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a!.:. />/ /?o --^ ç-(( í,. ----; Antonio Candido Coleção Espírito Crítico Duas Cidades Editora 34 15. Notas de Grítica literária - Sagarana" O grande êxito de Sagarana,t5 do sr.Joáo Guimarães Rosa, não deixa de se prender às relações do público ledor com o pro- blema do regionalismo e do nacionalismo literário. Há cerca de trinta anos, quando a literatura regionalista veio para a ribalta, gloriosa, avassaladora, passávamos um momento de extremo fede- ralísmo.Na intelligentsia portanto, o pariotismo se afirmou co- mo reaçáo de unidade nacional. A Pátiia, com pê sempre maiús- culo, latejou descompassadamen re, e os escrirores regionais eram procurados como afirmação nativista. Foi o tempo em que todo jovem promotor ou delegado, despachado para as cidadezinhas do interior, voltava com um volume de contos ou uma novela sertaneja, quase sempre lembrança de cenas, fatos e pessoas cujo pitoresco lhe assanhava a sensibilidade, litorânea de nascimento ou educação. A reviravolta econômica nos grandes Estados, subseqüente à crise de 1929, alterou os termos da equa$o política, e a des- centralização federalista, depois de alguns protestos nem sempre platônicos, foi cedendo passo à nova fase centralizadora, exigida ' Diárìo de S. Paulo, ll lT /1946. It J. Guimarães Rosa, Sagarana,P<io de lar'eito, Universal, 1946. 183 Ìextos de intervenção quase pelo desenvolvimento da indústria. Processo cuja aberra- ção foi o Estado Novo, assim como a Constituiçáo castilhisra tinha sido a aberração do processo anterior. Para compensar - como às vezes acon tece- a int€lligentsil se virou pârâ o bairrismo. Antes, quando a palavra de ordem polírica e o sentimento geral eram provincianos, foi chique ser nâcionâlista, e o porra-voz mais característico da tendência foi Olavo Bilac. Agora, que as forças unitárias predominam e já se vai generalizando um certo sentimento do todo - deste todo cle repente vivo e existente por meio do rádio e do aeroplano - agora a moda é ser bairrista, e o porta-voz mais aurorizado da tendên- cia é o sr. Gilberto Freyre, pai da voga atual da palavra "provín- cia". Todos falam na sua província, nas suas tradiçóes etc. erc., embora a maioria prefira fazer como seu Rui da canção, isto é, ela lá e eu aqui.16 Quando chega ao Rio, o jovem intelectual náo mais se esforça por mudar a pronúncia e parecer familiarizado com a cidade; capricha o soraque e escreve imediatamente sobre a negra velha que (diz ele) o criou, falando dos avós, da pequena terra em que nasceu, etc. O maior elogio do dia é "sabor de ter- ra", traduzido do francês, já se vê, e a maior ofensa, dizer a um escritor que ele "não tem raízes". Natural, em meio semelhante, o alvoroço causado pelo sr. Guimaráes Rosa, cujo livro vem cheio de "terra", fazendo arre- galar os olhos aos intelectuais que não tiveram a sorte de morar 16 "A Bahia é boa r"rra/ Ela lá c cu aqui, iaiá" - sáo versos dc "Qucm sâo eles?", samba carioca que foi o primeiro grandc succsso dc nosso Sìnhô, c csrou- rou no carnaval de Ì918. Havia neles uma alusáo vclada às lutas políticas na Ba- hia, nras é possível quc na relcrência a "Seu Rui" haja confusão com ourro samba satirico de Sinhô, "Fala meu louro", de 1920, cm que ele rroçava do silêncio da Águir d" H"i, "pós a derrota na eleição presidencial. (N. O.) Argumentos ou nâscer no interior (digo. na "província") ou aos que. tendo nela nascido, nunca souberam do nome da áwore grande do largo da igreja, coisa bem brasileira. Seguro do seu feito, o sr. Guima- rães Rosa despeja nomes de tudo - plantas, bichos, passarinhos, lugares, modas - enrolados em locuçóes e construçõ€s de hu- milhar os citadinos. "lrra, que é talento demais", como o depu- rado portuguès. mal comparando.l Mas Sagarana nío vâle apenas nâ medidâ em qle nos traz um certo saboÍ r€gional, mas na medida em que consffólum certo sâbor regionâI, isto é, em que transcende ^ Íegiáo. A prouíncìa do sr. Guimarães Rosa, no caso Minas, é menos umâ região do Brasil do que uma regìáo da arte, com detalhes e locuçóes e vo- cabulário e geografia cosidos de maneira por vezes quase irreal' ramanha é a concentrâçáo com que trâbalha o autor. Assim, ve- remos, numa convetsa, os interlocutores gastârem meia dúzia de provérbios e outras tantas parábolas como se âlguém falasse no mundo desre ieito. Ou, de outra vez, paisagens tão cheias de plan- tes, flores e passaÍinhos cujo nome o autor colecionou' que so- mos mesmo capâzes de pensar que, na região do sr. Guimarães Rosa, o sistema fito-zoológico obedece ao critério dafuca de Noé' Por isso, sustento, e sustentârel, m€smo que prov€m o meu erro, que Sagarana não é um Ìivro regional como os outros' porque náo existe regiáo igual à sua, criada livremente pelo autor com elementos caçados analiticamente e, depois, sintetizados na eco- loeia belíssima das suas hisrórias. r7 Álusáo à carta sobre o Conselheiro Pachcco em A nnespondêncìa de Fra- diquc Mendes, d,e F.ça. dc Quciroz Pacheco represenra, com sua fachada de ralen- to, o medalhão típico de um Portugal atrasado que galgou postos eminentes sem qualquer gesro arivo ou manrfesta5;o de inrel igéncia É esra nul idrde que provo- cava a exclamação pelo talento. (N. O.) 184 185 Textos de intervenção t tl t l Argumentos trar â possibilidade de chegar à vitória partindo de uma série de condiçóes que conduzem, geralmente, ao fracasso. Ou melhor: todos os fracassos dos seus predecessores se transformeram, €m suas mãos, noutros tentos fatores de vitória. Para começar, a própria temática, batida e aparentemente esgotada. Em matéria de regionalismo, só aceitamos, de uns vinte anos para cá, o nordestino, transformado por sua vez e por força do uso em arrabalde pacífico ejá sem surpresas da nossa sensibi- lidade literária. Em seguida, o exotismo do léxico, recurso geral- mente fácil, abusado pelos escritores gaúchos. Depois, a tendência descritiva, quase de composi$o escolar, familiar a quem vive em contâto com os pequenos jornais do interior e, em literatura, relegada a segundo plano pelas exigências tanto de ação quanto de introspecção do romance moderno. Finalmente, o capricho meio oratório do estilo, que há muito consideramos privativo da subliteratura. Pois o sr. Guimarães Rosa partiu de todas escas condiçóes, algumas das quais bastaram para fazer naufragar escritores do maior talento, como Monteiro lobato, ou reduzir às devidas pro- porçóes outros indevidamente valorizados, como o veÌho Afon- so Arinos; não rejeitou nenhuma delas e chegou a verdadeiras obras-primas, como são alguns dos contos d,e Sagarana. Passando a setor de ordem mais pessoal, talvez Possamos dizer que a qualidade básica do autor escapa à crítica, porque só pode ser sugerida por meio de imprecisóes como "capacidade de contar", "vigor narrativo" e outras coisas que, tudo exprimindo, nada dizem de positivo. O meu mestre e amigo Giuseppe Un- garetti usariâ expressão mais direta, invocando razóes de ordem hormonal em calão pitoresco, que eu não me atrevo a trâzer pâra este bem-comportado rodapé e que, segundo ele, são as únicas a exprimir a força criadora dos artistas poderosos como é o sr. Guimaráes Rosa. Transcendendo o crirério regional por meio de uma con- densaçáo do material observado (condensação mais forte do que qualquer ourra em nossa literatura da ..rerra"), o sr. Guimaràes Rosa como que iluminou, de repente , todo o caminho feito pe_ los seus antecessores. Sagarana significa, entre outras coisas, a volra rriunfal do regionalismo do Centro. Volta e coroamento. De Bernardo Guimarães a ele, passando por Afonso Arinos, Val_ domiro Silveira, Monteiro Lobato, Amadeu de eueirós, Hugo de Carvalho Ramos, assistimos a um longo movimento de ã- mada de consciência, através da exploração do meio humano e geográfico. É a fase do pitoresco e do narrativo, do reeionalis_ mo "enrre aspas", se dão licença de citaruma expressãã minha em arrigo recente. Fase ultrapassada, cujos produtos envelhece- ram rapidamente, mlvez à força de copiados e dessorados pelos menores. Fase, precisamente, em que os escrirores troaxeram a re_ gião até o leitor, conservando, eles próprios, atitude de sujeito e objeto. O sr. Guimarães Rosa construiu um regionalismo mui- to mais autêntico e duradouro, porque criou Jma experiência rotal em que o piroresco e o exótico sâo animados pela graça de um movimento interior, em que se desfazem as relações de su-jeito a objeto para ficar a obra de ane como inregração total de experiência. Sagarana nascet rniversal pelo alcance e pela coesão da fa_ rura. A língua parece finalmenre rer aringido à id."l d".*p,.r- são literária regionalista. Densa, vigorosa, foi talhada no veio da linguagem popular e disciplinada dentro das tradições clássicas. Mário de Andrade. se fosse vivo, leria, comovido, esre resultado esplêndido da libertafo lingüística, para que ele contribuiu com a libertinagem heróica da sua. ÁJém das convenções literárias, Sagarana se caracteriza por um soberano desdém das convenções. O sr. Guimarãe, Ro." _ cuja vocação de virtuose é inegável - parece rer querido mos- 186 187 T€xtos de inteÍvenção Sagarana se caracteriza pela paixão de contar. O autor che- ga à condescendência excessiva para com ela, a ponto de que- brar a espinha das suas hisrórias a fim de dar r.l.uo, n"rrrrìuas secundárias, terciárias, cujo conjunto resulta mais imponanre do que â narrativa central. Deixa-se ir ao sabor dos casos, não per- dendo vaza para contá-los, acumulando detaìhes, minuciando com pachorra, como quem dá a entender que, em arte, o fim não rem a mínima importância, porque o que importa são os meios. Todos os meios e até a amplificação retórica sâo bons, desde que nos arrebatem da vida transportando-nos para a vida mais inrensa da arre. Já se vê por aí que o sr. Guimarães Rosa retorna, em grande estilo, à concepção do conrisra-conrador, para o qual a vãrdade está na narração e na descriçáo, para o qual as facadas, os casos de amor, os estouros de boiada e os crepúsculos têm valor eter_ no, acima de quaisquer ourros. por ourro lado, como ficou su- gerido, a regiâo, deixando de ser, para ele, simples localização da história, com funções de pitoresco e anedótico, passa a verdadei- re personagem (se assim me posso exprimir), tanta é a persistên_ cia e a profundidade com que vêm invocados a sua flàra, a sua fauna, o seu relevo. Há, mesmo, certos contos, como ,,São Mar_ cos", em que só ela redime o anedótico e garanre o toque lite- rário autêntico. Em "A hora e vez de Augusto Matrag",' há u-" certa entrada de primavera - verda deiro Sacre du printemos _ em que â naturezâ nos comunica sentimento quase ineiável. germinal e religioso. Como padrão de arte objetiva e elaborada, perfeito na sufi_ ciência admirável dos meios, gostaria de indicar o conto ,.Duelo", das maiores peças de atmosJ?rada nossa arual novelística. Uma tensão envolvente, quase alucinante, alimentada sorrateiramen- te pelo auror com um ominoso vaivém cheio de detalhes geográ_ ficos e pequenos casos laterais. d ï Argumentos Não é aí, todavia, que devemos procuríìr â obra-prima do livro. mas no citado "Augusro Matraga". onde o autor, deixan- do de certo modo a obietividade da arte-pela-arte, entra em re- gião quase épica de humanidade e cria um dos grandes Ìipos da nossa literatura, dentro do conto que será, daqui por diante, con- rado entre os dez ou doze mais perfeitos da Ìíngua. Não penso que Sagarana sela um bloco unido, nem que o sr. Guimarães Rosa tenha sabido, sempre, escapâr â certo pen- dor verboso, a certa difusão de escrita e composit'o. Sei, porém, que. consrruindo em termos brasiÌeiros certas experiências de uma altura encontrada geralmente aPenas nes grandes literauras es- trangeiras; criando uma vivência poderosamente nossa e ao mes- mo tempo universal, que valoriza e eleva a nossa arte; escreven- do contos como "Duelo", "Lalino Salãthiel", "O burrinho pe- drês" e, sobre todos (muito sobre todos), "Augusto MaÍÍ^g " - sei que por tudo isso, o sr. Guimaráes Rosa vai reto para a linha dos nossos grandes esctitoÍes' r88 & r89 Este romance é uma das obras mais importantes da litera_ tura brasileira - lato de força e beleza numa novelísrica also perplexa como é arualmente a nossa. Não segue modelor, nao t.'- precedentes; nem mesmo, talvez, nos livros anteriores do autor. que. embora de alra qualidade, não apresenram a sua caracrerís_ tica fundamental: rranscendência do regional (cuja riqueza pe_ 16. No Êrande sertão* 'Texro originalmente publicado sob a rubrica ,,Grande sertâo: aeredaì,, na seçáo Resenha Bibliográfica do Suplemento Lirerârio de O Estado de S. paulo, no|, ano l ,6/ lO/1956. É uma hisrória de jagunços do norte de Minas na forma do monólogo ininterrupto, sem divisão ou capítulo, de um velho fazendeiro narrando como se rornou membro e afinal chefe de bando. As açóes giram em torno da vingança contra companhei_ ros felões que matârem à traição o grande chefe de todo, -", o miolo nutritivo é - não sei se diga - a expressão ou a persona- lidade do narrador, cujo amadurecimento presenciamos no cor- rer do livro. São, em todo caso, a estupend" visão do mundo e a inquietude interior elaboradas ao longo do seu fluxo de eloqüên_ clâ e Doeslâ. Argumentos Há no livro uma esÌrâtificaçáo de interesses, combinados e organizados a cada passo pelo autoÍ na trama expositiva - do pitoresco regionel à preocupâçáo moral e metafísica. Mundo diverso da ficção regionalística, feira quase sempre "de fora para dentro" e revelando escritor simpático, compreen- sivo, mas separado da realidade essencial do mundo que descre- ve; e que enxefta num contexto erudito elementos mais ou me- nos bem apreendidos da personalidade, costumes, linguâgem do homem rústico, obtendo montagens, não a integração necessária ao pleno efeito da obra de arte. Em Grande sertão: ueredas,lS o aproveitamento literário do material observado na vida sertaneja se dá "de dentro para fora", no espírito, mais que na forma. O attor ìnuenta, como se, ha- vendo descoberto as leis mennis e sociais do mundo que descreve, fundisse num grande bloco um idioma e situações artificiais, embora regidos por acontecirnentos e princípios expressionais potencialmente contidos no que registrou e sentiu. Sob este as- pecto, ao mesmo ternpo d,e anoação e clnstruçãl,lembra os com- positores que infundiram o espírito dos ritmos e melodias po- pulares numa obra da mais requintada fatura, como Bela Bartók. Comparada a semelhante processo, a literatura regionalista não ulrrapassa a esfera do programa caipira. Há motivo para invocar o universo da música ao falarmos deste livro, não obstante tão acentuadamente plástico nas camadas externas. Em profundidade é governado, com efeito, por alguns temas que, ume vez epresentados, são desenvolvidos, recapitula- dos, variados, formando o verdadeiro fio condutor de tudo o que se expõe no plano da ação e da descrição, de modo a resulrar a integridade quase obsessiva das diretrizes essenciais. Tema do I8 Rio de Janeiro. José Olympio, 1956. 594 pp. lculiar se manrém rodavia inracra) graças à incorporação em va-t lores universais de humanidade e tensão criadora. l9 l Textos de intervenção Menino que se desdobra, como da predestina$o, no companhei- ro Diadorim (mulher disfarçada em jagunço, sabemos afinal) e decide a carreira do narrador, fuobaldo. Tema do âmor como aspiraçáo e porto de inquietudes, extremamente complexo nas suas três encarnações de pureza, de sensualidade e impulsos obs- curos: a bem-amada ("minha Otacília, fina de recanto, em seu realce de mocidade, mimo de alecrim, a firme presença"); a mere- triz ("era a que era clara, com os oÌhos tão dela mesme"); o amigo disfarçado ("aquele fino das feições que eu não podia divulgar, maslembrava, referido, na fantasia da idéia"). Sobretudo, o tema do mal e da responsabilidade, encarnado na presença negada e sentida do Demônio - sem dúvida o maior personagem do livro no plano transcendente, como é, no plano físico, o Sertão, onde o narrador busca as veredas da verdade: "uma receita, a norma dum caminho certo, estreito, de cadâ uma pessoa viver". Por estra- nho que pareça, esta naÍrativa sertaneja de experiências profun- das com Mundo, Diabo e Carne, é sobretudo um livro absorvido por certos problemas, sobretudo o da conduta abordado de um ângulo que os existencialistas chamariam do "ser-no-mundo". Para conter tanta riqueza plástica e emocional, Guimarães Rosa uniu pitoresco e essencial numa técnica narrativa admirável, marcada pelo vaivém, o parêntese, a antecipação, a digressão, a retomada- que ampliam a nosa percep$o em amplitude e pro- fundidade - para desembocar na linha reta e palpitante da terça parte final, quando Riobaldo assume o destino nas mãos, disposto a aceitar o bem e o mal. Refinamento técnico e força criadora fundem-se então numa unidade onde percebemos, emocionados, desses raros momentos em que a nossa realidade particular brasi- leira se transforma em substância universal, perdendo a sua expres- são aquilo que, por exemplo, tinha de voluntariamente ingênuo na rapsódia dionisíaca de Macunaímt para adquirir a soberana maturidade das obras que fazem sentir o homem perene. 192
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