os pais podem criar um ambiente inadequado para a cri- ança, seja pela imprevisibilidade dos com- portamentos, seja pelo oferecimento de modelos de interação prejudiciais ao de- senvolvimento emocional dos filhos. As discussões freqüentes, marcadas por vio- lência verbal e/ou física, repercutem nas crianças de duas maneiras: a criação crítica – que consiste no reforço contínuo aos com- portamentos negativos dos filhos, em detri- mento da valorização dos comportamentos positivos – e a baixa responsividade emo- cional, que compromete a capacidade dos pais de observarem e atenderem às neces- sidades de apoio, carinho e segurança de seus filhos. Com isso, os comportamentos negativos das crianças tendem a se tornar mais freqüentes e generalizados para outros ambientes, ensejando os futuros problemas de conduta, uma vez que não aprendem um repertório comportamental socialmente mais hábil. Crianças que têm dificuldades em prestar atenção, seguir instruções da pro- fessora, cooperar com seus colegas e que não têm bom controle das emoções, se saem pior na escola do que aquelas que dis- põem dessas habilidades. Além disso, têm maior probabilidade de serem rejeitadas pe- los colegas e por seus professores, o que por sua vez contribui para mantê-las desligadas Revista Psicolog 8 Figura 1. Modelo de percurso manejo negativo do conflito conjugal sobre as dificuldades de com- portamento dos filhos (Modelo traduzido e adaptado de Webster-Stratton Hammond, 1999). das tarefas e com menos tempo na escola. Estudo realizado por Castro, Melo e Sil- vares (2003) permitiu verificar que a maior parte das 13 crianças indicadas para trata- mento psicológico, por suas professoras, foi avaliada como rejeitada por seus cole- gas. Cabe aqui destacar que a rejeição entre pares pode constituir o início de um cír- culo vicioso pelo fato de a criança passar a se relacionar apenas com companheiros re- jeitados pela sua conduta anti-social, sendo reforçada pelos valores desse novo grupo. Nessa perspectiva, importante as- pecto a ser considerado refere-se ao con- texto do grupo de pares, em termos do que valorizam e quais comportamentos são mais e menos freqüentes entre eles. Isso porque, à exceção dos comportamentos pró-sociais - consistentemente associados a um status positivo entre os pares - out- ros comportamentos, tais como a agressivi- dade e o isolamento, poderão ser mais ou menos aceitos dependendo das caracterís- ticas de cada grupo. Estudo realizado por Stormshak, Bierman, Bruschi, Dodge, Coie e o grupo de pesquisa de prevenção dos transtornos de conduta (1999) demonstrou que a maior ou menor competência social, tanto quanto as normas do grupo, con- stituem variáveis preditoras da aceitação entre os pares. A pesquisa compreendeu a participação de 2895 crianças de 134 salas de primeira série do ensino fundamental, avaliadas por seus professores e colegas de turma (entrevista sociométrica). Os autores observaram que o comportamento agressivo mostrava-se consideravelmente mais rela- cionado à baixa preferência entre os pares quando não constituía uma característica do grupo. Particularmente entre os alunos do sexo masculino, a agressão e a preferência entre os pares estavam positivamente as- sociadas nas salas com maiores índices de agressividade. Da mesma forma, quando o isolamento era predominante no contexto da sala (alunos com brincadeiras solitárias e baixos níveis de interação social), meninos com este comportamento eram avaliados positivamente na preferência dos colegas de classe. As meninas eram mais aceitas do que os meninos, independentemente dos níveis de isolamento, o que também sug- ere a influência do gênero nos resultados da avaliação entre os pares. Contudo, tanto para meninos quanto para meninas, os com- portamentos pró-sociais emergiram como preditores positivos da preferência entre os colegas em todas as salas, evidenciando a Revista Psicolog 9 importância da promoção da competência social na redução dos índices de rejeição entre pares. A compreensão dos fatores que levam ao aumento da agressividade, sua estabilidade ou cronificação ao longo do tempo também pode subsidiar o desenvolvi- mento de programas preventivos no sentido de criar condições de atendimento a neces- sidades específicas. Recente estudo longi- tudinal empreendido por Schaeffer, Petras, Ialongo, Poduska e Kellam (2003) identi- ficou quatro trajetórias de comportamento agressivo entre 297 meninos, avaliados aos seis anos de idade e acompanhados durante todo o primeiro grau. Cerca de um terço dos meninos (32%) apresentaram baixos níveis de agressão durante o desenvolvimento, mantendo baixas as taxas de comportamen- tos anti-sociais ao final da avaliação. Um grupo de meninos avaliados como cronica- mente agressivos (9%) revelou altos níveis de agressividade, evidenciando situação de risco ao término da pesquisa. Observou-se ainda que 7% dos garotos demonstraram uma agressividade inicial baixa que foi crescendo ao longo da vida escolar. Mais da metade dos meninos (52%) apresentou uma trajetória moderada de agressividade, com um leve aumento das taxas de com- portamento anti-social ao longo do tempo, culminando em uma situação de risco sig- nificativamente maior em relação aos meni- nos não agressivos. Os autores sugerem, por exemplo, que os meninos com trajetória de agressividade crescente possam ser ben- eficiados com programas focados em ori- entação parental ou treinamento para o au- tocontrole, enquanto os alunos que apre- sentaram altos níveis de agressividade de- mandem intervenções multifocais, podendo incluir psicoterapia e tratamento medica- mentoso. Sem dúvida, trata-se de um ol- har sobre o início do desenvolvimento do comportamento agressivo importante para a configuração de intervenções preventivas mais eficazes na área dos transtornos de conduta. Com o primeiro modelo de percurso aqui apresentado, fortaleceu-se, então, a idéia de que se a capacidade da criança no manejo de suas emoções e comporta- mentos pode ajudá-la a fazer amizades sig- nificativas, o desenvolvimento de tais ca- pacidades poderá tornar-se, para ela, im- portante fator protetivo2 contra os possíveis desajustes no futuro (Rutter, 1995). Tal aspecto preventivo é significativo, especial- mente se a criança está exposta a múltip- los estressores de vida (como por exemplo, pais em conflito conjugal) configurando-se a necessidade dos fatores protetivos para que se aumentem as chances de ocorrên- cia do sucesso escolar. Na mesma direção das pesquisas internacionais, as pesquisas brasileiras têm demonstrado que o ajuste emocional, social e comportamental é im- portante para o sucesso na escola bem como para a preparação acadêmica (e.g. Elias Marturano, 2003). Segundo modelo: o abuso de substâncias Outro modelo de percurso das in- fluências negativas sobre as crianças com distúrbios comportamentais e emocionais, que vai além do modelo de percurso da influência dos pais em conflito conjugal, é descritopor Webster-Stratton e Taylor (2001). Sua análise merece atenção, visto que eles também trouxeram alteração so- bre o trabalho de orientação de pais. Um deles, adaptado de Reid e Eddy (1997) con- forme os referidos autores, pode ser visto na figura 2 e se refere à trajetória marcada pelos preditores do abuso de substância em 2Fatores de proteção podem ser definidos como variáveis que diminuem o risco da criança ter um desenvolvimento negativo. Aspectos positivos do ambiente próximo à criança podem funcionar como fatores de proteção (Dumka, Roosa, Michaels Suh, 1995). Revista Psicolog 10 adolescentes. O uso de substâncias ilícitas por adolescentes é um problema sério em ter- mos da escalada em direção à criminalidade na vida adulta (Patterson cols., 1992). Há evidências de que é comum na adolescência haver a comorbidade deste problema com outros tão sérios quanto o abuso de sub- stâncias, tais como: distúrbios de conduta, doença mental, delinqüência e violência. Por outro lado, conforme mostra o modelo figura (2), crianças com maior risco para o uso de substâncias ilícitas ou atos delin- qüentes na adolescência são aquelas que fazem parte de grupos de pares desviantes, cujos pais são ineficientes ao conduzir a cri- ação dos filhos e ainda não conseguem es- tabelecer relacionamento positivo com seus professores nem tampouco atingir um bom desempenho escolar. Observa-se, neste modelo, o im- pacto da interação de variáveis negativas relacionadas ao contexto familiar e escolar, como influência do abuso de substâncias na juventude, evidenciando a relevância dos elementos ambientais no desenvolvimento de problemas comportamentais. Este as- pecto é aprofundado no terceiro modelo, quando são analisados os fatores de risco que podem levar ao desencadeamento de transtornos de conduta. Segundo Webster-Stratton e Tay- lor (2001), já fizeram uso de drogas ilíc- itas 15% dos adolescentes americanos até a oitava série e 27% até o final do se- gundo grau. Quadro bem pior é apre- sentado no Brasil por Ferigolo, Barbosa, Arbo, Malysz, Stein e Barros (2004). Os autores encontraram um alto consumo de sustâncias ilícitas a partir das respostas a um questionário elaborado pela Organiza- ção Mundial da Saúde, anônimo, sobre o uso de drogas e sua quantificação, auto- aplicado em salas de aula, respondido pela população de crianças e adolescentes al- fabetizados que cumpriam medidas sócio- educativas ou medidas protetivas em es- colas públicas e por internos da FEBEM de Porto Alegre, RS (N=382 indivíduos). As substâncias mais experimentadas foram: álcool (81,3%), tabaco (76,8%), maconha (69,2%), cocaína (54,6%) e solventes (49,2%). As crianças albergadas por atos infracionais mostraram uso significativa- mente mais freqüente de álcool, maconha, cocaína e solventes. Em média, o início do uso de álcool e tabaco ocorreu antes dos 12 anos; maconha e solventes, antes dos 13, e cocaína, antes de completar 14 anos. Outro estudo brasileiro de levanta- mento de uso de drogas ilícitas, mais antigo, feito com uma população mais velha, re- trata quadro igualmente negativo. O de Baus, Kupek e Pires (2002), um estudo que abrangeu 478 estudantes de escola pública de primeiro e segundo graus, de Florianópolis, SC, os quais responderam aos questionários aplicados por univer- sitários, devidamente treinados. Entre os estudantes pesquisados, 43% e 32% foram de faixa etária entre 13 e 15 anos e entre 16 e 18 anos, respectivamente, com pre- domínio de classes socioeconômicas mais altas. A prevalência de uso de maconha na vida (19,9%), solventes (18,2%), anfe- tamínicos (8,4%) e álcool (86,8%) foi con- siderada elevada. Notou-se elevado e fre- qüente uso (seis ou mais vezes por mês) de álcool (24,2%). A compreensão fornecida pelo modelo exemplificado na figura 2, acerca dos percursos para o consumo de drogas, acarreta uma grande preocupação com o problema tendo em vista a ausência de pro- gramas preventivos e em virtude de levan- tamentos estrangeiros e brasileiros acerca Revista Psicolog 11 Figura 2. Preditores de uso de substancias ilícitas por adolescentes (Modelo traduzido e adaptado de Webster-Stratton Taylor, 2001). do alarmante consumo de drogas por ado- lescentes, nos dias atuais. Embora não tenhamos no Brasil es- tudos de percurso da influência negativa so- bre os problemas infantis e de adolescentes, face aos dados apresentados, acreditamos ser possível aproximar os percursos dos es- tudos americanos aos da cultura brasileira. Terceiro modelo: a interação negativa entre os fatores da criança, da família e do meio escolar A seguir analisamos outro modelo de percurso proposto por Webster-Stratton e Taylor (2001), derivado do segundo, que enfatiza os fatores de risco contextuais no desenvolvimento dos problemas infantis de conduta em idade posterior, de maneira cu- mulativa, como pode ser visto na figura 3. Dumka, Roosa, Michaels Suh (1995) definiram fatores de risco como var- iáveis que aumentam as chances da cri- ança de ter um desenvolvimento deficiente. Muitos destes fatores exercem influência indireta sobre o desenvolvimento infantil (p.ex. abuso de álcool pelos pais). Alguns fatores (p.ex. divórcio) são difíceis ou im- possíveis de modificar. Ao mesmo tempo, sabe-se que muitas crianças que estão ex- postas a fatores de risco não terão efeitos negativos em seu desenvolvimento. Além disso, a variabilidade na susceptibilidade aos fatores de risco pode ser devido a in- fluência de fatores de proteção. Nota-se na figura 3 o agrupa- mento desses fatores em quatro categorias - parentais, infantis, familiares e escolares – descrevendo, respectivamente, a reper- cussão do estilo de criação, das caracterís- ticas pessoais da criança, do ambiente fa- miliar e do contexto escolar, incluindo a relação com professores e pares. Entre os fatores parentais, pode-se destacar a maior ou menor capacidade dos pais de monitorarem seus filhos, bem como suas habilidades para ensinarem as crianças um repertório de comportamentos sociais positivos. A criança também apresenta car- acterísticas que vão facilitar ou dificultar sua interação com o ambiente, quais sejam: o nível de suas habilidades sociais, de sua capacidade de manejar conflitos, sua im- pulsividade e temperamento, assim como eventuais atrasos na linguagem e no apren- dizado. Revista Psicolog 12 No tocante aos fatores ambientais, há eventos estressores na família que po- dem influenciar profunda e negativamente a criação dos filhos, a exemplo do estresse causado pela falta de recursos financeiros, atividade criminal de um ou ambos os pais, doença mental e, conforme dito anterior- mente, os conflitos conjugais. Durante a vida escolar da criança, todos os fatores anteriores poderão agravar- se caso sejam observadas respostas inefi- cientes dos professores, a rejeição da cri- ança por seus pares, seu envolvimento com pares desviantes e a falta de parceria entre os pais e a instituição escolar. De acordo com os dois últimos modelos, pode-se afirmar que o quanto antes os programas voltados para redução dos problemas infantis incidirem sobre as crianças, seja reforçando os fatores de pro- teção, seja minimizando os fatores de risco, tanto melhor o alcance da prevenção. Webster Stratton e Taylor (2001) re- viram 12 programas parentais americanos voltados para redução dos problemas de conduta e nos quais o resultado foi bastante favorável, tanto no sentido imediato da redução de problemas de comportamento de pelo menos 2/3 das crianças tratadas, quanto em longo prazo no sentido da pre- venção do recrudescimento de tais proble- mas. Com o aprofundamento dos estu- dos sobre competência social na década de 90, verificou-se que os programas de intervenção poderiam se tornar mais efi- cazes com a inserção de pares e profes- sores. Isso porque a forma como se esta- belece e se desenvolve o relacionamento infantil, seja com adultos significativos, seja com os pares, tem um impacto sig- nificativo no desenvolvimento, existindo bastante evidência de que interações neg- ativas compares e adultos do ambiente escolar estão associadas com problemas como a delinqüência, abuso de drogas e fracasso escolar, comprometendo o desen- volvimento de relações interpessoais sat- isfatórias e desejáveis (Coie, Dodge Ku- persmidt, 1990; Criss, Petit, Bates, Dodge Lapp, 2002; Donohue, Perry, Weinstein, 2003; McFadyen-Ketchum Dodge, 1998; Patterson e cols., 1992; Webster-Stratton, 1998). Uma criança exposta a padrões de comportamentos coercivos em casa provavelmente os reproduzirá nas relações com colegas e professores e, terá dificul- tado seu ingresso neste novo ambiente. Van Lier, Muthén, van der Sar e Crijnem (2004) esclarecem essa trajetória, descrevendo o impacto das relações com pares e profes- sores para a manifestação e manutenção dos comportamentos disruptivos. Os au- tores mencionam dois aspectos importantes do contexto social infantil. Primeiramente, reportam o fato de crianças pequenas, in- gressantes no ambiente escolar, já serem ca- pazes de reconhecer os diferentes níveis de comportamento disruptivo de seus colegas. Em segundo lugar, mencionam o quanto essas crianças podem reforçar as condutas externalizantes de seus colegas pelo fato de recuarem perante o comportamento agres- sivo ou permitirem que ele aconteça. Desse modo, a conduta disruptiva faz crer que é possível obter conseqüências positivas com a coerção. Além disso, à medida que as cri- anças com conduta externalizante crescem, são reconhecidas pelos pares como des- viantes e, por isso mesmo, rejeitadas no grupo, o que lhes restringe as possibilidades de permanecer em um contexto reforçador de comportamentos pró-sociais. Sua inter- ação com os professores, da mesma forma, é caracterizada cada vez mais pela desobe- Revista Psicolog 13 Figura 3. Modelos de percurso dos preditores contextuais de distúrbios de conduta em tenra idade (Adaptado de Webster-Stratton Taylor, 2001). diência, coerção e um círculo vicioso de correções e punições, prejudiciais ao de- senvolvimento da competência social e ao próprio desempenho na escola. Dessa forma, tem se observado a realização de vários estudos preven- tivos pautados por uma intervenção clínica abrangente. Em nível nacional, destacam- se os trabalhos empreendidos por Melo (1999, 2003) na comunidade. Voltada ini- cialmente na orientação de pais e atendi- mento às crianças, a intervenção adquiriu um caráter multifocal, com a introdução de um programa de desenvolvimento de habil- idades sociais em sala de aula, beneficiando as crianças, seus pares, pais e professores. O estudo é descrito no presente artigo, ilus- trando esta nova perspectiva de intervenção clínica. Deve-se ressaltar a preocupação das pesquisas atuais em prevenção dos transtornos de conduta no que diz respeito ao local de intervenção, buscando-se cada vez mais a inserção do psicólogo na comu- nidade. Esta tendência vem ao encontro dos estudos de Biglan, Metzler e Ary (1994) e Biglan e Smolkowski (2002). Assim, predomina a compreensão de que há necessidade de prevenir e/ou re- duzir o comportamento agressivo, inter- vindo o quanto antes, preferencialmente no ambiente em que a criança está in- serida e envolvendo o máximo de partici- pação daqueles que a cercam. Quando o comportamento da criança torna-se mais maleável é benéfico e, portanto, interrompe a progressão dos comportamentos de con- duta na primeira infância e não permite o desenvolvimento da delinqüência e falha acadêmica em anos futuros. Não é de se estranhar, portanto, que dos 12 estudos de Webster Stratton e Taylor (2001) a faixa etária de destino do programa em 3/12 seja de crianças com menos de oito anos com- pletos e que o limite inferior da faixa de crianças envolvidas em todos os progra- mas abranja crianças com menos de oito anos, um quarto contemple crianças com menos de oito anos completos e todos eles envolvam crianças a partir dessa idade. No que diz respeito ao envolvimento de out- ros agentes importantes para o desenvolvi- mento infantil, em 26 estudos relatados, 12 envolvem somente os pais, enquanto 14 in- cluem também pares e professores. Revista Psicolog 14 Um modelo de intervenção preventiva multifocal, realizado na comunidade com a participação de crianças, pais, pares e professores A proposição que embasa a inter- venção, que aqui ilustra o presente trabalho, se aproxima do terceiro modelo na medida em que está inserida no ambiente social da escola, já que reconhecidamente é onde a criança põe em prática os comportamentos aprendidos no âmbito familiar, além de ser um local que favorece mais interações soci- ais e, por conseguinte, a ampliação de seu repertório comportamental. As crianças in- seridas no estudo faziam parte de grupo de risco, apresentando já algumas dificuldades tanto no que se refere aos comportamentos externalizantes (p.ex. conduta agressiva) como aos comportamentos internalizantes (p.ex. retraimento social) e ao desempenho acadêmico insuficiente. Durante um ano, participaram da intervenção 26 crianças (12 meninas e 14 meninos), entre sete e oito anos de idade, divididas em dois grupos: o grupo de atendimento infantil, incluindo aquelas indicadas pela escola para o treinamento de habilidades sociais e o grupo de val- idação social, contemplando aquelas que não apresentavam dificuldades interativas. Além das crianças, foram envolvidas no tra- balho clínico suas mães, suas professoras e seus colegas de classe, integrando mais de 240 pessoas. Note-se, nesse sentido, a abrangência clínica e social da intervenção, pois embora voltada para o atendimento de determinadas crianças, não se restringiu a este grupo, podendo beneficiar amplamente outros membros do mesmo ambiente. Sobre as intervenções Professoras. 39 encontros foram realizados com as professoras durante o ano letivo, a fim de trabalhar suas expectativas, orientá- las em relação a dificuldades de manejo da turma, treiná-las para a aplicação de ativi- dades voltadas à melhoria do clima em sala de aula e ao desenvolvimento da competên- cia social da classe. As atividades pro- postas, inseridas no Programa de Educação Social e Afetiva, elaborado por Trianes e Muñoz (1994), enfocavam a integração dos alunos, o aprendizado da cooperação e res- olução de conflitos. Propiciou-se um espaço de reflexão, onde as professoras puderam avaliar a quali- dade do relacionamento que estabeleciam com seus alunos, analisando funcional- mente suas condutas em sala de aula, in- cluindo seus sentimentos em relação às cri- anças. As discussões motivaram o inter- esse pelo desenvolvimento infantil, sensibi- lizando para a criatividade e a empatia na interação com os alunos. Crianças. Foram realizadas 22 sessões de atendimento psicológico, em grupo, com as crianças indicadas para atendimento por suas professoras, pautadas no desen- volvimento de habilidades sociais (Del Prette Del Prette, 1999) e solução de problemas (Kazdin, 1995). A ludoterapia cognitiva-comportamental infantil permitiu às crianças a aquisição de comportamen- tos essenciais na relação com o outro, tais como a auto-observação, a identificação e expressão de comportamentos encobertos, a identificação de situações antecedentes, conseqüentes e de respostas alternativas. Além disso, puderam vivenciar situações focadas no aprendizado de interações onde o modo de expressão do comportamento é fundamental para assegurar a qualidade das relações, tais como dar e receber feedback, críticas e elogios. Pares. Todos os colegas dos alunos indicados para intervenção participaram das atividades do programa de educação Revista Psicolog 15 sócio-afetiva, aplicadas em sala de aula. Tais atividades possibilitaram maior en- trosamento da turma, dado o trabalho de engajamento da classe na aquisição de um repertório comportamental mais flexível e tolerante. Como as atividades eram real- izadas em grupo, enfocando as dificuldades relativas às habilidades sociais, todos pud- eram usufruir da intervenção, no sentido de refletir, discutir e adequar os comportamen- tos para o convívio com as diferenças. Orientação parental.Durante 12 sessões de atendimento, as mães foram en- sinadas a observar o comportamento de suas crianças, aprendendo a discriminar aqueles que deveriam ser reforçados pos- itivamente. Assim como o espaço ofere- cido para as professoras, o trabalho de ori- entação parental mostrou-se fértil para o aprendizado de comportamentos mais ad- equados na relação com os filhos, sendo trabalhadas dificuldades no sentido de fornecer instruções claras e consistentes, evitar a rotulação da criança e aumentar a freqüência da utilização de punição neg- ativa (p. ex. retirar privilégios) no lugar dos castigos físicos, bastante comuns no grupo. As mães puderam refletir sobre o modo de criação dos filhos, verificando o nível de empatia mantido com suas crianças e identificando os fatores que dificultavam a manutenção de uma conduta de aceitação e valorização no dia-a-dia. Desse modo, a intervenção propiciou-lhes rever as inter- ações inadequadas presentes no convívio diário com suas crianças, bem como a dis- criminar as possibilidades de promoção e estimulação da competência social, asse- gurando condições para um relacionamento mais saudável e construtivo com seus filhos. O estudo em questão evidencia re- sultados favoráveis (especificados em Melo e Silvares, 2003) demonstrando que, de um modo geral, os comportamentos exibidos pelas crianças submetidas a atendimento psicológico passaram a favorecer sua maior integração na dinâmica da sala de aula, visto que interagiam mais do que antes com suas professoras, sendo mais notadas por estas. Mostraram-se também mais concen- tradas nas atividades acadêmicas propostas, ficando mais tempo em suas carteiras, re- alizando suas tarefas e perturbando menos os demais. Nas relações com os colegas, as crianças também passaram a manifes- tar mais comportamentos pró-sociais como cooperação e receptividade, ao tempo em que também apresentaram menos compor- tamentos agressivos, hostis ou de intimi- dação. Todos estes ganhos foram corrobo- rados pela percepção dos pais e professores das crianças, refletindo o aumento de sua competência social. Se antes do atendi- mento todas as crianças apresentavam dé- ficits em sua competência social e no de- sempenho escolar, esta situação modifi- cou significativamente ao final da inter- venção. Ainda foi possível verificar os gan- hos obtidos na intervenção em termos de inclusão entre os pares, verificando-se que o percentual de crianças rejeitadas diminuiu mais de 30% após a intervenção. Todos estes resultados demonstram a eficiência do modelo de intervenção mul- tifocal no alcance dos objetivos propostos, promovendo melhoras não apenas na es- fera familiar, mas também escolar, asse- gurando interações mais positivas destas crianças com seus pares e professores. A repercussão desses ganhos torna-se ainda maior quando traduzido no aprendizado obtido por todos os que participaram do trabalho clínico. Na prática, mães, profes- sores, crianças e pares aprenderam novas formas de ler o ambiente, bem como al- ternativas de conduta mais flexíveis e tol- erantes, de modo a apresentar respostas Revista Psicolog 16 mais saudáveis em seus relacionamentos. Além disso, este modelo de intervenção forneceu uma nova forma de intervenção psicológica, rompendo os limites impostos pela clínica tradicional – restrita no máximo ao ambiente familiar – na medida em que promoveu o envolvimento efetivo da escola que sabidamente tem um destacado papel no desenvolvimento infantil. Diante de tais condições, deu-se um passo além do estudo multifocal, ao im- plantar, posteriormente, uma pesquisa de disseminação (Melo, 2006), indo ao en- contro da proposição de Dumka e cols. (1995) de que todos os programas preven- tivos, uma vez testados e demonstrada sua eficácia, deveriam ser disseminados. Foi, assim, executado um programa de treina- mento no qual psicólogos da área e profes- sores do ensino fundamental puderam ter acesso à forma de atuação implementada por Melo (2003), contribuindo assim para ampliar as possibilidades de intervenções fora do consultório, atendendo a necessi- dades da comunidade (Biglan Smolkowski, 2002). Este foi o objetivo do trabalho dis- seminativo (Melo, 2006), voltado ao treina- mento de psicólogos para atuar no ambi- ente escolar, promovendo competências em crianças, aprimorando as habilidades de manejo das professoras e rompendo o ciclo de desenvolvimento dos comportamentos anti-sociais. Os resultados foram visíveis, par- ticularmente no ambiente escolar. Além de melhorar o clima em sala de aula, observaram-se mudanças positivas na per- cepção de professores, apontando para re- lações mais flexíveis com os alunos. Mu- danças significativas não foram encon- tradas na percepção de pais e pares, demon- strando que somente uma intervenção mais abrangente, envolvendo o atendimento psi- cológico às crianças com dificuldades inter- ativas e a orientação parental, poderia trazer modificações mais profundas. Salvaguardada a relevância dos re- sultados alcançados por Melo (2003 e 2006), há de se destacar o percurso dessas intervenções que exemplificam a tendên- cia dos estudos preventivos provenientes da psicologia clínica e realizados na comu- nidade brasileira; tendência essa seguida já há algumas décadas por pesquisadores in- ternacionais. Do exposto, pode-se dizer, em sín- tese, que a ampliação do tratamento dos problemas de conduta na infância envol- vendo pais primeiramente se deu pela in- clusão de estratégias voltadas para o ensino às famílias do manejo do conflito conjugal, associado ao movimento da inclusão das próprias crianças no tratamento, além dos seus pais. Ainda na busca de ampliação do alcance das estratégias para melhorias psi- cológicas dessas crianças, com freqüência, elas passaram a se voltar para a população infantil cada vez mais jovem, com a partic- ipação de seus pares e seus professores. Diante de tais argumentos, entende- se que o alcance da intervenção clínica tradicional se mostra restrita, mesmo quando inclui a orientação parental, ao se pensar em resultados em nível de pre- venção. O fato torna imperiosa a necessi- dade de ampliar o enfoque do tratamento psicoterápico, pois quanto maior a partici- pação dos agentes significativos para a cri- ança nessa intervenção, maiores as possibil- idades de sucesso da atuação do psicólogo. Referências Achenbach, T.M. Rescorla, L.A. (2001). Manual for the ASEBA school-age forms profiles. Burlington, VT: University of Vermont, Department of Psychiatry. Revista Psicolog 17 Anselmi, L., Piccinini, C.A., Bar- ros, F.C., Lopes, R.S. (2004). 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Revista Psicolog 21 O problema da “justificação racional de valores” na filosofia moral skinneriana Alexandre Dittrich1 1UFPR Curitiba - PR - Brasil. aledittrich@ufpr.br Resumo. Este artigo visa: 1) abordar, de um ponto de vista behaviorista radi- cal, o problema da “justificação racional de valores”; 2) a partir da abordagem desse problema, oferecer algumas sugestões sobre como os behavioristas rad- icais podem se posicionar diante de debates éticos e políticos. Argumenta-se que, de um ponto de vista behaviorista radical, valores não podem ser justifi- cados, pelo menos em termos lógicos: a única justificativa possível remete à história de seleção do comportamento por suas conseqüências de quem defende certos valores. A despeito disso, argumenta-se que debates éticos e políticos não devem ser meramentedesprezados. Ainda que isso não esgote tais debates, cabe àqueles que deles tomam parte – e em especial, aos behavioristas radi- cais – apontar tão claramente quanto possível os objetivos que buscam produzir. Palavras-chave: behaviorismo radical; ética; filosofia moral; B. F. Skinner Introdução Desde Sócrates, a filosofia moral entende como sendo uma de suas principais tarefas justificar racionalmente a adoção de valores, sejam eles quais forem. Este texto tem dois objetivos: 1) abordar, de um ponto de vista behaviorista radical, o problema da “justificação racional de valores”; 2) a par- tir da abordagem desse problema, oferecer algumas sugestões sobre como os behavior- istas radicais podem se posicionar diante de debates éticos e políticos. Tratemos do primeiro problema. Eis a pergunta que queremos responder: é pos- sível, de um ponto de vista behaviorista rad- ical, justificar racionalmente os valores que adotamos (quaisquer que sejam)? Comece- mos apontando alguns pressupostos via de regra sustentados pela filosofia moral tradi- cional: 1) valores fazem parte de um uni- verso mental à parte do comportamento (e, ainda mais, determinam o comportamento); 2) valores são escolhidos por agentes livres para adotá-los ou rejeitá-los; 3) a justifi- cação de valores depende de argumentação lógica. Não é difícil perceber que o behav- iorismo radical discorda frontalmente de todas essas afirmações. Em primeiro lugar, para o behaviorismo radical, valores não es- tão em nossas mentes. O que chamamos de valores são conseqüências do nosso com- portamento: são os objetos ou eventos que chamamos de “bons” ou “ruins” – e, de acordo com Skinner, “fazer um julgamento de valor chamando algo de bom ou ruim é classificá-lo em termos de seus efeitos reforçadores” (1971b, p. 105). Em se- gundo lugar, o behaviorismo radical ques- tiona a autonomia normalmente atribuída aos agentes morais (Skinner, 1971b). Revista Psicolog 22 Resta-nos a terceira questão: é pos- sível justificar valores, sejam eles quais forem? “Justificar”, em sua definição tradi- cional, é dar razões para algo. Se afirmo que a felicidade deveria ser o principal ob- jetivo das ações humanas, minha afirmação não basta – seria preciso oferecer razões que a apóiem. Lembremo-nos que valores são conseqüências de nosso comportamento. Poderíamos oferecer algum subsídio que permita-nos afirmar, de forma inequívoca, que uma conseqüência (ou conjunto de con- seqüências) que buscamos produzir é mel- hor do que uma outra conseqüência (ou conjunto de conseqüências) qualquer? Da perspectiva behaviorista radical, a resposta é não. Não há nenhuma forma de justificar a adoção de um valor – pelo menos não de modo que nos permita afirmar que aquele valor é o único que devemos promover, ou que ele é indiscutivelmente melhor do que qualquer outro valor. A “justificação” fi- nal para a adoção de um valor é sempre de ordem histórica: se eu persigo ou defendo este ou aquele valor (ou conjunto de val- ores), faço isso em função de minha história comportamental. A sobrevivência das culturas figura, na obra de Skinner (1953/1965; 1971b), como um valor fundamental: um objetivo que deve ser promovido em detrimento de qualquer outro, (ainda que possa ser conju- gado a outros valores)1 Afirmar que Skinner promove a sobrevivência das culturas como valor fundamental equivale tão-somente a afirmar que ele busca persuadir sua audiên- cia a comportar-se de formas que, provavel- mente, contribuirão para tal conseqüên- cia. Contudo, se perguntarmos a Skinner como ele justifica a adoção deste valor, ele responderá da seguinte forma: “Não me pergunte por que eu quero que a hu- manidade sobreviva. Eu posso lhe dizer o porquê apenas no sentido em que o fisiól- ogo pode lhe dizer porque eu quero respi- rar” (1956/1972b, p. 36). Essa passagem pode ser interpre- tada da seguinte forma: “Não pergunte a mim, enquanto suposto agente moral autônomo, por que eu quero que a hu- manidade sobreviva. Eu posso responder o porquê apenas recorrendo à história de seleção de meu próprio comportamento por suas conseqüências – assim como o fisiól- ogo recorreria à história seletiva de minha espécie pra explicar porque eu, enquanto membro da espécie, quero respirar”. Dito de outra forma: não há nada além de nossa história (filogenética, ontogenética e cul- tural) que permita-nos justificar os valores que defendemos. Que parte dos membros de uma cultura tenha seu comportamento reforçado (como Skinner) por eventos que indiquem possível aumento nas chances de sobrevivência dessa cultura é um resultado das próprias contingências atuantes no ter- ceiro nível seletivo. Se essas contingên- cias favorecem culturas que promovem sua própria sobrevivência, é previsível que o planejamento explícito de práticas que a promovam (por membros da cultura que “levam o futuro em consideração”) tam- bém seja favorecido, visto tornar a cultura mais eficiente (isto é, mais apta a sobre- viver)2 Presumivelmente, é isso que leva Skinner a concluir que “a sobrevivência não é um critério o qual nós sejamos livres para aceitar ou rejeitar” (Skinner, 1955/1972a, 1Desenvolvemos este tema em trabalhos anteriores (Dittrich, 2003; 2004a; 2004b; Dittrich Abib, 2004; Dittrich, 2006). O último trabalho destaca algumas dificuldades decorrentes da subordinação de outros valores (secundários) à sobrevivência das culturas. 2Contudo, a “intencionalidade” não é uma característica necessária das práticas culturais. Mesmo a existência de práticas “inten- cionais” explica-se seletivamente: “As pessoas não observam determinadas práticas para que o grupo tenha maior probabilidade de sobreviver; elas as observam porque grupos que induziram seus membros a fazê-lo sobreviveram e transmitiram tais práticas” (Skinner, 1981/1984a, p. 479). Revista Psicolog 23 p. 22), e que “quer gostemos disso ou não, a sobrevivência é o critério final” (Skinner, 1956/1972b, p. 36). Se práticas culturais são, de fato, selecionadas por seu valor de sobrevivência, pouco importa se consider- amos a sobrevivência um valor discutível: culturas sobreviverão ou perecerão, a de- speito de qualquer discussão que possamos empreender. Pouco depois, porém, Skinner afirma: “Podemos, no entanto, apontar várias razões pelas quais as pessoas dev- eriam estar, agora, preocupadas com o bem de toda a humanidade. Os grandes proble- mas do mundo são agora globais. Super- população, o esgotamento de recursos, a poluição do ambiente e a possibilidade de um holocausto nuclear – estas são as conse- qüências não-tão-remotas de nossos cursos de ação atuais” (1971b, pp. 137-138). A única “boa razão” para que al- guém promova a sobrevivência de sua cul- tura (ou da humanidade), ao que parece, é a própria perspectiva de que sua cultura (ou a humanidade) sobreviva. Essa não é, na ver- dade, uma “boa razão” – no sentido de que não é uma razão suficientemente persua- siva, como admite Skinner: “Apontar para conseqüências não é suficiente. Precisamos arranjar contingências sob as quais as con- seqüências tenham um efeito. Como podem as culturas do mundo fazer com que essas possibilidades aterrorizantes afetem o com- portamento de seus membros?” (1971b, p. 138). O planejamento cultural proposto por Skinner refere-se, exatamente, ao controle de práticas culturais (através das contingên- cias de reforço que as integram) orientado por previsões sobre seu possível valor de sobrevivência para as culturas. Se a simples menção da possibilidade do fim de todas as culturas não é suficiente para que façamos algo a respeito, o planejamento cultural é absolutamente necessário. Permanece, contudo, o fato de que não pode haver, pelo menos em termos lógi- cos, qualquer justificativa absoluta para a adoção da sobrevivência das culturas en- quanto valor. Em alguns momentos, Skin- ner torna clara sua rejeição a este tipo de justificativa: “Não podemos responder a tais questões [sobre valores] apontando para absolutos. Não há verdade absoluta em jul- gamentos de valor. Ninguém possui esse tipo de verdade ou poderesponder questões apelando a ela” (Skinner, 1971a, p. 547); “Seria um erro . . . tentar justificá-las [práti- cas culturais com valor de sobrevivência] em qualquer sentido absoluto. Não há nada fundamentalmente certo na sobrevivência de uma cultura, como não há nada funda- mentalmente certo no conjunto de carac- terísticas que define uma espécie” (p. 550). Portanto, à questão que nos dirige a filosofia moral tradicional (é possível justi- ficar valores?), a resposta do Skinner é neg- ativa – a não ser que aceitemos a história se- letiva daquele que defende certo valor como uma boa justificativa. Notemos, porém, que essa história não nos permite dizer que um valor é melhor do que outro, pelo simples fato de que não existem histórias comporta- mentais melhores ou piores – existem ape- nas histórias. O que eu valorizo pode ser diferente do que aquilo que você valoriza, mas nenhum de nós está fundamentalmente certo ou errado – nós simplesmente somos pessoas diferentes, com histórias diferentes. É importante sublinhar que o prob- lema de saber quais valores (ou quais con- seqüências) são mais ou menos desejáveis (melhores ou piores) não deve ser con- fundido com outro problema, igualmente importante: qual a tecnologia mais efe- tiva para promover tais conseqüências? Mesmo os filósofos morais tradicionais ad- Revista Psicolog 24 mitem que grande parte dos problemas que surgem em discussões éticas se refere, na verdade, a questões empíricas (p. ex., Hare, 1997/2003, p. 61). Se duas pessoas con- cordam quanto ao fato de que certo obje- tivo (seja ele qual for) deve ser produzido, o problema resume-se a saber como fazê-lo – presumivelmente, uma questão empírica.3 Planejar práticas culturais é, obvia- mente, um empreendimento complexo. O planejamento cultural exige, em alguma medida, o recurso à suposição (guess) (Skinner, 1953/1965, p. 436; 1961/1972c, p. 49). A ciência, com sua insistência sobre a “observação cuidadosa, a coleta de informação adequada e a formulação de conclusões que contenham um mínimo de ilusão [wishful thinking]” (1953/1965, p. 435), parece oferecer o caminho mais seguro para que tais suposições revelem- se corretas. Mas nunca poderemos estar absolutamente certos de que nossas inter- venções produzirão as conseqüências que planejamos. Mesmo que pudéssemos, contudo, ainda seria possível discordar sobre a con- veniência de tais conseqüências. Em uma passagem especialmente interessante de sua obra, o filósofo alemão Carl Hempel trata dessa questão de forma instigante: Vamos assumir, então, que con- frontados com uma decisão moral, pos- samos chamar o demônio de Laplace como consultor. Que ajuda poderemos conseguir dele? Suponhamos que temos que escol- her um entre diversos cursos de ação alter- nativos possíveis, e queiramos saber qual deles devemos tomar. O demônio poderia então nos dizer, para cada escolha con- templada, quais seriam suas conseqüências para o curso futuro do universo, nos mín- imos detalhes, não importa quão remotos no tempo e no espaço. Mas, tendo feito isso para cada um dos cursos de ação al- ternativos sob consideração, a tarefa do Demônio estaria completa; ele nos teria dado toda a informação que uma ciência ideal poderia nos dar sob tais circunstân- cias. E, no entanto, ele não teria resolvido nosso problema moral, pois isso requer uma decisão sobre qual dos diversos con- juntos alternativos de conseqüências ma- peados pelo demônio é o melhor; qual deles deveríamos produzir. E o peso da decisão ainda cairia sobre nossos ombros. (1965, pp. 88-89) O argumento de Hempel, portanto, é este: mesmo que possamos prever o curso dos acontecimentos com absoluta precisão, ainda assim a questão dos valores, ou de quais conseqüências são desejáveis, per- manecerá aberta à discussão. O problema diz respeito, é claro, à diversidade de re- forçadores que podem adquirir controle so- bre o comportamento de diferentes indiví- duos. Mas, como diz Skinner, não há nada além da nossa história que nos permita “jus- tificar” os valores que defendemos. Não escolhemos aquilo que reforça nosso com- portamento. Diante disso, devemos, os behavior- istas radicais, rejeitar o debate ético como uma empreitada inútil? Pensamos que não. Debates éticos têm seus limites, mas podem ser produtivos. (A propósito, as alternati- vas mais óbvias ao debate – individualismo e agressão – não são animadoras.) Para que isso aconteça, pelo menos um requi- sito deve ser satisfeito: os valores (isto é, os objetivos) de quem discute devem ser declarados abertamente, e devem ser tão bem definidos quanto possível. Os anal- istas do comportamento têm, de pronto, a 3Em outra ocasião, porém (Dittrich, 2004b), discutimos o problema com mais detalhe. Especialmente quando o objetivo em questão é a sobrevivência das culturas, saber como produzi-lo pode não ser um problema cuja resposta seja estritamente empírica. Revista Psicolog 25 vantagem de insistir sobre a necessidade de planejar e especificar, com a maior precisão possível, os objetivos da suas intervenções. Devemos, é claro, estar prontos a considerar e a avaliar os objetivos de outras pessoas ou grupos, mas também devemos exigir delas que sigam nosso exemplo e tornem explíc- itas as conseqüências que pretendem pro- duzir. De uma perspectiva pragmatista, ex- por objetivos claramente é indispensável (Hayes, 1993). Não há como avaliar a util- idade de uma teoria ou de uma tecnologia sem que se defina o que é “utilidade”. Algo útil é algo que produz certas conseqüências. Defina-se, pois, que conseqüências são es- sas. Isso não esgota, necessariamente, o debate ético: a idiossincrasia dos re- forçadores é um fato. Declarar e definir objetivos, porém, poupa discussões impro- dutivas e permite identificar possibilidades de acordo e colaboração. Referências Dittrich, A. (2003). Introdução à filosofia moral skinneriana. Em C. E. Costa, J. C. Luzia H. H. N. SantAnna (Orgs.), Primeiros passos em análise do comporta- mento e cognição (pp. 11-24). Santo An- dré, SP: ESETec. Dittrich, A. (2004a). A ética como elemento explicativo do comportamento no behaviorismo radical. Em M. Z. S. Brandão, F. C. S. Conte, F. S. Brandão, Y. K. Ingberman, V. L. M. Silva e S. M. Oliani (Orgs.), Sobre comportamento e cognição – vol. 13: Contingências e metacontingên- cias: contextos sócio-verbais e o compor- tamento do terapeuta (pp. 21-26). Santo André, SP: ESETec. Dittrich, A. (2004b). Behav- iorismo radical, ética e política: As- pectos teóricos do compromisso social [On-line]. Tese de doutorado, Uni- versidade Federal de São Carlos. Re- tirado em 10 de março de 2008, de http://www.bdtd.ufscar.br/tde_busca/arquivo .php?codArquivo=122 Dittrich, A. (2006). A sobrevivência das culturas é suficiente enquanto valor na ética behaviorista radical? Em H. J. Guil- hardi e N. C. de Aguirre (Orgs.), Sobre comportamento e cognição – vol. 17: Ex- pondo a variabilidade (pp. 11-22). Santo André, SP: ESETec. Dittrich, A. Abib, J. A. D. (2004). O sistema ético skinneriano e conseqüên- cias para a prática dos analistas do compor- tamento. Psicologia: Reflexão e Crítica, 17, 427-433. Hare, R. M. (2003). Ética: Proble- mas e propostas. (M. Mascherpe e C. A. Rapucci, Trads.) 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Compulsive hoarding (CH) is a behavior pattern characterized by the cluttering of excessive amount of objects without utilitarian or economical value, accompanied by extreme difficulty to discard those objects, with adverse consequences to the quality of life of the affected individual. The present article aims to: distinguish between CH and normal behaviors; present current classifications of CH, its comorbidities and biological basis; present pharma- cological treatment and emphasize psychological interventions proposed by behavior and cognitive theoretical approaches for therapy. Key-words: compulsive hoarding, compulsion, behavior therapy, cognitive ther- apy. Resumo. O colecionismo patológico (CP) é um padrão comportamental caracterizado pelo acúmulo de quantidades excessivas de itens com pouco ou nenhum valor utilitário ou material, com dificuldade para fazer o descarte destes mesmos objetos, resultando, ao longo do tempo, prejuízo da qualidade de vida do indivíduo. O artigo se propõe a: estabelecer a distinção entre o CP e o comportamento de colecionar, validado socialmente; apresentar as classifi- cações atuais do transtorno, suas comorbidades e bases biológicas; descrever topográfica e funcionalmente o CP; apresentar as propostas terapêuticas farmacológicas e enfatizar terapias psicológicas baseadas nos fundamentos teóricos das abordagens comportamental e cognitiva. Palavras-chave: colecionismo patológico, compulsão, terapia comportamental, terapia cognitiva. O colecionismo é considerado um comportamento normal na infância e na idade adulta (Greenberg, Witztum e Levy, 1990). Não raramente, encontramos adul- tos que colecionam objetos relacionados a temas de seu interesse (por exemplo, miniaturas de carros de corrida, chaveiros de times de futebol, caixas de fósforos de hotéis e restaurantes, etc.). Crianças guardam seus desenhos e trabalhos de arte, armazenam objetos (como rochas, folhas, bolinhas de gude), colecionam álbum de figurinhas, entre outras possibilidades. São padrões de comportamento que não prej- udicam o funcionamento global do indi- víduo, possuem função de entretenimento, socialização e convívio entre pessoas com interesses em comum. Por outro lado, no colecionismo pa- tológico (CP) verifica-se que a coleta, or- denação e disposição de objetos constitu- intes da coleção ocorrem sem que o indi- víduo tenha claro entendimento dos mo- tivos de seu comportamento, com pouco ou nenhum controle sobre o comporta- mento de colecionar. Hartl e Frost (1996) sinalizaram a escassez da literatura acerca do CP, a despeito de sua relevância como fenômeno clínico. No intuito de suprir essa lacuna e facilitar a pesquisa e inter- venção, propuseram um modelo Cognitivo- Comportamental do CP. Revista Psicolog 28 Segundo o modelo de Frost e Hartl (1996), o CP é conceitualizado como um problema multifacetado, associado a dé- ficits no processamento de informações, na formação de vínculo emocional, com esquiva comportamental, e controle por crenças errôneas acerca da função e signifi- cado dos objetos, fatores que influenciam os comportamentos de armazenar e descartar. Evidências anedóticas sugerem que crenças sobre memória, vínculo, controle e respon- sabilidade são especialmente importantes no desenvolvimento e manutenção de com- portamentos de CP. Classificações e subtipos clínicos Frost, Steketee e Williams (2000) subdi- videm o colecionismo em CP de objetos, colecionismo de animais e síndrome de Diógenes. O CP de objetos caracteriza- se pela emissão de comportamentos de aquisição (comprar ou recolher/coletar), ar- mazenamento (saving, no original) sob con- trole de razões sentimentais, instrumentais, intrínsecas e, por fim, comportamentos de acumular e tentativas frustradas de organi- zar. Este padrão comportamental complexo é acompanhado por sentimentos de inde- cisão, preocupação de manter o acúmulo fora de vista, grande sofrimento e prejuí- zos. O colecionismo de animais é o subtipo com maior gravidade e pior prognóstico de tratamento. A síndrome de Diógenes (SD) foi descrita pela primeira vez na psiquiatria em 1975 (Hanon, Pinquier, Gladdour, Said, Mathis e Pellerin, 2004). Esta síndrome en- volve a ocorrência simultânea de extremo descuido pessoal, imundície doméstica e marcante retraimento social. Considera- se que a presença de CP uma pista útil para formulação do diagnóstico da SD (Montero-Odasso, Shapira, Duque, Cher- covsky, Fernandez-Otero, Kaplan e Cam- era, 2005). Seedat e Stein (2002), como os de- mais autores, também caracterizaram o CP como o comportamento de acumular quan- tidades excessivas de itens com pouco ou nenhum valor utilitário ou material, com di- ficuldade para fazer o descarte destes mes- mos objetos, resultando, ao longo do tempo, em inúmeros problemas para o indivíduo. Vale notar que na língua inglesa, no contexto psiquiátrico, denomina-se “hoard- ing” ao comportamento patológico de acu- mular, desorganizadamente, grande quan- tidade objetos. Em Português não há consenso de nomenclatura; o termo cole- cionismo é utilizado tanto para descrever comportamentos considerados saudáveis quanto os comportamentos patológicos, caracterizados por compulsão para a aquisição e/ou armazenamento de obje- tos sem funcionalidade aparente. Dentro do contexto de língua inglesa, Neziroglu, Bubrick Tobias (2004) salientam que o comportamento de colecionar não é neces- sariamente sinônimo de CP. Segundo eles, os colecionadores não-patológicos geral- mente sentem orgulho de suas posses e con- sideram agradável mostrá-las aos demais, enquanto que no CP ocorre o oposto. Não raramente, os portadores sentem vergonha de seus pertences mal armazenados, ten- tam dissuadir as pessoas de visitarem suas casas, buscam esconder objetos e dissimu- lar suas compulsões. De modo sintético, pode-se afir- mar que o colecionismo não-patológico envolveria a interação prazerosa com uma classe específica de objetos cujas caracterís- ticas físicas ou funcionais são consideradas especiais pelos aficionados naqueles obje- tos. Colecionar é, geralmente, um compor- tamento socialmente reforçado. Por sua vez, o comportamento de Revista Psicolog 29 “hoarding”, aqui denominado como CP, difere do colecionismo não patológico por apresentar um aspecto compulsivo; há pouco ou nenhum controle sobre a tendên- cia a armazenar indiscriminadamente. O sofrimento a médio e longo prazo com- pete com o alívio imediato. Torna-se ex- tremamente difícil o convívio social. O indivíduo sofre por colecionar, e também quando é incitado a se desfazer dos ob- jetos que acumula compulsivamente. O portador permanece sob a influência de um conflito esquiva-esquiva: ao coletar e armazenar atenua a aversividade da com- pulsão (palavra que nomeia resumidamente um complexo estado privado, eliciado por contingências aversivas). Em decorrência dos excessos comportamentais, o indivíduo passa a ser rejeitado pelas pessoas (devido à sujeira, bagunça, despesas, mentiras, etc.) e permanece sob contingências aversivas de natureza interpessoal: teria que se
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