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A História Intelectual Em Questão

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A HISTORIA INTELECTUAL EM QUESTAo 
Helenice Rodrigues da Silva 
Dominio novo e mal definido, a Historia Intelectual transformou-se, nas 
ultimas duas decadas, em estimulante objeto de investiga<;:ao. No entanto, em 
razao da inexistencia de sistematiza<;:ao teo rica, indispensavel a toda pratica de 
analise, ela se apresenta como campo de estudo ainda indeterminado. Confun-
did a com a historia das ideias, a historia cultural e a historia dos intelectuais, 
essa nova area, indistintamente designada, hesita entre ser, de urn lado, procedi-
mento de analise, e de outro, disciplina em forma<;:ao. Indiferentemente associa-
da a Intelle .. ctualHist.oIJ')_2J·_Clt~ Es_t~Qo..§J)nidos, e a Histoire Intellectuelle 
na versao franc~sa, a chamada Historia Intelectual, caso nao seja bern explicitada, 
'pode d;r margens a uma serie de mal-entendidos. Impossivel de ser traduzida 
para outra lingua (para 0 frances, por exemplo) e para outro contexto intelec-
tual, a Intellectual History difere fundamentalmente da Histoire Intellectuelle por 
se tratar de abordagem exclusivamente literaria (e ate mesmo lingiiistica) de 
uma obra. Por sua vez, a versao francesa, que melhor designa a acep<;:ao de uma 
Historia Intelectual, procura inscrever historicamente 0 discurso dos intelec-
tuais, tentando ultrapassar a alternativa entre explica<;:6es intern as e externas. 
o NECESsARIO QUESTIONAMENTO CRITICO 
Como definir, entao, a Hist6ria Intelectual? Trata-se de uma hist6ria das 
formas de pensamento e de suas praticas? Trata-se de nova concep<;:ao da hist6-
ria das ideias ou, simplesmente, de uma hist6ria dos intelectuais? Embora acre-
ditemos que toda defini<;:ao seja imprecisa e normativa, duas delas nos parecem 
pertinentes. 
A primeira, de carater amplo, foi elaborada por Carl Schorske em seu livro 
Viena, fin de siecle: 
o historiador procura localizar e interpretar temporalmente 0 artefato num campo em 
que se intersectam duas linhas. Uma linha e vertical, ou diacronica, pela qual ele estabe-
lece a relayao de urn texto ou de urn sistema de pensamento com as manifestayoes 
anteriores no mesmo ramo de atividade cultural (pintura, politica etc.). A outra e hori-
zontal, ou sincronica; atraves dela, determina a relayao do conteudo do objeto intelec-
tual com 0 que vai surgindo ao mesmo tempo noutros ramos ou aspectos de uma 
cultura.! 
A segunda, mais geral, foi formulada por Robert Darnton no texto 
"Intellectual and Cultural History" (1980): 
15 
GRANDES NOMES DA HISTORIA INTELECTUAL 
A hist6ria das ideias e 0 estudo dos pensarnentos sistern<iticos, geralrnente nos tratados 
filos6ficos; a Hist6ria Intelectual propriarnente dita [vern a serlo estudo dos pensa-
rnentos inforrnais, (das correntes de opiniao e das tendencias litenirias); a hist6ria soci-
al das ideias e a hist6ria cultural sao 0 estudo da cultura no sentido antropol6gico, 
incluindo as visoes de rnundo e as rnentalidades coletivas.2 
Qual e, portanto, 0 objelo da Historia Intelectual? Uma resposta coerente a 
esta questao supoe, a priori, uma melhor defini<;:ao do seu proprio estatuto. A 
Historia Intelectual constitui forma de abordagem, metodo de analise ou area 
de conhecimento? Hesitando entre a "velha historia das ideias" (na perspectiva 
francesa) e a nova historia cultural (no sentido definido por Roger Chartier de 
restitui<;:ao das pr<iticas culturais), a Historia Intelectual oscila, por urn lado, en-
tre uma Sociologia, uma Historia e ate mesmo uma biografia dos intelectuais, e 
por outro, entre uma analise das obras e das ideias como, por exemplo, uma 
possivel versao da historia da filosofia. 3,t 
o contexto frances, que alias nos serve de referencia, privilegia diferentes 
formas de el!tcidac;:il.Q. Uma primeira, sociologica, tende a enfatizar tanto uma 
cartografia dos intelectuais (asredes de sociabilidade, os modos de filia<;:oes, as 
gera<;:oes intelectuais) como 0 "campo" intelectual (a logica dos lug ares, dos in-
teresses e das situa<;:oes). Uma.~egunda, hist6~i£b aborda, notadamente, a histo-
ria politica dos intelectuais, enfatizando 0 ritual de peti<;:oes, manifestos, mani-
festa<;:oes. Finalmente, outra vertente tende a elaborar uma hermeneutica das 
obras, ou melhor, uma analise do discurso intelectual. Em suma, a historia inte-
lectual frances a pretende valorizar duas versoes: a discursiva (a obra em si, 
desincorporada de contextos) e a contextual (as configura<;:oes, os campos, as 
genealogias, as pr<iticas etc.). Y 
Feitas essas observa<;:oes, consideramos que a Historia Intelectual, dominio 
pluridisciplinar por excelencia, possibilita diferentes enfoques, como 0 dos con-
textos de produ<;:ao de ideias, 0 dos agentes socioprofissionais e 0 das correntes 
de pensamento. Situada, portanto, na interse<;:ao de diferentes disciplinas (His-
toria, Sociologia, Filosofia etc.), ela parece visar dois polos de analise: de urn 
lado, 0 conjunto de funcionamento de uma sociedade intelectual (0 "campo", na 
versao de Pierre Bourdieu), isto e, suas pr<iticas, seu modo de ser, suas regras de 
legitima<;:ao, suas estrategias, seus habitus; e de outro lado, as caracteristicas de 
urn momenta historico e conjuntural que impoe formas de percep<;:ao e de 
aprecia<;:ao, ou seja, modalidades espedficas de pensar e de agir de uma comuni-
dade intelectual. Em outras palavras, a Historia Intelectual, tal como nos a per-
cebemos, teria por principal pressuposto restituir, do ponto de vista sociologico, 
filosofico e historico, 0 contexto de produ<;:ao de uma obra. No en tanto, ela dife-
16 
A HISTORIA INTELECTUAL EM QUESTAo 
re da tradicional historia das ideias (na acep~ao francesa), que se restringe quase 
sempre a uma cronica das ideias e a uma justaposi~ao cronologica de resumos 
de textos politicos e/ou filosoficos. , 
HISTORIA INTELECTUAL VERSUS HISTORIA DOS INTELECTUAIS? 
Dois estudos franceses, publicados por historiadores, parecem suscetiveis 
de ilustrar essas duas modalidades, aparentemente indissociaveis. 0 primeiro 
deles diz respeito ao livro de ~jlristQl2he Chaxle - 0 nascimento do intelectual -
1880/1900; 0 segundo, ao livro de Jea_l1~fr<ln(~ois Sirip_elli - Intelectuais e paixoes 
francesas, manifestos e petiroes no seculo 20.4 
Baseando-se nos metodos das ciencias sociais, em geral, enos trabalhos de 
Bourdieu sobre 0 "campo", em particular, Christophe Charle busca reconstituir 
o J::ontexto cultural emqu~ eJl1erge, no momenta do caso Dreyfus, a figura do 
"intelectual" frances. s Para melhor entender as inflexoes na conjuntura intelec-
tual daquela epoca, ele elabora uma cartografia apontando as mudan~as ocorri-
das no campo intelectual e no contexto historico: aumento do numero de estu-
dantes nas universidades, surgimento de uma especie de "proletariado litera rio" 
(as vanguardas artisticas e literarias) que aspiram outros valores, a ascensao do 
anti-semitismo etc. Essas muta~oes culturais e politicas explicam a mobiliza~ao 
dos chamados "intelectuais" na defesa do capitao Dreyfus (de origem judia), 
injustamente acusado de espionagem. Em nome dos valores republicanos e 
universalistas, uma fra~ao de "pensadores" composta por escritores, professores 
e artistas exige a revisao do processo. 
A fim de melhor explicar 0 cenario cultural dessa "batalha dos intelectuais", 
Charle dirige seu microscopio em dire~ao as list as dos ass in antes dreyfusard e 
dos anti-dreyfusard, confrontando-as por oposi~ao, com base na origem e filia~ao 
de seus respectivos me~bros: localiza~ao geografica (Paris/interior), faixa etaria 
(jovens/mais idosos), escola literaria (vanguarda/academismo) etc. Assim, os 
assinantes favoraveis a I2rqfus revelam, por exemplo, ser mais jovens que seus 
adversarios. Em geral, pertencem a Ecole de Chartres, ao College de France, a 
Ecole Pratique des Hautes Etudes e cursam certas disciplinas na Sorbonne (His-
toria, Filosofia e Ciencias Sociais). Se, politicamente falando, esse grupo se situa 
a esquerda, em contrapartida, os opositores de Dreyfus, em grande maioria for-
mados em disciplinasligadas a Antiguidade classica, posicionam-se a direita no 
jogo politico. Este ultimo grupo formado, em geral, por catolicos, se distingue 
do grupo oposto quanta a origem religiosa; muitos dreyfusard pertencem as 
minoritarias (judaismo e protestantismo). Portanto, por meio de levantamento 
rigoroso, Charle e capaz de desvendar determinados enigmas. Por exemplo, 0 
fato de 0 escritor Barres posicionar-se, para surpresa de seus contemporaneos, 
17 
GRANDES NOMES DA HISTORIA INTELECTUAL 
como lider da direita intelectual, ocupando lugar que dificilmente teria no cam-
po oposto. Todas essas demonstra<;:oes, para fins de compara<;:ao biognifica, acom-
panhadas por cifras, cita<;:oes, quadros, permitem melhor compreensao do pro-
cesso do nascimento destas duas figuras historicas: 0 intelectual da esquerda 
(dreyfusard) eo de dire ita (anti-dreyfusard). "-
Sob a luz de peti<;:oes e manifestos assinados pelos intelectuais a partir do 
caso Dreyfus, Sirinelli realiza urn trabalho inedito sobre os 100 anos de "paixoes 
francesas". Centrando sua pesquisa na hist6ria politica, ou melhor, focalizando 
a hist6ria das politicas dentro dos grupos culturais e intelectuais, esse histaria-
dor, autor de urn estudo sobre as gera<;:oes, nos anos 1930 e 1940, dos alunos das 
classes preparat6rias para a Ecole Normale Superieure e os "normalianos': am-
plia seu campo de pesquisa, propondo a leitura dos manifestos que mobiliza-
ram os intelectuais. Data, portanto, do final do seculo XIX 0 engajamento de 
escritores, artistas e professores, por meio de uma peti<;:ao em favor de Dreyfus, 
para exigir justi<;:a e verdade. Dessa batalha de ideias e de listas, plenas de ataques 
e de respostas, opondo sensibilidades politicas, surge 0 i()Z9 Eotag6nico de peti-
<;:oes. Sirinelli apresenta diversos textos e manifestos que, em diferentes momen-
tos hist6ricos, mobilizaram a classe intelectual. Par exemplo: textos que apelam 
ao pacifismo entre as duas guerras, manifestos em favor do "Comit{~ de Vigilan-
cia Antifascista" nos anos 1930, dossies sobre os colaboracionistas e os acertos de 
contas ap6s a Libera<;:ao. Os acontecimentos sucessivos (que abalaram os inte-
lectuais simpatizantes do Partido Comunista Frances) - a insurrei<;:ao de Buda-
peste e 0 envio de tropas sovieticas (1956), provocando uma serie de textos e 
manifestos -, sao outro alvo de sua analise. Outras datas miticas sao abordadas: 
1960 e 0 "Manifesto dos 121", ou seja, 0 manifesto dos intelectuais da esquerda a 
favor da deser<;:ao durante a guerra da Argelia; 1968 e as respectivas proclama-
<;:oes politicas; 1971 e 0 manifesto para "0 direito ao aborto", entre outros. 
Para cada data e sequencia hist6rica, 0 autor descreve a lista de celebridades 
que se destacaram no espa<;:o publico: Zola e Anatole France, Barres e Renoir, 
Alain e Gide, Sartre e Aron, por exemplo. Esse estudo, bern documentado, fornece 
detalhes minuciosos, revelando fatos e anecjgta$. Para cada texto, Sirinelli apresen-
ta sua genese, fornece a lista dos ass in antes, propoe algumas palavras-chaves. Des-
sa leitura, apreendem-se as paixoes intelectuais e, sobretudo, as divisoes politicas 
(esquerda/direita) que acompanharam a hist6ria politica e cultural francesa: a 
mobiliza<;:ao d~ urn campo provocando imediatamente a adesao do campo opos-
to. No entanto, os limites do trabalho fazem-se sentir no momento em que 0 autor 
faz refer en cia as redes de sociabilidade que perpassam 0 meio intelectual. Esses 
limites sao inerentes a uma Hist6ria concebida em termos unicamente politicos. 
Torna-se dificil entender a complexidade que subentende as evolu<;:oes de posi<;:oes 
18 
A HIST6RIA INTELECTUAL EM QUESTAo 
dos agentes e 0 sutil jogo das configura<;:oes culturais, institucionais e sociais que 
forjam as solidariedades, que 0 autor nao desvenda, restringindo-se a descreve-Ias. 
A simples listagem de nomes dos assinantes de diferentes peti<;:oes constitui proce-
dimento insuficiente. Se tomarmos, por exemplo, 0 caso l)reyfus, como entender 
a posi<;:ao tomada pelos respectivos intelectuais, seja a favor da revisao do processo, 
seja em defesa de uma Liga da Patria Francesa? Sem duvida, 0 historiador que 
ambiciona compreender as redes de sociabilidade necessita pedir e_mprestad~~ 
Sill:iclogia e a Antropologia esquemas de interpreta<;:ao. 
Em sintese, a Hist6ria dos Intelectuais ten de a privilegiar a conjuntura ser-
vindo-se de uma abordagem, notadamente, sociopoHtica. Por sua vez, a sociolo-
gia dos intelectuais, praticada por soci6logos, interessa-se, essencialmente, pelo 
nivel das estruturas. Alem das redes de sociabilidade e dos modos de filia<;:ao, ela 
busca apreender as condi<;:oes de produ<;:ao e de recep<;:ao de uma obra. Romper 
com esse "sectarismo epistemol6gico" 0. C. Passeron), que tende a opor a Hist6-
ria a Sociologia, torna-se condi<;:ao necessaria para a pratica de uma Hist6ria 
Intelectual. 0 estudo de Christophe Charle, que a nosso ver ultrapassa uma so-
ciologia dos intelectuais, situando-se na perspectiva de uma Hist6ria Intelectual, 
permanece, no entanto, tributario de uma analise essencialmente conjuntural. 
A SUPERA<;:AO DA ALTERNATIVA "ANALISE INTERNA" E "ANALISE EXTERNA" 
Segundo Fran<;:ois Dosse, "uma tensao existe entre a velha hist6ria das ideias 
e a recente hist6ria cultural e entre as duas emerge essa hist6ria intelectual que 
se exprime atraves de uma ten sao entre explica<;:oes internas e explica<;:oes 
contextualistas, externas. Entre esses dois obstaculos, essa Hist6ria Intelectual 
deve inscrever-se numa perspectiva nao reducionista':6 
Visando apreender as formas de pensar e de agir dos intelectuais, com base 
em urn cQntexto hist6rico e cultural especifico, a Hist6ria Intelectual precisa 
observar essas duas escalas de analise. No en tanto, mais do que uma articula<;:ao 
puramente mecfmica entre contexto e conteudo, em outras palavras, para alem 
de uma abordagem que J2!i~l~e a relayao entrea analise extern a dos aconteci~ 
mentos (hist6ricos, sociais, politicos) ea analise interna da obra (a hermeneutica 
ou a analise do discurso), a His16rialntclectual deve levar em considera<;:ao, 
simultaneamente, a dimensao djacronica (hist6ria) e sincroruca ("os aspectos 
diferentes de urn mesmo conjunto em urn mesmo momenta de evolu<;:ao"). Isto 
pressupoe a necessidade de integrar no campo das investiga<;:oes, para alem das 
no<;:oes de "configura<;:oes" (Elias) e de "campo" (Bourdieu), os paradigmas inte-
lectuais, os episteme, as correntes filos6ficas que interferem, direta ou indireta-
mente, nas representa<;:oes, nas visoes de mundo, condicionando sistemas de per-
cep<;:ao, de aprecia<;:ao e de classifica<;:ao. 
19 
GRANDES NOMES DA HISTORIA INTELECTUAL 
A titulQilustrativo,_Jomemos os paradigm as intelectuais, ou seja, os mode-
los dominantes que governam 0 pensamento cientifico de uma-epoca. A apreen-
sao desses modelos de referencias teoricas nos parece fundamental em uma pes-
quisa que pretenda integrar a obra intelectual a seu contexto de prodw;:ao. 
Em paises cuja cultura e forte mente centralizada, como e 0 caso da Fran~a, 
os modelos de referencia teorica em vigor, assim como as suas muta<roes, ten-
dem a ser muito mais perceptiveis. No entanto, a dificuldade de explicar esse 
modelo de referencia surge quando se tenta apreender certos fen6menos ligados 
a passagem, a oscila~ao e a mudan<ra radical de urn paradigma a outro, por exem-
plo, muta~oes e guinadas intelectuais, falencia de modelos de referencia, efeitos 
sobre diferentes culturas nacionais etc. Ora, os paradigmas intelectuais impli-
cam forte coesao transdisciplinar dos conhecimentos e coerencia no interior de 
cada epoca historica. Isto posto, como apreender as transforma~oes de paradigmas 
em ciencias human as? Trata-se de verdadeira mudan~a de formas de pensar re-
sultante de efetiva evolu~ao no dominio epistemologico ou de simples efeito de 
moda, de carater passageiro? Como interpretar a no~ao de paradigma intelec-
tual, visto que esta ideia remete, deurn lado, a fechamentos e a reducionismos da 
pesquisa dentro de urn quadro ou program a de referencias conceituais, e de 
outro, a unidade, a intera~ao e a aceita~ao de modelos do conhecimento? Todos 
esses questionamentos nos parecem pertinentes na pesquisa desse dominio ain-
da fluido que e a Historia Intelectual. 
A BIOGRAFIA INTELECTUAL 
Visto como genero historico insignificante, ao longo dos cinqiienta anos da 
hegemonia dos Annales, a biografia retorna, a partir dos anos 1980, na produ~ao 
intelectual, em razao mesmo dos novos paradigmas dominantes. 
Com a crise do "determinismo economico e social" (0 final dos gran des 
sistemas totalizantes), a estrutura, 0 coletivo e 0 inconsciente cedem lugar a vol-
ta do individuo, da a~ao e dos fenomenos intencionais. Essa :valoriza~ao da "par-
te exphcita e consciente da a<rao" pressupoe a apreensao de novos objetos e de 
novas formas de analise nas pesquisas em Ciencias Sociais. Apos as decadas de 
cientificismo, impostas pelo marxismo, estruturalismo e funcionalismo, as "cien-
cias humanas se re-humanizam", no seu retorno em dire<rao a busca de seu pro-
prio objeto. 7 Essa revaloriza<rao do individuo (nao mais na sua transparencia, 
como acreditavam os existencialistas, mas investido de verdadeira complexida-
de), dos atores e da a~ao tern por fundamento epistemologico e metodologico 
urn IlQYO parad~l~ctllal: opragmatico e 0 interpretativo.8 
E com base nesse novo modelo e contexto intelectuais que a biografia faz a 
sua reapari<rao na historiografia frances a dos anos 1980-90. Ao lado das biografias 
20 
A HISTORIA INTELECTUAL EM QUESTAO 
historicas que colocam em cena 0 destino de figuras politicas, de herois nacionais, 
mas tam bern de personagens desconhecidos pela Historia oficial, a Historia Inte-
lectual reabilita esse genero de maneira urn pouco distinta. Nao se trata mais, 
seguin do as regras tradicionais da biografia, de narrar de maneira linear e crono-
logica a vida de urn personagem intelectual, mas de buscar ness as trajetorias indi-
viduais, imbricadas a propria historia intelectual, "os sentidos de uma vida" .9 
Autor de duas biografias intelectuais, a de Paul Ricoeur e, recentemente, a 
de Michel de Certeau 10 , Franc;:ois Dosse vern praticando esse genero 
(historiografico e litenirio) que consiste, grosso modo, em colo car em cena tm 
instancias comumente definidas pela critica literaria, a saber: Qautor, 0 narradar 
e 0 person~. Servindo-se de entrevistas realizadas com pessoas que cruza-
ram a vida de Ricoeur e de urn estudo aprofundado de sua obra, Dosse retrac;:a a 
coerencia do percurso de seu pensamento, pensamento este que conheceu mo-
mentos de rejeic;:ao (na era estruturalista) e de reconhecimento (nos anos 1930, 
1950 e a partir dos 1980). 
Explicitando a sucessao dos "lugares da memoria" que marcaram a sua tra-
jetoria intelectual, por exemplo, as cidades onde lecionou (Estrasburgo, Paris, 
Chicago), as universidades onde ensinou (Sorbonne, Nanterre, Chicago) e os 
grupos intelectuais par onde transitou (Esprit, Laboratorio de Fenomenologia), 
Dosse apresenta uma pluralidade de percursos iritelectuais e as multiplas apro-
priac;:6es por eles suscitados (0 contato com a filosofia analitica, por exemplo, 
nos Estados Unidos). 
Desde os anos 1930, Ricoeur concebe sua reflexao como forma de engajamento 
no espac;:o publico. Sua obra testemunha a atualidade de seu pensamento, marca-
do pela constancia de uma etica existencial, filosofica e politi ca. A busca do senti-
do, pela modalidade da biografia, como a de Paul Ricoeur, corresponde ao retorno 
atl,lal da Filosofia ao cenario intelectual frances. Do mesmo modo, 0 interesse por 
Michel de Certeau, este pensador livre e sem fronteiras, insere-se nas modalidades 
atuais de conceber a escrita da Historia descritas por esse autor. Desse modo, a 
escolha de personagens, tais como Certeau e Ricoeur, parece obedecer as novas 
diretrizes impostas pelas epistemologias das ciencias humanas. Na biografia sobre 
Michel de Certeau, Franc;:ois Dosse procura destacar, para alem de sua obra inter e 
pluridisciplinar, os caminhos que conduziram esse historiador, psicanalista, lin-
guista e jesuita a ultrapassar as fronteiras, a buscar 0 outro e a rejeitar to do 
reducionismo proprio a uma atribuic;:ao identitaria. 
As biografias intelectuais, tais como as concebidas por Franc;:ois Dosse, pa-
recem seguir urn mesmo roteiro, ou melhor, urn mesmo metodo. Elas impli-
cam, inicialmente, por parte do narrador, urn conhecimento aprofundado da 
obra de seus autores. Esse pensamento narrado na sua temporalidade parece 
21 
GRANDES NOMES DA HISTORIA INTELECTUAL 
servir de estrutura a mise en intrigue do pr6prio texto. A escolha de entrevistas 
com familiares, cole gas e amigos do autor biografado visa maior compreensao 
da vida e da obra desses personagens. Assim, as imbrica<;:6es dos percursos inte-
lectuais se desvendam por meio de urn mapeamento das institui<;:oes academi-
cas, das filia<;:6es intelectuais, das redes de sociabilidade. Ao lado da interpreta-
<;:ao da obra, a existencia desses autores, que atravessaram as tragedias do seculo 
XX, desponta em filigranas ao longo do texto, de maneira a permitir maior 
inteligibilidade desses pensamentos. 
As GERA<;:OES INTELECTUAIS: UM CONCEITO OPERATORIO? 
o retorno a no<;:ao de historicidade pela historiografia francesa nos anos 
1980-90, gra<;:as, em grande parte, a descoberta de Tempo e narrativa, de Paul 
Ricoeur ll , contribuiu para a apreensao de outras categorias de analise, como a 
mem6ria e a sua transmissao pelas gera<;:6es. 0 c()n.-eci1~Lc!e~I"~ao revelou-se 
instrumento eficaz no estudo dos itinerarios e dos movimentos intelectuais. 
Embora, a primeira vista, ele pare<;:a mais adequado a elucida<;:ao da Hist6ria dos 
Intelectuais, esse conceito, a nosso ver, merece ser levado em conta no 
questionamento de uma Hist6ria Intelectual. 12 
Sem duvida, 0 efeito de gera<;:ao como complementar de uma ideia de 
temporalidade e intrinseco a concep<;:ao mesma de historicidade. Em geral, quan-
do uma faixa etaria intelectual se depara com determinados acontecimentos 
marcantes (golpes de Estado, revoltas, guerras), esses ultimos imprimem, na 
maioria das vezes, uma marca comum, inevitavel, nas sensibilidades, provocan-
do uma mesma percep<;:ao e aspira<;:ao em rela<;:ao a esses acontecimentos. Assim, 
para melhor compreender 0 sentido do vivido e a partilha de uma mesma expe-
riencia espa<;:o-temporal comuns, convem fazer apelo a uma no<;:ao de 
temporalidade. 
Para Wilheim Dilthey, por exemplo, 0 fenomeno de gera<;:ao e intermedia-
rio, uma vez que deriva da intera<;:ao do tempo "exterior" da Hist6ria e do tempo 
"interior" da vida psiquica, quer dizer, da "experiencia vivida". Consequente-
mente, Dilthey diferencia as duas utiliza<;:6es do conceito de gera<;:ao: 0 
pertencimento a uma "mesma gera<;:ao" e a "sequencia das gera<;:6es': 13 Como ele 
mesmo afirmou: "Pertencem a uma 'mesma gera<;:ao' contemporaneos que fo-
ram expostos as mesmas intluencias, marcados pelos mesmos acontecimentos e 
pelas mesmas transforma<;:6es. "14 
Mas viver em urn mesmo espa<;:o de tempo nao significa, no entanto, a ne-
cessidade de partilhar as mesmas experiencias de vida e a mesma forma de pen-
sar. Ao lado dos criterios bio16gicos de pertencimento a uma "mesma gera<;:ao", 
~!111eiIp, por sua vez, acrescenta urn criterio sociol6gico "disposicional" 
22 
A HIST6RIA INTELECTUAL EM QUESTAO 
que e caracterizado pelo que ele designa 0 "la<;:o de gera<;:ao". Este la<;:o depende 
de urn conjunto de afinidades, de sensibilidades comuns, herdadas e vivenciadas, 
capazes de condicionar 0 sentiID~nt~L<i~ partilha.-ekJJlll..mesmo destiuo. 
Esse "la<;:o" e marcado "pela participa<;:ao real a inten<;:6es diretrizes e as re-
conhecidas tendencias formadoras".15 Segundo Mannheim, pertencem, entao, a 
uma "mesma gera<;:ao" todos aqueles que tendo vivido, simultaneamente, as 
mesmas experiencias coletivas, tendo sofrido 0 efeito dire to dos acontecimen-tos, tendo tido 0 sentimento de serem contemponlneos a esses mesmos aconte-
cimentos, adquiriram uma mesma "visao de mundo". A experiencia comum ser-
ve a essa mesma gera<;:ao de denominador comum. Percebe-se, entao, que a no-
<;:ao de "mesma gera<;:ao", cuja acep<;:ao vai alem dos fatores biologicos (de faixas 
etarias), se confunde com a no<;:ao de contemporaneidade. A ideia de "sequencia 
de gera<;:6es", por sua vez, implica a rela<;:ao de "dominio dos contemporaneos, 
dos predecessores e dos sucessores".16 1sto pressup6e, ao mesmQ_tempo, a ideia 
de "aq!lisi<;:_a9:~~~_ 'lransr!1.i.~sao': 
Por meio dessas breves considera<;:6es, podemos salientar uma primeira 
constata<;:ao: polysemique, 0 conceito de gera<;:ao se predisp6e a uma multiplicidade 
de aplica<;:6es, tendo, em suma, valor relativo. Uma segunda constata<;:ao: a no-
<;:ao de contemporaneidade parece ser operante e operatoria para 0 estudo da 
Historia dos 1ntelectuais e a Historia 1ntelectual. Convem lembrar que 0 termo 
gera<;:ao cobre urn campo semantico extenso e impreciso, podendo ser emprega-
do tanto em sentido puramente biossociologico (de faixas etarias), como em 
sentido politico-ideologico (por exemplo, de engajamento politico e de mili-
tancia), como tambem em acep<;:ao cultural (a fim de revelar l'air du temps, por 
exemplo: a nouvelle-vague). 
Esse conceito, ja bastante utilizado pelas Ciencias Sociais, pode provocar 
mal-entendi.dos se sua acep<;:ao nao for bern definida no interior de urn quadro 
de analise. No dominio da Historia, em geral, a no<;:ao de gera<;:ao e empregada 
como sinonimo de "uma mesma faixa etaria" (na maior parte dos casos ele ates-
ta 0 aparecimento de "novas gera<;:6es"), mas e utilizada tambem em sentido 
mais extenso: 0 do ritmo de vida biologica (cerca de trinta anos), ou igualmente 
utilizado como equivalente, como vimos, da idria.-de£Qutemporaneidade, no 
sentido de uma vivencia coletiva comum. 
Na sua dimensao historica, 0 <;:<ll1-ceito iIe gera~ao ainda privilegia e refor<;:a 
a idti~_<i~muda~ae_deruptwa. Neste caso, seu emprego sempre tern fun<;:ao 
comparativa, ou seja, ele e 0 elemento que introduz 0 contraste temporal. Desse 
modo, quando se fala em "gera<;:ao de maio de 68", por exemplo, e sempre para 
refor<;:ar a especificidade da ultima em rela<;:ao a outra, anterior ou posterior a 
esse acontecimento. Nesse sentido, 0 emprego do termo "gera<;:ao" corre 0 risco 
23 
GRANDES NOMES DA HISTORIA INTELECTUAL 
de se confundir com uma "epoca" ou com uma "escola de pensamento': Como 
afirma Felix Torres, "numerosos fenomenos de mudan~a ou de defasagem se 
explicariam assim pela existencia dessa verdadeira 'bolha' mental, que reune, a 
partir de urn certo momento da historia, diversos individuos que partilham, a 
partir desse momento, uma memoria com urn" Y 
Na verdade, a no~ao de gerac;ao pode se revelar urn instrumento conceitual 
importante para desvendar a historia das representac;oes coletivas, ou seja, a pai-
sagem intelectual e moral de uma epoca, os sistemas de valores e as sensibilida-
des coletivas, a condic;ao, no entanto, que seu campo de aplica~ao, como ja men-
cionamos, seja bern definido. Assim, 0 movimento de maio de 1968 mobilizou 
em todas as partes do mundo onde ocorreu uma mesma gerac;ao composta por 
estudantes, ou seja, pela mesma faixa etaria especifica da populac;ao. 
Com efeito, 0 fenomeno de adesao e de identificac;ao a urn sistema de valor, 
a urn quadro de referencias mentais e ideologicas se configura na Franc;a, seja no 
momenta da guerra da Argelia, seja dez anos mais tarde, em maio de 1968. Como 
salienta Annie Kriegel, "uma gerac;ao so se encontra constituida quando, retros-
pectivamente, se estabelece urn sistema de referencias aceitas como sistema de 
identificac;ao coletiva" .18 
Os ~onceitos de.gera¢Q.£ de contemporaneidade possibilitam melhor apre-
ensao da temporalidade dos fen6menos culturais e intelectuais. Em suma, a His-
toria Intelectual, na perspectiva de uma abordagem da produc;ao intelectual (em 
relac;ao a sua genese, a sua produc;ao e a sua circulac;ao), em outras palavras, a obra 
vista em referencia a contextos culturais e intelectuais, abre espac;os para uma 
multiplicidade de escolhas possiveis: de analise, de procedimento e de objeto. 
NOTAS 
I Citac;:ao feita por R. Chartier, in: A historia cultural - entre priticas e representa~oes. Lisboa: 
Difel, 1990, p. 29. 
2 Citac;:ao de Franc;:ois Dosse, in:"De I'histoire des idees Ii I'histoire intellectuelle" (Conferencia 
proferida, em 16.4.200 I, na Universidade Federal do Parana). 
3 Ver C. Delacampagne. Histoire de la philosophie au XX sifkle. Paris: Seuil, 1995 (traduzido em 
portugues). 
4 C. Charle. La naissances de l'intellectuel- 1880 - 1900. Paris: Minuit, 1989. Sirinelli,J-F. Intellectuels 
et passions fran~aises. Paris: Fayard, 1990. 
5 0 substantivo "intelectual" e introduzido na lingua francesa, nesse momento, tendo conotac;:ao 
pejorativa. 
6 Conferencia proferida na UFPR em 16.4.200 I. 
7 Cf. F. Dosse. L'empire du sens - I'humanisation des sciences humaines. Paris: La Decouverte, 
1995. 
8 Ibid "A dupla guinada hermeneutica e pragmatica nos estudos hist6ricos e nas ciencias sociais 
na Franc;:a" - conferencia proferida por Franc;:ois Dosse, na UFPR, em 17.4.200 I. 
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TRADI<;:AO INTELECTUAL E ESPA<;:O HISTORIOGRAFICO 
9 F. Dosse. Paul Ricoeur- les sens d'une vie. Paris: La Decouverte. 1997. 
10 F. Dosse. !'1ichel de Certeau - Ie marcheur blesse. Paris: La Decouverte, 2002. 
II Paul Ricoeur. Tempo e narrativa (trad.). Campinas: Papirus, 1994. 3 vols. 
12 Cf. H.Rodrigues Silva. "Le discours d' Esprit e des Temps !'1odermes contre la guerre d'Algerie 
-reflexions sur Ie phenomene de I'engagement" (tese de doutorado), 2 v. Nanterre, Paris X, 
1991. 
13 Citado por Paul Ricoeur, in: Le Temps et Ie Recit /II - Le Temps Raconte. Paris: Ed. Seuil, 1985, 
p.163. 
14 Ibid., p. 163. 
15 Ibid., p. 163. 
16 Ideia desenvolvida por Alfred Schutz; In: The Phenomenology of the Social World (trad.), 
Northwestern University Press, 1967 (citado por Paul Ricoeur, op. cit., p. 165, 166). 
17 Felix Torres. Encyc/opedie Universalis, Symposium, 1985, p. 539. 
18 Annie Kriegel. "Le concept politique de generation"; In: Commentaire, vol. 2, n. 7, 1979, p. 390.

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