Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
23/04/2020 O surgimento da antropologia https://cead.uvv.br/graduacao/conteudo.php?aula=o-surgimento-da-antropologia&dcp=estudos-socioantropologicos&topico=02 1/13 Lição 02 O surgimento da antropologia Começar a aula 1. Introdução A Antropologia é uma área relativamente nova de investigação da realidade. À medida que as discussões a respeito dos temas antropológicos foram se avolumando, e grandes intelectuais foram registrando suas reflexões, a Antropologia foi evoluindo, deixando para trás conceitos equivocados ou mal formulados e elaborando ideias cada vez mais abertas e flexíveis. Os caminhos do pensamento só são interessantes e relevantes se estiverem sempre abertos a novas formulações, a novas ideias, transformando a consciência humana numa consciência ampliada. No século XX, a antropologia evoluiu muito como ciência e em sua produção intelectual. Seus instrumentos intelectuais de análise se refinaram, e as reflexões dos antropólogos sobre as diferenças culturais e a organização dos diferentes povos, se aprofundaram. Com os trabalhos de Franz Boas e Malinowski no campo da investigação etnográfica e com os trabalhos de Émile Durkheim e Marcel Mauss no campo de investigação da dinâmica social no final do século XIX, podemos dizer que a Antropologia saiu de sua infância intelectual e entrou em sua maturidade. No século XX, assistimos ao desenvolvimento dessa disciplina de investigação da realidade e que até hoje nos auxilia na compreensão dos significados e das práticas humanas. 2. A origem da antropologia 23/04/2020 O surgimento da antropologia https://cead.uvv.br/graduacao/conteudo.php?aula=o-surgimento-da-antropologia&dcp=estudos-socioantropologicos&topico=02 2/13 A humanidade sempre teve curiosidade de compreender seu próprio comportamento, suas motivações e seus significados. No entanto, o projeto de fundar uma ciência que estudasse os humanos, é muito recente. As primeiras reflexões antropológicas acontecem durante as explorações europeias ao redor da Terra. Buscando territórios que pudessem dominar e explorar comercialmente, os renascentistas exploraram lugares desconhecidos e começaram a elaborar reflexões e discursos sobre os habitantes que povoavam aqueles lugares. As primeiras observações e os primeiros discursos disponíveis sobre os povos ”distantes”, provém de duas fontes principais, que são as reações dos primeiros viajantes, formando o que habitualmente chamamos de ”literatura de viagem”, e os relatórios dos missionários que acompanhavam a colonização europeia. 1. A literatura de viagem era composta por narrativas acerca das experiências, descobertas e reflexões de um viajante durante seu percurso exploratório. Geralmente ilustra as pessoas, os eventos e aquilo que o autor vê ou sente, quando se encontra num país estrangeiro ou em lugar estranho. Não é necessariamente um guia, mas um relato daquilo que experimenta ou sente o autor-viajante, ao se encontrar diante de novos territórios e diferentes culturas. Estes relatos dizem respeito, em primeiro lugar, à Pérsia e à Turquia, em seguida à América, à Ásia e à África. 2. Os relatórios dos missionários eram dirigidos aos seus superiores e tratavam de temas relevantes aos conquistadores, por exemplo, como tinham sido recebidos pelos moradores locais, onde estavam alojados, o que tinham encontrado na terra, o estado de pecado e abandono moral em que viviam os colonizadores, os primeiros contatos com os índios e o interesse que mostravam em adotar a fé, os avanços na comunicação com estes, entre outros assuntos. As reflexões se iniciam a partir daí, porém não há qualquer resposta em relação a essas primeiras questões propostas pelos relatos de viajantes e missionários. Você sabia? Que a questão relevante colocada na época, e que nasce desse primeiro confronto visual com as diferenças, é sobre se aqueles que acabaram de ser “descobertos”, pertencem à humanidade ou se são seres de outra espécie? O critério de julgamento, na época, era religioso, e se tratava de saber se aqueles “selvagens” tinham alma. Queriam saber se eram descendentes de Adão ou se eram seres sem o “pecado original”. 23/04/2020 O surgimento da antropologia https://cead.uvv.br/graduacao/conteudo.php?aula=o-surgimento-da-antropologia&dcp=estudos-socioantropologicos&topico=02 3/13 De fato, apenas no final do século XVIII é que começa a se constituir um saber científico que analisa o homem como objeto de conhecimento, e não mais a fauna, a flora ou os elementos externos aos humanos; apenas nessa época é que o espírito científico pensa em aplicar ao próprio ser humano os métodos de estudo até então utilizados na área da física ou da biologia. A Antropologia surge, então, como um esforço de interpretação científica da realidade humana, das relações sociais e dos significados atribuídos às coisas pelos diferentes povos. Isso foi uma revolução no pensamento da época, pois mudava a maneira como a humanidade olhava e interpretava a si mesma; essa reflexão tinha sido, até então, fruto de especulações mitológicas, artísticas, teológicas, filosóficas, mas nunca científicas. Com o passar do tempo, essa nova ciência do ser humano começa a tomar forma e a ganhar maior rigor científico. Métodos de investigação passam a ser elaborados e colocados em prática nas pesquisas empreendidas no século XVIII. François Laplantine (2003) descreve esse processo da seguinte maneira: “”Simultaneamente, o destaque se desloca pouco a pouco do objeto de estudo para a atividade epistemológica, que se torna cada vez mais organizada. Os viajantes dos séculos XVI e XVII coletavam ”curiosidades”. Espíritos curiosos reuniam coleções que iam formar os famosos ”gabinetes de curiosidades”, ancestrais dos nossos museus contemporâneos. No século XVIII, a questão é: como coletar? E como dominar em seguida o que foi coletado? Com a História Geral das Viagens, do padre Prévost (1746), passa-se da coleta dos materiais para a coleção das coletas. Não basta mais observar, é preciso processar a observação. Não basta mais interpretar o que é observado, é preciso interpretar interpretações. E é desse desdobramento, isto é, desse discurso, que vai justamente brotar uma atividade de organização e elaboração. Em 1789, Chavane foi o primeiro a dar a essa atividade um nome. Ele a chamará: a etnologia.“” 3. As primeiras viagens filosóficas No século XVIII, inicia-se uma parceria entre viajantes e filósofos; os viajantes (entre eles, nomes famosos como Cook, Bougainville, La Condamine) realizavam o que na época eram chamadas de ”viagens filosóficas”, precursoras das nossas missões científicas contemporâneas. Os filósofos (entre eles, os famosos Buffon, Voltaire, Rousseau, Diderot) “iluminavam” os relatos dos viajantes com suas reflexões. Mas os relatos trazidos pelos viajantes eram baseados em seus preconceitos e sua ignorância, pois eram baseados unicamente no senso comum; e já que os viajantes não eram filósofos, e os filósofos não eram viajantes, era preciso formar sujeitos que pensassem as questões humanas e culturais de uma perspectiva mais ampla e científica, ou seja, de forma sistematizada. 23/04/2020 O surgimento da antropologia https://cead.uvv.br/graduacao/conteudo.php?aula=o-surgimento-da-antropologia&dcp=estudos-socioantropologicos&topico=02 4/13 É assim que se constitui, na passagem do século XVIII para o XIX, a Sociedade dos Observadores do Homem (1799-1805), um grupo de estudiosos formado pelos então chamados ”ideólogos”, que são moralistas, filósofos, naturalistas, médicos que definem muito claramente o que deve ser o campo da nova área de saber (o homem nos seus aspectos físicos, psíquicos, sociais, culturais) e quais devem ser suas exigências epistemológicas. Laplantine (2003) descreve a origem da metodologia antropológica da seguinte maneira: As Considerações sobre os Diversos Métodos a Seguir na Observação dos Povos Selvagens, de De Gerando (1800) são, quanto a isso, exemplares. Primeira metodologia da viagem, destinada aos pesquisadores de uma missão nas ”TerrasAustrais”, esse texto é uma crítica da observação do selvagem, que procura orientar o olhar do observador. O cientista naturalista deve ser ele próprio testemunha ocular do que observa, pois a nova ciência – qualificada de “ciência do homem” ou “ciência natural” – é uma ”ciência de observação”, devendo o observador participar da própria existência dos grupos sociais observados. Esse projeto antropológico de investigação da humanidade consistia em ligar uma reflexão organizada a uma observação sistemática, não apenas dos aspectos físicos dos seres humanos, mas também de seu aspecto social e cultural; o final do século XVIII teve um papel essencial na elaboração dos fundamentos de uma ”ciência humana”, mas a humanidade ainda não tinha amadurecido intelectualmente a ponto de questionar-se mais profundamente sobre esses aspectos. O século XVIII espantou-se com a existência de sociedades que tinham permanecido fora dos progressos da civilização europeia, acreditando nas vantagens desse progresso tecnológico e considerando totalmente estranhas todas essas formas de existência que estão distantes do entendimento e da classificação dos europeus. No século XIX, o contexto geopolítico global é totalmente novo: é o período da conquista colonial europeia, que rege a partilha da África entre as potências econômicas da Europa e põe um fim às soberanias africanas. É no movimento dessa conquista que se constitui a antropologia moderna, com o antropólogo acompanhando de perto os passos do colonizador e os detalhes da vida dos povos colonizados. Nessa época, a África, a Austrália, a Nova Zelândia, a Índia passam a ser povoadas por uma grande quantidade de emigrantes europeus, que não eram mais apenas alguns missionários, e sim administradores das diversas esferas da vida social das colônias. Uma rede de informações se Com a revolução industrial acontecendo fortemente na Inglaterra e a revolução política explodindo na França, a sociedade europeia estava mudando radicalmente e jamais voltaria a ser o que era. Os modos de vida europeus, suas relações sociais sofrem uma mutação sem precedente. Um mundo está terminando, e um outro está nascendo. 23/04/2020 O surgimento da antropologia https://cead.uvv.br/graduacao/conteudo.php?aula=o-surgimento-da-antropologia&dcp=estudos-socioantropologicos&topico=02 5/13 instala, e as respostas aos questionários enviados por pesquisadores das metrópoles (em especial da Inglaterra) para os quatro cantos do mundo, constituem os materiais de reflexão das primeiras grandes obras de antropologia que foram publicadas durante toda a segunda metade do século XIX. Também para evitar que os povos nativos desses continentes se tornassem reféns de uma captura etnocêntrica¹, e continuassem a ser explorados com justificativas oficiais, desenvolveu-se um método científico de investigação que buscava evitar análises carregadas de interesses políticos europeus, e que dessem ao antropólogo a liberdade que sua pesquisa necessitava. Esse método era a Etnografia. 4. Método etnográfico Segundo Claude Lévi-Strauss, grande antropólogo do século XX, a etnografia, a etnologia e a antropologia constituem os três momentos de uma mesma abordagem. A etnografia é a coleta direta, minuciosa e exaustiva dos elementos e fenômenos que observamos, realizada através de uma convivência duradoura e contínua com os grupos sociais que se quer estudar. Esses elementos e fenômenos a estudar podem ser recolhidos fazendo anotações, ou por gravação sonora, fotográfica ou cinematográfica. A etnologia consiste em um primeiro nível de reflexão, analisando os materiais colhidos, fazendo surgir a lógica específica da sociedade ou grupo social que se estuda. Já a Antropologia consiste num segundo nível de reflexão, construindo modelos que permitam comparar as sociedades entre si. Como escreve Lévi-Strauss, “seu objetivo é alcançar, além da imagem consciente e sempre diferente que os homens formam de seu devir, um inventário das possibilidades inconscientes, que não existem em número ilimitado”. A etnografia só começa a existir a partir do momento em que o pesquisador percebe que ele mesmo deve efetuar as pesquisas de campo, e que esse trabalho de observação direta é parte integrante da pesquisa, não podendo ser empreendida por profissional de nenhuma outra área. O antropólogo compreende então que deve deixar seu gabinete de trabalho para compartilhar a intimidade daqueles a quem pretende estudar. Esses grupos devem ser considerados não mais como informantes a serem questionados, e sim como mestres que o ensinam a sentir e experimentar a cultura de seu povo. Nessa perspectiva, o pesquisador passa não apenas a viver entre eles, mas a viver como eles, a falar seu idioma e a pensar nesse idioma, a sentir as emoções desse grupo dentro dele mesmo. Essas condições de estudo são radicalmente diferentes daquelas conhecidas e praticadas pelos viajantes do século XVIII e também pelos missionários e administradores do século XIX. Eles geralmente residiam fora da sociedade observada obtinham informações através de tradutores e informantes. A pesquisa de campo, como a chamamos ainda hoje, é atualmente considerada como o pilar da pesquisa antropológica, que orientou a abordagem científica da nova geração de etnólogos que, desde o final do século XIX e o começo do século XX, produziu inúmeras pesquisas a partir de estadias prolongadas entre as populações do mundo inteiro. 23/04/2020 O surgimento da antropologia https://cead.uvv.br/graduacao/conteudo.php?aula=o-surgimento-da-antropologia&dcp=estudos-socioantropologicos&topico=02 6/13 Vejamos um pouco da biografia de dois ícones da pesquisa de campo na Antropologia. 4.1. Franz Boas (1858-1942) Franz Boas sempre foi um pesquisador que gostava de estar no campo, relacionando-se com aqueles a quem se dispunha estudar e compreender. Com ele, a Antropologia experimentou uma verdadeira mudança em sua prática de pesquisa. Tendo iniciado suas pesquisas nos últimos anos do século XIX (em particular entre os Kwakiutl e os Chinook [esquimós] da Colúmbia Britânica), utilizou métodos que hoje classificaríamos de microssociológico. Segundo Franz Boas, no campo, tudo deve ser anotado: desde os objetos que compõem as casas até as notas das melodias cantadas pelos Esquimós, com todo o detalhamento possível. Para ele, tudo deveria ser objeto de uma descrição meticulosa, de uma transcrição fiel (por exemplo, as diferentes versões de um mito, ou os diversos ingredientes que compõem uma receita típica). A influência de Boas na prática antropológica foi enorme, pois ele foi um dos primeiros etnógrafos, e suas pesquisas inauguraram a preocupação com a precisão na descrição dos fatos observados; ele também buscou conservar metodicamente o patrimônio pesquisado e recolhido desses povos. Franz Boas foi também, como professor, grande formador da primeira geração de antropólogos americanos, tais como M. Mead, Kroeber, Lowie, Sapir, R. Benedict, entre outros. Ele se torna a grande referência da antropologia americana na primeira metade do século XX. 4.2. Bronislaw Malinovski (1884-1942) Malinowski foi também bastante influente na cena antropológica; em 1922 publicou sua primeira obra, Os Argonautas do Pacífico Ocidental, que permanece como um clássico da Antropologia até os dias atuais. Apesar de não ter sido o primeiro a viver com as populações que estudava e a recolher seus materiais, conduzindo cientificamente uma pesquisa etnográfica, Malinowski levou essa metodologia ao seu limite, procurando romper seu próprio contato com o mundo europeu. Antes dele, nenhum outro pesquisador havia buscado penetrar tão profundamente no estilo de vida e na mentalidade dos povos estudados. Abandonando seu olhar europeu e seus dogmas culturais, seu método de aprofundamento buscava compreender o que sentem os homens e as mulheres que pertencem a uma cultura diferente da nossa. 23/04/2020 O surgimento da antropologia https://cead.uvv.br/graduacao/conteudo.php?aula=o-surgimento-da-antropologia&dcp=estudos-socioantropologicos&topico=027/13 Diferente de Franz Boas, que procurava registrar exaustivamente as informações que recolhia, buscando definir correlações entre o maior número possível de variáveis culturais, Malinowski acreditava que um único costume ou elemento cultural (por exemplo, a canoa trobriandesa) aparentemente muito simples e sem importância, poderia revelar aspectos importantes da vida daquela sociedade. Futuramente, a Antropologia vai se refinando e Émile Durkheim e Marcel Mauss, da “escola francesa de sociologia”, apesar de não serem pesquisadores de campo, ajudam a desenvolver o quadro teórico e os instrumentos que ainda faltavam à Antropologia. A etnografia foi a prática de pesquisa que deu origem à etnologia e à própria Antropologia, pois foi a partir de seus métodos e técnicas de pesquisa que se fundou a ciência que estuda os seres humanos a partir de sua vivência social. A pesquisa etnográfica não se trata apenas de coletar uma grande quantidade de informações a respeito de certo grupo cultural, compreendendo-o apenas em suas manifestações exteriores, mas de uma experiência de imersão total, um mergulho no universo mental de um outro povo, vivendo seus ideais e sentindo suas angústias. Segundo François Laplantine (2003), “o etnógrafo é aquele que deve ser capaz de viver em si mesmo a tendência principal da cultura que estuda. Se, por exemplo, a sociedade tem preocupações religiosas, ele próprio deve rezar com seus hóspedes. Para poder compreender o candomblé, ”foi- me preciso mudar completamente minhas categorias lógicas”, escreve Roger Bastide (1978)”. Estas imagens mostram Malinowski entre os Trobriandeses, colocando em prática seu método de pesquisa, “observação participante”, vivendo um longo tempo entre os povos que ele desejava compreender. https://cead.uvv.br/conteudo/wp-content/uploads/2018/08/aula_estsoc_top2_img01.jpg 23/04/2020 O surgimento da antropologia https://cead.uvv.br/graduacao/conteudo.php?aula=o-surgimento-da-antropologia&dcp=estudos-socioantropologicos&topico=02 8/13 Você sabia? A Etnografia, que se desenvolveu através da observação e convivência com povos de culturas muito diferentes da europeia (desde habitantes das ilhas Trobriand, na Polinésia, até tribos amazônicas ameaçadas de extinção), nos últimos tempos tem sido muito utilizada no mundo dos negócios. Atualmente, as empresas encontram-se em um ambiente bastante competitivo e, nesse contexto, a pesquisa etnográfica, originada na Antropologia, passa a adquirir grande importância na área de Marketing, por ser considerada como uma poderosa ferramenta para conhecerconsumidor, seus hábitos, seus anseios, etc. Utilizada também para estudo das diversas “tribos” urbanas da atualidade, caracterizadas pelos diversos grupos sociais existentes e que possuem uma lógica própria de existência. 5. Teorias modernas sobre a cultura O conceito de Cultura, pelo menos como utilizado atualmente, foi definido pela primeira vez por Edward Tylor. Segundo Tylor (1996), “cultura é um todo complexo que inclui conhecimento, valores, crenças, a arte, a moral, a lei, os costumes e todos os outros hábitos e capacidades adquiridos pelo homem como membro da sociedade“. Mas o que ele fez foi apenas formalizar uma ideia que vinha crescendo na mente humana; muitos intelectuais já se interessavam por compreender nossos costumes, nossos significados, nossos rituais sociais, mas ainda não tinham criado conceitos nem um método de estudo e observação. Tudo isso ainda estava se formando na mente humana e a Antropologia ainda engatinhava como disciplina científica. Vejamos um brevíssimo desenvolvimento histórico do conceito de cultura, narrado por Roque Laraia: 23/04/2020 O surgimento da antropologia https://cead.uvv.br/graduacao/conteudo.php?aula=o-surgimento-da-antropologia&dcp=estudos-socioantropologicos&topico=02 9/13 Para entender Tylor, é necessário compreender a época em que viveu e consequentemente o seu background intelectual. O seu livro foi produzido nos anos em que a Europa sofria o impacto da Origem das espécies, de Charles Darwin, e que a nascente antropologia foi dominada pela estreita perspectiva do evolucionismo unilinear. A década de 60 do século XIX foi rica em trabalhos desta orientação. Uma série de estudiosos tentou analisar, sob esse prisma, o desenvolvimento das instituições sociais, buscando no passado as explicações para os procedimentos sociais da atualidade. Assim, Maine em Ancient Law (1861) procurou analisar o desenvolvimento das instituições jurídicas; o mesmo ocorreu com Bachofen, que em Das Musterrecht desenvolveu a ideia da promiscuidade primitiva e consequentemente da instituição do matriarcado. E em Primitive Marriage (1865) McLennan estuda a instituição do matrimônio a partir dos casamentos por rapto. Por detrás de cada um destes estudos predominava, então, a ideia de que a cultura desenvolve-se de maneira uniforme, de tal forma que era de se esperar que cada sociedade percorresse as etapas que já tinham sido percorridas pelas “sociedades mais avançadas”. Desta maneira era fácil estabelecer uma escala evolutiva que não deixava de ser um processo discriminatório, através do qual as diferentes sociedades humanas eram classificadas hierarquicamente, com nítida vantagem para as culturas europeias. Etnocentrismo e ciência marchavam então de mãos juntas. Além dessas primeiras análises evolucionistas, ocorridas na infância teórica da Antropologia, outras teorias passaram a ser desenvolvidas por diferentes antropólogos europeus e americanos. Analisando essas tentativas modernas de obter uma espécie de precisão conceitual a respeito da Cultura, o antropólogo Roger Keesing, percebe algumas semelhanças entre as diferentes teorias e as organiza. Primeiro, ele analisa as teorias que consideram a Cultura como um sistema adaptativo, ou seja, um meio que permite ao homem adaptar-se da melhor maneira ao ambiente em que vive, as percepções semelhantes são que (LARAIA, 2000): 1. “”Culturas são sistemas (de padrões de comportamento socialmente transmitidos) que servem para adaptar as comunidades humanas aos seus embasamentos biológicos. Esse modo de vida das comunidades inclui tecnologias e modos de organização econômica, padrões de estabelecimento, de agrupamento social e organização política, crenças e práticas religiosas, e assim por diante.“” 2. “”Mudança cultural é primariamente um processo de adaptação equivalente à seleção natural“. ”O homem é um animal e, como todos animais, deve manter uma relação adaptativa com o meio circundante para sobreviver. Embora ele consiga esta adaptação através da cultura, o processo é dirigido pelas mesmas regras de seleção natural que governam a adaptação biológica.“” 3. “”A tecnologia, a economia de subsistência e os elementos da organização social diretamente ligada à produção, constituem o domínio mais adaptativo da cultura. É neste domínio que usualmente começam as mudanças adaptativas que depois se ramificam.“” 4. “”Os componentes ideológicos dos sistemas culturais podem ter consequências adaptativas no controle da população, da subsistência, da manutenção do ecossistema, etc.“” 23/04/2020 O surgimento da antropologia https://cead.uvv.br/graduacao/conteudo.php?aula=o-surgimento-da-antropologia&dcp=estudos-socioantropologicos&topico=02 10/13 Importantes antropólogos como Marshall Sahlins, Marvin Harris e Leslie White defenderam essa perspectiva teórica, e contribuíram para o entendimento de diversos aspectos da vida humana em sociedade e as adaptações práticas que a humanidade precisou desenvolver para sobreviver ou as estratégias de convivência que precisou criar. Em segundo lugar, Roger Keesing refere-se às teorias idealistas da cultura, e as subdivide em três diferentes abordagens (LARAIA, 2000): A primeira delas é a dos que consideram cultura como sistema cognitivo. Os antropólogos que defendem essa perspectiva teórica acreditam que a Cultura é um sistema de conhecimento: “consiste em tudo aquilo que alguém tem de conhecer ou acreditar para operar de maneira aceitáveldentro de sua sociedade.” A cultura, nesse caso, é vista como um sistema de classificação desenvolvido pelos próprios membros da sociedade, que vai se modificando à medida que novas classificações vão surgindo. Para essa investigação, é importante a análise da linguagem, pois os significados também são criados através da linguagem. Ward H. Goodenough foi um antropólogo que defendeu essa perspectiva teórica. A segunda abordagem é aquela que considera a Cultura como um sistema estrutural, ou seja, define cultura como um sistema simbólico que é uma criação acumulativa da mente humana. Nesse caso, o trabalho da Antropologia tem sido o de desvendar, na arquitetura dos elementos culturais como mito, música, expressões artísticas e linguagem, os princípios da mentalidade que provocam essas expressões culturais. Segundo Claude Levi-Strauss, famoso antropólogo que desenvolveu essa perspectiva, existe uma unidade psíquica na humanidade que faz com que o pensamento humano esteja submetido a regras inconscientes, ou seja, um conjunto de princípios dados pela própria estrutura da realidade, e que as diferentes culturas teriam apenas o trabalho de classificar esses princípios. Ou seja, baseados na lógica da própria realidade, os homens dão diferentes significados para as mesmas coisas. Por exemplo, uma tempestade pode ser interpretada como um fenômeno natural por nossa sociedade que acredita na ciência da meteorologia; mas também pode ser interpretada como a fúria dos deuses, ou a ira de Deus, como fazem alguns grupos humanos. A tempestade é a mesma, mas os significados dados a ela diferem bastante. A terceira perspectiva teórica é a que considera a cultura como sistema simbólico. Esta posição foi desenvolvida principalmente por Clifford Geertz. Geertz defende a ideia de que a Cultura é formada pelos significados contidos num conjunto de símbolos compartilhados. Ele define símbolo como qualquer ato, objeto, acontecimento ou relação que representa um significado. Compreender o homem e a cultura é interpretar essa teia de significados. 23/04/2020 O surgimento da antropologia https://cead.uvv.br/graduacao/conteudo.php?aula=o-surgimento-da-antropologia&dcp=estudos-socioantropologicos&topico=02 11/13 Seu conceito é essencialmente semiótico, pois fundamenta-se no compartilhamento das ideias, essa “teia de significados” amarrada coletivamente e que orienta as escolhas dos indivíduos no seu cotidiano. Assim, a cultura não deve ser considerada como um padrão de comportamentos concretos, mas como um conjunto de mecanismos de controle, planos, receitas, regras, instruções com o objetivo de governar o comportamento dos indivíduos. Essas análises se multiplicaram na Europa, justamente no momento histórico em que as diferenças culturais se tornaram relevantes para o pensamento científico europeu; os povos nativos, antes brutalmente dominados e colonizados pelos europeus, passaram a se organizar mo Estados, a interagir economicamente e a se adaptar a uma nova realidade política que se configurava ao redor do mundo, gerando a necessidade de compreender a natureza dessas mudanças. Cena de uma “briga de galos” em Bali, na Indonésia. Esse traço cultural dos balineses foi intensamente estudado por Clifford Geertz; seu livro “A interpretação das culturas” é um clássico da Antropologia, que expõe as concepções geertzianas sobre o que é cultura, o papel que desempenha na vida social e como deve ser adequadamente estudada, em uma tentativa de esclarecimento sistemático do próprio conceito cultural em suas relações com o comportamento real de indivíduos e grupos. 6. A atualidade da antropologia A antropologia, mesmo mantendo pontos de articulação e confronto com a filosofia, a sociologia, a psicologia e a história, torna-se um campo de investigação cada vez mais especializado, avançando dentro de sua própria prática científica, e desenvolvendo métodos próprios de análise dos seres humanos. Uma questão importante para a Antropologia, como disciplina científica, é que ela não deve ser caracterizada pelo “objeto” empírico que estuda. Na verdade, a única coisa passível de definir uma disciplina científica é a especificidade da abordagem utilizada. Assim, o que define a Antropologia como ciência não é aquilo que ela estuda (consumo, arte, religião, tecnologia, padrões comportamentais, etc.), nem o período histórico ou área geográfica que estuda, mas a abordagem que transforma esse campo, essa área, esse período histórico em objeto científico. Não é o objeto que ela observa, mas a maneira como observa. Assim, por exemplo: Um fotógrafo não se torna um artista por causa daquilo que ele fotografa; ele fotografa aquilo que todos os outros também fotografam com suas câmeras, celulares, etc.; o que o transforma num artista, num grande fotógrafo, é a maneira diferenciada como ele capta aquelas imagens, o olhar diferenciado que transforma uma simples imagem numa obra de arte. 23/04/2020 O surgimento da antropologia https://cead.uvv.br/graduacao/conteudo.php?aula=o-surgimento-da-antropologia&dcp=estudos-socioantropologicos&topico=02 12/13 Nessa perspectiva, a CULTURA passou a ser talvez o principal objeto de estudo da Antropologia, já que ela é a teia de significados que conecta os indivíduos num grupo humano, definindo suas visões de mundo, suas classificações morais, seus padrões de beleza e muitos outros aspectos da vida. A CULTURA é a lente a partir da qual os indivíduos olham para a realidade, emitindo juízos de valor e classificando todas as esferas da vida. Lee Jeffries é um fotógrafo que captura imagens de moradores de rua, e ao contrário da atitude comum das pessoas da cidade, de ignorá-los e desviar o olhar, Jeffries consegue transmitir a força e a intensidade dessas pessoas marginalizadas, transformando seu olhar numa percepção artística. 7. Conclusão Espero que essa brevíssima viagem pela história da Antropologia tenha te ajudado a compreender um pouco sobre a origem e o desenvolvimento desse campo de investigação do ser humano. Se você gosta de viajar e conhecer lugares diferentes, experimentar culturas diferentes e conhecer pessoas diferentes, a Antropologia pode ajudá-lo a compreender certos aspectos culturais que farão sua experiência turística ser mais rica e interessante, mas principalmente sua experiência humana, pois permite que compreenda as diferenças culturais e que perceba os diferentes apenas como diferentes, sem hierarquizações excludentes. A Antropologia é atualmente utilizada em diversas áreas da investigação social, como as empresas de pesquisa de tendência, as agências de publicidade, as empresas de jornalismo e outras. Onde houver curiosidade de entender o comportamento humano, a Antropologia servirá de auxílio a essa compreensão. 8. Notas Complementares ¹Etnocentrismo é um conceito antropológico que ocorre quando um determinado indivíduo ou grupo de pessoas, que não têm os mesmos hábitos e caráter social, discrimina outro, julgando-se melhor ou pior, seja por causa de sua condição social, pelos diferentes hábitos ou manias, por sua https://cead.uvv.br/conteudo/wp-content/uploads/2018/08/aula_estsoc_top2_img03-768x383.jpg 23/04/2020 O surgimento da antropologia https://cead.uvv.br/graduacao/conteudo.php?aula=o-surgimento-da-antropologia&dcp=estudos-socioantropologicos&topico=02 13/13 forma de se vestir, ou seja, pela sua cultura. 9. Referências GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Ed. LTC, 1989. KEESING, Roger. Theories of culture, 1974. LAPLANTINE, François. Aprender antropologia, São Paulo: Brasiliense, 2003. LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1996. YouTube. (2014, Junho, 18). Portal da Rede. A reação de uma tribo isolada ao ver um homem branco pela primeira vez. 14min17seg. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=DCHtVrgwAJw>. Acesso em: 17 maio. 2018.
Compartilhar