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A HISTORIA INTELECTUAL EM QUESTAo Helenice Rodrigues da Silva Dominio novo e mal definido, a Historia Intelectual transformou-se, nas ultimas duas decadas, em estimulante objeto de investiga<;:ao. No entanto, em razao da inexistencia de sistematiza<;:ao teo rica, indispensavel a toda pratica de analise, ela se apresenta como campo de estudo ainda indeterminado. Confun- did a com a historia das ideias, a historia cultural e a historia dos intelectuais, essa nova area, indistintamente designada, hesita entre ser, de urn lado, procedi- mento de analise, e de outro, disciplina em forma<;:ao. Indiferentemente associa- da a Intelle .. ctualHist.oIJ')_2J·_Clt~ Es_t~Qo..§J)nidos, e a Histoire Intellectuelle na versao franc~sa, a chamada Historia Intelectual, caso nao seja bern explicitada, 'pode d;r margens a uma serie de mal-entendidos. Impossivel de ser traduzida para outra lingua (para 0 frances, por exemplo) e para outro contexto intelec- tual, a Intellectual History difere fundamentalmente da Histoire Intellectuelle por se tratar de abordagem exclusivamente literaria (e ate mesmo lingiiistica) de uma obra. Por sua vez, a versao francesa, que melhor designa a acep<;:ao de uma Historia Intelectual, procura inscrever historicamente 0 discurso dos intelec- tuais, tentando ultrapassar a alternativa entre explica<;:6es intern as e externas. o NECESsARIO QUESTIONAMENTO CRITICO Como definir, entao, a Hist6ria Intelectual? Trata-se de uma hist6ria das formas de pensamento e de suas praticas? Trata-se de nova concep<;:ao da hist6- ria das ideias ou, simplesmente, de uma hist6ria dos intelectuais? Embora acre- ditemos que toda defini<;:ao seja imprecisa e normativa, duas delas nos parecem pertinentes. A primeira, de carater amplo, foi elaborada por Carl Schorske em seu livro Viena, fin de siecle: o historiador procura localizar e interpretar temporalmente 0 artefato num campo em que se intersectam duas linhas. Uma linha e vertical, ou diacronica, pela qual ele estabe- lece a relayao de urn texto ou de urn sistema de pensamento com as manifestayoes anteriores no mesmo ramo de atividade cultural (pintura, politica etc.). A outra e hori- zontal, ou sincronica; atraves dela, determina a relayao do conteudo do objeto intelec- tual com 0 que vai surgindo ao mesmo tempo noutros ramos ou aspectos de uma cultura.! A segunda, mais geral, foi formulada por Robert Darnton no texto "Intellectual and Cultural History" (1980): 15 GRANDES NOMES DA HISTORIA INTELECTUAL A hist6ria das ideias e 0 estudo dos pensarnentos sistern<iticos, geralrnente nos tratados filos6ficos; a Hist6ria Intelectual propriarnente dita [vern a serlo estudo dos pensa- rnentos inforrnais, (das correntes de opiniao e das tendencias litenirias); a hist6ria soci- al das ideias e a hist6ria cultural sao 0 estudo da cultura no sentido antropol6gico, incluindo as visoes de rnundo e as rnentalidades coletivas.2 Qual e, portanto, 0 objelo da Historia Intelectual? Uma resposta coerente a esta questao supoe, a priori, uma melhor defini<;:ao do seu proprio estatuto. A Historia Intelectual constitui forma de abordagem, metodo de analise ou area de conhecimento? Hesitando entre a "velha historia das ideias" (na perspectiva francesa) e a nova historia cultural (no sentido definido por Roger Chartier de restitui<;:ao das pr<iticas culturais), a Historia Intelectual oscila, por urn lado, en- tre uma Sociologia, uma Historia e ate mesmo uma biografia dos intelectuais, e por outro, entre uma analise das obras e das ideias como, por exemplo, uma possivel versao da historia da filosofia. 3,t o contexto frances, que alias nos serve de referencia, privilegia diferentes formas de el!tcidac;:il.Q. Uma primeira, sociologica, tende a enfatizar tanto uma cartografia dos intelectuais (asredes de sociabilidade, os modos de filia<;:oes, as gera<;:oes intelectuais) como 0 "campo" intelectual (a logica dos lug ares, dos in- teresses e das situa<;:oes). Uma.~egunda, hist6~i£b aborda, notadamente, a histo- ria politica dos intelectuais, enfatizando 0 ritual de peti<;:oes, manifestos, mani- festa<;:oes. Finalmente, outra vertente tende a elaborar uma hermeneutica das obras, ou melhor, uma analise do discurso intelectual. Em suma, a historia inte- lectual frances a pretende valorizar duas versoes: a discursiva (a obra em si, desincorporada de contextos) e a contextual (as configura<;:oes, os campos, as genealogias, as pr<iticas etc.). Y Feitas essas observa<;:oes, consideramos que a Historia Intelectual, dominio pluridisciplinar por excelencia, possibilita diferentes enfoques, como 0 dos con- textos de produ<;:ao de ideias, 0 dos agentes socioprofissionais e 0 das correntes de pensamento. Situada, portanto, na interse<;:ao de diferentes disciplinas (His- toria, Sociologia, Filosofia etc.), ela parece visar dois polos de analise: de urn lado, 0 conjunto de funcionamento de uma sociedade intelectual (0 "campo", na versao de Pierre Bourdieu), isto e, suas pr<iticas, seu modo de ser, suas regras de legitima<;:ao, suas estrategias, seus habitus; e de outro lado, as caracteristicas de urn momenta historico e conjuntural que impoe formas de percep<;:ao e de aprecia<;:ao, ou seja, modalidades espedficas de pensar e de agir de uma comuni- dade intelectual. Em outras palavras, a Historia Intelectual, tal como nos a per- cebemos, teria por principal pressuposto restituir, do ponto de vista sociologico, filosofico e historico, 0 contexto de produ<;:ao de uma obra. No en tanto, ela dife- 16 A HISTORIA INTELECTUAL EM QUESTAo re da tradicional historia das ideias (na acep~ao francesa), que se restringe quase sempre a uma cronica das ideias e a uma justaposi~ao cronologica de resumos de textos politicos e/ou filosoficos. , HISTORIA INTELECTUAL VERSUS HISTORIA DOS INTELECTUAIS? Dois estudos franceses, publicados por historiadores, parecem suscetiveis de ilustrar essas duas modalidades, aparentemente indissociaveis. 0 primeiro deles diz respeito ao livro de ~jlristQl2he Chaxle - 0 nascimento do intelectual - 1880/1900; 0 segundo, ao livro de Jea_l1~fr<ln(~ois Sirip_elli - Intelectuais e paixoes francesas, manifestos e petiroes no seculo 20.4 Baseando-se nos metodos das ciencias sociais, em geral, enos trabalhos de Bourdieu sobre 0 "campo", em particular, Christophe Charle busca reconstituir o J::ontexto cultural emqu~ eJl1erge, no momenta do caso Dreyfus, a figura do "intelectual" frances. s Para melhor entender as inflexoes na conjuntura intelec- tual daquela epoca, ele elabora uma cartografia apontando as mudan~as ocorri- das no campo intelectual e no contexto historico: aumento do numero de estu- dantes nas universidades, surgimento de uma especie de "proletariado litera rio" (as vanguardas artisticas e literarias) que aspiram outros valores, a ascensao do anti-semitismo etc. Essas muta~oes culturais e politicas explicam a mobiliza~ao dos chamados "intelectuais" na defesa do capitao Dreyfus (de origem judia), injustamente acusado de espionagem. Em nome dos valores republicanos e universalistas, uma fra~ao de "pensadores" composta por escritores, professores e artistas exige a revisao do processo. A fim de melhor explicar 0 cenario cultural dessa "batalha dos intelectuais", Charle dirige seu microscopio em dire~ao as list as dos ass in antes dreyfusard e dos anti-dreyfusard, confrontando-as por oposi~ao, com base na origem e filia~ao de seus respectivos me~bros: localiza~ao geografica (Paris/interior), faixa etaria (jovens/mais idosos), escola literaria (vanguarda/academismo) etc. Assim, os assinantes favoraveis a I2rqfus revelam, por exemplo, ser mais jovens que seus adversarios. Em geral, pertencem a Ecole de Chartres, ao College de France, a Ecole Pratique des Hautes Etudes e cursam certas disciplinas na Sorbonne (His- toria, Filosofia e Ciencias Sociais). Se, politicamente falando, esse grupo se situa a esquerda, em contrapartida, os opositores de Dreyfus, em grande maioria for- mados em disciplinasligadas a Antiguidade classica, posicionam-se a direita no jogo politico. Este ultimo grupo formado, em geral, por catolicos, se distingue do grupo oposto quanta a origem religiosa; muitos dreyfusard pertencem as minoritarias (judaismo e protestantismo). Portanto, por meio de levantamento rigoroso, Charle e capaz de desvendar determinados enigmas. Por exemplo, 0 fato de 0 escritor Barres posicionar-se, para surpresa de seus contemporaneos, 17 GRANDES NOMES DA HISTORIA INTELECTUAL como lider da direita intelectual, ocupando lugar que dificilmente teria no cam- po oposto. Todas essas demonstra<;:oes, para fins de compara<;:ao biognifica, acom- panhadas por cifras, cita<;:oes, quadros, permitem melhor compreensao do pro- cesso do nascimento destas duas figuras historicas: 0 intelectual da esquerda (dreyfusard) eo de dire ita (anti-dreyfusard). "- Sob a luz de peti<;:oes e manifestos assinados pelos intelectuais a partir do caso Dreyfus, Sirinelli realiza urn trabalho inedito sobre os 100 anos de "paixoes francesas". Centrando sua pesquisa na hist6ria politica, ou melhor, focalizando a hist6ria das politicas dentro dos grupos culturais e intelectuais, esse histaria- dor, autor de urn estudo sobre as gera<;:oes, nos anos 1930 e 1940, dos alunos das classes preparat6rias para a Ecole Normale Superieure e os "normalianos': am- plia seu campo de pesquisa, propondo a leitura dos manifestos que mobiliza- ram os intelectuais. Data, portanto, do final do seculo XIX 0 engajamento de escritores, artistas e professores, por meio de uma peti<;:ao em favor de Dreyfus, para exigir justi<;:a e verdade. Dessa batalha de ideias e de listas, plenas de ataques e de respostas, opondo sensibilidades politicas, surge 0 i()Z9 Eotag6nico de peti- <;:oes. Sirinelli apresenta diversos textos e manifestos que, em diferentes momen- tos hist6ricos, mobilizaram a classe intelectual. Par exemplo: textos que apelam ao pacifismo entre as duas guerras, manifestos em favor do "Comit{~ de Vigilan- cia Antifascista" nos anos 1930, dossies sobre os colaboracionistas e os acertos de contas ap6s a Libera<;:ao. Os acontecimentos sucessivos (que abalaram os inte- lectuais simpatizantes do Partido Comunista Frances) - a insurrei<;:ao de Buda- peste e 0 envio de tropas sovieticas (1956), provocando uma serie de textos e manifestos -, sao outro alvo de sua analise. Outras datas miticas sao abordadas: 1960 e 0 "Manifesto dos 121", ou seja, 0 manifesto dos intelectuais da esquerda a favor da deser<;:ao durante a guerra da Argelia; 1968 e as respectivas proclama- <;:oes politicas; 1971 e 0 manifesto para "0 direito ao aborto", entre outros. Para cada data e sequencia hist6rica, 0 autor descreve a lista de celebridades que se destacaram no espa<;:o publico: Zola e Anatole France, Barres e Renoir, Alain e Gide, Sartre e Aron, por exemplo. Esse estudo, bern documentado, fornece detalhes minuciosos, revelando fatos e anecjgta$. Para cada texto, Sirinelli apresen- ta sua genese, fornece a lista dos ass in antes, propoe algumas palavras-chaves. Des- sa leitura, apreendem-se as paixoes intelectuais e, sobretudo, as divisoes politicas (esquerda/direita) que acompanharam a hist6ria politica e cultural francesa: a mobiliza<;:ao d~ urn campo provocando imediatamente a adesao do campo opos- to. No entanto, os limites do trabalho fazem-se sentir no momento em que 0 autor faz refer en cia as redes de sociabilidade que perpassam 0 meio intelectual. Esses limites sao inerentes a uma Hist6ria concebida em termos unicamente politicos. Torna-se dificil entender a complexidade que subentende as evolu<;:oes de posi<;:oes 18 A HIST6RIA INTELECTUAL EM QUESTAo dos agentes e 0 sutil jogo das configura<;:oes culturais, institucionais e sociais que forjam as solidariedades, que 0 autor nao desvenda, restringindo-se a descreve-Ias. A simples listagem de nomes dos assinantes de diferentes peti<;:oes constitui proce- dimento insuficiente. Se tomarmos, por exemplo, 0 caso l)reyfus, como entender a posi<;:ao tomada pelos respectivos intelectuais, seja a favor da revisao do processo, seja em defesa de uma Liga da Patria Francesa? Sem duvida, 0 historiador que ambiciona compreender as redes de sociabilidade necessita pedir e_mprestad~~ Sill:iclogia e a Antropologia esquemas de interpreta<;:ao. Em sintese, a Hist6ria dos Intelectuais ten de a privilegiar a conjuntura ser- vindo-se de uma abordagem, notadamente, sociopoHtica. Por sua vez, a sociolo- gia dos intelectuais, praticada por soci6logos, interessa-se, essencialmente, pelo nivel das estruturas. Alem das redes de sociabilidade e dos modos de filia<;:ao, ela busca apreender as condi<;:oes de produ<;:ao e de recep<;:ao de uma obra. Romper com esse "sectarismo epistemol6gico" 0. C. Passeron), que tende a opor a Hist6- ria a Sociologia, torna-se condi<;:ao necessaria para a pratica de uma Hist6ria Intelectual. 0 estudo de Christophe Charle, que a nosso ver ultrapassa uma so- ciologia dos intelectuais, situando-se na perspectiva de uma Hist6ria Intelectual, permanece, no entanto, tributario de uma analise essencialmente conjuntural. A SUPERA<;:AO DA ALTERNATIVA "ANALISE INTERNA" E "ANALISE EXTERNA" Segundo Fran<;:ois Dosse, "uma tensao existe entre a velha hist6ria das ideias e a recente hist6ria cultural e entre as duas emerge essa hist6ria intelectual que se exprime atraves de uma ten sao entre explica<;:oes internas e explica<;:oes contextualistas, externas. Entre esses dois obstaculos, essa Hist6ria Intelectual deve inscrever-se numa perspectiva nao reducionista':6 Visando apreender as formas de pensar e de agir dos intelectuais, com base em urn cQntexto hist6rico e cultural especifico, a Hist6ria Intelectual precisa observar essas duas escalas de analise. No en tanto, mais do que uma articula<;:ao puramente mecfmica entre contexto e conteudo, em outras palavras, para alem de uma abordagem que J2!i~l~e a relayao entrea analise extern a dos aconteci~ mentos (hist6ricos, sociais, politicos) ea analise interna da obra (a hermeneutica ou a analise do discurso), a His16rialntclectual deve levar em considera<;:ao, simultaneamente, a dimensao djacronica (hist6ria) e sincroruca ("os aspectos diferentes de urn mesmo conjunto em urn mesmo momenta de evolu<;:ao"). Isto pressupoe a necessidade de integrar no campo das investiga<;:oes, para alem das no<;:oes de "configura<;:oes" (Elias) e de "campo" (Bourdieu), os paradigmas inte- lectuais, os episteme, as correntes filos6ficas que interferem, direta ou indireta- mente, nas representa<;:oes, nas visoes de mundo, condicionando sistemas de per- cep<;:ao, de aprecia<;:ao e de classifica<;:ao. 19 GRANDES NOMES DA HISTORIA INTELECTUAL A titulQilustrativo,_Jomemos os paradigm as intelectuais, ou seja, os mode- los dominantes que governam 0 pensamento cientifico de uma-epoca. A apreen- sao desses modelos de referencias teoricas nos parece fundamental em uma pes- quisa que pretenda integrar a obra intelectual a seu contexto de prodw;:ao. Em paises cuja cultura e forte mente centralizada, como e 0 caso da Fran~a, os modelos de referencia teorica em vigor, assim como as suas muta<roes, ten- dem a ser muito mais perceptiveis. No entanto, a dificuldade de explicar esse modelo de referencia surge quando se tenta apreender certos fen6menos ligados a passagem, a oscila~ao e a mudan<ra radical de urn paradigma a outro, por exem- plo, muta~oes e guinadas intelectuais, falencia de modelos de referencia, efeitos sobre diferentes culturas nacionais etc. Ora, os paradigmas intelectuais impli- cam forte coesao transdisciplinar dos conhecimentos e coerencia no interior de cada epoca historica. Isto posto, como apreender as transforma~oes de paradigmas em ciencias human as? Trata-se de verdadeira mudan~a de formas de pensar re- sultante de efetiva evolu~ao no dominio epistemologico ou de simples efeito de moda, de carater passageiro? Como interpretar a no~ao de paradigma intelec- tual, visto que esta ideia remete, deurn lado, a fechamentos e a reducionismos da pesquisa dentro de urn quadro ou program a de referencias conceituais, e de outro, a unidade, a intera~ao e a aceita~ao de modelos do conhecimento? Todos esses questionamentos nos parecem pertinentes na pesquisa desse dominio ain- da fluido que e a Historia Intelectual. A BIOGRAFIA INTELECTUAL Visto como genero historico insignificante, ao longo dos cinqiienta anos da hegemonia dos Annales, a biografia retorna, a partir dos anos 1980, na produ~ao intelectual, em razao mesmo dos novos paradigmas dominantes. Com a crise do "determinismo economico e social" (0 final dos gran des sistemas totalizantes), a estrutura, 0 coletivo e 0 inconsciente cedem lugar a vol- ta do individuo, da a~ao e dos fenomenos intencionais. Essa :valoriza~ao da "par- te exphcita e consciente da a<rao" pressupoe a apreensao de novos objetos e de novas formas de analise nas pesquisas em Ciencias Sociais. Apos as decadas de cientificismo, impostas pelo marxismo, estruturalismo e funcionalismo, as "cien- cias humanas se re-humanizam", no seu retorno em dire<rao a busca de seu pro- prio objeto. 7 Essa revaloriza<rao do individuo (nao mais na sua transparencia, como acreditavam os existencialistas, mas investido de verdadeira complexida- de), dos atores e da a~ao tern por fundamento epistemologico e metodologico urn IlQYO parad~l~ctllal: opragmatico e 0 interpretativo.8 E com base nesse novo modelo e contexto intelectuais que a biografia faz a sua reapari<rao na historiografia frances a dos anos 1980-90. Ao lado das biografias 20 A HISTORIA INTELECTUAL EM QUESTAO historicas que colocam em cena 0 destino de figuras politicas, de herois nacionais, mas tam bern de personagens desconhecidos pela Historia oficial, a Historia Inte- lectual reabilita esse genero de maneira urn pouco distinta. Nao se trata mais, seguin do as regras tradicionais da biografia, de narrar de maneira linear e crono- logica a vida de urn personagem intelectual, mas de buscar ness as trajetorias indi- viduais, imbricadas a propria historia intelectual, "os sentidos de uma vida" .9 Autor de duas biografias intelectuais, a de Paul Ricoeur e, recentemente, a de Michel de Certeau 10 , Franc;:ois Dosse vern praticando esse genero (historiografico e litenirio) que consiste, grosso modo, em colo car em cena tm instancias comumente definidas pela critica literaria, a saber: Qautor, 0 narradar e 0 person~. Servindo-se de entrevistas realizadas com pessoas que cruza- ram a vida de Ricoeur e de urn estudo aprofundado de sua obra, Dosse retrac;:a a coerencia do percurso de seu pensamento, pensamento este que conheceu mo- mentos de rejeic;:ao (na era estruturalista) e de reconhecimento (nos anos 1930, 1950 e a partir dos 1980). Explicitando a sucessao dos "lugares da memoria" que marcaram a sua tra- jetoria intelectual, por exemplo, as cidades onde lecionou (Estrasburgo, Paris, Chicago), as universidades onde ensinou (Sorbonne, Nanterre, Chicago) e os grupos intelectuais par onde transitou (Esprit, Laboratorio de Fenomenologia), Dosse apresenta uma pluralidade de percursos iritelectuais e as multiplas apro- priac;:6es por eles suscitados (0 contato com a filosofia analitica, por exemplo, nos Estados Unidos). Desde os anos 1930, Ricoeur concebe sua reflexao como forma de engajamento no espac;:o publico. Sua obra testemunha a atualidade de seu pensamento, marca- do pela constancia de uma etica existencial, filosofica e politi ca. A busca do senti- do, pela modalidade da biografia, como a de Paul Ricoeur, corresponde ao retorno atl,lal da Filosofia ao cenario intelectual frances. Do mesmo modo, 0 interesse por Michel de Certeau, este pensador livre e sem fronteiras, insere-se nas modalidades atuais de conceber a escrita da Historia descritas por esse autor. Desse modo, a escolha de personagens, tais como Certeau e Ricoeur, parece obedecer as novas diretrizes impostas pelas epistemologias das ciencias humanas. Na biografia sobre Michel de Certeau, Franc;:ois Dosse procura destacar, para alem de sua obra inter e pluridisciplinar, os caminhos que conduziram esse historiador, psicanalista, lin- guista e jesuita a ultrapassar as fronteiras, a buscar 0 outro e a rejeitar to do reducionismo proprio a uma atribuic;:ao identitaria. As biografias intelectuais, tais como as concebidas por Franc;:ois Dosse, pa- recem seguir urn mesmo roteiro, ou melhor, urn mesmo metodo. Elas impli- cam, inicialmente, por parte do narrador, urn conhecimento aprofundado da obra de seus autores. Esse pensamento narrado na sua temporalidade parece 21 GRANDES NOMES DA HISTORIA INTELECTUAL servir de estrutura a mise en intrigue do pr6prio texto. A escolha de entrevistas com familiares, cole gas e amigos do autor biografado visa maior compreensao da vida e da obra desses personagens. Assim, as imbrica<;:6es dos percursos inte- lectuais se desvendam por meio de urn mapeamento das institui<;:oes academi- cas, das filia<;:6es intelectuais, das redes de sociabilidade. Ao lado da interpreta- <;:ao da obra, a existencia desses autores, que atravessaram as tragedias do seculo XX, desponta em filigranas ao longo do texto, de maneira a permitir maior inteligibilidade desses pensamentos. As GERA<;:OES INTELECTUAIS: UM CONCEITO OPERATORIO? o retorno a no<;:ao de historicidade pela historiografia francesa nos anos 1980-90, gra<;:as, em grande parte, a descoberta de Tempo e narrativa, de Paul Ricoeur ll , contribuiu para a apreensao de outras categorias de analise, como a mem6ria e a sua transmissao pelas gera<;:6es. 0 c()n.-eci1~Lc!e~I"~ao revelou-se instrumento eficaz no estudo dos itinerarios e dos movimentos intelectuais. Embora, a primeira vista, ele pare<;:a mais adequado a elucida<;:ao da Hist6ria dos Intelectuais, esse conceito, a nosso ver, merece ser levado em conta no questionamento de uma Hist6ria Intelectual. 12 Sem duvida, 0 efeito de gera<;:ao como complementar de uma ideia de temporalidade e intrinseco a concep<;:ao mesma de historicidade. Em geral, quan- do uma faixa etaria intelectual se depara com determinados acontecimentos marcantes (golpes de Estado, revoltas, guerras), esses ultimos imprimem, na maioria das vezes, uma marca comum, inevitavel, nas sensibilidades, provocan- do uma mesma percep<;:ao e aspira<;:ao em rela<;:ao a esses acontecimentos. Assim, para melhor compreender 0 sentido do vivido e a partilha de uma mesma expe- riencia espa<;:o-temporal comuns, convem fazer apelo a uma no<;:ao de temporalidade. Para Wilheim Dilthey, por exemplo, 0 fenomeno de gera<;:ao e intermedia- rio, uma vez que deriva da intera<;:ao do tempo "exterior" da Hist6ria e do tempo "interior" da vida psiquica, quer dizer, da "experiencia vivida". Consequente- mente, Dilthey diferencia as duas utiliza<;:6es do conceito de gera<;:ao: 0 pertencimento a uma "mesma gera<;:ao" e a "sequencia das gera<;:6es': 13 Como ele mesmo afirmou: "Pertencem a uma 'mesma gera<;:ao' contemporaneos que fo- ram expostos as mesmas intluencias, marcados pelos mesmos acontecimentos e pelas mesmas transforma<;:6es. "14 Mas viver em urn mesmo espa<;:o de tempo nao significa, no entanto, a ne- cessidade de partilhar as mesmas experiencias de vida e a mesma forma de pen- sar. Ao lado dos criterios bio16gicos de pertencimento a uma "mesma gera<;:ao", ~!111eiIp, por sua vez, acrescenta urn criterio sociol6gico "disposicional" 22 A HIST6RIA INTELECTUAL EM QUESTAO que e caracterizado pelo que ele designa 0 "la<;:o de gera<;:ao". Este la<;:o depende de urn conjunto de afinidades, de sensibilidades comuns, herdadas e vivenciadas, capazes de condicionar 0 sentiID~nt~L<i~ partilha.-ekJJlll..mesmo destiuo. Esse "la<;:o" e marcado "pela participa<;:ao real a inten<;:6es diretrizes e as re- conhecidas tendencias formadoras".15 Segundo Mannheim, pertencem, entao, a uma "mesma gera<;:ao" todos aqueles que tendo vivido, simultaneamente, as mesmas experiencias coletivas, tendo sofrido 0 efeito dire to dos acontecimen-tos, tendo tido 0 sentimento de serem contemponlneos a esses mesmos aconte- cimentos, adquiriram uma mesma "visao de mundo". A experiencia comum ser- ve a essa mesma gera<;:ao de denominador comum. Percebe-se, entao, que a no- <;:ao de "mesma gera<;:ao", cuja acep<;:ao vai alem dos fatores biologicos (de faixas etarias), se confunde com a no<;:ao de contemporaneidade. A ideia de "sequencia de gera<;:6es", por sua vez, implica a rela<;:ao de "dominio dos contemporaneos, dos predecessores e dos sucessores".16 1sto pressup6e, ao mesmQ_tempo, a ideia de "aq!lisi<;:_a9:~~~_ 'lransr!1.i.~sao': Por meio dessas breves considera<;:6es, podemos salientar uma primeira constata<;:ao: polysemique, 0 conceito de gera<;:ao se predisp6e a uma multiplicidade de aplica<;:6es, tendo, em suma, valor relativo. Uma segunda constata<;:ao: a no- <;:ao de contemporaneidade parece ser operante e operatoria para 0 estudo da Historia dos 1ntelectuais e a Historia 1ntelectual. Convem lembrar que 0 termo gera<;:ao cobre urn campo semantico extenso e impreciso, podendo ser emprega- do tanto em sentido puramente biossociologico (de faixas etarias), como em sentido politico-ideologico (por exemplo, de engajamento politico e de mili- tancia), como tambem em acep<;:ao cultural (a fim de revelar l'air du temps, por exemplo: a nouvelle-vague). Esse conceito, ja bastante utilizado pelas Ciencias Sociais, pode provocar mal-entendi.dos se sua acep<;:ao nao for bern definida no interior de urn quadro de analise. No dominio da Historia, em geral, a no<;:ao de gera<;:ao e empregada como sinonimo de "uma mesma faixa etaria" (na maior parte dos casos ele ates- ta 0 aparecimento de "novas gera<;:6es"), mas e utilizada tambem em sentido mais extenso: 0 do ritmo de vida biologica (cerca de trinta anos), ou igualmente utilizado como equivalente, como vimos, da idria.-de£Qutemporaneidade, no sentido de uma vivencia coletiva comum. Na sua dimensao historica, 0 <;:<ll1-ceito iIe gera~ao ainda privilegia e refor<;:a a idti~_<i~muda~ae_deruptwa. Neste caso, seu emprego sempre tern fun<;:ao comparativa, ou seja, ele e 0 elemento que introduz 0 contraste temporal. Desse modo, quando se fala em "gera<;:ao de maio de 68", por exemplo, e sempre para refor<;:ar a especificidade da ultima em rela<;:ao a outra, anterior ou posterior a esse acontecimento. Nesse sentido, 0 emprego do termo "gera<;:ao" corre 0 risco 23 GRANDES NOMES DA HISTORIA INTELECTUAL de se confundir com uma "epoca" ou com uma "escola de pensamento': Como afirma Felix Torres, "numerosos fenomenos de mudan~a ou de defasagem se explicariam assim pela existencia dessa verdadeira 'bolha' mental, que reune, a partir de urn certo momento da historia, diversos individuos que partilham, a partir desse momento, uma memoria com urn" Y Na verdade, a no~ao de gerac;ao pode se revelar urn instrumento conceitual importante para desvendar a historia das representac;oes coletivas, ou seja, a pai- sagem intelectual e moral de uma epoca, os sistemas de valores e as sensibilida- des coletivas, a condic;ao, no entanto, que seu campo de aplica~ao, como ja men- cionamos, seja bern definido. Assim, 0 movimento de maio de 1968 mobilizou em todas as partes do mundo onde ocorreu uma mesma gerac;ao composta por estudantes, ou seja, pela mesma faixa etaria especifica da populac;ao. Com efeito, 0 fenomeno de adesao e de identificac;ao a urn sistema de valor, a urn quadro de referencias mentais e ideologicas se configura na Franc;a, seja no momenta da guerra da Argelia, seja dez anos mais tarde, em maio de 1968. Como salienta Annie Kriegel, "uma gerac;ao so se encontra constituida quando, retros- pectivamente, se estabelece urn sistema de referencias aceitas como sistema de identificac;ao coletiva" .18 Os ~onceitos de.gera¢Q.£ de contemporaneidade possibilitam melhor apre- ensao da temporalidade dos fen6menos culturais e intelectuais. Em suma, a His- toria Intelectual, na perspectiva de uma abordagem da produc;ao intelectual (em relac;ao a sua genese, a sua produc;ao e a sua circulac;ao), em outras palavras, a obra vista em referencia a contextos culturais e intelectuais, abre espac;os para uma multiplicidade de escolhas possiveis: de analise, de procedimento e de objeto. NOTAS I Citac;:ao feita por R. Chartier, in: A historia cultural - entre priticas e representa~oes. Lisboa: Difel, 1990, p. 29. 2 Citac;:ao de Franc;:ois Dosse, in:"De I'histoire des idees Ii I'histoire intellectuelle" (Conferencia proferida, em 16.4.200 I, na Universidade Federal do Parana). 3 Ver C. Delacampagne. Histoire de la philosophie au XX sifkle. Paris: Seuil, 1995 (traduzido em portugues). 4 C. Charle. La naissances de l'intellectuel- 1880 - 1900. Paris: Minuit, 1989. Sirinelli,J-F. Intellectuels et passions fran~aises. Paris: Fayard, 1990. 5 0 substantivo "intelectual" e introduzido na lingua francesa, nesse momento, tendo conotac;:ao pejorativa. 6 Conferencia proferida na UFPR em 16.4.200 I. 7 Cf. F. Dosse. L'empire du sens - I'humanisation des sciences humaines. Paris: La Decouverte, 1995. 8 Ibid "A dupla guinada hermeneutica e pragmatica nos estudos hist6ricos e nas ciencias sociais na Franc;:a" - conferencia proferida por Franc;:ois Dosse, na UFPR, em 17.4.200 I. 24 TRADI<;:AO INTELECTUAL E ESPA<;:O HISTORIOGRAFICO 9 F. Dosse. Paul Ricoeur- les sens d'une vie. Paris: La Decouverte. 1997. 10 F. Dosse. !'1ichel de Certeau - Ie marcheur blesse. Paris: La Decouverte, 2002. II Paul Ricoeur. Tempo e narrativa (trad.). Campinas: Papirus, 1994. 3 vols. 12 Cf. H.Rodrigues Silva. "Le discours d' Esprit e des Temps !'1odermes contre la guerre d'Algerie -reflexions sur Ie phenomene de I'engagement" (tese de doutorado), 2 v. Nanterre, Paris X, 1991. 13 Citado por Paul Ricoeur, in: Le Temps et Ie Recit /II - Le Temps Raconte. Paris: Ed. Seuil, 1985, p.163. 14 Ibid., p. 163. 15 Ibid., p. 163. 16 Ideia desenvolvida por Alfred Schutz; In: The Phenomenology of the Social World (trad.), Northwestern University Press, 1967 (citado por Paul Ricoeur, op. cit., p. 165, 166). 17 Felix Torres. Encyc/opedie Universalis, Symposium, 1985, p. 539. 18 Annie Kriegel. "Le concept politique de generation"; In: Commentaire, vol. 2, n. 7, 1979, p. 390.