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HISTÓRIA E OS CONCEITOS HISTÓRICOS RACHEL DUARTE ABDALA HISTÓRIA E OS CONCEITOS HISTÓRICOS 1ª Edição Taubaté Universidade de Taubaté 2014 Copyright©2014.Universidade de Taubaté. Todos os direitos dessa edição reservados à Universidade de Taubaté. Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida por qualquer meio, sem a prévia autorização desta Universidade. Administração Superior Reitor Prof.Dr. José Rui Camargo Vice-reitor Prof. Dr. Isnard de Albuquerque Câmara Neto Pró-reitor de Administração Prof. Dr. Arcione Ferreira Viagi Pró-reitor de Economia e Finanças Prof. Dr. José Carlos Simões Florençano Pró-reitora Estudantil Profa. Ma. Angela Popovici Berbare Pró-reitor de Extensão e Relações Comunitárias Prof. Dr. Mario Celso Peloggia Pró-reitora de Graduação Profa. Dra. Nara Lúcia Perondi Fortes Pró-reitor de Pesquisa e Pós-graduação Prof. Dr. Francisco José Grandinetti Coordenação Geral EaD Profa.Dra.Patrícia Ortiz Monteiro Coordenação Acadêmica Profa.Ma.Rosana Giovanni Pires Coordenação Pedagógica Profa.Dra.Ana Maria dos Reis Taino Coordenação Tecnológica Profa. Ma. Susana Aparecida da Veiga Coordenação de Mídias Impressas e Digitais Profa.Ma.Isabel Rosângela dos Santos Ferreira Coord. de Área: Ciências da Nat. e Matemática Profa. Ma. Maria Cristina Prado Vasques Coord. de Área: Ciências Humanas Profa. Ma. Fabrina Moreira Silva Coord. de Área: Linguagens e Códigos Profa. Dra. Juliana Marcondes Bussolotti Coord. de Curso de Pedagogia Coord. de Cursos de Tecnol. Área de Gestão e Negócios Coord. de Cursos de Tecnol. Área de Recursos Naturais Revisão ortográfica-textual Projeto Gráfico Diagramação Autor Profa. Dra. Ana Maria dos Reis Taino Profa. Ma. Márcia Regina de Oliveira Profa. Ma. Ana Paula da Silva Dib Profa. Ma. Nanci Aparecida de Almeida Me.Benedito Fulvio Manfredini Amanda Cortez Machado Rachel Duarte Abdala Unitau-Reitoria Rua Quatro de Março,432-Centro Taubaté – São Paulo CEP:12.020-270 Central de Atendimento:0800557255 Polo Taubaté Polo Ubatuba Polo São José dos Campos Avenida Marechal Deodoro, 605–Jardim Santa Clara Taubaté–São Paulo CEP:12.080-000 Telefones: Coordenação Geral: (12)3621-1530 Secretaria: (12)3625-4280 Av. Castro Alves, 392 – Itaguá – CEP: 11680-000 Tel.: 0800 883 0697 e-mail: nead@unitau.br Horário de atendimento: 13h às 17h / 18h às 22h Av Alfredo Ignácio Nogueira Penido, 678 Parque Residencial Jardim Aquarius Tel.: 0800 883 0697 e-mail: nead@unitau.br Horário de atendimento: 8h às 22h Ficha catalográfica elaborada pelo SIBi Sistema Integrado de Bibliotecas / UNITAU A135h Abdala, Rachel Duarte História e os conceitos históricos / Rachel Duarte Abdala. Taubaté: UNITAU, 2012. 46p. : il. ISBN: 978-85-65687-99-7 Bibliografia 1. História. 2. Conceitos históricos. 3. Pensamento histórico. 4. Análise histórica. I. Universidade de Taubaté. II. Título. v PALAVRA DO REITOR Palavra do Reitor Toda forma de estudo, para que possa dar certo, carece de relações saudáveis, tanto de ordem afetiva quanto produtiva. Também, de estímulos e valorização. Por essa razão, devemos tirar o máximo proveito das práticas educativas, visto se apresentarem como máxima referência frente às mais diversificadas atividades humanas. Afinal, a obtenção de conhecimentos é o nosso diferencial de conquista frente a universo tão competitivo. Pensando nisso, idealizamos o presente livro- texto, que aborda conteúdo significativo e coerente à sua formação acadêmica e ao seu desenvolvimento social. Cuidadosamente redigido e ilustrado, sob a supervisão de doutores e mestres, o resultado aqui apresentado visa, essencialmente, às orientações de ordem prático-formativa. Cientes de que pretendemos construir conhecimentos que se intercalem na tríade Graduação, Pesquisa e Extensão, sempre de forma responsável, porque planejados com seriedade e pautados no respeito, temos a certeza de que o presente estudo lhe será de grande valia. Portanto, desejamos a você, aluno, proveitosa leitura. Bons estudos! Prof. Dr. José Rui Camargo Reitor vi vii Apresentação Este livro-texto aborda os Conceitos Históricos que são a base de todo o trabalho dos historiadores. Os conceitos são efetivamente as ferramentas a partir das quais os historiadores pensam e escrevem sobre os fatos e sobre a própria História. Desse modo, é fundamental refletir e conhecer os conceitos e a problemática que envolve a sua definição e a sua aplicação nas análises desenvolvidas na área de História. Além de serem aplicados nas análises historiográficas impreterivelmente, os conceitos também são, eles mesmos, alvo de intensa discussão no campo. Inicialmente, esse livro-texto apresenta a complexidade que envolve os conceitos, bem como as dimensões que ela abrange e que vão desde a língua, a linguagem e a linguagem científica até a própria definição do conceito. Basicamente, antes de aplicar uma ferramenta devemos conhecer o que ela faz, qual a sua capacidade. Assim também acontece com relação aos conceitos. Embora seja imprescindível para a análise em História, ou mesmo exatamente por esse motivo, precisa antes de ser aplicado, estudado. Em seguida vamos estudar os tipos e as funções dos conceitos históricos. Depois, o conceito de História. Sim, História também é um conceito. Por fim, foram escolhidos três conceitos para serem analisados de um modo mais aprofundado dada a sua importância na área de História. Com isso esperamos oferecer as ferramentas necessárias aos futuros historiadores e professores de História, pois como todos sabemos essas esferas são indissociáveis, para desenvolverem seus trabalhos e suas análises. viii ix Sobre a autora RACHEL DUARTE ABDALA: bacharel e licenciada em História pela Universidade de São Paulo - USP. Mestre em História da Educação pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo - FEUSP. Doutoranda pela mesma Instituição. Docente e coordenadora do curso de História da Universidade de Taubaté - UNITAU. Pesquisadora no Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em História da Educação - NIEPHE da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo -FEUSP. Pesquisadora do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas de Práxis Contemporâneas - NIPPC da Universidade de Taubaté - UNITAU. Pesquisadora do Núcleo de Pesquisas em História - NPH da Universidade de Taubaté - UNITAU. x xi Caros(as) alunos(as), Caros( as) alunos( as) O Programa de Educação a Distância (EAD) da Universidade de Taubaté apresenta-se como espaço acadêmico de encontros virtuais e presenciais direcionados aos mais diversos saberes. Além de avançada tecnologia de informação e comunicação, conta com profissionais capacitados e se apoia em base sólida, que advém da grande experiência adquirida no campo acadêmico, tanto na graduação como na pós-graduação, por mais de 35 anos de História e Tradição. Nossa proposta se pauta na fusão do ensino a distância e do contato humano-presencial. Para tanto, apresenta-se em três momentos de formação: presenciais, livros-texto e Web interativa. Conduzem esta proposta professores/orientadores qualificados em educação a distância, apoiados por livros-texto produzidos por uma equipe de profissionais preparada especificamente para este fim, e por conteúdo presente em salas virtuais. A estrutura interna dos livros-texto é formada por unidades que desenvolvem os temas e subtemas definidos nas ementas disciplinares aprovadas para os diversos cursos. Como subsídio aoaluno, durante todo o processo ensino-aprendizagem, além de textos e atividades aplicadas, cada livro-texto apresenta sínteses das unidades, dicas de leituras e indicação de filmes, programas televisivos e sites, todos complementares ao conteúdo estudado. Os momentos virtuais ocorrem sob a orientação de professores específicos da Web. Para a resolução dos exercícios, como para as comunicações diversas, os alunos dispõem de blog, fórum, diários e outras ferramentas tecnológicas. Em curso, poderão ser criados ainda outros recursos que facilitem a comunicação e a aprendizagem. Esperamos, caros alunos, que o presente material e outros recursos colocados à sua disposição possam conduzi-los a novos conhecimentos, porque vocês são os principais atores desta formação. Para todos, os nossos desejos de sucesso! Equipe EAD-UNITAU xii xiii Sumário Palavra do Reitor .............................................................................................................. v Apresentação .................................................................................................................. vii Sobre a autora .................................................................................................................. ix Caros(as) alunos(as) ........................................................................................................ xi Objetivos ........................................................................................................................... 2 Introdução ......................................................................................................................... 3 Unidade 1. A problemática e a função dos conceitos em História ............................. 5 1.1 O conceito de conceito: o termo e a ideia ................................................................... 5 1.2 A linguagem científica................................................................................................ 6 1.3 Nomenclatura e classificação ..................................................................................... 8 1.4 A virada Linguística na História ............................................................................... 12 1.5 Síntese da Unidade ................................................................................................... 14 1.6 Para saber mais ......................................................................................................... 15 1.7 Atividades ................................................................................................................. 16 Unidade 2. Tipos e funções dos conceitos históricos .................................................. 17 2.1 Jogo Aberto: você sabe ler e escrever? ..................................................................... 17 2.2 Conceitos históricos .................................................................................................. 18 2.3 Categorias de análise ................................................................................................ 21 2.4 Conceitos ferramenta ................................................................................................ 24 2.5 Síntese da Unidade ................................................................................................... 25 2.6 Para saber mais ......................................................................................................... 26 2.7 Atividades ................................................................................................................. 28 Unidade 3. O conceito de História ............................................................................... 29 xiv 3.1 O termo História ....................................................................................................... 29 3.2 Definições de História .............................................................................................. 31 3.3 Síntese da Unidade ................................................................................................... 32 3.4 Para saber mais ......................................................................................................... 33 3.5 Atividades ................................................................................................................. 33 Unidade 4. O conceito de História ............................................................................... 35 4.1 Tempo: o conceito fundamental ............................................................................... 35 4.2 Memória: o conceito desdobrado ............................................................................. 38 4.3 Cultura: um conceito atual ........................................................................................ 39 4.4 Síntese da Unidade ................................................................................................... 42 4.5 Para saber mais ......................................................................................................... 42 4.6 Atividades ................................................................................................................. 43 Referências ..................................................................................................................... 45 11 ORGANIZE-SE!!! Você deverá usar de 3 a 4 horas para realizar cada Unidade. História e os Conceitos Históricos EMENTA A História é uma ciência que se fundamenta em cinco pilares epistemológicos. O estudo desses pilares e de sua epistemologia auxilia a compreensão desta ciência. Apresenta e promove discussões epistemológicas sobre o conhecimento histórico. Este livro-texto discute o processo de definição do campo do conhecimento histórico e da historiografia. Incita a reflexão acerca dos diversos sentidos das formas de escrita da História e de seus conceitos fundamentais. 22 Objetivo Geral Compreender, estudar e problematizar os conceitos fundamentais e as especificidades da História. os Obj eti vos Objetivos Específicos Iniciar os alunos no estudo e na reflexão dos conceitos da História e do pensamento histórico; Indicar formas de aplicação dos conceitos históricos nas análises dos historiadores; Estimular a reflexão e a percepção sobre a análise histórica. 33 Introdução Neste livro-texto, veremos a complexidade dos conceitos históricos e de sua aplicação nas análises desenvolvidas pelos historiadores. Veremos os diferentes tipos de conceitos. Na primeira Unidade, intitulada “A problemática e a função dos conceitos em História”, estudaremos a complexidade e as discussões que envolvem os conceitos. A segunda Unidade, intitulada “Tipos e funções dos conceitos Históricos”, examinaremos os três tipos de conceitos do campo da História e suas diferenças e especificidades. Na terceira Unidade, cujo título é “O conceito de História”, analisaremos as discussões em torno da definição de História e os motivos pelos quais o termo que denomina a ciência e o conjunto dos fatos realizados pelo homem é ele próprio também um conceito. É preciso antes de estudar outros conceitos começar pelo início estudando e compreendendo o conceito de História. Na quarta e última Unidade, intitulada “Aplicação dos conceitos”, estudaremos três conceitos que são essenciais para a História: tempo, memória e cultura. Chamamos o tempo de o conceito fundamental, porque além de ser visto dessa forma pelo senso comum e pelos próprios historiadores, o tempo é de fato um dos pilares epistemológicos da História. Memória denominamos de conceito desdobrado, pois é considerado como o complementoda História e, por fim, cultura é um dos mais debatidos conceitos no âmbito da História e foi, por esse motivo, escolhido para compor esse conjunto. 44 55 Paul Veyne (1930-) historiador e arqueólogo francês. Foi filiado ao Partido Comunista Francês. Em 1955 tornou-se membro da Escola Francesa de Roma. Após 1955, voltou para Aux-en-Provence como professor da Universidade de Provença. Em 1970 lançou seu livro de maior projeção: Como se escreve a História. Ensaio de epistemologia. Em 1975, tornou-se titular na cátedra de História Romana no College de France. Em 1978, acrescentou à obra Como se escreve a história, o ensaio Foucault revoluciona a história. Figura 1.1 – Paul Veyne. Fonte:http://www.babelio.com/users/AVT2_V eyne_6535.jpeg Acesso em: 19 jun. 2011 Unidade 1 Unidade 1 . A problemática e a função dos conceitos em História Nesta Unidade, vamos estudar a complexidade da conceituação em História que envolve a linguagem e a própria historicidade da História. 1.1 O conceito de conceito: o termo e a ideia Conceituar é tarefa difícil, senão impossível, pois, toda conceituação é incompleta, imperfeita. Condensar em poucas palavras todo o conteúdo de ideias de um objeto ou de coisa torna-se tarefa quase impossível. Por esse motivo, todo conceito sofre limitações na essência e/ou na forma. Além disso, tanto para conceituar quanto para utilizar os conceitos é preciso considerar que os conceitos são dinâmicos, têm historicidade, ou seja, mudam ao longo do tempo. O historiador francês Paul Veyne asseverou que “o único verdadeiro problema é o dos conceitos em História” (1987, p. 150). 66 Mas o que é um conceito? As definições do dicionário e as mais correntes definem conceito como: representação de um objeto pelo pensamento, nas suas características gerais. Ação de formular uma ideia por meio das palavras, definição. Noção, ideia por meio de palavras, definição. Noção, ideia, concepção. Apreciação, julgamento, avaliação. Avaliação escolar. Como podemos ver o termo é utilizado com muitos sentidos e muitas aplicações, inclusive a de nomear as notas auferidas aos alunos nas avaliações escolares. Aqui, nos interessa perceber em primeiro lugar que um conceito é formado por duas partes distintas: o termo, a palavra e o sentido. Damos a essas duas dimensões os nomes de: denotação e conotação. A denotação é o termo, a palavra, o nome, formado pela língua e estudado pela etimologia. Esse é o sentido primeiro dado a partir da raiz etimológica à qual e do qual o termo se originou. Por exemplo, a palavra cronologia vem do grego como derivação de Cronos que é o Deus mitológico do tempo. Significa originalmente a ordem da datas e dos fatos. A conotação são os sentidos, os significados que foram sendo atribuídos ao termo original ao longo do tempo. Esses sentidos vão sendo acumulados ou substituídos de acordo com a dinâmica histórica e o uso que vai sendo feito dos termos e conceitos e pode mudar de acordo com o contexto. Como afirma Jacques Le Goff (1990), os conceitos do historiador são metafóricos, articulam o concreto da palavra e o abstrato dos sentidos. 1.2 A linguagem científica O filósofo austríaco naturalizado britânico, Ludwig Wittgenstein (1889-1951), sintetizou a importância da linguagem na frase: “Os limites da minha linguagem denotam os limites do meu mundo”. 77 A linguagem é uma atividade humana que promove a comunicação e a integração entre os homens e, devido às várias dimensões que envolve, tem sido alvo de grandes discussões filosóficas. Considerando que as linguagens são criadas pelos homens, a relação entre linguagem e cultura é muito estreita. Os tipos de linguagem são muito mais abrangentes que exclusivamente o verbal (oral ou escrito) baseado nas palavras, que é o que nos interessa aqui, pois os conceitos são representados fundamentalmente em palavras. Existem muitos outros tipos de linguagem criados pelo homem, como por exemplo a linguagem dos sinais e gestos, as linguagens matemáticas, as artísticas, etc. Os tipos de linguagem que se relacionam com a discussão deste livro-texto são a linguagem verbal, a linguagem científica e a conceitual. Com relação à linguagem científica, cada ciência constitui a sua própria linguagem, composta por termos específicos especialmente criados para nomear as descobertas científicas. Esses termos especialmente criados compõem o que chamamos de jargão. As chamadas “ciências duras”, que são as ciências exatas, se baseiam também na linguagem matemática, além da verbal. Para Gildo Magalhães (2005, p. 192), “se a linguagem do conhecimento quando se dirige para a ciência deveria ser a mais simples possível, é comum que se torne hermética, ao mesmo tempo que pretende ser objetiva e sem ambiguidades”. Para a filósofa brasileira Marilena Chaui (1997), a linguagem conceitual procura evitar, diferentemente da linguagem simbólica, a analogia e a metáfora, procurando atribuir às palavras um sentido direto e não figurado ou figurativo. Isso não significa que a linguagem conceitural seja exclusivamente denotativa. Pelo contrário, nela a conotação é essencial. “A linguagem conceitual procura diminuir a polissemia das palavras, buscando fazer com que cada palavra tenha um sentido próprio e que seus diferentes sentidos dependam do contexto no qual é empregada.” (CHAUI, 1997, p. 150). 88 De acordo com Jacques Le Goff, a obra do historiador é uma forma de atividade intelectual simultaneamente poética, científica e filosófica. Desse modo, ao assumir-se como arte e como “filha” da Filosofia, a História consegue se tornar mais específica, técnica e científica e menos literária e filosófica. Nos seus primórdios, no período da cultura grega helenística, nada distinguia a História da Literatura. O Filósofo Aristóteles chegou a afirmar o caráter artístico da História. Atualmente alguns historiadores reivindicam para a história o estatuto de arte. Georges Duby afirma que: “A história só existe pelo discurso”. Paul Veyne defendeu durante muito tempo que a História seria uma narrativa, e, portanto, se aproximaria das características da Literatura. As concepções de Hayden White afirmam a lógica do trabalho histórico fundamentada em uma linearidade narrativa sem perder o caráter científico, a partir da articulação e aplicação de estratégias que resultam no “efeito explicativo” ou “estilo” Historiográfico. Hayden White conclui, sobre a ciência histórica no século XIX, que: 1. não há diferença entre História e Filosofia da História; 2. escolha das estratégias de explicação histórica é mais moral ou estética do que epistemológica; 3. a reivindicação de uma cientificidade da história não é mais que o disfarce de uma preferência por esta ou aquela modalidade de conceituação histórica. Voltamos à problemática do conceito em História sem ter saído dela. A História se vale de uma linguagem científica para afirmar o seu caráter como ciência. E, essa linguagem tem a sua especificidade, como já vimos. No caso da História, além da especificidade inerente ao discurso científico assentado na linguagem conceitual, precisa lidar com problemas relativos à definição dos conceitos. E, como Ciência Humana não só aplica os conceitos, mas também os questiona e reflete sobre a sua aplicação. 1.3 Nomenclatura e classificação Para Marc Bloch (2001), o problema da classificação é inseparável do problema da nomenclatura. 99 De acordo com Bloch (2001, p. 135), “toda análise requer primeiro, como instrumento, uma linguagem apropriada”. E é justamente aí que se localiza o maior problema dos historiadores, pois, diferentemente do que vimos com relação às ciências que produzem jargões, a História não tem um jargão, o vocabulário do historiador é, em suamaior parte, proveniente do seu objeto de estudo, “não resulta do esforço severamente combinado dos técnicos”. Os documentos tendem a impor uma nomenclatura para o historiador. No entanto, como nos alerta Bloch, esse “decalque” da terminologia do passado carece que o historiador enfrente alguns desafios. Assim, o vocabulário dos documentos é um testemunho – como todo testemunho, imperfeito e sujeito à crítica. A nomenclatura empregada pelo historiador não é uma linguagem propriamente inventada, mas remanejada. Pode parecer um procedimento seguro, mas não se pode deixar de lado o contexto e as atualizações necessárias para a compreensão. Deve-se, portanto, considerar o contexto em que os termos foram empregados para que não se perca o seu sentido. Quando usamos só o termo, descontextualizado, pode-se incorrer em equívocos. Por exemplo, o termo carro já era usado na antiguidade para denominar os carros de guerra, mas contextualizando não podemos achar que os romanos quando utilizavam o termo carro falavam sobre os automóveis movidos à gasolina ou a álcool chamados hoje de carros. Há, de acordo com Bloch, um apego ao nome. Para ele, o homem não sente necessidade de mudar o “rótulo” só porque o seu sentido mudou. O próprio termo História, como veremos adiante na Unidade 3, experimentou essa situação. Mudou o seu sentido, mas o termo foi mantido. Além do dinamismo histórico, o outro alerta que Bloch faz diz respeito ao dinamismo da própria linguagem. Ao longo do tempo algumas palavras deixam de ser utilizadas e desaparecem, outras mudam de sentido e de grafia. Há uma espécie de evolução da linguagem que nem sempre o historiador consegue acompanhar. Nesse sentido há o problema do uso pelo historiador do termo no original. Dependendo do termo e do uso, o historiador deve manter o original e em outros casos deve atualizá-lo. Mas como distinguir? Assim, apresenta-se um outro problema: É possível a exatidão na História? 1100 Figura 1.2 - Retrato de Edward James. Fonte:http://www.culturabrasil.org/magri tte.htm Acesso em 23 jun. 2012 Reprodução Proibida (Retrato de Edward James), 1937, Roterdan, Museu Boymans-van Beuningen Para Paul Veyne (1987, p. 162), “o conceito é um obstáculo ao conhecimento histórico porque esse conhecimento é descritivo; a história não tem necessidade de princípios explicativos, mas de palavras para dizer como eram as coisas”. O historiador fala unicamente com palavras. E fala com palavras de seu país, ou seja, na sua língua materna que traz consigo referências culturais das quais o historiador não consegue se desvencilhar, ainda que o seu objeto de estudo seja algum fato ou fenômeno histórico de outro lugar que não o seu. Outra questão apontada por Marc Bloch diz respeito ao bilinguismo hierárquico praticado por muitas sociedades. Esse bilinguismo se refere à distinção entre a língua culta e a língua popular. Precisamos de suportes materiais para conhecer uma sociedade e sua cultura, e recorremos para isso fundamentalmente à escrita. O problema é que a escrita, na maioria das vezes, registra quase que exclusivamente a língua culta, excluindo assim termos e ideias da língua popular, bem como aspectos importantes da sua cultura. E, em última instância, para finalizar a gama de problemas e obstáculos enfrentados pelo historiador no uso dos conceitos, nada mais difícil para um homem do que se exprimir a si mesmo. Não podemos nos esquecer de que o historiador é, ele próprio, um homem que fala, ao falar dos outros homens, sobre si mesmo. Desse modo, muitas vezes o historiador recorre ao uso de metáforas e de aproximações. Os termos mais usados são aproximações, pois o sentimento não pode ser nomeado porque ainda não tinha nome. Alguns exemplos desse 1111 processo são os termos empregados para denominar os conceitos de Renascimento e de Antigo Regime. Outro exemplo mais próximo da nossa realidade é o da denominação da América como Novo Mundo, o que passou, por oposição, a denominar a Europa como Velho Mundo. Isso só foi possível com a descoberta da América, pois, enquanto ainda não havia um outro mundo, um novo mundo, a Europa era considerada o “único”, portanto não poderia receber uma adjetivação. “O advento do nome é sempre um grande fato, mesmo se a coisa o havia precedido; pois marca a etapa decisiva da tomada de consciência”. (BLOCH, 2001, p. 142). Assim, como já vimos, o conceito está assentado em um termo. Não existe sem uma palavra que o denomine. Por esse motivo o nome é tão importante para a História, ou pelo menos deveria ser. Uma palavra vale menos por sua etimologia do que pelo uso que dela é feito. Ou seja, a etimologia é o ponto de partida, portanto não deve ser desconsiderada, mas os sentidos atribuídos a ela são talvez mais importantes do que ela própria. Retomando a questão acerca da precisão na História, devemos considerar que muitas palavras empregadas como conceitos pelo historiador são carregadas de sentimentos e suscitam emoções, inclusive no próprio historiador que é, como sabemos, um homem também. Os poderes do sentimento raramente favorecem a precisão da linguagem (BLOCH, 2001, p. 143). Essa é a latente questão da subjetividade na História. Subjetividade não significa juízo de valor, mas que o historiador ao escrever a História funciona como uma espécie de filtro cultural. Essa é uma das maiores questões das Ciências Humanas. Assim, no caso do emprego dos conceitos, cada historiador compreende o nome de um modo diferente de acordo com seus referenciais culturais. Por fim, ao tratar da nomenclatura é preciso reconhecer o seu caráter de didatização da História. Por exemplo, “a Idade média, na verdade, vive apenas de uma humilde vidazinha pedagógica: contestável comodidade de programas, rótulo, sobretudo de técnicas eruditas, cujo campo, a propósito, é bastante delimitado pelas datas tradicionais” (BLOCH, 2001, p. 149). 1122 Para finalizar, Marc Bloch (2002. 1150-153) assevera que: “A verdadeira exatidão consiste em se adequar, cada vez, à natureza do fenômeno estudado. [...] Cabe à prática introduzir em suas distinções uma exatidão e um discernimento crescentes.” 1.4 A virada Linguística na História Caro aluno, como você pode acompanhar nesta Unidade, a dificuldade que envolve a Virada Linguística na História. A nova abordagem da História acontece a partir do momento que dois historiadores, Marc Bloch e Lucien Febvre, demonstram suas insatisfações sobre a história política e a superficialidade com que são analisadas. Para eles, os homens são muito mais complexos do que simples relações entre países e homens de poder. A História necessitava ser mais abrangente, ter em vista a nação, o todo, como disse Lucien Febvre, fazer uma outra história. Essa outra História consiste em não só fundamentar-se em aspectos políticos e econômicos, mas também em questões culturais e sociais. Analisar o mesmo fato, acontecimento, de diferentes aspectos, trazer uma problemática à História, da qual ela seja sempre um processo contínuo e passível de mutação, assim como o seu objeto de estudo, os homens. Agora a História era auxiliada pela “aliança”, como chamou Lucien Febvre, com a Geografia, Sociologia, Psicologia, Economia, Literatura, Antropologia e outras áreas do conhecimento, como fez Braudel ao utilizar a Geografia para escrever O Mediterrâneo. Ao realizar essa revolução no estudo historiográfico os Annales criaram e incorporaram tantos outros conceitos à História, como o de longa duração. Ao transformarem a história tradicional, regrada pelos positivistas, em uma história problema, a linguística na história é totalmente reformulada. Para os historiadores vinculados aos Annales, os acontecimentos não se baseiam somente em dados e documentos, resumindo-se somente a eles, a história agora retorna à suavocação 1133 narrativa. A linguagem utilizada no fazer historiográfico tinha a função de um agente estruturador, sendo os acontecimentos do passado traduzidos e não escritos exatamente como ocorreram. Um fator responsável para essa mudança narrativa da História é a chamada Virada Linguística ocorrida em meados do século XX, também chamada de linguistic turn. Sua principal característica aparece na relação entre linguagem e Filosofia no âmbito da própria Filosofia e das humanidades. A questão de que a linguagem não seria um meio de pensamento transparente foi ressaltada em trabalhos feitos por Johann Georg Hamann e Wilhelm von Humboldt. Ludwig Wittgenstein é também considerado um dos idealizadores da virada linguística, já que em seus trabalhos coloca em questão uma falta de compreensão da lógica da linguagem e seus jogos na Filosofia. A questão em voga na virada linguística surge através do ponto de vista de que a linguagem faz parte da realidade é contrária à intuição. A visão tradicional sobre a linguagem era de que as palavras funcionavam como rótulos anexados ao conceitos. Porém, segundo o fundador do Estruturalismo, Ferdinand de Saussure, a definição dos conceitos não podem ser independentes da diferenciação das palavras, pois são essas diferenças que estruturam a nossa percepção. Portanto, o que nós pensamos como realidade nada mais é do que uma convenção de palavras e características que são apreendidas e articuladas pela linguagem. Em 1970, as Ciências Humanas como a História reconheceram que a linguagem tem um papel fundamental de agente estruturador do discursos científico. Dentre um dos teóricos que adotaram o movimento destaca-se Michel Foucault. A proposta da virada linguística trazida à História é de que o passado não existe fora das representações que são feitas pelos estudos dos historiadores, e que elas não podem ser separadas da “bagagem” ideológica que os historiadores trazem para eles. Marc Bloch escreveu em seu livro Apologia da História ou o ofício do historiador: “o historiador, por definição, está na impossibilidade de ele próprio constatar os fatos que http://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Johann_Georg_Hamann&action=edit&redlink=1 http://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Johann_Georg_Hamann&action=edit&redlink=1 1144 estuda... Das eras que nos precederam, só poderíamos [portanto] falar segundo testemunhas... Em suma, em contraste com o conhecimento do presente, o do passado seria necessariamente “indireto (p.69). Peter Burke, ao analisar a história dos Annales em seu livro sobre esse movimento historiográfico, fez um breve estudo sobre a influência da narrativa para os historiadores franceses da época. Segundo Burke, houve um renascimento da narrativa entre os historiadores, que sofriam uma desilusão com o modelo determinista da explicação marxista para a história política. Dentre os que faziam essa “rejeição desdenhosa” estão Lucien Febvre, Fernand Braudel e Marc Bloch. Burke jamais censurou a história dos eventos, porém nunca escreveu algo que fosse baseado nela. O autor refere-se a Braudel da seguinte forma para definir o pensamento dos Annales quanto à narrativa histórica: “tanto denunciou quanto dela se utilizou. Mais precisamente, como já vimos, afirmava que a história dos acontecimentos é a superfície da história...Contudo, seu interesse residia no que podia revelar de “realidades mais profundas”(p.104). A História é uma ciência subjetiva, pois é escrita por alguém que a analisa, ou seja, sob o olhar do historiador sobre acontecimentos que por ele são interpretados e vinculados. O historiador é filho de seu tempo, portanto é inevitável que, por mais imparcial e preciso que deva ser, considerando também seu compromisso com a verdade, ele faça considerações atuais sobre algum fato do passado. Por isso, podemos dizer que os textos e pesquisas que lemos hoje em dia escritos pelos historiadores predecessores têm o reflexo de seus pensamentos de acordo com o seu tempo. A partir dessas conclusões chegamos à historiografia, que é um campo que nos permite estudar a História das ideias; é a reflexão e a produção da escrita da História, para a qual já não mais basta a história dos eventos e sim a narrativa da História. 1.5 Síntese da Unidade Caro aluno, você pôde acompanhar nesta Unidade a dificuldade que envolve definir um conceito. Não é simples, mas é necessário. Por esse motivo devemos nos preocupar com a precisão dos termos que utilizamos na escrita da História, pois fazer História não é só 1155 descobrir documentos e fatos, mas é também e talvez até, principalmente, escrever e discutir, e o historiador faz isso por meio de termos e conceitos. 1.6 Para saber mais Livro Língua e realidade, de Vilém Flusser. Adepto da fenomenologia, esse influente filósofo, que viveu no Brasil e deu cursos na USP, se propôs demonstrar nesse livro que a língua se identifica com a estrutura do mundo, e o conhecimento da linguagem se dá por meio da filosofia, ciência, religião e arte. A língua absolvida, de Elias Canetti. Nessa obra autobiográfica o autor narra sua infância e adolescência em diversos países da Europa e descreve suas descobertas sobre a linguagem e a literatura, demonstrando a dimensão cultural da linguagem de modo muito claro. Engloba o período entre 1905 e 1921 e as consequências dos conflitos europeus, principalmente da primeira Guerra Mundial. Sites http://www.museulinguaportuguesa.org.br Este é o endereço do Museu da língua Portuguesa inaugurado em 2006 em São Paulo; constitui-se como um museu interativo sobre a língua portuguesa, localizado na cidade com o maior número de falantes do idioma no mundo. 1166 1.7 Atividades 1. Como vimos os conceitos são palavras que recebem sentidos ao longo do tempo. Pesquise e explique a historicidade do conceito de Renascimento. Quando ele passou a designar o período de três séculos de grande efervescência cultural principalmente na Itália? Para responder essa questão podemos indicar a obra Renascimento do historiador Nicolau Sevcenko. 2. Depois do que estudamos nesta Unidade, explique a relação entre o conceito e a linguagem e por que os conceitos são tão importantes na área de História. 1177 Unidade 2 Unidade 2 . Tipos e funções dos conceitos históricos Aqui nesta Unidade, vamos estudar os três diferentes tipos de conceitos históricos e as especificidades de cada um deles, recorrendo a exemplos pontuais. 2.1 Jogo Aberto: você sabe ler e escrever? Como os conceitos são fundamentais na área de História são, portanto, muitos. Desse modo, para melhor estudá-los e compreendê-los é possível distinguir tipos. Na obra Dicionário de Conceitos Históricos os autores Kalina Vanderlei Silva e Maciel Henrique Silva propõem uma classificação dos conceitos históricos em três tipos fundamentais. Para esse estudo consideraremos essa classificação. 1. Conceitos históricos stricto sensu – noções que só podem ser utilizadas para períodos e sociedades particulares. Ex. Absolutismo, Candomblé, Comunismo. 2. Categorias de análise – conceitos mais abrangentes, que podem ser empregados para diferentes períodos históricos. Ex. Escravidão, Cultura, Gênero, Imaginário. 3. Conceitos ferramentas – operacionais para o trabalho e para a escrita do historiador. Ex. Historiografia, Teoria, Interdisciplinaridade. A seguir examinaremos cada um desses três tipos a partir de aspectos teóricos e de exemplos. 1188 Figura 2.1 – A liberdade guiando o povo, de Eugene Delacroix. Fonte:http://www.portalsaofrancisco.com.br/alfa/revolucao- francesa/revolucao-francesa-4.php Acesso em 23 jun. 2012 2.2 Conceitos históricos A principal característica dos conceitos históricos stricto sensué que eles são datados, ou seja, se referem a fatos e fenômenos singulares, como denomina Jacques Le Goff (1990), pois eles só acontecem uma vez. Para ele, a contradição mais flagrante da História é que a singularidade de seu objeto (acontecimentos e personagens únicos) se contrapõe ao seu o objetivo, que é, como ciência, atingir o universal, o geral, o regular. Assim, esses conceitos só podem ser aplicados para períodos e sociedades particulares. Como exemplo, podemos citar o caso da Revolução Francesa. Sim, essa expressão mais do que identificar um fato ocorrido na França passou a ser considerada como um conceito dada a abrangência das suas consequências e desdobramentos, inclusive na área teórica da História. Como afirma sobre isso e, especificamente sobre a Revolução Francesa, François Furet, um dos principais estudiosos da Revolução Francesa: “E a história que se escreve é também história dentro da história”. Assim, a seguir acompanharemos algumas dessas discussões cerca desse conceito. A Revolução Francesa foi o processo político de maior importância para toda uma época, que marca o nascimento da democracia moderna e transição da Idade Moderna para a Idade Contemporânea, como se convencionou. Enquanto a sociedade do Antigo Regime fundamentava-se na desigualdade, a revolução trazia o ideal de 1199 liberdade, igualdade e fraternidade, ou seja, a soberania do povo e os Direitos do Homem. O discurso da revolução na França teve uma repercussão mundial, já que seus ideais foram seguidos por muitos outros países, entre eles os da América Latina. As definições do conceito de Revolução Francesa são variadas por diferentes visões historiográficas. Segundo a definição marxista, a revolução foi política e burguesa, pois teria assumido o poder e construído a partir dela uma sociedade com ideologia liberal, inaugurando a ordem capitalista, considerando que, no Antigo Regime, a burguesia era uma classe excluída da política. O historiador Albert Soboul, também de formação marxista, passou a caracterizar a revolução como campônio-burguesa. Para ele, a revolução jamais teria acontecido sem a forte participação das massas e que sem a sua participação jamais o Feudalismo teria sido abolido, podendo ser instalado o Capitalismo. Para o historiador Eric Hobsbawm, a Revolução Francesa está além de um abalo nas estruturas do Antigo Regime, ela foi uma revolução social de massa, pois a Nação é que deu uma linguagem política às transformações sociais e econômicas com a democracia e liberalismo. Isso não significa que a burguesia não tivesse seus interesses particulares, afinal, ela foi a maior beneficiária da revolução, porém para Eric Hobsbawm a Revolução Francesa é puramente uma revolução. Contra as interpretações clássicas da revolução, surgiram os revisionistas. Esses especialistas acreditavam que a transformação no século XVIII não gerou uma luta de classes entre nobreza e burguesia, mas sim uma fusão entre os seus superiores. Entendem que na verdade o Antigo Regime ruiu devido à crise financeira da monarquia e à crise econômica das más colheitas, concluindo que, na verdade, a crise tornou-se revolução. Outro ponto de diferentes interpretações entre revolucionistas e classicistas é a ideologia iluminista na revolução. Para os marxistas, o iluminismo é uma ideologia burguesa historicamente importante no desenvolvimento do pensamento burguês. Já os revisionistas afirmam que existia uma hostilidade ao ideário iluminista que partia de 2200 parcelas da burguesia e muitos nobres assumiam as ideias liberais. Portanto, não poderiam se fazer generalizações, como eram feitas por alguns pensadores marxistas. A Revolução Francesa não seguia uma única filosofia, não tinha um líder específico e não foi planejada e organizada. Assim, como podemos perceber e como os historiadores Furet e Ozouf afirmam, ela é aberta para um futuro ilimitado. O conceito de Absolutismo refere-se a uma forma de governo em que o poder é centralizado nas mãos de uma única pessoa, o monarca. Esse sistema aconteceu na Europa entre os séculos XVI e XVII. Desse modo, podemos perceber como esse conceito assim como o de Revolução Francesa também é datado e, portanto, um conceito histórico strictu sensu. O seu surgimento ocorreu devido à unificação dos Estados Nacionais na Europa, com a centralização do poder nas mãos dos soberanos e criação de burocracias. Essa centralização está ligada com os conflitos entre nobreza e burguesia, além de disputas políticas entre a Igreja, que teve uma forte influência, e os príncipes. A política e a religião estão interligadas no sistema absolutista, pois o rei era uma figura sacralizada, um enviado de Deus para governar. Esse aspecto é enfatizado na França, com o Rei Luis XIV, o Rei Sol. Vigorava a ideia de que o poder absoluto do rei e a centralização dos Estados deviam-se a vontade de Deus, pois o próprio rei e sua linhagem eram por Ele escolhidas. O Absolutismo adquiriu diferentes características em outros Estados, como na Espanha, Rússia e Inglaterra. Na Espanha, o absolutismo foi legitimado através de contratos, como podemos encontrar em Maquiavel, em seu livro O Príncipe, em que apresenta a ideia de que o defensor do Estado nascia do contrato entre o povo e o príncipe, e na obra O Leviatã, em que Thomas Hobbes afirma que o Estado nasce do contrato entre os homens. Apesar das diferenças, as justificativas, tanto jurídicas como teológicas, tinham por objetivo explicar a centralização do poder na mão do rei. Apesar do caráter de centralização do poder, ela ainda era limitada pela tradição e costumes e, quando existia, ocorria pelos parlamentos e ministros com o poder de decisão. 2211 O historiador Perry Anderson defende que o Estado Absolutista era uma continuidade do Estado Feudal, pois o poder do soberano vem do poder da nobreza. Já para o historiador Fernand Braudel, o poder absoluto derivava da ascensão política da burguesia, apoiada pelo rei que diminuiria o poder da nobreza. A decadência do Estado Absolutista aconteceu no século XVIII, com as políticas burguesas e o processo da Revolução Francesa, através do liberalismo, que defendia um governo institucional, sem a interferência do Estado na economia. A queda do Absolutismo francês gerou movimentações liberais na Espanha e Portugal, que impuseram constituições a seus reis. Por fim, para compreendermos esse tipo de conceito é importante perceber que o principal método de explicação em história é dedutivo, o que implica que o significado da História é contextual. As explicações da História são baseadas nos contextos e na singularidade dos fatos históricos que, mesmo que tenham relação entre si ou que possam ser considerados como semelhantes, como no caso da ideia de Revolução, há essa singularidade que explica e que produz conceitos, como vimos. 2.3 Categorias de análise Em contraposição aos conceitos históricos, as categorias de análise são conceitos mais abrangentes, que não se restringem a um único período histórico. Esse tipo de conceito da História se baseia na historicidade, ou seja, muda de acordo com o período histórico e sociedade em que é empregado. Como exemplo, vamos estudar o conceito de Revolução. Existe uma problemática no conceito de revolução, pois muitas vezes é utilizado para se referir a golpes e reformas. Antes de chegarmos a essa problemática do conceito, precisamos ter definido o conceito de revolução. A palavra revolução surgiu no Renascimento, porém só com a Revolução Industrial adquiriu um significado político. Com a Revolução Francesa foi acrescentado ao 2222 conceito uma mudança estrutural. Entende-se por revolução na historiografia como um processo radical de mudanças nas estruturas sociais. Após a Revolução Francesa, ela também é definida como umfenômeno político-social radical de mudança na estrutura sociedade pela rapidez com que essas mudanças são processadas. Assim, podemos concluir que a revolução significa toda e qualquer mudança radical que transforma num curto espaço de tempo as estruturas de uma sociedade. A historiografia caracteriza revolução em diferentes aspectos: revolução política, cultural, tecnológica, e política, da qual é caracterizada em revoluções burguesas e proletárias. Para os historiadores Florenzano e Bruit, a revolução é um movimento de classes, ou seja, para haver uma revolução é necessário que exista um conflito de classes. Pela revolução burguesa podemos definir qualquer fenômeno no qual a burguesia é o principal agente ou beneficiada, contextualizando essas características ao nascimento do capitalismo entre 1770 e 1850. A definição mais usada de revolução é a de Karl Marx e Friedrich Engels, que é baseada na revolução do proletariado, que inevitavelmente aconteceria na sociedade capitalista, desencadeada pela dominação burguesa, ou seja, a revolução socialista só poderia acontecer se a revolução burguesa acontecesse. A tese de Marx e Engels influenciou desde o revolucionário Lenin até o sociólogo brasileiro Florestan Fernandes. Vejamos agora o conceito de revolução empregado na América Latina. O desenvolvimento capitalista deu-se diferentemente da Europa; nele é difícil o emprego de revolução burguesa e proletária, já que nessa região houve o predomínio imperialista. Para Hector Buite, o imperialismo gerou revoluções anti-imperialistas, não burguesas ou proletárias. Para Florestan Fernandes, revolução é um fenômeno social e político de mudanças drásticas e rápidas na estrutura social, da qual a ordem vigente é alterada e nesse aspecto podemos notar a diferença entre golpe e revolução, no qual muitas vezes o primeiro é substituído de forma controvérsa pelo segundo. Um golpe de Estado acontece quando o poder vigente é alterado, sem afetar radicalmente a estrutura da sociedade. É necessário também que seja feita a diferenciação entre revolta e revolução. A revolta é 2233 caracterizada por manifestações de insatisfação popular, não chegando a alterar a estrutura social. A partir dessas análises podemos concluir que na América Latina aconteceram contrarrevoluções, reformas e golpes, e não revolução. Desse modo, o emprego do conceito de revolução só pode ser usado quando as estruturas sociais foram de fato alteradas por uma transformação radical, pois se empregado substituindo outro conceito, como o de golpe, podemos considerar como uma forma de ocultação e alteração da realidade histórica. Outro conceito que se constitui como uma categoria é o de Escravidão. Ao longo da história, por mais que a escravidão tenha assumido traços universais, ela precisa ser caracterizada em suas especificidades em um contexto temporal, ou seja, sua própria historicidade. Assim, podemos perceber que mesmo os conceitos categorias têm historicidade, ou seja, as concepções mudam ao longo do tempo. A proposta de Claude Meillassoux é de que a escravidão, quanto ao seu modo de exploração, toma forma quando uma classe distinta de indivíduos se perpetua pela continuidade da exploração em um sistema social reintroduzido seja pelo comércio ou reprodução natural e que para que ela exista é necessária uma diferença de relações entre classes. Essa definição de Meillassoux nos leva a constatar que a escravidão mobiliza um todo econômico social e geograficamente extenso. A escravidão é definida através de um status jurídico. A diferença entre escravo, servo e trabalho compulsório está no aspecto jurídico de o escravo ser uma propriedade, sendo definido como coisa. Para David Brion Davis, o fato de o escravo ser definido como objeto não o faz deixar de ser um homem. Aristóteles dizia que não se podia falar em interesses partindo do escravo, pois ele não tinha faculdade deliberativa, portanto o seu interesse é o mesmo de seu senhor, sendo isso justificado pelo aspecto de posse, eliminando qualquer vestígio de sua humanidade. O objetivo das sociedades nas quais a escravidão era a base das suas relações sociais era o aspecto traçado por Aristóteles, ou seja, o ideal era aquele mais desumanizado possível, tornado o escravo uma não pessoa. Porém, se o ideal era escravo-coisa a partir de Meillassoux, na prática os escravos não eram utilizados como objeto, afinal eles 2244 realizavam tarefas nas quais era preciso empregar a inteligência, um traço humano. A escravidão e a identidade do escravo são aspectos diferentes em relação ao fato jurídico. Com a expansão da fé cristã, a escravidão foi interligada ao pecado. Embora o Cristianismo tenha pregado um tratamento mais humano aos escravos, não se prontificou a defender ideais abolicionistas até o século XIX. Para a Igreja medieval, o escravo era uma peça da ordenação do mundo e fazia parte da salvação divina dos homens. Porém, apesar de a escravidão ter o caráter de pecado para a Igreja, ela proporcionava a ele o ato do perdão divino e da salvação, igualando o escravo aos seus senhores. A escravidão perdeu o seu caráter de pecado a partir da Idade Moderna, dando lugar aos interesses escravistas dos Estados europeus, onde a escravidão era considerada um aspecto natural nas colônias. Porém, a partir do século XVII, nasceu o discurso antiescravocrata. Pensadores como Montesquieu, considerado conservador, criticava a escravidão julgando-a contrária às leis naturais. Com o iluminismo, o abolicionismo foi inevitável, porém a escravidão somente deixou de existir quanto ao seu aspecto de propriedade com o advento do capitalismo iniciado na Revolução Industrial. 2.4 Conceitos ferramenta Embora, como já vimos, todos os conceitos sejam fundamentais para o trabalho e a escrita do historiador para operacionalizar sua análise, há conceitos que são comuns a todos os historiadores, independentemente de seu objeto de estudo. Esses conceitos são como ferramentas, das quais nenhum historiador pode se furtar sem que haja prejuízo, ou, ainda, inviabilização de seu trabalho. Na próxima Unidade, estudaremos um deles, que é o próprio conceito de História. Aqui, para fundamentar a análise, tomaremos como exemplo o conceito de Teoria. A Teoria da História é um dos campos de estudo mais importantes da área. Para compreender a sua dimensão é necessário, no entanto, recorrer ao conceito de Teoria. 2255 “A mais simples definição de Teoria diz que ela é um conjunto organizado de princípios e regras para explicar uma série de fatos, na verdade, para explicar o mundo” (SILVA, e SILVA, 2006, p. 394). O estudo do conceito de teoria envolve a Filosofia, a Política e a História, pois, como vimos, todos os conceitos, inclusive os operacionais como este, têm historicidade. No campo da Filosofia, a Teoria do Conhecimento tornou-se uma disciplina específica da Filosofia somente com os filósofos modernos, no século XVII. John Locke foi o iniciador da teoria do conhecimento propriamente dita porque se propôs a analisar cada uma das formas de conhecimento que possuímos, a origem de nossas ideias e nossos discursos, a finalidade das teorias e as capacidades do sujeito cognoscente relacionadas com os objetos que ele pode conhecer. A Teoria do Conhecimento abrange: 1) a verdade, 2) a percepção, 3) a memória, 4) a imaginação, 5) a linguagem, 6) o pensamento 7) a consciência. Hoje, a Teoria do conhecimento é definida como a disciplina filosófica que investiga as condições e problemas decorrentes da relação entre sujeito e objeto do conhecimento. A Teoria da História engloba a Filosofia da História e tem por premissa compreender e estudar os conceitos fundamentais da História, o processo de definição do campo do conhecimento histórico e as tendências da historiografia. 2.5 Síntese da Unidade Como vimos,há diferentes tipos de conceitos históricos, embora haja também estreita relação entre eles. Perceber as diferenças e as semelhanças e, mais do que isso, compreender as especificidades dos conceitos, ou das ferramentas, auxilia o historiador na aplicação dos conceitos e, consequentemente, na análise dos fatos e processos históricos. 2266 2.6 Para saber mais Filmes Danton, o Processo da Revolução. 1982. Direção: Andrzej Wajda. Esse filme foca a situação da França quatro anos após a Revolução Francesa. A economia está totalmente abalada e cada cidadão é um suspeito em potencial, podendo ser sumariamente guilhotinado. Instala-se um cenário de medo e de tensão, agravado pela fome. Os mesmos revolucionários, que tinham proclamado a Declaração dos Direitos do Homem, implantam o Reino do Terror. Há uma espécie de radicalização da Revolução liderada por Robespierre que inicia um processo político baseado em manipulação de julgamentos, finalizados com a guilhotina. Danton, um dos líderes revolucionários, critica os rumos do movimento e acaba por tornar-se uma vítima da Revolução. Enquanto Danton tem o apoio do povo, Robespierre tem o poder. Os seus ideais contraditórios dão inicio a um complexo processo político retratado neste filme. Vatel – Um Banquete para o Rei (Vatel) (2000) Direção: Roland Joffe O filme retrata o período em o rei Luís XIV, o Rei Sol, um dos ícones do Absolutismo francês, governava Versailles. Em 1671, no oeste da França, uma província está a beira da ruína. O Príncipe da província convida o rei para seu castelo no campo e um fim de semana de festas. O sucesso dos planos de reconquista da simpatia de Luís XIV depende do talento de Vatel, o homem que pode oferecer uma gastronomia suntuosa e o entretenimento para o rei. Amistad, 1997. Direção: Steven Spielberg Em 1839, dezenas de africanos a bordo do navio negreiro espanhol La Amistad matam a maior parte da tripulação e obrigam os sobreviventes a levá-los de volta à África. Porém, desembarcam na costa leste dos Estados Unidos, sendo acusados de assassinos e presos, iniciando um longo e polêmico processo. O período no qual se passa o filme é marcado pelas divergências entre o abolicionismo e a escravidão, caracterizando o início da Guerra de Secessão. 2277 Quilombo, 1984. Direção: Carlos Diegues No século XVII, numa região de difícil acesso denominada Palmares, em Pernambuco, escravos fugidos das plantações canavieiras constroem o Quilombo de Palmares. Este, liderado por Zumbi, torna-se a maior forma de resistência negra perante a escravidão na região.Por Palmares simbolizar a liberdade, tornou-se, na época, uma atração constante para novas fugas de escravos. Por sua organização social e política constituiu-se em uma sociedade onde prevalecia o negro, em um país de brancos. Palmares sobreviveu por 70 anos. Livros Pensando a Revolução Francesa. 1989, de François Furet A obra é composta de duas partes: a primeira é uma síntese sobre como pensar um evento como a Revolução Francesa e a segunda uma apresentação das etapas da pesquisa realizada pelo autor focada no estudo das obras de dois historiadores franceses: Aléxis de Tocqueville e Augustin Cochin. Furet é um crítico contumaz da historiografia clássica da Revolução Francesa, principalmente as fundamentadas na perspectiva marxista. Refuta nesta obra ideias cristalizadas em relação à Revolução Francesa, como por exemplo a que a classifica como uma revolução burguesa, apresentando uma apurada análise crítica dessas ideias. Após desconstruir explicações clássicas, propõe nesta obra um outro modelo explicativo para o estudo deste fenômeno revolucionário francês. Linhagens do Estado Absolutista. 1965, de Perry Anderson Nesta obra, que se tornou uma referência sobre o assunto, o autor defende a tese de que para compreender a passagem do feudalismo para o capitalismo na Europa é necessário compreender a natureza social do absolutismo. Além disso, para ele, o Absolutismo é o cerne da discussão acerca dos regimes políticos e da diferenciação entre eles. A partir de uma perspectiva de comparação entre o Estado Absolutista da Europa Ocidental e da Oriental, Anderson demonstra que durante os séculos XIV e XV, que foi um período de crise no modo de produção feudal, houve a ruptura com a soberania piramidal que viria 2288 a viabilizar o surgimento do Estado absolutista no Ocidente. As monarquias absolutas introduziram os exércitos regulares, uma burocracia permanente, o sistema tributário nacional, a codificação do direito e os primórdios de um mercado unificado. O autor discute também o caráter político do absolutismo e a situação da nobreza nesse regime político. 2.7 Atividades 1. Você compreendeu a diferença entre os tipos de conceitos? Para consolidar a compreensão estude o conceito histórico de Feudalismo, nos moldes em que estudamos o de Revolução Francesa, e o conceito categoria de Imaginário. Você poderá perceber que cada sociedade projetou um imaginário diferente (Eldorado, por exemplo), mas que havia traços em comum. 2299 Unidade 3 Unidade 3 . O conceito de História Nesta Unidade, vamos estudar particularmente o conceito de História, pois História também é um conceito, além de designar uma disciplina e uma área do conhecimento. 3.1 O termo História Como vimos nas Unidades anteriores, o conceito é formado, em primeiro lugar, por um termo. Como nos lembra Marc Bloch (2001, p. 85), “A palavra História é uma palavra velhíssima.” A palavra surgiu há mais de dois mil anos. Registra-se que surgiu na Grécia, pois é um termo grego. O historiador Jean Glenisson se dedicou a analisar o que chamou de “o conteúdo do termo História”, ou seja, as mudanças e sentidos que o termo foi ganhando ao longo do tempo. Como vimos na Unidade 1, apesar dessas mudanças manteve-se o termo. Originalmente, em grego o termo História significa aquele que sabe, testemunho, com o sentido de busca, de pesquisa. O grego Heródoto, considerado como “o pai da História” descreveu, em sua obra intitulada Histórias, as Guerras Médicas, entre gregos e persas. A obra foi reconhecida como uma forma de literatura, devido ao seu teor narrativo. É verdade que antes dele outros gregos haviam se dedicado a escrever para registrar aspectos do presente e do passado, mas parece ter sido Heródoto o primeiro a considerar a História como um problema filosófico ou uma ação que poderia revelar conhecimento sobre o comportamento humano. Desse modo, o termo que utilizou para intitular sua obra, Historie, que significava, como vimos, "pesquisa", tomou a conotação atual de "História". 3300 Figura 3.1- Heródoto Fonte:http://www.flickr.com/phot os. Acesso em 13 jun. 2011 Heródoto (484 a.C.-420 a.C.). Historiador grego considerado precursor dos historiadores, pois foi o autor da primeira grande narrativa histórica do mundo ocidental antigo. Cícero talvez tenha sido o primeiro a chamá-lo de pai da história. Nasceu, provavelmente, em Halicarnasso, cidade grega da Ásia Menor, hoje Bodrum, na Turquia. Viajou muito, conheceu o Egito, a Líbia, a Síria, a Babilônia, a Lídia e a Frígia. Foi exilado de Halicarnasso e não se sabe ao certo onde morreu. Como outros aspectos culturais, Roma toma da Grécia o termo História. Entretanto há já nesse momento uma mudança do seu sentido, pois os romanos, como afirma Jean Glenisson, procuram distinguir a História da lenda e, assim, o sentido da palavra tende a se restringir. Do termo História, com o sentido que conhecemos hoje, derivaram outros termos: histórico, historicidade, historiador. É necessário ainda estudar a ambivalência do termo História. Ele designa ao mesmo tempo duas coisas distintas: “A história como realidade na qual o homem está inserido e o conhecimento e registro dassituações e sucessos que assinalam e manifestam essa inserção” (AROSTEGUI, 2006, p.28). Em outras palavras, o termo História designa a realidade, os fatos, o vivido, que recebe a designação em latim de res gestae; e a ciência, a área do conhecimento, a rerum gestarum. Durante algum tempo, influenciados pela tradição pragmatista dos Estados Unidos, utilizou-se o termo Estória para designar as narrativas dos fatos e a ficção. Hoje, abandonou-se essa distinção por considerar-se que não há efetivamente uma distinção, pois a Literatura narra fatos que aconteceram ou que realmente poderiam acontecer e a História, por sua vez, tem um caráter inegavelmente narrativo, reconhecido por grande parte dos historiadores. O problema terminológico vem assim, de muito tempo: a palavra História designa, para dizê-lo de alguma forma, um conjunto ordenado de fatos históricos, mas designa também o processo das operações científicas que revelam e estudam tais fatos. Que a mesma palavra designa objeto e ciência pode parecer uma questão menor, mas na realidade acaba por ser embaraçosa 3311 e abre espaço a dificuldades reais de ordem epistemológica. Daí o fato de que se tenha também ensaiado prontamente a adoção de um termo específico que designasse a pesquisa da História (AROSTEGUI, 2006, p. 29). Dessa citação de Júlio Arostegui podemos analisar dois aspectos: o primeiro é que a terminologia não é uma questão menor e, portanto, que possa ser desconsiderada, pois, como já vimos, tem consequências. Esse termo específico ao qual ele faz alusão é o termo Historiografia. Esse é outro termo e conceito da História bastante específico e complexo, mas que guarda estreitas relações com a problemática do termo História. Mas afinal, o que é História? Essa é uma questão quase tão antiga quanto o próprio homem. Desde que o homem começou a registrar seus feitos e começou a se perceber como sujeito histórico, ou seja, como um ser que promove ações e que é envolvido numa sequência de ações ao longo do tempo, começou a fazer questões sobre os motivos de sua existência. 3.2 Definições de História Para o historiador Jean Glenisson, as definições de História mudam de acordo com o contexto histórico, com as referências e preocupações dos historiadores. Portanto, não há uma definição absoluta de História, apesar de designar uma ciência e, assim, haver a necessidade de uma certa estabilidade. O historiador francês Lucien Febvre afirma que “Não há história, há historiadores”. Devemos resignar-nos às incertezas da História, ou seja, de uma disciplina em plena evolução sempre em busca de seu caminho, empenhada nesta busca, enquanto houver historiadores na terra. Hoje há pelo menos um consenso: o de que a História é uma ciência. Essa é uma definição que parece hoje inquestionável, no entanto não é completa. Ciência do quê? Para Marc Bloch (1886-1944), “A História é a ciência dos homens no tempo”. Bloch chegou a essa definição na década de 1940, após o empenho realizado pelos historiadores positivistas em conquistar para a História o status de ciência, mas para eles era uma ciência do passado, como afirma o historiador alemão Leopold Von Ranke 3322 (1795-1886): “A história atribuiu a si mesma a função de julgar o passado e de instruir as narrativas em benefício das gerações futuras”. Mesmo sendo contemporâneo a Marc Bloch e compartilhar com ele muitas ideias e posicionamentos com relação à História, para Lucien Febvre o foco seria o homem: “História, ciência do Homem, ciência do passado humano. E não, de modo algum, ciência das coisas, ou dos conceitos. As ideias, fora dos homens que as professam? As ideias, simples elementos entre muitos outros dessa bagagem mental feita de influências, de lembranças, de leituras e de conversas, que cada um de nós transporta consigo? As instituições, separadas dos que as fazem e que, embora respeitando-as, as modificam sem cessar? Não. No sentido mais lato, não há História a não ser a do Homem”. Para R. G. Collingwood (1889-1943), é “uma ciência cuja ocupação é estudar eventos não alcançáveis por nossa observação, e estudá-los conclusivamente, fundamentando-os com alguma coisa a mais que nossa observação possa alcançar, ao que o historiador refere-se como “evidência” para os eventos nos quais ele está interessado” (2006). 3.3 Síntese da Unidade Nessa Unidade, estudamos especificamente o conceito de História e vimos que não há uma única definição porque, além do fato de que os conceitos mudam de acordo com o tempo e com o contexto, nesse caso há o papel dos historiadores e a própria vocação da História em refletir sobre a definição dos conceitos, inclusive o seu próprio. 3333 3.4 Para saber mais Livros Que é História. Edwaer Hallet Carr. A obra composta por ensaios e conferências, do historiador e historiógrafo inglês E. Carr, provocou grande polêmica ao tentar responder a questão primordial do campo. O autor propõe uma resposta acusada de ser relativista por seus críticos. Sites www.s2.anpuh.org No site da Associação Nacional de História-ANPUH é possível encontrar discussões teóricas acerca da definição de História, da função do historiador e da profissionalização do historiador no Brasil. 3.5 Atividades 1. O que é História? De acordo com Jean Glenisson, a História não é, ela se faz ao longo do tempo. Com base nessa proposição, discorra sobre a discussão acerca da definição de História. http://www.s2.anpuh.org/ 3344 3355 Unidade 4 Unidade 4 . O conceito de História Nesta Unidade, optamos por selecionar alguns dos conceitos fundamentais da História para realizar um estudo verticalizado, na impossibilidade de trabalhar todos os conceitos mobilizados pelos historiadores. 4.1 Tempo: o conceito fundamental Tempo é provavelmente o conceito mais fundamental da História. Durante alguns séculos, a História foi identificada como o estudo do passado, uma dimensão do tempo. O tempo, junto com o espaço, o homem, os fatos e a Filosofia, constituem os cinco pilares que criam as condições de existência da História, considerados, portanto, os pilares epistemológicos da História. Hoje, de acordo com Marc Bloch, deve-se ampliar essa definição, como vimos, para “ciência dos homens no tempo”, pois a História não diz respeito somente ao passado; ela é escrita no presente e será legada ao futuro. Como afirmou Fernand Braudel, numa frase que ficou muito conhecida entre os historiadores: “O passado e o presente elucidam-se reciprocamente. Portanto, a história diz respeito ao presente tanto quanto diz respeito ao passado”. Além de o Tempo ser um dos pilares epistemológicos da História, há outras dimensões da relação entre Tempo e História: o Tempo na História, o Tempo da História, a História do Tempo, a História no Tempo. A primeira delas se refere à percepção de que a própria noção de tempo também tem uma historicidade, ou seja, como já vimos, os conceitos mudam; o de Tempo não é diferente. A Historicidade do pensamento antigo: o Tempo Mítico (sagrado profano). A concepção Judaico-Cristã do tempo e da História se estrutura a partir do estabelecimento do cristianismo como a religião histórica, pois o advento do 3366 cristianismo marca um ponto zero a partir do qual a História teria um novo início. Promove a historicização do tempo profético e a explicitação do devir histórico sob o paradigma dos pressupostos dogmáticos do cristianismo, como a Santíssima Trindade. O tempo na História pode ser percebido como ritmo de organização da vida coletiva, ordenando e sequenciando, cotidianamente, as ações individuais e sociais. Por exemplo, os camponeses organizam suas ações a partir do "tempo de natureza", ou seja, o tempo que dura uma estação, o tempo que demora para que possa ser feitauma colheita, o tempo de gestação dos animais, etc. Já os operários se organizam pelo "tempo da fábrica": o tempo entre uma refeição e outra, o tempo padronizado, o tempo ordenado por apitos. Desse modo, o tempo é um elemento cultural, pois estabelece ritmos para as atividades humanas, de acordo com convenções coletivas. A memória, conceito que veremos a seguir, representa a dimensão psicológica do tempo, pois promove a recordação de um tempo revivido por meio de seleção. Pierre Nora afirma que os meios de comunicação promovem a aceleração do tempo; a perda de identidade e necessidade de criação de "santuários de memória”. Já o historiador inglês Eric Hobsbawm afirma que o século XX foi breve. Isso não significa que o século teve efetivamente, cronologicamente falando, menos que cem anos, mas que as mudanças operadas foram tão intensas e os fatos tantos, as máquinas causaram tanto impacto no seu início, que psicologicamente parece que o século passou muito rápido. No estudo da História, o tempo engloba uma complexidade que se fundamenta nas abrangências no campo da realidade natural e física e nas criações culturais humanas, concepções e produtos múltiplos sobre a concepção de tempo. Para o estudo da História, a noção de tempo é fundamental, mas a própria noção de tempo tem uma complexidade filosófica que se estende ao campo da História. O que é o tempo? Não podemos ver o tempo, só podemos ver a sua passagem pelos vestígios e marcas nas pessoas e nos objetos. O tempo tem uma caracterização abstrata difícil de ser compreendida. O tempo da História, ou o tempo histórico, é diferente do tempo cronológico, medido pelo relógio e pelos calendários. O tempo histórico opera como uma condição para a 3377 Fernand Braudel (1902-1985) historiador francês e um dos mais importantes representantes da chamada “Escola dos Annales". Formado em História na Universidade de Sorbonne, começou sua carreira profissional na Argélia, onde permaneceu entre 1923 e 1932. Entre 1935 e 1937 esteve no Brasil, junto com um grupo de intelectuais franceses, para colaborar na organização da Universidade de São Paulo. Durante a Segunda Guerra Mundial foi prisioneiro dos nazistas. Em 1947 finalizou a obra O Mediterrâneo, publicada em 1949. Nesse mesmo ano se tornou professor do “Collège de France” existência dos fatos. O calendário é o resultado de um compartilhamento coletivo de uma mesma referência, promove uma ordenação e construção cultural do tempo que varia de acordo com a cultura. Por exemplo, na cultura ocidental cristã, o calendário adotado é o gregoriano. Assim, o calendário representa uma possibilidade de referência para localização dos acontecimentos em relação uns aos outros e a sua ordem. Então, a História usa o calendário para estabelecer a cronologia dos fatos. Mas, além do calendário, o tempo histórico opera também com a noção de duração. Duração pode ser definida como a dimensão do tempo a partir da identificação de mudanças e de permanências no modo de vida das sociedades. Há três diferentes dimensões de tempo com relação à sua duração: curta, média ou longa. O tempo da História é o tempo dos seres humanos organizados em sociedade, tempo da realidade social. Assim, o tempo dos historiadores alcança três dimensões: o tempo organizado como sequência (cronologia); o tempo organizado como lugar onde se desenrola (espaço); e o tempo organizado pelas transformações ou jogo de combinações (intensidade). Para Braudel: "o historiador não sai jamais do tempo da história: esse tempo agarra-se ao seu pensamento, como a terra à enxada”. A Ecole des Annales, movimento historiográfico, sobre o qual já falamos, postula tipos de temporalidade que se definem pela cronologia e pela forma como a análise histórica é realizada: a longa duração das estruturas, a média duração da conjuntura e a curta duração dos acontecimentos. O conceito de longa duração, diretamente relacionado ao de tempo, foi estruturado pelo historiador francês Fernand Braudel. Esse conceito contribuiu para a disseminação da percepção da História como um processo. A noção de longa duração se baseia nas estruturas mentais e representações coletivas. Evoca a percepção do tempo do modo subjetivo, classificado como 3388 cultural, ou seja, a diversidade de formas como em distintas épocas as sociedades conceberam a própria temporalidade. Por fim, a periodização, ou o recorte temporal, ou ainda a baliza cronológica, é a condição essencial e primordial do trabalho do historiador. “Todo o trabalho histórico decompõe o tempo passado e escolhe suas realidades cronológicas. Segundo preferências e exclusões mais ou menos conscientes.” (BRAUDEL, p. 9). Essa operação se constitui em determinar o início e o fim do período e/ou fato a ser analisado. Mesmo se afastando da concepção linear do tempo, o historiador deve organizar e delimitar seu trabalho por marcos que contém no seu cerne a ideia de temporalidade. 4.2 Memória: o conceito desdobrado Só a partir da década de 70 é que a memória começou a ser estudada pelos historiadores da Nova História, ou seja, a terceira geração da École des Annales, responsáveis por uma revolução na História. Para os Annales, o fato deve estudado sob diferentes ângulos, e um dos recursos utilizados para a percepção dos acontecimentos é a memória. O conceito de tempo está intrinsecamente ligado ao de memória, e a História existe, também, para registrá-la, tornando-se assim a memória um dos alicerces da História. Apesar de serem distintas, estão correlacionadas. Segundo Antonio Montenegro, apesar de haver uma distinção entre memória e História, são também totalmente ligadas, pois se a História é a construção que busca o passado de uma abordagem social é também um processo que encontra paralelos por meio da memória. A memória é o que os homens guardam de seu passado, evitando que o tempo passado caia no esquecimento. A memória constitui o que é remetido na maior parte das vezes à lembrança, construindo ao mesmo tempo sua identidade; é o que faz o passado diferente do presente. Já a História é o registro da memória coletiva, é uma atualização do 3399 passado trazido pela memória que é registrado e integrado. A história traz o passado para o presente. Para o historiador Pierre Nora, a memória e a História têm pontos fundamentais de diferença. Para ele, a memória só existe enquanto um grupo ainda existe e traz com ele as lembranças e tradições; a partir do momento em que esse grupo já não existe mais ou não pratica a tradição7, a memória deixa de existir e torna-se História, como registro. A memória tornou-se um objeto de estudo para a História, sendo uma fonte capaz de preencher fatos, completando o quebra-cabeça; e o campo principal utilizado pelos historiadores para trabalhá-la é a História Oral. Os estudos nesse campo não se dão apenas através da memória individual, mas também sobre a memória coletiva. A memória coletiva nada mais é do que as lembranças vividas ou repassadas, que podem ser consideradas como tradição de um grupo, tendo características específicas, entre elas o cotidiano, idealizando o passado. É também baseada na identidade de um grupo, dos quais fazem uma simplificação do tempo em “hoje em dia”, “antigamente”, sendo resgatada em fotos, monumentos, datas e comemorações. O esquecimento também faz parte dos estudos em memória, pois é considerado um aspecto para compreensão da identidade de um grupo, mostrando a vontade de ocultação de determinados fatos, o que muitas vezes é um ato voluntário. Para Jacques Le Goff, a memória coletiva não é apenas uma conquista, mas também um instrumento e objeto de poder; afinal, saímos apenas de uma história da memória coletiva seleta, que consta na historiografia, e entramos em uma história que se junta a uma nação.
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