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Autor: Prof. Flavio Celso Müller Martin Colaborador: Prof. André Galhardo Fernandes Responsabilidade Social AD M /C EC O Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 0/ 01 /2 01 9 Professor conteudista: Flavio Celso Müller Martin Bacharel em comunicação social pela Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) de São Paulo, pós-graduado em Marketing de Serviços pela Universidade Paulista (UNIP) e mestre em Administração pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Conta com vinte anos de experiência executiva em empresas nacionais e multinacionais dos ramos de embalagens, equipamentos, gráfico, financeiro e de serviços e quinze anos de experiência acadêmica como professor e coordenador de cursos na Universidade Paulista (UNIP). © Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Universidade Paulista. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) M379r Martin, Flávio Celso Müller. Responsabilidade Social / Flávio Celso Müller Martin. São Paulo: Editora Sol, 2019. 144 p., il. Nota: este volume está publicado nos Cadernos de Estudos e Pesquisas da UNIP, Série Didática, ano XXV, n. 2-060/19, ISSN 1517-9230. 1. Responsabilidade social. 2. Normas e certificações. 3. Sustentabilidade. I. Título. CDU 658.114.8 U501.39 – 19 AD M /C EC O Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 0/ 01 /2 01 9 Prof. Dr. João Carlos Di Genio Reitor Prof. Fábio Romeu de Carvalho Vice-Reitor de Planejamento, Administração e Finanças Profa. Melânia Dalla Torre Vice-Reitora de Unidades Universitárias Prof. Dr. Yugo Okida Vice-Reitor de Pós-Graduação e Pesquisa Profa. Dra. Marília Ancona-Lopez Vice-Reitora de Graduação Unip Interativa – EaD Profa. Elisabete Brihy Prof. Marcelo Souza Prof. Dr. Luiz Felipe Scabar Prof. Ivan Daliberto Frugoli Material Didático – EaD Comissão editorial: Dra. Angélica L. Carlini (UNIP) Dra. Divane Alves da Silva (UNIP) Dr. Ivan Dias da Motta (CESUMAR) Dra. Kátia Mosorov Alonso (UFMT) Dra. Valéria de Carvalho (UNIP) Apoio: Profa. Cláudia Regina Baptista – EaD Profa. Betisa Malaman – Comissão de Qualificação e Avaliação de Cursos Projeto gráfico: Prof. Alexandre Ponzetto Revisão: Lucas Ricardi Kleber Souza AD M /C EC O Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 0/ 01 /2 01 9 Sumário Responsabilidade Social APRESENTAÇÃO ......................................................................................................................................................7 INTRODUÇÃO ...........................................................................................................................................................7 Unidade I 1 RESPONSABILIDADE SOCIAL EMPRESARIAL (RSE): CONCEITOS E HISTÓRICO ....................... 11 1.1 Conceitos e definições........................................................................................................................ 11 1.2 Evolução histórica ................................................................................................................................ 14 2 FORMAS DE ATUAÇÃO EM RSE ................................................................................................................. 21 2.1 Filantropia ............................................................................................................................................... 22 2.2 Empresa cidadã ou cidadania corporativa ................................................................................. 23 2.2.1 Cidadania corporativa Samsung ....................................................................................................... 23 2.2.2 Cidadania corporativa PepsiCo.......................................................................................................... 24 2.2.3 Cidadania Corporativa IBM ................................................................................................................. 25 2.3 Desenvolvimento sustentável ......................................................................................................... 26 2.4 Por que ter um sistema de responsabilidade social nas empresas? ................................ 34 2.5 Argumentos contra a RSE ................................................................................................................. 37 2.6 Sustentabilidade ................................................................................................................................... 40 3 BALANÇO SOCIAL E CONTABILIDADE AMBIENTAL ............................................................................. 47 3.1 O balanço social das empresas ....................................................................................................... 48 3.1.1 Conteúdo do balanço social ............................................................................................................... 51 3.1.2 Contabilidade ambiental ...................................................................................................................... 54 4 NORMAS, CERTIFICAÇÕES E INICIATIVAS .............................................................................................. 58 4.1 Qualidade ................................................................................................................................................. 58 4.1.1 ISO: ISO 9001, 9002, 9003 e ABNT: NBR ISO 9001, NBR ISO 9002 e NBR ISO 9003 ................58 4.2 Meio ambiente ...................................................................................................................................... 59 4.2.1 Emas ............................................................................................................................................................. 59 4.2.2 ISO 14000 e NBR ISO 14001 .............................................................................................................. 59 4.3 Saúde e segurança ............................................................................................................................... 61 4.3.1 OHSAS 18001 ........................................................................................................................................... 61 4.3.2 HCS e HHPS ............................................................................................................................................... 62 4.4 SUSTENTABILIDADE E RESPONSABILIDADE SOCIAL ............................................................... 62 4.4.1 FSC e FSC Brasil ........................................................................................................................................ 62 4.4.2 MSC .............................................................................................................................................................. 63 4.4.3 AA1000 ........................................................................................................................................................ 64 4.4.4 GRI ................................................................................................................................................................ 64 AD M /C EC O Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 0/ 01 /2 01 9 4.4.5 SA8000 ........................................................................................................................................................64 4.4.6 ECS2000 ...................................................................................................................................................... 66 4.4.7 Q-RES CELE ................................................................................................................................................ 67 4.4.8 NBR 16001 ................................................................................................................................................. 67 4.4.9 ISO 26000 e NBR ISO 26000 .............................................................................................................. 68 4.4.10 AA1000 ................................................................................................................................................... 69 4.4.11 BS8900 ...................................................................................................................................................... 69 Unidade II 5 RESPONSABILIDADE SOCIAL EM DIVERSOS PÚBLICOS ................................................................... 73 5.1 Responsabilidade social com funcionários ................................................................................ 73 5.2 Responsabilidade social com governo ......................................................................................... 74 5.3 Responsabilidade social com fornecedores ............................................................................... 74 5.3.1 Cuidados específicos com fornecedores ....................................................................................... 76 5.3.2 Caso da Natura ....................................................................................................................................... 76 5.3.3 O caso da Levi’s ........................................................................................................................................ 77 5.3.4 O caso do boicote da carne paraense ............................................................................................. 78 5.4 Responsabilidade social com comunidades .............................................................................. 78 5.4.1 O caso da Colgate-Palmolive ............................................................................................................. 79 5.5 Responsabilidade social com bancos e seguradoras .............................................................. 80 5.5.1 O caso Santander de financiamentos sustentáveis .................................................................. 80 5.6 Responsabilidade social com Organizações não Governamentais (ONGs) ................... 81 5.7 Responsabilidade social com clientes ......................................................................................... 81 5.8 O papel da ética ................................................................................................................................... 83 6 GESTÃO AMBIENTAL....................................................................................................................................... 90 6.1 Ecodesign ................................................................................................................................................. 92 6.2 Caso da Shell ......................................................................................................................................... 93 6.3 Caso da Basf .......................................................................................................................................... 93 6.4 Caso do Pão de Açúcar ..................................................................................................................... 95 6.5 Caso da Sabesp ...................................................................................................................................... 95 6.6 Caso do Banco HSBC .......................................................................................................................... 96 6.7 Caso da Petrobrás ................................................................................................................................. 96 7 MARKETING SOCIAL ....................................................................................................................................... 97 7.1 O caso Rede Globo – Criança Esperança .................................................................................... 98 7.2 O caso McDonald’s – McDia Feliz .................................................................................................. 99 8 AS RELAÇÕES ENTRE PRIMEIRO, SEGUNDO E TERCEIRO SETOR ................................................100 8.1 Panorama histórico das ONGs no Brasil ...................................................................................101 8.2 Prêmios e instituições.......................................................................................................................111 7 AD M /C EC O Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 0/ 01 /2 01 9 APRESENTAÇÃO Esta disciplina visa apresentar aos alunos a visão crítica da gestão socialmente responsável e as consequências de suas ações nos atores envolvidos, assim como seus impactos na empresa, no mercado, no meio ambiente e na comunidade e suas implicações na gestão da organização. Você verá como as empresas podem desenvolver o investimento social na comunidade/sociedade, sua relação com o Terceiro Setor e o alinhamento com a gestão estratégica da empresa e com os fundamentos da excelência em responsabilidade social. Vamos discutir aspectos importantes como sustentabilidade e responsabilidade, além de apresentar organizações que coordenam suas estratégias alinhadas com esses preceitos. Você conhecerá as principais certificações e prêmios setoriais, assim como entenderá as relações do tema com diversos públicos. Além disso, terá a oportunidade de desenvolver seu senso crítico diante das questões ligadas à Ética Empresarial e poderá aplicar esses conceitos no seu dia a dia no trabalho. INTRODUÇÃO Você certamente está observando o aumento da frequência de notícias sobre descarte de resíduos, desmatamento, poluição e os efeitos desses tópicos na gestão das organizações. Por exemplo, o Fórum Econômico Mundial de Davos de 2016 apresentou num painel uma projeção, a qual demonstrava que em 2050 os oceanos terão mais plástico do que peixes, medido em peso (OCEANOS..., 2016). Ou seja, mantendo os níveis de produção, consumo e descarte de plásticos, em menos de 40 anos a indústria pesqueira vai encontrar mais plástico que peixe no mar! Note que todos nós utilizamos (e descartamos) embalagens plásticas diariamente: basta pensar na garrafinha de água mineral ou no potinho de iogurte... Os programas atuais de reciclagem não dão conta do enorme volume de plástico sendo descartado! Agora pense em outros materiais que vão para o lixo e imagine o destino de tudo isso. Figura 1 8 AD M /C EC O Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 0/ 01 /2 01 9 E que tal se pensarmos na poluição gerada na extração de matéria-prima? O minério de ferro gera resíduos altamente poluentes que devem ter tratamento e destino adequados. Lembre-se da tragédia em Mariana - MG, quando um dique rompeu e milhares de toneladas de lama com resíduos de mineração foram espalhados. E se o assunto for a conversão de matéria-prima em produto, uma fábrica de papel, ao transformar celulose em papel e papelão, gera uma grande quantidade de água poluída, que, se não for tratada convenientemente, vai para a natureza. Outro tópico relacionado: será que há trabalho escravo ou ilegal na produção da roupa que você veste ou do celularque você usa? Há uma consciência ambiental e social que vem crescendo no mundo, e o Brasil, apesar de não ser o país mais avançado, também tem marcado presença. Algumas questões começam a ser mais frequentes: • De onde vem a matéria-prima de tudo o que vejo no supermercado? • Quantos recursos naturais foram utilizados para produzir milhões de unidades de smartphones como o meu? • Quanto do que eu consumo realmente preciso? Pense nos materiais de escritório da sua mesa. Provavelmente há algumas canetas esferográficas, talvez lápis ou lapiseiras, alguns bloquinhos autoadesivos de diversas cores, entre outros. Quais são os processos produtivos desses produtos? Há poluição sem tratamento lançada na natureza durante a fabricação? A madeira do lápis vem do desmatamento ilegal da Amazônia? Vamos pensar, por exemplo, no lixo. É desagradável ficar com o lixo em casa, não é? Que bom que temos a coleta de lixo que leva ele embora. Mas... vai embora para onde? Esse lixo apenas sai de sua menor unidade de lar, que é sua casa, mas continua na sua casa maior, que é seu planeta. Como resolver isso? Bom, você pode começar produzindo menos lixo e participando da coleta seletiva. Figura 2 9 AD M /C EC O Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 0/ 01 /2 01 9 A coleta seletiva é um serviço especializado em coletar material devidamente separado pela fonte geradora. Ou seja, você, que é a fonte geradora do lixo, separa o orgânico do reciclável. Esse sistema facilita a reciclagem porque o material permanece limpo e com maior potencial de reaproveitamento. Claro que a reciclagem é somente uma ação para que você possa ter uma vida mais sustentável e contribuir para um mundo mais sustentável também. Veja mais sugestões que irão contribuir bastante: • Planeje a troca de suas lâmpadas por modelos de baixo consumo de energia, como LEDs. • Escove os dentes com a torneira fechada. São gastos doze litros de água com a torneira aberta versus menos de meio litro abrindo somente na hora certa. • Pesquise e dê preferência para produtos e serviços sustentáveis. • Mantenha uma caneca identificada no trabalho e evite usar copos plásticos descartáveis. • Nas compras no mercado, prefira itens a granel e diminua o uso excessivo de embalagens. • Para lavar roupa, só ligue a máquina quando estiver cheia. • Vai secar roupa? Prefira o varal à secadora de roupas. Todas essas sugestões são alinhadas com o chamado consumo consciente, que nada mais é que o conjunto de contribuições diárias para a sustentabilidade do planeta. Claro que esses questionamentos podem parecer típicos de um “ecochato”, ou seja, aquelas pessoas que ficam chateando os outros em função de escolhas de consumo não ecológicas, mas na verdade questões como essas são cada vez mais levadas em consideração por governos, empresas e consumidores. Este livro-texto foi concebido para que você reflita inicialmente sobre a sua responsabilidade como consumidor e depois estenda as implicações sobre sua responsabilidade no papel de gestor. Mais uma pergunta: dá para manter nosso padrão de vida sem repensar em como extraímos recursos da natureza, como os convertemos em produtos e como destinamos os resíduos? Você já deve ter ouvido falar que o crescimento da população mundial não acompanha o crescimento da área plantada para a produção de alimentos. Ou seja, a demanda mundial por alimentos cresce numa velocidade muito maior que a capacidade de produzi-los. A ONU (Organização das Nações Unidas) projeta para o ano de 2030 cerca de 8,6 bilhões de pessoas no planeta e a projeção para 2050 aponta para 9,8 bilhões. Acha muito? Pois a projeção para 2100 atinge 11 bilhões de habitantes! Com esses números em mente, a humanidade precisa definir como produzir para todo mundo sem esgotar recursos, poluindo menos e remunerando convenientemente os investidores e acionistas das organizações. 10 AD M /C EC O Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 0/ 01 /2 01 9 Tudo indica que a maneira que o capitalismo tem para resolver essa questão envolve a responsabilidade social como prioridade nas organizações e também nas nossas vidas pessoais. Não se trata de discurso de “ecochatos”: trata-se de gerenciar os recursos finitos do nosso planeta. As organizações, além de enfrentar desafios constantes de competitividade e gestão de custos, sofrem cada vez mais pressões de todos os lados exigindo desempenho impecável, operações “limpas” e ações transparentes e socialmente responsáveis. Tanto a academia quanto o próprio mercado, observando as melhores práticas e seus resultados, elaboraram inúmeras técnicas gerenciais para aumentar a chance de maximizar resultados financeiros, ou, pelo menos, num ambiente de incerteza, aumentar as chances de sobrevivência. Assim, surgiu um conjunto de práticas voltado para atender a essas pressões: responsabilidade social de empresas (RSE). Essas práticas estão alinhadas com a maior conscientização dos consumidores que valorizam produtos e serviços que sejam responsáveis com o meio ambiente e que respeitem ações de cidadania. Este livro-texto aborda todos estes tópicos e pretende contribuir não só para ampliar seu conhecimento, mas para alterar positivamente sua atitude. Para elaborar a estrutura deste livro-texto, procuramos nos apoiar em trabalhos acadêmicos robustos como os de Souza, Melo Neto e Froes, Tenório, Tachizawa, Stoner, Freeman, Ashley, Carroll e outros. Bons estudos! 11 AD M /C EC O Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 0/ 01 /2 01 9 RESPONSABILIDADE SOCIAL Unidade I 1 RESPONSABILIDADE SOCIAL EMPRESARIAL (RSE): CONCEITOS E HISTÓRICO Convidamos você a entender os conceitos de RSE, bem como perceber a evolução histórica no Brasil e no mundo. 1.1 Conceitos e definições Vamos começar este tópico apresentando a você uma organização fundamental para o processo de adoção de RSE junto às empresas brasileiras: o Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social é uma Oscip (organização da sociedade civil de interesse público) cuja missão é mobilizar, sensibilizar e ajudar as empresas a gerir seus negócios de forma socialmente responsável, tornando-as parceiras na construção de uma sociedade justa e sustentável. Para o Instituto Ethos, responsabilidade social empresarial é uma forma de gestão que se define pela relação ética e transparente da empresa com todos os públicos com os quais ela se relaciona e pelo estabelecimento de metas empresariais compatíveis com o desenvolvimento sustentável da sociedade, preservando recursos ambientais e culturais para as gerações futuras, respeitando a diversidade e promovendo a redução das desigualdades sociais. Para tal, promove um conjunto de ações que incentivam empresas a adotar formas de gestão voltadas para negócios sustentáveis e responsáveis. O Ethos conceitua negócio sustentável e responsável como uma atividade econômica orientada para a geração de valor econômico-financeiro, ético, social e ambiental, cujos resultados são compartilhados com os públicos afetados e cuja produção e comercialização são organizadas de modo a reduzir continuamente o consumo de bens naturais e serviços ecossistêmicos, visando dar competitividade e continuidade à própria atividade e a manter o desenvolvimento sustentável da sociedade. Note que o Instituto Ethos não limita a RSE a ações ou práticas, e sim a uma forma de gestão, o que necessariamente nos remete ao conjunto de processos que a organização executa cotidianamente. Além disso, estabelece a relação entre a empresa e todos os públicos (acionistas, clientes, fornecedores, distribuidores, stakeholders etc.) com ética (conjunto de regrase preceitos de ordem valorativa e moral de um indivíduo, de um grupo social ou de uma sociedade) e transparência (em que todas as partes têm acesso às informações). Completando, trata das metas organizacionais alinhadas com sustentabilidade e com preservação de recursos para as próximas gerações (o chamado legado) e com respeito às pessoas em sua diversidade, focando na redução de desigualdades. Em suma, RSE é algo que, se todas as organizações adotassem, resultaria num mundo melhor de se viver agora e no futuro. 12 AD M /C EC O Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 0/ 01 /2 01 9 Unidade I Porém, há uma grande quantidade de gestores empresariais alinhados com a visão de Friedman (1962), com base na análise econômica neoclássica, que postula a obrigação dos administradores em aumentar o valor do acionista: Existe uma e apenas uma responsabilidade social da atividade de negócios – utilizar seus recursos e engajar-se em atividades delineadas para incrementar lucros tanto quanto possível dentro das regras do jogo, qual seja, engajar-se em mercado livre e competitivo sem fraudes (FRIEDMAN, 1962, p. 4). Essa visão ortodoxa contraria as evidências do crescimento da RSE nos ambientes de negócio em todo o mundo na última década. Infelizmente, RSE pode ser confundido com caridade, e é preciso deixar claro que simplesmente participar de projetos sociais ou fazer doações não se configura como uma “forma de gestão”, como preceitua o Instituto Ethos. Assim, se a farmácia do seu bairro fizer doações para o Criança Esperança, por exemplo, e tiver uma forma de gestão não alinhada com os preceitos defendidos pelo Instituto Ethos, na verdade está somente realizando uma ação assistencialista na forma de caridade. Nada contra divulgarem a participação ou o apoio a projetos sociais através de doações, mas responsabilidade social tem uma abrangência muito maior do que somente isso. A caridade tem fins assistenciais e é um mero paliativo para graves problemas sociais. Assim, é comum confundir responsabilidade social com ações sociais de doações e assistencialismo, delimitando-a em caridade e filantropia. Isso distorce a essência do que se espera de uma conduta socialmente responsável das empresas. McWilliams e Siegel (2002, p. 118) pontuam que: Para maximizar lucros, a firma deveria oferecer precisamente aquele nível de responsabilidade social para o qual o incremento da receita (advindo de um aumento de demanda) iguale o maior custo (da utilização de recursos para prover ações sociais). Fazendo isto, a firma encontra a demanda dos stakeholders relevantes, tanto daqueles que demandam ações de responsabilidade social (consultores, empregados, comunidade), como dos acionistas da firma. Note que o ponto de vista desses autores é congruente no que se refere ao foco em rentabilidade mesmo com investimentos em RSE, o que na verdade reafirma o ponto de vista de Friedman citado há pouco e amplia o escopo de aplicação de RSE. Cheibub e Locke (2002) contribuem delimitando o que não é RSE: não é cumprir exigências tributárias, fiscais, trabalhistas e ambientais, bem como não é realizar ações, programas e benefícios em função de negociação trabalhista. Embora pareça simples, há uma grande complexidade em torno do termo. Carroll (1979) propõe a subdivisão da responsabilidade social nas dimensões econômica, legal, ética e filantrópica, conforme a figura a seguir: 13 AD M /C EC O Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 0/ 01 /2 01 9 RESPONSABILIDADE SOCIAL Responsabilidades filantrópicas Ser uma boa cidadã corporativa Melhorar a qualidade de vida Responsabilidades legais Obedecer às leis Obedecer às regras do jogo Responsabilidades éticas Obedecer às leis Obedecer às regras do jogo Responsabilidades econômicas Ser lucrativa A fundação pela qual todas as outras responsabilidades estão assentadas Figura 3 – Pirâmide de responsabilidade social de Carroll Para o autor, as proporções das categorias da figura indicam a relativa magnitude de cada categoria. Além disso, a ordem (de baixo para cima, como se houvesse uma base para a construção do modelo) apenas sugere que historicamente as organizações iniciam sua preocupação com as responsabilidades econômicas e legais, passando às outras categorias com o passar do tempo. Na base conceitual, a organização é uma entidade lucrativa, com o retorno financeiro em pauta (reponsabilidade econômica). Na camada seguinte, o resultado econômico deve ser legal, ou seja, a empresa conhece e aplica as leis vigentes (responsabilidade legal). Subindo conceitualmente no modelo, além de serem lucrativas e seguirem as leis, é preciso que as atividades da empresa sejam éticas na visão da sociedade que a cerca (responsabilidade ética). No topo, temos a responsabilidade filantrópica, que tem foco no auxílio direto ou indireto para a sociedade. Note que o autor postulou esses conceitos há mais de trinta anos quando o mundo dos negócios ainda estava focado cada vez mais em faturar sem levar em consideração as consequências. No modelo de excelência de gestão da Fundação Nacional da Qualidade (FNQ), responsabilidade social é “o dever da organização de responder pelos impactos de suas decisões e atividades, na sociedade e no meio ambiente, e de contribuir para a melhoria das condições de vida, por meio de um comportamento ético e transparente, visando ao desenvolvimento sustentável” (FNQ, [s.d.]). Em 2003, na Revista de Administração Contemporânea (RAC) da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Administração (Anpad), Hermano Roberto Thiry-Cherques (2003, p. 33) discutiu que: A responsabilidade social compreende o dever de pessoas, grupos e instituições em relação à sociedade como um todo, ou seja, em relação a todas as pessoas, grupos e instituições. A responsabilidade é o que nos faz sujeitos e objetos da ética, do direito, das ideologias e, se quisermos, da fé. É o que nos torna passíveis de sanção, de castigo, reprovação e culpa. O Banco Mundial define RSE como o compromisso empresarial de contribuir para o desenvolvimento econômico sustentável, trabalhando em conjunto com os empregados, suas 14 AD M /C EC O Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 0/ 01 /2 01 9 Unidade I famílias, a comunidade local e a sociedade em geral para melhorar sua qualidade de vida, de modo positivo tanto para as empresas como para o desenvolvimento. Lembrete Perceba que a discussão sobre responsabilidade social e ambiental veio crescendo ao longo dos anos. Saiba mais Conheça as atitudes sustentáveis do Grupo Boticário, quinta maior rede de varejo do país, com faturamento superior a 12 bilhões de reais: GRUPO BOTICÁRIO. Produtos cada dia mais sustentáveis. [s.d.]. Disponível em: <http://www.grupoboticario.com.br/pt/atitudes-sustentaveis/Paginas/ Inicial.aspx>. Acesso em: 20 dez. 2018. Assim, a responsabilidade social empresarial, objeto de estudo deste livro-texto, vai além de filantropia, assistencialismo e assemelhados e se configura como uma forma de gestão integrada ao dia a dia das organizações. 1.2 Evolução histórica Na Europa do século XVIII, segundo Guimarães (1984), o tema responsabilidade social já era abordado, muito embora de forma ainda embrionária, no sentido de o papel dos capitalistas ser de gerar lucros e empregos, sendo o emprego o benefício social derivado. Ou seja, conceitualmente, esse assunto não é recente. O modelo vigente na conversão do feudalismo para o capitalismo previa que o Estado seria encarregado das ações sociais, enquanto cabia às empresas o papel de ampliar ao máximo os lucros, criando empregose pagando taxas e impostos ao Estado. Esse modelo de certa forma perdurou até quase o final do século XX. Mas não vamos nos adiantar. Vamos focar no início do século XX. Gendron (apud KREITLON, 2004) explica a fase compreendida entre 1900 e 1960, resultado dos efeitos da Revolução Industrial: Durante este período, três fatores principais vêm favorecer o surgimento das críticas de caráter ético e social ao mundo dos negócios: a) a desilusão frente às promessas do liberalismo (decorrente sobretudo do crash da Bolsa de Nova Iorque em 1929, e das tristes consequências provocadas pela Grande Depressão que se seguiu); b) o desejo por parte das empresas 15 AD M /C EC O Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 0/ 01 /2 01 9 RESPONSABILIDADE SOCIAL de melhorarem sua imagem, numa época em que os lucros exorbitantes de certos monopólios suscitava a ira da população; c) o desenvolvimento das ciências administrativas, e a profissionalização da atividade gerencial (GENDRON apud KREITLON, 2004, p. 3). Note que esta fase é composta de críticas ao modelo vigente de exploração, com muita pouca mudança efetiva por parte das organizações. No período compreendido entre as décadas de 1960 e 1980, as coisas passam a mudar drasticamente, uma vez que traz para as empresas reivindicações cada vez mais numerosas e variadas por parte da sociedade civil. Se formos pensar em termos históricos, empresas atuando em problemas sociais não são exatamente novidade. Seja pelo good will que a benemerência provoca, seja pela crença dos proprietários, ações dessa natureza ocorreram pontualmente ao longo do tempo. O tema passou a ter relevância a partir do final da década de 1960, período de turbulência social em termos de direitos civis (nos EUA), de direitos estudantis e trabalhistas (na França, Alemanha e Itália), de liberalização política (na Tchecoslováquia) e outros tantos em vários lugares. O germe da mudança estava espalhado em boa parte do mundo, e as reivindicações sociais oriundas dessas mudanças começaram a impactar o mundo dos negócios. O zeitgeist (expressão alemã que designa o espírito de um tempo) expresso pelas demandas sociais transformaram paulatinamente a gestão empresarial voltada estritamente para o econômico em algo mais aberto e inclusivo. Foi o início de um processo lento de despertar para a responsabilidade social, o que pouco a pouco fez evoluir a postura e os valores das organizações. Claro que as revoluções sociais e políticas da época não são os únicos fatores que contribuíram para o despertar da RSE. A inovação tecnológica e a velocidade das mudanças derivadas transformaram a economia e o mundo empresarial, de acordo com Corrêa et. al (2004, p. 23). Em contraponto, na década de 1970, Milton Friedman, citado anteriormente, bradava sobre a inviabilidade das empresas assumirem responsabilidades sociais. Milton Friedman, falecido em 2006, foi um economista renomado e respeitado (recebeu o Nobel de Economia de 1976), e muitos o consideram o segundo economista mais influente do século XX, sendo o primeiro John Maynard Keynes. Ferrenho defensor do livre mercado com intervenção mínima do Estado, seu pensamento estava alinhado com o modelo descrito anteriormente. Ele postulava que as organizações deveriam focar na eficiência da produção de bens e serviços e deixar para o Estado a solução das demandas sociais, uma vez que as empresas não apresentam condições de analisar os problemas sociais e nem podem definir quais e quantos recursos devem ser utilizados nessa tarefa. A responsabilidade social da empresa consiste em aumentar seus próprios lucros [...]. A maior parte daquilo que se debatera a propósito de responsabilidade da empresa não passa de tolices. Para começar, apenas indivíduos podem ter responsabilidades; uma organização não pode tê-las. Eis portanto a questão que devemos nos colocar: será que os administradores - desde que permaneçam dentro da lei - possuem outras responsabilidades 16 AD M /C EC O Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 0/ 01 /2 01 9 Unidade I no exercício de suas funções além daquela que é aumentar o capital dos acionistas? Minha resposta é não, eles não têm (FRIEDMAN, 1970, p. 2). Tachizawa (2005, p. 41) pondera que o postulado de Friedman partia da ilusão (ou crença) que os recursos naturais eram infinitos, e, portanto, não poderiam ser considerados fatores restritivos à produção, e acreditava que o livre mercado era a ferramenta para obter o bem-estar social. Uma vez que a chamada Teoria Econômica Convencional abordava apenas a alocação de recursos escassos, a natureza e os recursos naturais não eram vistos como fatores limitantes, e assim o meio ambiente simplesmente não era considerado nos modelos econômicos vigentes. Perceba os ventos da mudança: a evolução da tecnologia e das teorias de gestão empresarial alteraram a lógica dos meios de produção. Uma das alterações envolveu a conclusão inequívoca acerca da finitude dos recursos naturais, e isso ampliou a percepção do conceito de responsabilidade social empresarial. Se, por um lado, o liberalismo econômico da época professado por Friedman contribuiu para o aumento da produção e para o acúmulo de capital, por outro lado evidenciou os efeitos negativos da atividade empresarial: poluição, degradação, disparidade social, relações de trabalho precárias etc. Nesse ponto, agentes sociais diversos que iniciaram o processo de mobilização passaram a pressionar as instâncias de poder (como governos e organizações multilaterais) para buscarem soluções dos problemas gerados pela atividade empresarial. Assim, o escopo da atuação organizacional se ampliou: mais do que gerar empregos, maximizar lucros e pagar impostos, as organizações deveriam ser obrigadas a fazer a gestão dos impactos no meio ambiente e a cumprir estritamente as obrigações trabalhistas. Assim, a disseminação da ideia de responsabilidade social empresarial atendeu tanto os desejos da sociedade quanto os anseios dos próprios funcionários das organizações. Vários eventos históricos contribuíram nesse despertar: • Em 1973 a Opep (Organização dos Países Exportadores de Petróleo) aumentou o preço do petróleo em mais de 400%, provocando inflação e falta de combustível em boa parte do mundo. • Em 1979 ocorreu uma crise política no Irã, e a produção de petróleo foi afetada seriamente, fazendo com que os preços aumentassem: de 1979 a 1981, o preço aumentou de 13 para 34 dólares o barril. Isso provocou novamente inflação e problemas de abastecimento. • Em 1984 houve a Tragédia de Bhopal, cidade indiana, onde 40 toneladas de gases tóxicos vazaram na fábrica de pesticidas da empresa americana Union Carbide, causando 3 mil mortes diretas e 10 mil indiretas. • Em 1986 a Rússia sofreu com um acidente que provocou a explosão de um dos quatro reatores da usina nuclear de Chernobyl, o que lançou na atmosfera uma nuvem radioativa que aumentou brutalmente a incidência de câncer numa região que se espalha até hoje por dezenas de quilômetros quadrados. 17 AD M /C EC O Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 0/ 01 /2 01 9 RESPONSABILIDADE SOCIAL • Em 1989 ocorreu o acidente com o navio petroleiro Exxon Valdez na costa do Alasca, onde, após encalhar, o casco se rompeu e 40 milhões de litros de petróleo vazaram, contaminando uma área de 250 km2, matando ao longo do tempo 260 mil pássaros marinhos, além de peixes, orcas, lontras e outros animais. Note que, se as crises de abastecimento de petróleo de 1973 e 1979 evidenciaram a questão da finitude desse recurso natural, os acidentes industriais da década de 1980 lançaram luz sobre a questão daresponsabilidade ambiental das organizações. O modelo que Friedman defendia (empresas devem ter lucro e deixar os problemas sociais para os Estados) estava lentamente sendo corroído pelos fatos. O ramo da indústria química americana, em função do acidente de Bhopal (e de outros acidentes ocorridos), lançou, em 1985, o Responsible Care, que segundo Barbieri (2004), é o ponto de partida da Gestão Ambiental atual, uma vez que propunha seriamente a adoção de instrumentos de gerenciamento ambiental e de segurança. Note que esse desastre ambiental forçou um ramo industrial inteiro a adotar medidas voltadas à responsabilidade ambiental, o que reforça a tese que desastres são um forte fator de mobilização e mudança. As crises do petróleo de 1973 e 1979 demonstraram a excessiva dependência de recursos naturais finitos, e isso gerou naturalmente uma demanda por tecnologias focadas em reduzir a dependência desses recursos, seja pela racionalização do uso de insumos de produção, seja pela busca de alternativas não finitas (sustentáveis) para substituí-los. Cabe ressaltar que o Brasil contribuiu no desenvolvimento de tecnologias através do Programa Nacional do Álcool (Pró-Álcool), criado em 1975, que visava reduzir a dependência do petróleo substituindo a gasolina pelo álcool. Uma boa parte da produção automotiva do início da década de 1980 era de automóveis movidos a álcool. Os atuais motores flex, que funcionam tanto com gasolina quanto com álcool em qualquer proporção, são oriundos dessa tecnologia, que evidentemente evoluiu muito desde então. Assim, com governos e sociedade mobilizados para (ou, muitas vezes, com um discurso de) preservação ambiental e respeito às condições de trabalho, as empresas passaram a adotar uma posição defensiva: cumprir aquilo que a legislação exige e somente isso. Nessa fase, era comum adotar equipamentos de controle de poluição atmosférica, do solo e da água mesmo que não fossem tão eficientes na preservação do meio ambiente. O recado era: “Estamos fazendo nossa parte!”. Como esses equipamentos tinham custo elevado de aquisição, instalação e manutenção, era natural que ao longo do tempo as organizações passassem a considerar controle ambiental como parte integrante das outras funções organizacionais, buscando eficiência e eficácia nas operações produtivas. Surge assim a Gestão Ambiental: Gestão ambiental envolve planejamento, organização, e orienta a empresa a alcançar metas [ambientais] específicas, em uma analogia, por exemplo, com o que ocorre com a gestão de qualidade. Um aspecto relevante da gestão ambiental é que sua introdução requer decisões nos níveis mais elevados da 18 AD M /C EC O Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 0/ 01 /2 01 9 Unidade I administração e, portanto, envia uma clara mensagem à organização de que se trata de um compromisso corporativo. A gestão ambiental pode se tornar também um importante instrumento para as organizações em suas relações com consumidores, o público em geral, companhias de seguro, agências governamentais etc. (MEYER-KRAHMER, 1998, p. 134). Pode-se concluir que a preocupação ambiental foi inicialmente uma reação a demandas externas pouco consideradas que aos poucos virou uma ação planejada e orientada para os propósitos organizacionais, e um dos atores sociais que muito contribuíram para isso foram as ONGs. As ONGs exerceram um papel fundamental na difusão dos conceitos de responsabilidade social no Brasil e no mundo, muito embora nem todas sejam voltadas especificamente para RSE. Segundo Campos (1999, p. 2), o termo non-governmental organizations (NGO) foi criado pelas Nações Unidas na década de 1950, definido como “organizações internacionais da sociedade civil que não foram fundadas pelos Estados”. A tradução natural para o português foi organizações não governamentais (ONGs). É interessante notar que as décadas de 1980 e 1990 foram as que apresentaram um enorme crescimento da quantidade de ONGs no mundo: Quadro 1 – Quantidade de ONGs no mundo Ano Nº de ONGs internacionais 1956 1.000 1960 1.200 1970 3.200 1980 8.300 1990 18.000 1998 32.000 Adaptado de: Lobo (2007). O termo Oscip foi criado pela Lei nº 9.790/99, segundo Campos (1999, p. 3). Na prática, trata-se de um reconhecimento legal daquilo que se entende por ONG com alcance de verbas oficiais. Por força da lei, as Oscips são obrigadas a ter transparência administrativa por aplicarem recursos públicos. A lei permite que organizações de direito privado sem fins lucrativos sejam qualificadas como Oscips, podendo desenvolver parcerias com o poder público e assim realizar suas atividades. Veja que discutimos anteriormente, não por coincidência, o germe da mudança nas décadas de 1980 e 1990 no Brasil. Essas mudanças (em escala mundial também) eram voltadas, entre outras coisas, para difundir um discurso de ética e responsabilidade social, que aos poucos se ampliou incluindo a responsabilidade ambiental. Era necessário desenvolver práticas empresariais voltadas para o atendimento de necessidades sociais e, mais amplamente, ambientais. 19 AD M /C EC O Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 0/ 01 /2 01 9 RESPONSABILIDADE SOCIAL Esse movimento crescente de mudança acabou tendo consequências concretas, e diversas organizações passaram a se preocupar em agir junto a áreas tradicionalmente ocupadas pelo Estado. As mudanças também ocorreram no ambiente interno das organizações: relacionamento com funcionários indo além das obrigações trabalhistas e relacionamento com fornecedores respeitando o direito de transações duradouras e lucrativas para ambas as partes. Naturalmente, essas mudanças acabaram incluindo, com o tempo, a relação com o meio ambiente e com as comunidades mais próximas. Bons exemplos devem ser comunicados para que haja incentivo à replicação, certo? Com base nesse conceito, começou ainda de maneira tímida um movimento de publicar relatórios divulgando as ações sociais e ambientais realizadas pelas empresas, e assim surgiram os primeiros relatórios de atividades sociais, que aos poucos se desenvolveram e passaram a receber a denominação de balanço social, numa clara alusão ao balanço contábil, que demonstra publicamente uma radiografia da empresa. Trataremos do balanço social mais à frente. Nos primeiros anos dos anos 1990, a quantidade de empresas com divulgação de relatórios sociais anuais começou a crescer. Como uma onda, outras empresas passaram a dar atenção, e isso iniciou um processo de aceitação e disseminação no meio empresarial. Nesse período, portanto, ocorreu uma alteração da mentalidade de parte do empresariado. As velhas lideranças empresariais, alinhadas com o pensamento de Friedman, já discutido, perderam espaço seja por sucessão, seja por incapacidade de atuar competitivamente em um mercado aberto para produtos estrangeiros. A quebradeira de empresas após a era Collor criou um vácuo de mercado que foi ocupado tanto por multinacionais quanto por novas lideranças empresariais brasileiras. Boa parte desse novo empresariado fazia negócios tendo maior responsabilidade social e travando diálogos com o público interno (funcionários) e externo interessado na empresa (stakeholders). Note que é um período de transição: havia uma enorme quantidade de empresários alinhados com o velho modelo e uma leva pequena, mas crescente, de jovens empresários antenados com os ventos da mudança. A mentalidade dessa nova geração era de tomar decisões levando também em consideração os impactos sociais e ambientais. A contribuição da Câmara Americana de Comércio, em São Paulo (AmCham/SP), com o Prêmio Eco a partir de 1986, e do Grupo de Institutos, Fundações e Empresas (Gife), a partir de 1989, foienorme e faz parte da história da RSE no Brasil. Albuquerque (2006, p. 24) cita outras organizações que contribuíram (e algumas ainda contribuem) para a difusão e consolidação dos conceitos de RSE: • Fundação Instituto de Desenvolvimento Econômico e Social (Fundação Fides), que na década de 1980 possuía o nome de Instituto de Desenvolvimento Empresarial (IDE). • Pensamento Nacional das Bases Empresariais (PNBE), fundado em 1987, que se denominava como entidade empresarial não corporativa que tem como objetivo unir forças na luta por um país melhor. 20 AD M /C EC O Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 0/ 01 /2 01 9 Unidade I • Fundação Abrinq pelos Direitos da Criança, criada e mantida pela Associação Brasileira das Indústrias de Brinquedos. • Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas na luta contra a Aids, no início dos anos 1990. • Campanha da Ação da Cidadania, a partir de 1993. • Instituto Ethos de Responsabilidade Social, criado pelo empresário Oded Grajew em 1998. Exemplo de aplicação A maior parte das organizações listadas existe até os dias de hoje. Faça uma busca na internet e veja as enormes contribuições que fazem e fizeram. Você pode perceber que a partir da década de 1990 o Brasil passou a ter um número crescente de empresas e organizações que criaram ações efetivas de cunho social como parte de uma estratégia. O rico aprendizado da época gerou um bom número de profissionais experientes em ações do tipo, criando um novo mercado de trabalho. E, reforçando o que já discutimos, a divulgação sistemática das ações e resultados criou mais interesse no tema por parte do mercado. Note que esse processo histórico teve uma série de fatores correlacionados: • O interesse pessoal de alguns gestores cujos valores já apontavam o novo milênio. • A cobrança por parte da sociedade através de ONGs e Oscips. • As disputas de poder dentro das empresas, onde valores antigos foram confrontados por novos valores. • A necessidade do meio empresarial de adaptação às mudanças crescentes. Simultânea e paralelamente, catástrofes ambientais (já citadas) criaram um ambiente propício para discutir a mudança de valores. Historicamente, o mundo da década de 1990 criou na Academia e no meio empresarial uma disputa para determinar quais modelos de desenvolvimento são aplicáveis em função da derrocada do comunismo (um dos quais, como já discutimos, o modelo da RSE). No Brasil, a onda de privatizações levada a termo por Fernando Henrique Cardoso vendeu ao setor privado setores tradicionais de atuação estatal, como telefonia e mineração. Foi uma época de reafirmação da economia de mercado com a implantação de teorias administrativas muitas vezes antagônicas, fruto da renovação empresarial no Brasil. Há dois lados saudavelmente complementares nas ações corporativas no âmbito social e ambiental: o lado estritamente financeiro, ligado ao bom e velho lucro e à sobrevivência da empresa 21 AD M /C EC O Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 0/ 01 /2 01 9 RESPONSABILIDADE SOCIAL no longo prazo derivada de estratégias que inserem a RSE, e o lado ético e responsável que essas ações ajudam a desenvolver. É nesse caldeirão borbulhante de ideias e ações que a década de 1990 se insere, trazendo o fortalecimento no meio empresarial e acadêmico do termo responsabilidade social das empresas e de suas inúmeras derivações: • empresa socialmente responsável; • ética nas empresas; • balanço social das empresas; • filantropia empresarial; • empresa cidadã. Nossa tratativa neste livro-texto é de responsabilidade social empresarial (RSE). 2 FORMAS DE ATUAÇÃO EM RSE Há várias maneiras das organizações atuarem em prol da sociedade. Nelson (1998) contribuiu elencando três eixos distintos de atuação. 1 - Atuando eticamente em suas atividades produtivas (ambiente, políticas adequadas de recursos humanos, cooperação tecnológica, qualidade e gestão ambientais, maximização dos insumos, apoio ao desenvolvimento de empresas locais como fornecedores e distribuidores); 2 - Mediante investimento social, não apenas através de doações filantrópicas, mas também compartilhando capacidade gerencial e técnica, desenvolvendo programas de voluntariado empresarial, adotando iniciativas de marketing social, apoiando iniciativas de desenvolvimento comunitário; 3 - Mediante contribuição ao debate sobre políticas públicas, colaborando no desenvolvimento de políticas fiscais, educacionais, produtivas, ambientais e outras (NELSON, 1998, p. 6). Note que o primeiro eixo aborda as questões internas da organização; o segundo, as questões da comunidade; e o terceiro, as questões gerais do país. Claro que esse modelo veio a ter acréscimos de maneiras alternativas: filantropia individual de acionistas ou investidores, patrocínios diversos de ações promovidas por organizações do Terceiro Setor, campanhas promocionais voltadas a uma causa, doações, incentivo a funcionários, parceiros e fornecedores se engajarem em ações sociais e outras. 22 AD M /C EC O Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 0/ 01 /2 01 9 Unidade I 2.1 Filantropia No Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (2009), o termo filantropia pode ser entendido como desprendimento, generosidade para com outrem; caridade. Filantropia feita por organizações, como doar mantimentos para refugiados, é simplesmente um ato passivo, já que não há envolvimento ativo com a resolução dos problemas sociais. A filantropia feita por empresas tem por desenho o assistencialismo. Pode ser recorrente, como a doação mensal de dez caixas de luvas descartáveis para a Santa Casa local, e também pode ser eventual, tendo por exemplo uma padaria doar pães para os refugiados de guerra que acabaram de chegar na cidade. Assim, na filantropia empresarial recorrente, a empresa doa (ou organiza o processo de coleta e doação) comida, roupa, remédios etc. em regime frequente. Já a filantropia empresarial eventual acontece em função de externalidades através de ajuda pontual a populações vulneráveis (SCHVARSTEIN, 2003). Podemos notar que a filantropia em si não é considerada importante para os objetivos organizacionais: É muito pequeno o interesse dos empresários em conhecer os impactos das ações sociais apoiadas ou de dar publicidade as mesmas. A beneficência tradicional recomenda o “anonimato do verdadeiro filantropo”: não é de bom tom tornar público o que se faz. O retorno da ação social é, no geral, percebido no campo da gratificação pessoal e, por isso, não se tem ideia e nem interesse em calcular ou dimensionar qualquer relação custo/benefício decorrente dessa ação (BEGHIN, 2001, p. 7). Agir de maneira filantrópica tem méritos indiscutíveis, mas não traz desdobramentos práticos para a empresa. Uma coisa é dar o peixe, e outra é ensinar a pescar. Uma vez que ocorre circunstancialmente, a filantropia pode criar expectativas de que ocorra novamente e com isso gerar uma certa dependência. Note que a filantropia assistencialista na prática reduz os efeitos, mas não ataca as causas. Ou seja, na filantropia, a relação entre empresa doadora e entidade receptora termina com a doação. Há uma clássica charge de Henfil (cartunista, jornalista e escritor brasileiro, morto em 1988) em que a personagem Fradinho observa um colega dar esmola a um pedinte e pergunta: “Você aplaca sua consciência com moedinhas de 10 ou 50?”, evidenciando a desconexão entre doador e receptor da filantropia. Quando passamos para a responsabilidade social, a doação, se ocorrer, é simplesmente o ponto de partida. A filantropia muitas vezes é uma espécie de compensação moralem função de atividades paralelas pouco éticas. Em outras palavras, há empresários que acham que podem “limpar a barra” agindo de maneira assistencialista. De certa forma, é o equivalente às ações beneméritas do personagem Don Corleone, do livro (e filme homônimo) O Poderoso Chefão (PUZO, 1969), que ajuda de maneira benevolente a vizinhança e comete crimes terríveis como meio de vida. Exageros à parte, não é incomum vermos organizações altamente poluidoras patrocinarem projetos sociais exatamente por uma questão de imagem. 23 AD M /C EC O Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 0/ 01 /2 01 9 RESPONSABILIDADE SOCIAL 2.2 Empresa cidadã ou cidadania corporativa Cidadania corporativa é um conceito que expressa uma nova consciência em relação aos investimentos sociais feitos pelas empresas. Se a antiga noção de empresa social parece estar desacreditada, por carecer de embasamento conceitual e aceitação pela sociedade, a nova concepção, que se pode chamar de empresa cidadã, ganha número de adeptos cada vez maior, não apenas nos países industrializados, mas nos principais países emergentes (ALVES, 2001, p. 80). O exercício da cidadania empresarial é fruto das ações internas e externas de responsabilidade social desenvolvidas pela empresa. A responsabilidade social interna tem referência nas ações junto a colaboradores e clientes internos. Os esforços da organização no sentido de prover um ecossistema sadio para as atividades de trabalho, indo além do que preconiza a lei e efetivamente gerando a satisfação do público interno, têm foco na responsabilidade social interna. O acréscimo conceitual da responsabilidade social interna à externa cria o ambiente para a cidadania corporativa ou empresarial. Perceba que a definição de responsabilidade social está inserida na de cidadania empresarial. Assim, a cidadania empresarial tem condições de ser considerada uma etapa mais avançada da Responsabilidade Social. “A nova postura da empresa cidadã baseada no resgate de princípios éticos e morais passou a ter natureza estratégica” (BALDO, 2002). Alves (2001) afirma que vários autores envolvidos no tema não chegaram a uma definição unívoca de cidadania corporativa, sendo possível encontrar as expressões responsabilidade social corporativa, cidadania empresarial, ética corporativa e até mesmo governança cidadã – essa última normalmente associada à gestão pública. Leipzinger (1998), por exemplo, discute cidadania corporativa tendo por base a cidadania individual nas dimensões prática e ética, focando na utilização da competência organizacional para assegurar o futuro protegendo a reputação e refletindo os anseios da comunidade. Carroll (1999) sugere que os conceitos de cidadania corporativa e responsabilidade social empresarial sejam convergentes. 2.2.1 Cidadania corporativa Samsung A Samsung, gigante coreana com produtos nas linhas de eletroeletrônicos, divulga publicamente suas práticas e valores de Cidadania Corporativa: Buscamos criar mudanças positivas através de programas de cidadania corporativa baseados em necessidades sociais globais e alinhadas com nossas principais competências como uma empresa de tecnologia líder global. 24 AD M /C EC O Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 0/ 01 /2 01 9 Unidade I Educação - Em 2017, apoiamos mais de 2 milhões de alunos de mais de 1.200 escolas em 48 países. Buscamos colaborar na educação local e apoiar o desenvolvimento de talentos criativos ao oferecer um ambiente educacional inteligente facilitado por novas tecnologias. A Samsung fornece treinamento de programa de software para os alunos receber educação de qualidade através de um ambiente educacional positivo com equipamentos de TI e conteúdo sob medida para as necessidades locais. Emprego e comunidade - Em 2017, apoiamos mais de 27 mil jovens de mais de 244 institutos em 50 países. Contribuímos para a criação de empregos ao fornecer treinamento vocacional de TI em cooperação com autoridades educacionais e governos locais. Os institutos técnicos oferecem cursos diferenciados de acordo com as condições específicas do país: eles são focados em fomentar mão de obra de software em alguns países com TI avançada e engenheiros de atendimento ao cliente em países em desenvolvimento de acordo com as necessidades de cada país. Apoio médico e de saúde - Ajudamos as pessoas a terem vidas mais saudáveis ao oferecer experiência tecnológica para proporcionar melhor acesso a soluções e serviços de saúde. Em 2017, apoiamos 101 escolas e centros com mais de 180 mil alunos e moradores em 8 países (SAMSUNG, [s.d.]). 2.2.2 Cidadania corporativa PepsiCo Companhia líder no setor de alimentos e bebidas, a PepsiCo apresenta suas práticas de cidadania corporativa: Projetos Incentivados - No Brasil, a PepsiCo apoia uma série de projetos voltados para a educação, prática esportiva, sustentabilidade e cultura temas de fundamental relevância para a empresa e a sociedade. Exemplos: Mostra Ecofalante de Cinema Ambiental como parte de suas ações de conscientização sobre reciclagem, projeto de iniciação esportiva da fundação EPROCAD, e Expo Catadores, evento anual que promove a reciclagem de materiais e a valorização dos catadores, profissionais de fundamental importância na cadeia de gestão de resíduos sólidos. Voluntariado Corporativo - O projeto Transformando Comunidades tem como objetivo o voluntariado corporativo. Com a participação de nossos colaboradores, o projeto se espalhou pelo país, atendendo a diversas organizações sociais, nos pilares: desenvolvimento social, educação e esporte. Suporte Humanitário - As causas humanitárias também são nossa causa, e através da doação de produtos realizadas via Mesa Brasil, a PepsiCo e a PepsiCo Foundation colaboram com as comunidades (PEPSICO, [s.d.]). 25 AD M /C EC O Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 0/ 01 /2 01 9 RESPONSABILIDADE SOCIAL 2.2.3 Cidadania Corporativa IBM A IBM, global player relevante no mundo da informática, reforça seus valores sobre a prática da cidadania corporativa: A IBM segue os mais altos padrões de responsabilidade corporativa em todas as ações – no apoio e treinamento de funcionários, no trabalho com clientes e na governança de nossa empresa. Colaboramos com uma ampla gama de parceiros, aplicando conhecimento, tecnologia e inovação para ajudar nos desafios da sociedade com soluções de impacto. Diversidade e inclusão - Nosso compromisso de longo prazo vai além de práticas de contratação justas, e está focado em como pessoas únicas e diversas criam um todo integrado e inovador. Bem-estar dos funcionários - Nosso sistema de gestão de saúde reflete um compromisso com o funcionário do início ao fim - no trabalho, em casa e como membro de uma comunidade. Desenvolvimento de liderança - A liderança é para todos os IBMistas. Nosso foco em desenvolver líderes tem o objetivo de transformar programas para atender às necessidades e requisitos do mundo que está em constante transformação (IBM, [s.d.]). Note que a IBM defende seu negócio incentivando ações que propiciem impactos positivos em vários públicos. Perceba o detalhe: a cidadania corporativa é parte da estratégia da companhia. Saiba mais O mais recente Relatório de Cidadania Corporativa Global da IBM disponível em português é de 2016: IBM. Cidadania corporativa. 2016. Disponível em: <https://www.ibm. com/ibm/responsibility/br-pt/downloads/cidadaniacorporativa2016.pdf>. Acesso em: 8 jan. 2019. Em inglês, o Relatório de Cidadania Corporativa Global da IBM é de 2017: IBM. 2017 Corporate Responsibility Report. 2017. Disponível em: <https://www.ibm.com/ibm/responsibility/2017/>.Acesso em: 20 dez. 2018. 26 AD M /C EC O Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 0/ 01 /2 01 9 Unidade I 2.3 Desenvolvimento sustentável Nos últimos anos ficou evidente o quanto os recursos naturais são limitados e que historicamente os países desenvolvidos os exploraram para promover o seu desenvolvimento sem levar em consideração o impacto no planeta. Inicialmente, a comunidade acadêmica e, em seguida, algumas lideranças representativas alertaram que era necessário repensar os critérios de desenvolvimento mundial. Ou seja, as estratégias e as práticas adotadas no sentido do desenvolvimento econômico não poderiam ser totalmente autônomas e nem serem idênticas para todos os Estados. A sociedade de consumo dos países desenvolvidos atua no exagero de aquisição e acumulação de produtos, criando uma situação permanente de desperdício e deixando um legado de poluição e poucos recursos para as futuras gerações. Em situação oposta, os países em desenvolvimento não conseguem usufruir de seus recursos naturais de forma sustentável e são naturalmente explorados por agentes econômicos desinteressados no bem-estar da população local. Esta desigualdade entre países pobres e ricos incentivou a elaboração do relatório Nosso Futuro Comum, uma visão crítica do modelo de desenvolvimento utilizado pelos países do primeiro mundo e copiado por países em vias de desenvolvimento. Brundtland (1987) explica que a Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento da ONU, responsável pelo relatório, define como desenvolvimento sustentável “o desenvolvimento que satisfaz as necessidades presentes, sem comprometer a capacidade das gerações futuras de suprir suas próprias necessidades”. O relatório ressalta que o objetivo do desenvolvimento é atender necessidades e aspirações humanas, e que dentro do conceito de necessidade, é preciso priorizar o atendimento das necessidades básicas das populações mais carentes. Assim, a proposta do Relatório no sentido de Desenvolvimento Sustentável envolve integrar uma sociedade menos desigual ao desenvolvimento econômico e proteção do ecossistema. O Relatório propõe o atendimento das necessidades e aspirações humanas por meio de um processo de transformação no qual a exploração dos recursos, a direção dos investimentos, a orientação do desenvolvimento tecnológico e a mudança institucional sejam convergentes utilizando o potencial presente e preservando o potencial futuro. Agora, um ponto de reflexão: o Relatório é de 1987, e quase trinta anos depois ainda estamos discutindo a aplicação de desenvolvimento sustentável! Veja como o mundo muda rapidamente em alguns aspectos (tecnologia, por exemplo), mas como é lento em absorver e promover outras mudanças. Na discussão acadêmica sobre o tema, é impossível não citar Ignacy Sachs, polonês formado em Economia no Brasil e com brilhante carreira internacional. Sachs, através de suas publicações, lançou muitos anos atrás os principais fundamentos para discutir novos paradigmas de desenvolvimento na intersecção entre Economia, Ecologia e Ciência Política. Sachs (2004) contribui mostrando que o conceito de Desenvolvimento Sustentável é baseado na solidariedade tanto com a geração atual quanto com as gerações futuras. Ou seja, tem sincronia com 27 AD M /C EC O Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 0/ 01 /2 01 9 RESPONSABILIDADE SOCIAL uma determinada fase/época (o hoje) e tem diacronia (as mudanças ocorridas através do tempo) com o futuro. Se refletirmos na aplicação, temos que: • o desenvolvimento sustentável deve ser solidário com a população atual e atender suas demandas; e • o desenvolvimento sustentável deve ser solidário com a população futura e dar condições para que suas demandas possam ser atendidas. Na prática, Sachs nos força a pensar em escalas múltiplas de tempo e espaço, o que desarruma a “caixa de ferramentas” dos acadêmicos convencionais. Observação Caixa de ferramentas (toolbox) é uma figura de linguagem que designa o conjunto de teorias, significados e paradigmas que uma pessoa utiliza ao elaborar seu pensamento, ou seja, é uma metáfora da caixa de ferramentas de onde se tira a chave de fenda para apertar um parafuso. O autor ressalta que cada país tem sua própria base de valores culturais e que estes devem ser considerados ao se planejar o desenvolvimento em bases sustentáveis. Assim, não seria possível ter um modelo padronizado para aplicação. Com efeito, há uma grande diversidade socioeconômica e cultural, além de acesso a recursos naturais, em termos regionais em diferentes regiões do globo. Se pensarmos bem, essa diversidade se manifesta mesmo em microrregiões! Por exemplo, as cidades de Santos e São Paulo distam somente 80 quilômetros entre si, mas as diferenças sociais, econômicas e culturais são bem claras, e os recursos que cada cidade tem também são diferentes, o que leva a demandas sociais em muitos casos bastante específicas. Alongando o raciocínio, dentro da mesma cidade há microrregiões/bairros bastante diversos. Sachs (2004) argumenta que essa diversidade inviabiliza a criação e implantação de estratégias genéricas de desenvolvimento. Para ter maior chance de funcionar, essas estratégias devem resolver os problemas mais importantes e atender aos aspectos aspiracionais de cada localidade, sobrepujando as barreiras que obstruem a utilização de recursos (tanto potenciais quanto existentes) e incentivando o uso da criatividade e imaginação da sociedade local. Sob o ponto de vista da Sociologia, é preciso garantir a participação de todos os atores sociais envolvidos no processo de desenvolvimento, a saber: trabalhadores, empresas, Estado e sociedade civil. Há cinco pilares básicos do desenvolvimento sustentável: • O pilar social, “fundamental por motivos tanto intrínsecos quanto instrumentais, por causa da perspectiva de disrupção social que paira de forma ameaçadora sobre muitos lugares problemáticos do nosso planeta” (SACHS, 2004, p. 15), inclui não somente as populações que convivem nas diversas localidades do planeta, mas as relações entre si e as perspectivas derivadas dessas 28 AD M /C EC O Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 0/ 01 /2 01 9 Unidade I relações. Assim, esse pilar inclui, por exemplo, a população da Cidade do México, considerada uma das cidades com maior poluição do ar do mundo, e também as perspectivas de comoção social oriundas de problemas respiratórios. • O pilar ambiental, “com as suas duas dimensões: os sistemas de sustentação da vida como provedores de recursos e como ‘recipientes’ para a disposição dos resíduos” (SACHS, 2004, p. 15), é considerado tanto como origem de recursos quanto como destino do descarte dos materiais. Por exemplo, o minério de ferro é matéria-prima importante, pois é a base do aço, mas os rejeitos de sua exploração geram um passivo ambiental. • O pilar territorial, “relacionado à distribuição espacial dos recursos, das populações e das atividades” (SACHS, 2004, p. 15), abarca a geografia e a demografia: onde há recursos, onde estão as populações e onde estão as atividades econômicas. Assim, nesse pilar podemos incluir o entendimento da região amazônica em termos de recursos (madeira, minérios, água, bioma etc.), de população (concentração e dispersão das pessoas em diversos locais) e de atividades econômicas (madeireiras legais e ilegais, fábricas, agronegócio, pequenas propriedades rurais etc.). • O pilar econômico, “sendo a viabilidade econômica a condição sine qua non para que as coisas aconteçam” (SACHS, 2004, p. 16), trata da possibilidade de geração de valor das atividades atuais e potenciais nas regiões.• Por fim, o pilar político, para o qual “a governança democrática é um valor fundador e um instrumento necessário para fazer as coisas acontecerem; a liberdade faz toda a diferença” (SACHS, 2004, p. 16), aborda as diferentes expressões e aplicações de poder, sendo que a democracia e a liberdade são condições básicas para o Desenvolvimento Sustentável. É interessante perceber que toda a discussão sobre desenvolvimento sustentável é fácil de entender. Porém, há inúmeros obstáculos na sua aplicação. O conceito de desenvolvimento, na forma como é compreendido hoje em dia, precisa avançar e incluir mais tópicos além do econômico/financeiro, e é preciso o comprometimento coletivo das nações. Souza (2006) contribui para a discussão: “Pouco importa a vitória de um determinado país na implantação do desenvolvimento sustentável se seus vizinhos continuam adotando práticas predatórias ao meio ambiente e à sociedade”. Extrapolando, a autora visualiza o conceito de desenvolvimento sustentável em três níveis de cooperação: nacional, internacional e intertemporal. • A cooperação nacional é resultado da discussão e implantação de ações por parte dos interessados de cada país para obter um modelo de desenvolvimento adequado à sustentabilidade. • A cooperação internacional amplia a discussão e implantação de ações para uma escala global. É necessário diálogo e cooperação entre os Estados. 29 AD M /C EC O Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 0/ 01 /2 01 9 RESPONSABILIDADE SOCIAL • A cooperação intertemporal incorpora na discussão o legado e se traduz na qualidade ambiental e social que será deixada para as gerações vindouras. Assim, para implantar projetos efetivos de desenvolvimento sustentável é preciso tanto estratégias nacionais específicas de cada país quanto cooperação internacional, fruto da implantação de estratégias nacionais e da solidariedade de propósitos entre as nações tendo por meta o bem-estar das gerações atuais e futuras. Para as estratégias nacionais, Sachs (2004) postula que é preciso reconhecer que não existe uma fórmula padronizada para o desenvolvimento. As metas de desenvolvimento sustentável devem ser estabelecidas por cada Estado em função de suas peculiaridades, sendo que reproduzir soluções de outros países pode não ser uma boa ideia. Por exemplo, há problemas ambientais de países em desenvolvimento causados pela disseminação da pobreza (imagine uma população vivendo à beira de um lixão e tirando deste seu sustento), enquanto nos países ricos uma boa parte dos conflitos ambientais tem origem no excesso de produção/consumo (pense no passivo ambiental representado pelo descarte de milhões de unidades de smartphones na América do Norte). Em termos de planejamento, as soluções de cada país devem contribuir para a melhoria da qualidade de vida no planeta e não apenas na própria região, e há controvérsias em torno do conceito e da aplicação de desenvolvimento sustentável, bem como posições antagônicas que dificultam sua implantação em escala global. Basta lembrar que há um grande contingente de líderes de expressão internacional que não admitem os efeitos deletérios, para as gerações vindouras, da poluição e da coleta desenfreada de recursos naturais, e mesmo os líderes que aceitam o conceito de desenvolvimento sustentável sofrem uma série de pressões políticas e econômicas para amenizar suas decisões nesse assunto. Se assumirmos a posição de países desenvolvidos, o discurso e o foco são em torno de ações dirigidas à conservação. E se enxergarmos o mundo pela ótica dos países em desenvolvimento, o que interessa é o crescimento econômico. Ainda, se levarmos em consideração a assimetria de interesses entre países ricos e pobres, antes de pensar nas gerações futuras precisamos entender que a satisfação das necessidades atuais dos países ricos não pode prejudicar o atendimento das necessidades atuais (e futuras) dos países pobres. O programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento de 1992 (DECLARAÇÃO..., 1992) divulgou estes princípios do desenvolvimento sustentável: • O desenvolvimento sustentável deve conceder prioridade aos seres humanos. O ser humano, para se desenvolver, precisa do meio ambiente, e este deve ser protegido. Portanto, é preciso garantir a viabilidade dos ecossistemas e sua biodiversidade no curto, médio e longo prazos, uma vez que deles depende toda a vida na Terra. • Os países em desenvolvimento não podem escolher entre crescimento econômico e proteção ambiental. Crescer é uma obrigação, mas com o tipo certo de crescimento. • Cada país deverá fixar suas próprias prioridades ambientais. Essas prioridades frequentemente serão diferentes nos países industrializados e nos países em desenvolvimento. 30 AD M /C EC O Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 0/ 01 /2 01 9 Unidade I Indicadores econômicos como PIB per capita são importantes para mensurar o desenvolvimento, mas é igualmente essencial estudar e avaliar outras variáveis como o acesso ao emprego, a penetração da educação, a oferta de serviços de saúde etc. Observação PIB (produto interno bruto) é a soma do valor de todos os bens e serviços finais produzidos nos países em um determinado ano. O PIB per capita é o PIB do país, na moeda local, convertido em dólares americanos dividido pela população do país no mesmo ano. Assim, mesmo que o valor nominal do PIB cresça de um ano para o outro, se a população crescer mais (em percentuais), o PIB per capita diminui. Outros valores que devem ser levados em consideração para discutir desenvolvimento incluem justiça social, igualdade racial e étnica, liberdade religiosa e política, respeito aos direitos humanos e outros. Barbosa (2008) contribui afirmando que o desenvolvimento sustentável deve ser uma consequência do desenvolvimento social e econômico e da preservação ambiental. Justiça socioambiental Desenvolvimento sustentável Desenvolvimento social Desenvolvimento econômico Inclusão social Ecoeficiência Preservação e conservação ambiental Figura 4 – Parâmetros para se alcançar o desenvolvimento sustentável O desenvolvimento sustentável inclui transformações econômicas, culturais e políticas e requer modificação dos meios de produção, de distribuição e de consumo. O desenvolvimento sustentável é crescer de forma diferente partindo de: • evoluções tecnológicas que permitam fazer mais com menos; • ordenamento social que inclua os excluídos; 31 AD M /C EC O Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 0/ 01 /2 01 9 RESPONSABILIDADE SOCIAL • práticas sociais que promovam a participação democrática nas discussões e deliberações sobre o tema; • remodelação institucional do marco legal e regulatório; e • ordem internacional mais equilibrada. Dá para intuir que o desenvolvimento sustentável não é o objetivo, e sim o processo que transforma os inputs em outputs e se retroalimenta para transformar novos inputs em novos outputs. Como forças contrárias a esse processo, podemos citar: • Os processos tradicionais de exploração dos recursos – em grande parte poluentes e geradoras de riqueza somente para os stockholders. Não se trata de socializar os meios de produção, muito pelo contrário; trata-se de explorar a natureza de maneira consciente, gerando valor para stakeholders também. Por exemplo, uma hidrelétrica pode representar solução para problemas energéticos ao mesmo tempo que representa problemas para a população humana residente, bem como para a biodiversidade da região alagada. O projeto só se justifica se esses problemas forem sanados com melhoria de vida efetiva para os afetados. • A