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Curso de DIREITO DE FAMÍLIA contemporâneo Conrado Paulino da Rosa 2016 Rosa-Curso de Direito de Familia Contemporaneo-1ed.indb 3 11/05/2016 10:05:03 A melhor forma de entendermos o presente é a partir das experiên- cias das gerações que nos antecederam. Assim, partindo do escrito de Fustel de Coulanges, na obra “A Cidade Antiga”, faremos a análise da fa- mília através dos tempos. Verificaremos que, na família antiga, o espaço privado não sofria in- fluências externas, de modo que cabia à família a gestão autônoma de seus conflitos por meio do chefe da entidade. Ultrapassada essa época, será possível observarmos a crescente intervenção estatal na vida privada, para, então, examinarmos se essa interferência tem sido suficiente frente às modificações ocorridas no seio familiar. Por fim, abordaremos o atual estágio da família contemporânea, a partir do desenho americano que es- tá presente em nossas televisões há mais de uma década: Os Simpsons. 1.1. A FAMÍLIA ATRAVÉS DOS TEMPOS: DA GESTÃO MASCULI- NA AUTÔNOMA À INGERÊNCIA ESTATAL Por meio da análise da família greco-romana, berço da civilização, é possível entender a dinâmica das entidades familiares ao longo dos sé- culos. Como pilar da família antiga, identificamos a religião, porém, não uma religiosidade como a que, contemporaneamente, experimentamos, principalmente em razão da grande influência do cristianismo em nossa sociedade atual. Naquela, o culto era realizado não apenas a um ser em especial, mas a todos os antepassados da família, que fazia as oferendas Introdução ao Direito de Família1 Rosa-Curso de Direito de Familia Contemporaneo-1ed.indb 21 11/05/2016 10:05:04 22 Curso de Direito de Família Contemporâneo – Conrado Paulino da Rosa em cerimônias restritas aos seus membros. Tal prática era designada pelos gregos como pratiázein, e os latinos chamavam-lhe de parentare. Uma das justificativas para tal prática decorre do fato de que, entre os antigos, não havia ainda a ideia da criação; por isso, para seus homens, o mistério da geração lhes aparecia como aquilo que o mistério da criação pode representar para nós. “O gerador surgia-lhes como ente divino e, por isso, o adoravam nos seus antepassados”1. A família grega era designada pela palavra eístion, o que significa “aquilo que está junto ao fogo sagrado”. Dessa forma, segundo Fustel de Coulanges, era caracterizada como “um grupo de pessoas a quem a reli- gião permitia invocar os mesmos manes e oferecer banquete fúnebre aos mesmos antepassados”. Tinha como base o poder paterno sustentado pelo culto religioso. O morto que não havia deixado filhos era “condenado à fome perpétua”. A indissolubilidade das entidades familiares tem seu princípio com essa tra- dição, vez que “havia troca perpétua de favores entre os vivos e os mortos de cada família: o antepassado recebia dos seus descendentes uma série de banquetes fúnebres, únicos prazeres usufruídos na segunda vida” e o descendente, por sua vez, alcançava do antepassado o auxílio e a força de que necessitava em vida. Logo, o vivo não poderia passar sem o morto, nem este sem aquele. Por esse motivo, poderoso laço se estabelecia, unin- do todas as gerações de uma mesma família, constituindo-a em um corpo eternamente inseparável2. Cada casa possuía seu altar e, “em volta desse altar, a família reu- nida”3. Dessa maneira, todas as manhãs, a família ali se encontrava para dirigir ao fogo sagrado as suas primeiras preces e, toda noite, no mesmo local, invocava-o mais uma vez. No transcorrer do dia, junto dele, compa- recia para dividir o repasto sempre depois da oração, entoando hinos que seus pais deixaram como legado. Em tempos remotos, o túmulo onde os antecessores da família re- pousavam ficava no centro da casa. Assim, “o antepassado vivia no seio dos seus familiares; invisível, mas sempre presente, propício, divino”. Mais tarde, o túmulo passou para o lado externo da residência, em cam- 1. COULANGES, Fustel de. A cidade antiga. Tradução de Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca. 6. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996, p. 26. 2. Ibid., p. 26. 3. Ibid., p. 28. Rosa-Curso de Direito de Familia Contemporaneo-1ed.indb 22 11/05/2016 10:05:04 1. INTRODUÇÃO AO DIREITO DE FAMÍLIA 23 po vizinho, contudo o mais próximo possível de casa. Como “segunda morada da família”, nele repousavam várias gerações de antepassados que a morte não separou, pois continuam vinculados entre si nesta se- gunda existência4. Nem o nascimento nem o afeto apresentavam-se como alicerces, pois “o que unia os membros da família antiga era algo mais poderoso que o nascimento, o sentimento ou a força física”; todo o poder dessa ins- tituição se encontrava “na religião do lar dos antepassados. A religião fez com que a família formasse um só corpo nesta e na outra vida”. Assim, “a família antiga seria, pois, uma associação religiosa, mais que associação natural”5. A entidade familiar mantinha-se unida em função da religião pra- ticada, que passava de pai para filho e que era absorvida pelas novas ge- rações, em toda sua riqueza de detalhes. Quem praticava os rituais era o homem, aquele que possuía poderes ilimitados, que poderiam ser ex- postos através de uma série de costumes. Essa religião doméstica estabe- leceu como primeira instituição o casamento, através do qual se poderia perpetuar o culto aos antepassados, por meio da prole que dele adviesse. Nesse momento, a mulher assume papel importante como mãe (só esse papel lhe era delegado e ela deveria desempenhá-lo com eficiência) da- queles que manteriam o fogo acesso, repetiriam as orações e cultuariam os mortos6. A origem da família antiga não se limitava à descendência, mas à va- ronilidade, pois irmã, na família, não se igualava a irmão e filho emanci- pado ou filha casada deixavam de fazer parte da família7. Enquanto estava no lar paterno, a mulher participava dos cultos familiares; contudo, ao casar-se, “vai deixar o deus da sua infância para se colocar sob o império de um deus até então desconhecido”8. 4. Ibid, p. 29. 5. Ibid., p. 29. 6. SPENGLER, Fabiana Marion. A desinstitucionalização da família e a prática da me- diação familiar no Brasil. In: Maria Berenice Dias. (Org.). Direito das famílias. Contri- buto do IBDFAM em homenagem a Rodrigo da Cunha Pereira. 1 ed. São Paulo: RT, 2009, v. 1, p. 282. 7. COSTA, Maria Aracy Menezes da. Os limites da obrigação alimentar dos avós. Porto Ale- gre: Livraria do Advogado, 2011, p. 23. 8. COULANGES, Fustel. A cidade antiga. Tradução de Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca. 6. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996, p. 31. Rosa-Curso de Direito de Familia Contemporaneo-1ed.indb 23 11/05/2016 10:05:04 24 Curso de Direito de Família Contemporâneo – Conrado Paulino da Rosa A cerimônia não tinha lugar no templo, mas em casa, sendo o deus doméstico quem presidia o ato9. Logo após, o casal era conduzido ao novo lar; todavia, a jovem não entrava por si mesma na nova habitação: mos- trava-se preciso que o marido simulasse um rapto e, após alguns gritos e uma “tentativa” de defesa das mulheres que a acompanham, o esposo adentrasse a residência. Tal atitude possuía o significado de que, no novo lar, essa mulher não teria, por si própria, nenhum direito, estando sujeita à vontade do senhor do lugar e do deus que lá a introduziu à força. No momento da entrada no lar, o esposo era obrigado a ter uma iniciativa que, até os dias atuais, é repetida: o nubente erguia a mulher em seus braços para atravessar a porta da casa. Contemporaneamente, essa atitude representa romantismo e, em média, faz parte do sonho de 10 em cada 10 daqueles que ainda não celebraram as bodas. Por outro lado, pou- cos sabem que, na verdade, o ato tem em sua origem a representação da dominação do homem. Como a casa era uma religião doméstica, a jovem, enquanto não fosse finalizada a cerimônia, não possuía dignidade para que seus pés tocassem aquele chão, que era sagrado. Logo após, diante do fogo sagrado,era aspergida com a água lustral e tocava o fogo sagrado. Após orações, o final da celebração ocorria no momento em que os dois esposos dividiam entre si um bolo, um pão e algumas frutas, o que os colocava em comunhão religiosa entre si e em comunhão com os deuses domésticos. Do ponto de vista prático, o casamento se assentava em um acordo formal entre o noivo e o pai da noiva, que incluía, inclusive, o pagamento de um dote por parte do pai. Essa forma de união conjugal não levava em consideração a vontade da noiva nem dependia de seu consentimento para ser celebrada. Em outras palavras, a mulher era dada pelo pai ao marido, representando, consequentemente, uma simples transferência de casa e, sem dúvida, de senhor10. 9. “O casamento romano assemelha-se muito ao casamento grego, e como este com- preendia os mesmos três atos: traditio, deductio in domun, confarreatio”. (grifo do au- tor) (COULANGES, op. cit., p.32-33). 10. “A cerimônia dessa doação consistia em um cortejo noturno, acompanhado por pa- rentes e amigos, que ia de uma casa a outra, a pé ou em carros puxados por cavalos. As pinturas da época procuram representar esse cerimonial por uma porta de saída em que a noiva era entregue e uma porta de chegada em que ela era recebida, como se tudo se passasse, como se diz, ‘de porta a porta’. O cortejo nupcial garantia a publi- cidade do casamento (representado, atualmente, pelos proclamas), e os participan- tes constituíam as suas testemunhas. Como agora, a noiva recebia dos pais o enxoval Rosa-Curso de Direito de Familia Contemporaneo-1ed.indb 24 11/05/2016 10:05:04 1. INTRODUÇÃO AO DIREITO DE FAMÍLIA 25 A instituição era obrigatória e não tinha por finalidade o prazer. A união conjugal era algo mais do que “união de sexos ou afeto passageiro, ao unirem-se dois esposos pelo laço poderoso do mesmo culto e das mes- mas crenças”11. A mulher passava do culto da família de origem, ou seja, do pai, para o culto da família do marido. Provavelmente, é essa a origem do acréscimo do nome da família do marido ao nome da mulher12. Depois do casamento, era aos antepassados de seu marido que a es- posa deveria levar suas oferendas, uma vez que eles passavam a ser sua família e se tornaram, portanto, seus antepassados. Assim, o casamento dá a essa mulher um “segundo nascimento”13. O principal efeito do casamento consistia na união de dois seres no mesmo culto doméstico, fazendo deles nascer um terceiro a perpetuar es- se culto. Sob qualquer hipótese, a família poderia extinguir-se, cedendo o afeto e o direito natural a qualquer obstáculo que pudesse impedir tal regramento. Dessa forma, em casos de esterilidade masculina, “um irmão ou parente do marido devia substituí-lo, e a mulher era obrigada a entre- gar-se a esse homem, sendo impedida de se divorciar. A criança gerada dessa união seria considerada como filha do marido e continuadora do seu culto”14. O celibato era considerado, em primeiro lugar, como impiedade gra- ve, uma vez que o celibatário colocava em jogo a felicidade dos manes de sua família. Além disso, era também considerado uma “desgraça”, porque o celibatário não deveria receber nenhum culto após a morte. Tendo em vista que caberia aos descendentes a oferta da refeição fúnebre, se as ofe- rendas fossem interrompidas, o morto cairia em infelicidade e, com isso, passaria à categoria de demônio, desgraçado e malfazejo. Naquele momento histórico, a sociedade não acreditava, ainda, em recompensas nem em castigos post-mortem; julgava que a felicidade do morto dependeria não da conduta do homem durante sua vida, mas e dos parentes e amigos os presentes, como flores e objetos decorativos.” (COSTA, Gley P. O amor e seus labirintos. Porto Alegre: Artmed, 2007, p. 21). 11. COULANGES, Fustel. A cidade antiga. Tradução de Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca. 6. ed. Rio de Janeiro: Ediouro,1996, p. 33. 12. COSTA, Gley P. O amor e seus labirintos. Porto Alegre: Artmed, 2007, p. 21. 13. COULANGES, Fustel. A cidade antiga. Tradução de Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca. 6. ed. Rio de Janeiro: Ediouro,1996, p. 33. 14. Ibid, p. 37. Rosa-Curso de Direito de Familia Contemporaneo-1ed.indb 25 11/05/2016 10:05:04 26 Curso de Direito de Família Contemporâneo – Conrado Paulino da Rosa daquela de seus descendentes em relação a ele, depois de sua morte. Por isso, cada pai esperava de sua posteridade aquela série de banquetes fúnebres que assegurasse a seus manes repouso e felicidade. “O homem não se pertencia a si mesmo; pertencia à família. Era parte de uma série, tornando-se obrigatório que essa sequência não se interrompesse com ele.”15 Sendo um contrato apenas para perpetuar a família, o casamento po- dia ser anulado no caso de esterilidade da mulher. Além disso, o divórcio, nessa situação, foi sempre, entre os antigos, um direito, sendo até mesmo provável que tenha sido até obrigação16. Outrossim, como meio de “fu- gir à tão temida desgraça de sua extinção”, a entidade familiar sem filhos poderia socorrer-se do instituto da adoção. “O filho adotivo renunciava ao culto da religião de sua família. Nada mais tinha em comum com o lar onde nascera e não podia oferecer o banquete fúnebre a seus legítimos antepassados”17. Contudo, não era a simples presença de prole que satisfazia o objeti- vo do casamento. Necessariamente, cada família precisava de um menino como “salvador do lar paterno”18. Isso se dava porque uma filha não podia dar sequência ao culto, vez que “no dia em que casasse, renunciaria à fa- mília e ao culto de seu pai, passando a pertencer à família e à religião do marido”19. A autoridade máxima era atribuída ao pai, que tinha poder ilimitado, tendo como fundamento o culto religioso, uma vez que ele é o “primeiro junto ao fogo sagrado; é quem o acende e o conserva; é o seu pontífi- ce”. Quando a morte chegar, será ele um ser divino a ser invocado pelos descendentes20. Destaca-se que o poder paterno “só era limitado quando 15. Ibid, p. 37. 16. Mesmo quando viúva, a mulher não podia emancipar-se, nem adotar. Não podia ser tutora nem mesmo de seus filhos. Em caso de divórcio, os filhos e as filhas ficavam com o pai. (COULANGES, op. cit., p. 36). 17. Ibid., p. 39. 18. Tal qual recentemente vivenciávamos, a prole deveria ser fruto do casamento. Assim, “o bastardo, o filho natural, aquele que os gregos denominavam nothos, e os latinos, spurius, não podia desempenhar o papel que a religião determinava ao filho. Com efeito, os vínculos de sangue isolado não constituíam, para o filho a família, necessi- tava ele ainda dos vínculos de sangue. (COULANGES, Fustel. A cidade antiga. Tradução de Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca. 6. ed. Rio de Janeiro: Ediouro,1996, p. 34). 19. Ibid., p. 37. 20. Ibid., p. 61. Rosa-Curso de Direito de Familia Contemporaneo-1ed.indb 26 11/05/2016 10:05:04 1. INTRODUÇÃO AO DIREITO DE FAMÍLIA 27 entrava em conflito com os interesses da cidade, e nunca em benefício do membro da família como indivíduo”21. Assim, o espaço privado não sofria influências externas, de modo que o pater possuía um poder de vida e morte sobre seus subordinados. Cabia à família, através do pater familias, resolver e administrar todas as questões que dissessem respeito aos parentes, a escravos e servos e à eco- nomia. À pólis, por sua vez, era atribuído o poder político, que se encon- trava a ela atrelado22. A família não recebeu suas leis na cidade. Quando a última princi- piou a escrever suas leis, “encontrou esse direito já estabelecido, vivo, en- raizado nos costumes, fortalecido pela unânime adesão dos povos”. Acei- tou-o, não podendo proceder de outro modo e não ousando modificá-lo, senão com o transcorrer do tempo. Graças à religião doméstica, a família era um pequeno corpo organizado, pequena sociedade com seu chefe e o seu governo. Naqueles tempos, o pai não é somente o homem forte prote- gendo os seus e tendo também a autoridade para fazer-se obedecer: o pai é, além disso, o sacerdote,o herdeiro do lar, o continuador dos antepas- sados, o tronco dos descendentes, o depositário dos ritos misteriosos do culto e das fórmulas secretas da oração23. Somente ao pai era possibilitado o acesso à justiça (inclusive sendo responsabilizado pelos delitos cometidos por todos os membros da enti- dade familiar). No seio familiar, o “juiz era o chefe da família, sentencian- do em tribunal por virtude da sua autoridade conjugal ou paterna, em nome da família e sob a proteção das divindades domésticas”. A jurisdição era absoluta e irrecorrível, podendo inclusive condenar à morte, e “ne- nhuma autoridade tinha o direito de modificar sua sentença”24. Assim, não há dúvida alguma de que a administração dos conflitos intrafamiliares era realizada no próprio lar, sob a coordenação do chefe da família. Ainda que o pater familias fosse o detentor absoluto da auto- ridade, podendo impor sua decisão, o certo é que as questões exteriores 21. ARENDT, Hannah. A condição humana. Tradução de Roberto Raposo. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004, p. 38. 22. SPENGLER, Fabiana Marion. A desinstitucionalização da família e a prática da media- ção familiar no Brasil. In: Maria Berenice Dias. (Org.). Direito das famílias. Contributo do IBDFAM em homenagem a Rodrigo da Cunha Pereira. São Paulo: RT, 2009, v. 1, p. 283. 23. COULANGES, Fustel. op. cit. p. 62. 24. COULANGES, Fustel. A cidade antiga. Tradução de Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca. 6. ed. Rio de Janeiro: Ediouro,1996, p. 65. Rosa-Curso de Direito de Familia Contemporaneo-1ed.indb 27 11/05/2016 10:05:04 28 Curso de Direito de Família Contemporâneo – Conrado Paulino da Rosa aos espaços do lar não cediam a gestão autônoma da rotina e dos conflitos existentes na família. 1.2. O AVANÇO DA INTERVENÇÃO ESTATAL E SUA INEFICIÊN- CIA A introdução do catolicismo e a queda do Império Romano do Oci- dente impôs nova transformação radical ao paradigma familiar ociden- tal25. Na Idade Média, a matrimonialização e a patrimonialização soma- ram-se à sacralização – na forma de sacramentalização – da união sexual. O matrimônio, sem nada perder de sua carga patrimonial, foi transfor- mado em sacramento, ao lado do batismo, crisma, confissão, comunhão, extrema-unção e outros atos26. A união do casal tornou-se indissolúvel, porque o “que Deus une, o homem não separa”, e a poligamia e o concu- binato foram proscritos27. O ato sexual ficou reduzido a fonte de pecados. Deveria ser evitado sempre, exceto no matrimônio abençoado pela Igreja, única hipótese em que poderia ser praticado – assim mesmo em condições de máximo re- cato – estritamente para cumprir o ditame “crescei e multiplicai-vos”. A abstinência sexual se projetou sobre todos como ideal de pureza28. Nessa mesma época, retratada por Philippe Ariès, a análise iconográ- fica denota o momento no qual a família passa a ter relações com o espaço público, quando, nos primeiros desenhos, a rua começa a surgir como local de comércio e de lazer. Gradativamente e ao lado dessa transfor- mação, o espaço familiar passa a ser visto como local de intimidade, e as atividades profissionais deixam de ser praticadas dentro de casa: ensinar uma profissão aos filhos deixa de ser tarefa exclusiva dos pais e começa a ser desempenhada pela escola. Se antes “não existia separação entre a vida profissional, a vida privada e a vida mundana ou social”, agora a entidade familiar aos poucos se estrutura em torno do “sentimento de família, que segue os progressos da vida privada, da intimidade doméstica” e “não se 25. ARIÉS, Philippe. História social da criança e da família. Tradução de Dora Flaksman. 2. ed. Rio de Janeiro: LTC, 1981. p. 33. 26. BARROS, Sérgio Resende de. Matrimônio e patrimônio. Revista Brasileira de Direito de Família, Porto Alegre: IBDFAM/Síntese, n. 8, p. 8, jan.-mar. 2001. 27. COSTA, Gley P. O amor e seus labirintos. Porto Alegre: Artmed, 2007, p. 21. 28. BARROS, Sérgio Resende de. Matrimônio e patrimônio. Revista Brasileira de Direito de Família, Porto Alegre: IBDFAM/Síntese, n. 8, p. 8, jan.-mar. 2001. Rosa-Curso de Direito de Familia Contemporaneo-1ed.indb 28 11/05/2016 10:05:04 1. INTRODUÇÃO AO DIREITO DE FAMÍLIA 29 desenvolve quando a casa está muito aberta para o exterior: ele exige um mínimo de segredo”29. A separação entre o lugar de trabalho e o lugar da família correspon- de, pois, a uma partilha entre um setor público e um setor privado, este último coincidindo com a família30. Assim, a família moderna se expõe ao tempo, abre-se para absorver as principais alterações dos costumes humanos. Desde o momento em que o pater familias deixa de ter ascendência absoluta sobre seus subor- dinados (aqui incluídos mãe, irmãs, sobrinhas, esposa, filhos, escravos e empregados), no instante em que o espaço privado cede ao espaço público e que o Estado passa a intervir para regrar e determinar a possível solução de controvérsias e conflitos, a família perde boa parte de sua clausura e se expõe31. A partir de então, o casamento deixa de ser um modo de controlar e transmitir os meios de produção, tornando-se uma instituição de segu- ridade social, para administrar e distribuir rendas e consumo de bens32. O direito público constitui a família como objeto administrado e es- tabelece uma aparelhagem de intervenções33; surge o “direito público da família, conjunto de normas e instituições públicas que reconhece a famí- lia como objeto, no seio dos processos do controle social”34. No século XVI, juntamente com a consolidação da monarquia e a penetração da lei romana, a autoridade patriarcal se impôs como regra geral e as diretivas eclesiásticas começaram a ser seriamente incômodas, particularmente em famílias nobres. Para não subverter as hierarquias 29. ARIÉS, Philippe. História social da criança e da família. Tradução de Dora Flaksman. 2. ed. Rio de Janeiro: LTC, 1981. p. 164. 30. ARIÈS, Philippe. A família e a cidade. In: FIGUEIRA, Servulo Augusto; VELHO, Gilberto. Família, psicologia e sociedade. Rio de Janeiro: Campus, 1981, p. 17. 31. SPENGLER, Fabiana Marion. A desinstitucionalização da família e a prática da me- diação familiar no Brasil. In: Maria Berenice Dias. (Org.). Direito das famílias. Contri- buto do IBDFAM em homenagem a Rodrigo da Cunha Pereira. 1 ed. São Paulo: RT, 2009, v. 1, p. 285. 32. GLANZ, Semy. A família mutante: sociologia e direito comparado. Rio de Janeiro: Re- novar, 2005, p. 117. 33. Ibid., p. 131. 34. MILLARD, Eric. Famille et Droit Public. Paris: LGDJ, 1995, p. 397, apud GLANZ, Semy. A família mutante: sociologia e direito comparado. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 132-133. Rosa-Curso de Direito de Familia Contemporaneo-1ed.indb 29 11/05/2016 10:05:04 30 Curso de Direito de Família Contemporâneo – Conrado Paulino da Rosa leigas, a Igreja cedeu a pressões e modificou sua política, proibindo casa- mentos clandestinos e acentuando a gravidade da transgressão à autori- dade paterna35. À medida que o Estado se afirma, no cenário então eminentemente espiritual e religioso do século XVI – e a monogamia absoluta assistirá ao clímax desse movimento ascendente36 –, o casamento se laiciza, invali- dando a ordem sobrenatural e desconhecendo a noção de sacramento – e, portanto, o princípio do casamento como sacramento. A regulamentação da Igreja sobre essas matérias, contestada nos principais países europeus da época, perde inteiramente seu valor aos olhos dos não-cristãos37. Nessa época, surge a festa de “despedida de solteiro”, usual até os dias de hoje. A tradição possibilitava que os amigos do noivo lhe fizessem doa- ções em dinheiro para que pudesse continuar acompanhando-os nas saí- das noturnas depois do casamento38. Até então, o Estado, a “grande sociedade”, era força que só intervinha raramente. A família deveria reforçar os poderes do indivíduo, como seu chefe, sem alterar a solidez de suas relações com a comunidade39. Pro- va disso é que a educação não era proporcionada por escolas.O serviço doméstico se confundia com a aprendizagem, independente da camada social. A educação vinha da aprendizagem prática. Na França dos séculos 35. FONSECA, Claudia. O casamento revisitado: afetos em diálogo com a lei. In: SOUZA, Ivone M.C. Coelho de. Casamento: uma escuta além do Judiciário. Florianópolis: Vo- xLegem, 2006, p. 48. 36. Aparentemente, em que pese a poligamia seja antecedente a monogamia na histó- ria das relações familiares da humanidade e por esta ter sido substituída, ela esteve presente em todas as etapas da civilização, mesmo quando proibida pela cultura. De acordo com os arqueólogos, o registro mais antigo de monogamia remete ao Antigo Egito, cerca de 900 a.C., mas os faraós eram livres para desposar quantas mulheres de- sejassem. Além da “grande mulher do rei”, eles possuíam um número variável de “es- posas secundárias” e “esposas terciárias”. (...) A família monogâmica nasceu da família sindiásmica, na transição entre as fases média e superior da barbárie, triunfando com o surgimento da civilização. Seu objetivo principal foi o de gerar filhos, garantindo o reconhecimento indiscutível da paternidade para que somente os filhos legítimos herdassem os bens materiais deixados pelo pai. (COSTA, Gley P. O amor e seus labirin- tos. Porto Alegre: Artmed, 2007, p. 32). 37. LEITE, Eduardo de Oliveira. Tratado de direito de família: origem e evolução do casa- mento. Curitiba: Juruá, 1991, p. 265. 38. COSTA, Gley P. O amor e seus labirintos. Porto Alegre: Artmed, 2007, p. 21. 39. ARIÈS, Philippe. A família e a cidade. In: FIGUEIRA, Servulo Augusto; VELHO, Gilberto. Família, psicologia e sociedade. Rio de Janeiro: Campus, 1981, p. 14. Rosa-Curso de Direito de Familia Contemporaneo-1ed.indb 30 11/05/2016 10:05:04 1. INTRODUÇÃO AO DIREITO DE FAMÍLIA 31 XVI e XVII, “valet” significava “menino pequeno” e, “garçon”, rapazinho novo e servidor doméstico40. Com a Revolução Industrial, no século XVII, a sociedade passa por uma significativa transformação. Ocorre a urbanização das células fami- liares e, por conseguinte, o tamanho das famílias é diminuído. Os esposos passam a dividir residências de tamanho acanhado, talvez por esse motivo “a indissolubilidade do casamento começa a ser posta em xeque”41. Também foi uma época de grande revolução da afetividade. Essa, até então, fora difusa, repartida entre uma certa quantidade de sujeitos, naturais e sobrenaturais: Deus, santos, pais, filhos, amigos, cavalos e cães, pomares e jardins. Agora, porém, vai concentrar-se no interior da família, sobre o casal e filhos, objetos de um amor apaixonado e exclusivo, que a morte não fará cessar42. Outra mudança significativa é a inclusão da mulher no mercado de trabalho, assumindo uma nova e libertadora postura e, assim, distancian- do-se de seu não-lugar, já que ela sempre esteve subordinada ao pai ou ao marido, sem qualquer autonomia43. A mulher deixa de ser propriedade privada familiar e passa da posição exclusiva de reprodutora para a de, também produtora, o que representou um importante passo para sua li- bertação44. No final do século XVIII e, principalmente, após a Revolução Fran- cesa, a juventude começou a dar mais atenção a seus próprios sentimen- tos e não a considerações exteriores. A propriedade, o desejo dos pais e as injunções de ordem social foram negligenciadas na escolha do côn- juge. Surgia um novo mundo, marcado, decididamente, por uma nova 40. COSTA, Maria Aracy Menezes da. Os limites da obrigação alimentar dos avós. Porto Ale- gre: Livraria do Advogado, 2011, p. 25. 41. FIUZA, César Augusto de Castro. Mudança de paradigmas: do tradicional ao contem- porâneo. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (coord.). Anais do II Congresso Brasileiro de Direito de Família. A família na travessia do milênio. Belo Horizonte: IBDFAM/OAB- -MG/Del Rey, 2000, p. 35. 42. ARIÈS, Philippe. A família e a cidade. In: FIGUEIRA, Servulo Augusto; VELHO, Gilberto. Família, psicologia e sociedade. Rio de Janeiro: Campus, 1981, p. 16. 43. PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios fundamentais norteadores do direito de família. Belo Horizonte: Del Rey, 2008, p. 142. 44. COSTA, Gley P. O amor e seus labirintos. Porto Alegre: Artmed, 2007, p. 24. Sobre a temática, importante a leitura da obra de Simone de Beauvoir: O segundo sexo: fatos e mitos. Tradução de Sérgio Milliet. 10. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000. v. 1. Rosa-Curso de Direito de Familia Contemporaneo-1ed.indb 31 11/05/2016 10:05:04 32 Curso de Direito de Família Contemporâneo – Conrado Paulino da Rosa mentalidade45. Existe uma profunda modificação na estrutura familiar, que lhe subtrai o caráter religioso e a caracteriza por um regime liberal e igualitário. A liberdade na família conduz à laicização do casamento. Desse modo, em países como o Brasil, o Estado Liberal de Direito repartiu a matrimonialização da união sexual em dois casamentos – o religioso e o leigo –, ficando os Estados com a patrimonialização, e as igrejas, com a sacralização. Essa divisão abriu as portas para a intervenção do Estado na configuração do relacionamento afetivo-sexual, sobretudo após a transi- ção do Estado Liberal para o Estado Social, ambos constituídos na forma de Estado de Direito46. A partir daquele século, o Estado passou a encarar com repugnân- cia o fato de certas áreas da vida escaparem ao seu controle e à sua in- fluência. A ordem social outrora vigente admitia, ao contrário, a exis- tência de determinadas “praias desertas” e tolerava sua ocupação pelo aventureiro que cada indivíduo representava. Agora, o olhar e o controle do Estado passam a se estender por toda a parte, e nada mais devem deixar na sombra47. Passamos, então, à era das codificações, com fito de liquidar os ar- caísmos que, ao longo dos séculos, perpetuaram-se; ao mesmo tempo, ela porá fim à fragmentação do direito e à multiplicidade dos costumes. Para que essa codificação tivesse êxito, eram necessárias duas condições: por um lado, que ela fosse a obra de um soberano esclarecido, desejoso de consagrar – mesmo em detrimento dos privilégios da antiga ordem – os novos princípios de justiça, liberdade e dignidade do indivíduo. Por outro, era preciso que a nova codificação fosse estabelecida num grande país, exercendo sobre os outros uma influência da qual eles não saberiam es- quivar-se48. Nessa linha, Napoleão, em 1801, cria o Código Civil Francês, man- tendo a absoluta abstração das crenças religiosas. “Embora se fazendo 45. LEITE, Eduardo de Oliveira. Tratado de direito de família: origem e evolução do casa- mento. Curitiba: Juruá, 1991, p. 265. 46. BARROS, Sérgio Resende de. Matrimônio e patrimônio. Revista Brasileira de Direito de Família, Porto Alegre: IBDFAM/Síntese, n. 8, p. 8, jan.-mar. 2001. 47. ARIÈS, Philippe. A família e a cidade. In: FIGUEIRA, Servulo Augusto; VELHO, Gilberto. Família, psicologia e sociedade. Rio de Janeiro: Campus, 1981, p. 15. 48. DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. Tradução de Hermínio A. Carvalho. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 67. Rosa-Curso de Direito de Familia Contemporaneo-1ed.indb 32 11/05/2016 10:05:04 1. INTRODUÇÃO AO DIREITO DE FAMÍLIA 33 concessões à benção nupcial (necessariamente dada após a celebração do casamento civil), a validade civil do casamento depende unicamente da observação das regras presentes nas leis e nos tribunais do Estado, únicos componentes para estatuir sobre esta validade”49. Apesar de afirmar a igualdade de todos perante a lei, o direito liberal não se pejou de deixar a mulher na situação de incapacidade relativa ao homem, o qual mantinha a posição patriarcal de chefe da família. Isso porque – segundo a ideologia liberal – não cumpria ao Estado por leis postas, mas à própria sociedade pelas leis naturais de sua evolução, trans- formar as condições sociais existentes50. Nele foi reproduzido um grande número de disposições do direito antigo sobre as formalidades do casamento e impedimentosmatrimo- niais. Restabeleceu-se uma autoridade paterna e marital bastante acen- tuada. “Em matéria de divórcio, os redatores do Código Civil mantinham as tendências legadas pela revolução e o admitiam por consentimento mútuo.” Contudo, o divórcio foi abolido em 1816, sendo permitido no- vamente apenas em 1884, em uma tentativa de restabelecimento das leis civis e religiosas. A família, nas grandes codificações liberais, permaneceu no obscu- rantismo pré-iluminista, não se lhe aplicando os princípios da liberdade ou da igualdade, porque, para a ideologia liberal burguesa, ela era con- cebida como unidade de sustentação do status quo, desconsiderando as pessoas humanas que a integravam51. O Brasil, desde o seu descobrimento, já contava com codificações es- critas. As Ordenações Afonsinas, criadas em Portugal em 1446, vigoraram até serem substituídas pelas Ordenações Manuelinas. Em 1603, foram ins- tituídas as Ordenações Filipinas, que tiveram vigência até a promulgação do Código Civil de 1916. Merece destaque, por outro lado, o fato de que, desde a Colônia, du- rante todo o Império e mesmo após a República, a família brasileira sem- pre se caracterizou por um profundo sentimento de coesão, inexistente 49. LEITE, Eduardo de Oliveira. Tratado de direito de família: origem e evolução do casa- mento. Curitiba: Juruá, 1991, p. 308. 50. BARROS, Sérgio Resende de. Matrimônio e patrimônio. Revista Brasileira de Direito de Família, Porto Alegre: IBDFAM/Síntese, n. 8, p. 9, jan.-mar. 2001. 51. LÔBO, Paulo Luiz Netto. A repersonalização das relações de família. Revista Brasileira de Direito de Família, Porto Alegre: IBDFAM/Síntese, n. 24, p. 140, jun.-jul. 2004. Rosa-Curso de Direito de Familia Contemporaneo-1ed.indb 33 11/05/2016 10:05:04 34 Curso de Direito de Família Contemporâneo – Conrado Paulino da Rosa em terras europeias. Eduardo de Oliveira Leite relata que toda a iconogra- fia do século XVIII, no Brasil, retrata a presença constante das crianças na vida da família brasileira: “Embora os artistas tenham sido enviados ao Brasil com a finalidade de reproduzirem a fauna e a flora do país, não se li- mitaram aos encantos da paisagem e acabaram rendendo-se à afabilidade de nossos costumes, tão contrários aos do mundo europeu.” Ao contrário da experiência e dos registros da Europa, na mesma época, a criança era retratada em interação com os demais integrantes da família. “Nos alpen- dres das casas grandes ou no terreiro das senzalas, sobre o chão corrido de tabuado brilhante ou sobre a rudeza dos caminhos de barro, nas salas, nos quartos, nas cozinhas e nas oficinas, no interior das igrejas, ou na pro- cissão das ruas, a criança sempre se mistura inevitavelmente aos grandes, aos adultos, com uma naturalidade real, espontânea, verdadeira, com ar de bem-vinda, bem-querida e desejada, como componente fundamental do patrimônio afetivo da família brasileira52”. O século XIX é demarcado pela “publicização da família”, concreti- zada pela política estatal sempre pronta a assumir e proteger a infância, vigiando-a estreitamente, substituindo o patriarcado familiar por aquilo que passou a ser chamado de “patriarcado do Estado”53. A partir de então, o Estado passou a interferir de modo direto e crescente no dia a dia das entidades familiares, atingindo seu apogeu. “A família perde seu caráter de entidade particular, com existência própria e se converte num ente jurídico, numa realidade normativa, su- bordinada ao império dos regulamentos e das leis.” Os dispositivos em- pregados pelo Estado interagem na família num movimento duplo: ao mesmo tempo em que a norma opõe os membros da família à autoridade patriarcal, desestruturando o poder paterno, reforçando e reafirmando a tutela econômica e moral do grupo familiar, ela organiza a família em torno de uma maior autonomia, apoiando-se numa liberação das relações infrafamiliares. “O Estado dá e tira, reforma e estrutura, destrói e reorga- niza a partir de sua ótica e de seus interesses”54. O Estado Social desenvolveu-se ao longo do século XX, caracterizan- do-se pela intervenção nas relações privadas e no controle dos poderes 52. LEITE, Eduardo de Oliveira. Tratado de direito de família: origem e evolução do casa- mento. Curitiba: Juruá, 1991, p. 299. 53. LEITE, Eduardo de Oliveira. Tratado de direito de família: origem e evolução do casa- mento. Curitiba: Juruá, 1991, p. 301. 54. Ibid., p. 319. Rosa-Curso de Direito de Familia Contemporaneo-1ed.indb 34 11/05/2016 10:05:04 1. INTRODUÇÃO AO DIREITO DE FAMÍLIA 35 econômicos, tendo como objetivo a proteção dos mais fracos. Sua nota dominante é a solidariedade social ou a promoção da justiça social. O intervencionismo também alcança a família, com o intuito de redução do quantum despótico dos poderes domésticos, da inclusão e da equalização de seus membros e da compreensão de seu espaço para a promoção da dignidade humana55. É tão notável a influência do Estado na família que se cogitou na substituição da autoridade paterna pela estatal, assim, o Es- tado social assumiria, também, a função de pai56. Ainda, nesse século, ocorre a revolução sexual, colocando uma nova roupagem na sociedade. As transformações ocorridas, segundo Caio Má- rio da Silva Pereira, “teriam sido maiores e mais avançadas do que em dois milênios de civilização romano-cristã”57. Com isso, ocorre uma independência do homem, que não está mais submetido aos “grilhões do pecado”, gerando, inclusive, a revisão da dou- trina e da atuação da própria Igreja, pois “o puritanismo judaico, fruto tal- vez da doutrina de São Paulo, censurou os costumes, procurando alinhar os homens dentro de estritos limites morais. O resultado, como podemos nós mesmos verificar, foi o império absoluto da hipocrisia”58. O relacionamento conjugal se tornou mais transparente e, conse- quentemente, mais exposto às mudanças. Homens e mulheres não acei- tam mais jogar fora suas vidas em uma relação que se tornou sem prazer ou que empobreceu, sob o ponto de vista afetivo59. A visão de uma família institucional, casamentária, hierarquizada e apenas heterossexual serviram como instrumentos de controle e negativa de direitos. A dinamicidade dos sentimentos e, é claro, do próprio ser hu- mano, trouxe a necessidade da atualização das normas para a adequação (ainda que inicialmente “tímida”) às realidade social. 55. LÔBO, Paulo Luiz Netto. A repersonalização das relações de família. Revista Brasileira de Direito de Família, Porto Alegre: IBDFAM/Síntese, n. 24, p. 141, jun.-jul. 2004. 56. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 17. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 27. v. 5. 57. Ibid., p. 169. 58. FIUZA, César Augusto de Castro. Mudança de paradigmas: do tradicional ao contem- porâneo. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (coord.). Anais do II Congresso Brasileiro de Direito de Família. A família na travessia do milênio. Belo Horizonte: IBDFAM/OAB- -MG/Del Rey, 2000, p. 35. 59. COSTA, Gley P. O amor e seus labirintos. Porto Alegre: Artmed, 2007, p. 25. Rosa-Curso de Direito de Familia Contemporaneo-1ed.indb 35 11/05/2016 10:05:04 36 Curso de Direito de Família Contemporâneo – Conrado Paulino da Rosa 1.3. A FAMÍLIA NA CONTEMPORANEIDADE Com o advento da Constituição Federal de 1988, uma nova visão do direito privado foi criada “a partir de uma despatrimonialização e de ênfase na pessoa humana, isto é, na compreensão da dignidade como cer- ne do sujeito e, consequentemente, das relações jurídicas. Nesse sentido, ampliou-se o campo de aplicação da autonomia privada, que também se curva, sobretudo no âmbito das relações familiares”60. O conceito de família, até então extremamente taxativo, passou a apresentar um conceito plural. As mudanças foram tão paradigmáticas que, tal como um divisor de águas, podemos dividir o Direito de Família em antes e depois do advento da Constituição Federal61. Em seu artigo 226, a Constituição elencou a família como base da so- ciedade, merecendoassim especial atenção do Estado. A própria Constitui- ção veio romper com o preconceito legal, instalando, no texto jurídico, uma nova concepção de família, pois, além de inaugurar a igualdade entre o ho- mem e a mulher, ampliou o conceito de família, reconhecendo a união está- vel e as famílias monoparentais. Consagrou a igualdade dos filhos, havidos ou não do casamento, ou por adoção, garantindo-lhes os mesmos direitos. O objeto da norma é valorizar a pessoa humana, não como antes, quando a finalidade era reprimir ou inibir as “famílias ilícitas”, compreen- didas como aquelas que não fossem constituídas pelo casamento62. A Carta Magna acolheu as transformações sociais da família brasilei- ra e reconheceu a igualdade dos cônjuges e dos filhos, bem como outras formas de constituição de família fora do casamento, não recepcionando as normas que prevaleciam no Código Civil de 1916, o que exigiu sua atualização nas leis especiais, inclusive com edição de novas normas, re- sultando, finalmente, a aprovação do Código Civil de 2002, que também reclama revisão em diversas normas para se adequar ao atual momento e às concepções modernas de família63. 60. PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios fundamentais norteadores do direito de família. Belo Horizonte: Del Rey, 2008, p. 154. 61. LIMA, Ana Cristina Quint de; ROSA, Conrado Paulino da; FREITAS, Douglas Phillips. Adoção por casal homoafetivo. Florianópolis: Vox Legem, 2012, p. 27. 62. IBIAS, Delma Silveira. Famílias simultâneas e efeitos patrimoniais. In: SOUZA, Ivone M. Candido Coelho de. (org.) Família contemporânea: uma visão interdisciplinar. Porto Alegre: IBDFAM, 2011, p. 197. 63. CARVALHO, Dimas Messias de. Direito de família: Direito Civil. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2009, p. 2. Rosa-Curso de Direito de Familia Contemporaneo-1ed.indb 36 11/05/2016 10:05:04
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