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Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação XXVI Encontro Anual da Compós, Faculdade Cásper Líbero, São Paulo - SP, 06 a 09 de junho de 2017 www.compos.org.br www.compos.org.br/anais_encontros.php 1 Fake news, pós-verdade e o consumo de informações1 Pollyana Ferrari2 Resumo No atual século XXI as sociedades confrontam-se com mudanças comportamentais aceleradas e desencadeadas pela sociedade da informação. Essas mutações impõem a necessidade e a urgência de repensar o tempo presente e o jornalismo a partir da mediação das telas dos dispositivos móveis. A febre das fake news, ou mentiras, uma vez que notícias falsas não são notícias têm feito bem ao jornalismo. Um consumidor que queria apenas vivenciar informações sem pensar, voltou-se para assinaturas de veículos com credibilidade. Palavras-chave: fake news, jornalismo, pós-verdade Abstract In today's 21st century societies are confronted with behavioral changes accelerated and triggered by the information society. These mutations impose the need and the urgency to rethink the present time and the journalism from the mediation of the screens of the mobile devices. The fever of fake news, or lies, since fake news is not news have done well to journalism. A consumer who just wanted to experience information without thinking, turned to credible vehicle signatures. Key words: fake news, journalism, After truth “Penso, logo existo”, frase dita pelo filósofo francês René Descartes e imortalizada no filme Blade Runner, popularizou uma discussão sobre a máquina inteligente na década de 1980 e a essência do humano ligada ao pensar. No presente do século XXI a informação mediada por uma tela de dispositivo móvel não é mais um privilégio de poucos, ela está presente na vida de grande parte da população global. O conceito de pós-verdade surge nesta sociedade atual que se move em torno das pessoas, das suas histórias, de seus costumes e das suas experiências de vida. Novos meios e interatores, alta saturação das mídias tradicionais e 1 Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Estudos de Jornalismo do XXVI Encontro Anual da Compós, Faculdade Cásper Líbero, São Paulo - SP, 06 a 09 de junho de 2017. 2 Pollyana Ferrari é jornalista, professora no Programa de Pós-Graduação Tecnologias da Inteligência e Design Digital e no Departamento de Jornalismo da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Doutora em Comunicação Social pela Universidade de São Paulo (USP), e-mail: pollyana.ferrari@gmail.com Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação XXVI Encontro Anual da Compós, Faculdade Cásper Líbero, São Paulo - SP, 06 a 09 de junho de 2017 www.compos.org.br www.compos.org.br/anais_encontros.php 2 consumidores cada vez mais imersos na presentificação proporcionada pelas telas faz com que a metáfora penso, logo existo, seja alterada para compartilho, logo existo. In Limbo (2015) é um documentário sobre nossa memória interligada global. À deriva, está memória gigante, na nuvem, explora seus próprios sonhos e medos. "A Internet sabe mais sobre mim do que minha própria mãe – que eu mesmo", diz um dos especialistas entrevistados no documentário, que vai mostrando como os grandes datacenters se transformaram nesta memória gigante que tudo vê. Estamos construindo coletivamente uma nova catedral? Ou estamos construindo um gigantesco cemitério de dados? E o que é pior, um cemitério de dados falsos e manipuláveis, que ganha escala nesta busca por compartilhamentos e curtidas a qualquer preço. O Parlamento britânico criou uma comissão para investigar como detectar e impedir a publicação de informações maliciosas na Internet. Na Alemanha iniciou-se uma ofensiva contra a propagação de boatos com aparência de veracidade e o primeiro passo foi um acordo com a rede social Facebook e o centro de pesquisa jornalística Correctiv3, para evitar a propagação de informações manipuladas. Em fevereiro, o Google fez um alerta a alguns repórteres e colunistas norte-americanos sobre a tentativa de hackers de tentarem roubar suas senhas e invadir a caixa de e-mails, assim como ocorreu com o partido Democrata durante a campanha presidencial nos Estados Unidos. No mesmo período, nasce no Brasil a primeira agência de fact-checking, a Lupa4. Na Espanha, o programa televisivo El Objetivo5 passou em fevereiro a ser o primeiro do país a realizar fact checks de vídeos. Em Portugal, o Observador6, que faz fact checks desde 2015, amplia o serviço para reportagens em vídeo. Contrassenso pensarmos que a era Trump possa trazer algum respiro para o jornalismo, que anda totalmente sufocado por fake news. “Quaisquer pesquisas negativas são notícias falsas, como as pesquisas da CNN, ABC, NBC nas eleições”, tuitou Trump, no dia 06 de fevereiro, redefinindo a expressão. Em declaração à imprensa, o assessor da Casa Branca, Sebastian 3 The Correctiv is a German nonprofit investigative journalism newsroom whose stated goal is "to give citizens access to information.", disponível em https://correctiv.org/en/ 4 http://piaui.folha.uol.com.br/lupa/ 5 http://www.lasexta.com/programas/elobjetivo 6 http://observador.pt/especiais/como-vao-ser-os-novos-fact-checks-do-observador/ Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação XXVI Encontro Anual da Compós, Faculdade Cásper Líbero, São Paulo - SP, 06 a 09 de junho de 2017 www.compos.org.br www.compos.org.br/anais_encontros.php 3 Gorka diz que a administração continuará usando o termo “notícias falsas” até que a imprensa entenda que “atacar” o presidente é incorreto. Gorka confessa, portanto, tratar-se de estratégia política que nada tem a ver com a veracidade do que é dito sobre Trump. Essa declaração nos remete a (LAGE, 2014, p. 21) quando diz que a informação deixou de ser apenas ou principalmente fator de acréscimo cultural ou recreação para tornar-se essencial à vida das pessoas. E o âmbito da informação necessária ampliou-se muito além da capacidade individual de acesso do homem comum a outras fontes. O assunto é complexo, tanto que o Observador criou categorias de classificação durante a checagem da veracidade. “Às vezes, a resposta a uma pergunta é “sim” ou “não”; outras vezes, a resposta é menos categórica. E o objetivo dos fact checks não é fazer de conta que o mundo é simples ou — pior — simplista. Por isso, os fact checks do Observador têm seis conclusões possíveis: Certo, Praticamente Certo, Esticado, Inconclusivo, Enganador e Errado”, explica o diretor executivo, Miguel Pinheiro. “A tecnociência está cancelando o equilíbrio entre o tempo natural e o tempo humano. Para realizar seu poder sobre o mundo, anulou a distância entre meios e fins”, diz o psiquiatra e filósofo italiano Mauro Maldonato7 (2012) no livro Paisagens de tempo. Um bom exemplo desta anulação de distâncias é o Snapchat, rede social, disponível para download no iPhone e para iPad (iOS) e Android, que sugere uma forma diferente de conversar com os seus amigos. O APP desenvolvido por estudantes da Universidade de Stanford, nos Estados Unidos, é o melhor exemplo de presentificação que temos em 2016 e já ultrapassou o WhatsApp em compartilhamento de imagens. Segundo dados da PhotoWorld8, 8.796 fotos são compartilhadas por segundo na plataforma e foi uma das poucas plataformas que escapou das fake news durante a eleição presidencial norte-americana. Outro exemplo pertinente é o uso de algoritmos pelo Facebook. Para o pesquisador nova-iorquino e autor do blog BuzzMachine, Jeff Jarvis, em artigo9 na plataforma Medium, “as tecnologias usadas pelo Facebook são top down (de cima para baixo), seja para formular uma regra ou para, em seguida, permitir que o algoritmocumpra essa regra. Isso não é só eficiente (quem precisa de 7 Trecho disponível em http://www.sescsp.org.br/online/edicoessesc/221_AS+PALAVRAS+ENTENDIDAS+COMO+SEIVA+E+NUT RICAO. 8 https://cewe-photoworld.com/how-big-is-snapchat/ 9 https://medium.com/@jeffjarvis/dear-mark-zuckerberg-d0b48675dfaf#.ev6qlv5vk Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação XXVI Encontro Anual da Compós, Faculdade Cásper Líbero, São Paulo - SP, 06 a 09 de junho de 2017 www.compos.org.br www.compos.org.br/anais_encontros.php 4 editores e pessoas de serviço ao cliente?), mas como também acreditam que é justo, já que são igualmente aplicadas para todos. É escala. Exceto a vida não segue escala e isso é um problema no Facebook e em todas as empresas que se reconhecem como empresa pós-mídia de massa (...). Em outro trecho da publicação10, Jarvis diz que o problema com o pensamento algorítmico, paradoxalmente, é que ele continua com uma mentalidade de massa. E, na grande maioria dos casos, não dá conta das fake news, que já nascem embasadas em pós- verdades. Transpor para formatos digitais processos sociais em curso não é uma tarefa fácil, pois o que chamamos de mídia social hoje compreende, segundo Raquel Recuero, “um fenômeno complexo, que abarca um conjunto de novas tecnologias de comunicação mais participativas, mais rápidas e mais populares”. O que exige das empresas um caráter de processo permanente, que vai se modificando durante o mapeamento dos acontecimentos em tempo real. Mas como manter a credibilidade dos fatos publicados? Conteúdo de qualidade custa e talvez estejamos começando a ver a volta dos serviços por assinatura, pois os leitores começam a se preocupar com a veracidade do que é lido nas redes sociais e buscam assinar veículos confiáveis e que tenham serviços de fact checks. Para o estrategista de mídia Ryan Holiday (2012, p. 26-27), “a preocupação da mídia já foi proteger seu nome; na internet a preocupação é construir um nome. Em vez de pesquisar um tópico e comunicar suas descobertas ao público, os jornalistas simplesmente pegam citações obrigatórias – mas artificiais – de ´especialistas´ para validar seu jornalismo de visualizações de páginas”. E isso estamos vendo acontecer também no Facebook, que continua rejeitando seu papel de editor de conteúdo, apesar de exerce-lo por meio dos algoritmos. Como uma 10 Facebook’s The problem at work here is algorithmic thinking. Facebook’s technologists, top down, want to formulate a rule and then enable an algorithm to enforce that rule. That’s not only efficient (who needs editors and customer-service people?) but they also believe it’s fair, equally enforced for all. It scales. Except life doesn’t scale and that’s a problem Facebook of all companies should recognize as it is the post-mass-media company, the company that does not treat us all alike; like Google, it is a personal-services company that gives every user a unique service and experience. The problem with algorithmic thinking, paradoxically, is that it continues a mass mindset.ficient (who needs editors and customer-service people?) but they also believe it’s fair, equally enforced for all. It scales. Except life doesn’t scale and that’s a problem Facebook of all companies should recognize as it is the post-mass-media company (...). The problem with algorithmic thinking, paradoxically, is that it continues a mass mindset. Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação XXVI Encontro Anual da Compós, Faculdade Cásper Líbero, São Paulo - SP, 06 a 09 de junho de 2017 www.compos.org.br www.compos.org.br/anais_encontros.php 5 receita de bolo, Holiday vai explicando no livro “Acredite, estou mentindo: confissões de um manipulador das mídias” como funciona o segmento da pós-verdade. Para ele, os blogueiros – e aqui vale uma ressalva, pois o autor chama de blogueiros, todos os produtores independentes de conteúdo digital – vasculham a internet à procura de coisas para escrever a respeito, pois precisam postar várias vezes ao dia para conseguir cliques e assim anúncios. Eles examinam Twitter, Facebook, seções de comentários, comunicados à imprensa, blogs rivais e outras fontes para desenvolver seu material. “Acima deles estão centenas de jornalistas de nível médio, on-line e off-line, em blogs, revistas e jornais, que usam esses blogueiros como fontes e filtros. Eles têm que escrever constantemente também e fazer a mesma busca por histórias, só que de modo mais estruturado”, explica Holiday, que chega ao topo desta pirâmide onde estão os grandes sites, publicações e redes de TV com abrangência nacional. Esses, por sua vez, buscam seu material nos sites menores, aproveitando suas dicas para transformá-las em assuntos verdadeiramente nacionais. O fake news não é novo e nem nasceu com os blogueiros, só amplificou, como tudo que é postado nas redes sociais. Para o historiador cultural americano, Robert Darnton11, na “longa história de desinformação, a atual manifestação de falsas notícias já garantiu um lugar especial, com Kellyanne Conway, primeira mulher nomeada gerente de campanha de Donald Trump, que, em agosto de 2016, inventou um massacre no Kentucky para defender uma proibição aos viajantes de sete países muçulmanos. Na Idade Média as fake news já faziam sucesso na cobertura midiática. Pietro Aretino, por exemplo, “tentou manipular a eleição pontifícia de 1522, escrevendo sonetos perversos sobre todos os candidatos (exceto o favorito de seus patronos Medici) e colando-os para o público admirar no busto de uma figura conhecida como Pasquino, perto da Piazza Navona em Roma. O ´pasquinade´ então se transformou em um gênero comum de difundir notícias desagradáveis, a maioria delas falsas, sobre figuras públicas”, relembra Darnton em recente artigo para The New York Review of Books. “A internet não existe em si” Conforme propõe o antropólogo britânico Daniel Miller, é saudável contemplar a possibilidade de que a internet não existe em si, de que ela é criada de uma forma própria por 11 http://www.nybooks.com/daily/2017/02/13/the-true-history-of-fake-news/ Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação XXVI Encontro Anual da Compós, Faculdade Cásper Líbero, São Paulo - SP, 06 a 09 de junho de 2017 www.compos.org.br www.compos.org.br/anais_encontros.php 6 cada povo, a partir de suas motivações e das maneiras como eles a interpretam para equacionar necessidades particulares como ocorreu com o movimento batizado de Primavera Árabe, iniciado primeiramente na Tunísia12. É fundamental compreendermos o caráter rizomático13 da Internet para analisarmos algumas transformações que estão em curso no contexto das fake news, seja em novos suportes para o jornalismo ou coberturas políticas já pensadas com o uso de ferramentas de fact checks. Como defendido por Henry Jenkins, em Cultura da Convergência, os antigos consumidores eram passivos, previsíveis, indivíduos isolados e seu trabalho era silencioso e invisível. Já os novos são ativos, migratórios, mostram um declínio na lealdade a redes ou meios, são socialmente conectados e seus trabalhos são barulhentos e públicos (JENKINS, 2008, p.35). Ou seja, o novo comportamento do consumidor também ajuda a propagar as fake news. Em primeiro lugar, nota-se a ampliação das formas de conexão entre indivíduos e, entre indivíduos e grupos. Esse aspecto proporciona a horizontalidade da comunicação e, portanto, a ruptura com o aspecto característico dos meios de comunicação tradicionais que se organizavam a partir da relação entre um emissor e muitos receptores. Nesse sentido, a internet proporciona, em primeiro lugar, a multiplicidade e heterogeneidadedas conexões. Cada ponto da rede pode realizar conexões infinitas com múltiplos pontos descentralizados, um rizoma geolocalizável de ocupação de espaços, que estão em constante movimento, pois vivemos um presente “tagueado”, ou seja, um tempo que pode ser resgatado a qualquer minuto por bancos de dados, mas que não se torna desejado, pois a presentificação se impõe sobre a memória. Como o vivenciar é líquido e, no minuto seguinte, estamos vivenciando outra postagem, o tempo necessário para o cérebro verificar a veracidade do fato narrado fica prejudicado, pois na maioria das vezes, só para citar um exemplo, os consumidores compartilham a informação apenas pelo título, sem dar o trabalho de ler o texto completo ou mesmo verificar a fonte de informação. 12 A onda de manifestações e protestos, que a imprensa batizou de “Primavera Árabe”, iniciada na Tunísia no dia 18 de dezembro de 2010, por meio de protestos contra a corrupção policial e maus tratos após a autoimolação do vendedor de rua Mohamed Bouazizi, por anos assediado pelas autoridades tunisianas. O ato de Bouazizi funcionou como um símbolo de ação para a população, e sua história se espalhou pelo Oriente Médio através do Twitter com a hashtag #SidiBouzid, alcançando 13 mil tuites, enquanto a mídia oficial não cobria o que realmente estava acontecendo e o governo tunisiano bloqueava sites e prendia ativistas. 13 Conceito definido pelos filósofos franceses Gilles Deleuze e Felix Guattari. Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação XXVI Encontro Anual da Compós, Faculdade Cásper Líbero, São Paulo - SP, 06 a 09 de junho de 2017 www.compos.org.br www.compos.org.br/anais_encontros.php 7 De acordo com a teoria de Robert Logan, colaborador direto de McLuhan – atualmente uma das maiores referências no conceito de “Ecologia da Mídia” – todas as linguagens surgiram em resposta à necessidade do ser humano de processar uma sobrecarga de informações. Ou seja, cada vez que o homem se via incapaz de organizar as informações recebidas – de maneira inteligível não apenas para si mesmo, mas para todos ao seu redor – utilizando-se dos sistemas simbólicos já existentes, ele criava uma nova linguagem14. As mentiras surgem neste cenário de saturação de informações que vivemos nos últimos 20 anos da World Wide Web. Por isso, acreditamos que seja um momento promissor para o jornalismo, no qual veículos com credibilidade contabilizam um aumento das receitas de assinaturas como constatado pelo The New York Times, Washington Post, El Pais, entre outros. Instagram, Snapchat e fake news O Instagram, por exemplo, criou uma nova linguagem, já que até o formato quadrado das fotos postadas no APP virou padrão imagético. Atualmente, o ato de fotografar vem ancorado na vivência, o que dá mais trabalho para tornar-se um segmento da pós-verdade, como é também o caso dos vídeos ao vivo. Não estamos afirmando que é impossível produzir notícias falsas no Instagram ou Snapchat, mas ressaltando que o tempo de produção para a foto falsa, ou o roteiro fake previamente pensado para o vídeo ao vivo exigem maior elaboração por parte do veículo. Por amostragem, encontramos mais fake news em posts de texto, tuites de 140 caracteres e fotos/montagem publicadas em blogs e portais. O vídeo ao vivo é um bom exemplo deste século da vivência, em contraposição ao século XX, considerado como o “século da coexistência”, segundo Lucia Santaella. Na mesma linha de pensamento situa-se Kerckhove que vai nos dizer que “não é o mundo que está a tornar global, somos nós. Desta forma o mundo ao invés de ser representado passa a ser experienciado e atuado”. Neste contexto atual precisamos, como ensinava Gilberto Velho (2013, p. 10), mergulhar nos problemas de nossos dias, de nosso país, para apalpá-los e 14 LOGAN, Robert K. The Sixth Language: Learning a Living in the Internet Age (A Sexta Linguagem: aprendendo a Viver na Era da Internet. Toronto: Pub Stoddart, 2000. Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação XXVI Encontro Anual da Compós, Faculdade Cásper Líbero, São Paulo - SP, 06 a 09 de junho de 2017 www.compos.org.br www.compos.org.br/anais_encontros.php 8 percebe-los. Como experienciar é algo frugal, os consumidores não se preocupam com a veracidade do fato. Haveria nisso um paradoxo pedindo uma explicação. De um lado, é abusivamente mencionado o extraordinário progresso das ciências e das técnicas, das quais um dos frutos são os novos materiais artificiais que potencializam a precisão e a memória digital. De outro a possibilidade de assistir produtos audiovisuais em qualquer lugar e a qualquer momento a partir da internet é o que vem sendo chamado de TV Everywhere. Como promover o fact- checking na TV everywhere? O que acreditamos ser importante ressaltar aqui é que a TV em qualquer lugar é outro exemplo de presentificação, tornando-se referência obrigatória à aceleração contemporânea e todas as vertigens que se cria, a começar pela própria velocidade, sendo de fundamental importância embasar sua produção em ferramentas de checagem da veracidade muito bem estruturadas para se ter êxito. Segundo o estudo “The rise of fact-checking sites in Europe“15, do Reuters Institute, há em 2017, 113 organizações dedicadas ao factchecking: “Mais de 90 por cento foram fundadas desde 2010; e cerca de 50 foram lançadas nos últimos dois anos. Jornais como Washington Post, The New York Times e Le Monde têm apostado neste formato de apuração seja para texto, áudio, fotos ou vídeos. Para Traquina (2013, p. 112), “o estudo das notícias deve abraçar uma obrigação de analisar o que talvez possa muito bem ser o eixo central do campo do jornalismo, utilizando o termo “campo” no sentido de Pierre Bourdieu, de um campo intelectual. A imprensa, por exemplo, teve um grande papel de mediação no século XIX, por exemplo, já que as tecnologias de impressão vão fazer das narrativas impressas grandes propulsoras da cultura de massa. E hoje assistimos a mídia social fazendo esse mesmo papel com a comunicação digital que presenciamos na internet. O que a nova “timeline” do Facebook nos mostra, por exemplo, é que o compartilhamento veio para ficar e virou sinônimo de tempo escorregadio. Curtimos para deixar uma marca, mas em 80% os casos é uma marca sem procedência garantida. O Poynter Institute, por exemplo, elaborou um código de princípios para sua Rede Internacional de Fact-Checking16, que vem sendo adotado por diversos veículos noticiosos. Os principais itens do código são: 1) compromisso 15 http://reutersinstitute.politics.ox.ac.uk/sites/default/files/The%20Rise%20of%20Fact- Checking%20Sites%20in%20Europe.pdf 16 http://www.poynter.org/about-the-international-fact-checking-network/ Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação XXVI Encontro Anual da Compós, Faculdade Cásper Líbero, São Paulo - SP, 06 a 09 de junho de 2017 www.compos.org.br www.compos.org.br/anais_encontros.php 9 com o não-partidarismo e com a justiça; 2) compromisso com a transparência das fontes; 3) compromisso com a transparência do financiamento; 4) compromisso com a transparência da metodologia; 5) compromisso com correções abertas e honestas. Segundo a mitologia, Ciclope significa gigante com um só olho na testa, cabendo como sinônimo desse tempo atual, onde não conseguimos, compartilhar e filtrar ao mesmo tempo. Estamos com um olho só, às vezes, presos a sedução do participar, do ser visto, que o tempo do compartilhamento incessante gera, sem se preocupar com a veracidade do que se está compartilhando. Para tentar organizar o caos em torno das fake news surgiram códigos, como os elaborados pelo Poynter, quetentam esquematizar o que se cunhou chamar de "pós-verdade". Segundo a definição do dicionário Oxford, pós-verdade ('post-truth' em inglês) é um adjetivo que faz referência a "circunstâncias em que os fatos objetivos têm menos influência na formação de opinião pública do que os apelos emocionais e as opiniões pessoais". O termo foi escolhido como a palavra do ano de 2016 pelos dicionários britânicos Oxford e só vem reforçar a presentificação do consumo onde os apelos emocionais e as opiniões falam mais alto do que a verdade. Um estudo da Universidade de São Paulo17 mostra algumas características comuns das fake news: utiliza-se sites registrados com domínio .com ou .org (sem o .br), o que dificulta a localização, pois não possuem a mesma transparência que os domínios registados no Brasil. Não trazem qualquer identificação dos seus administradores, corpo editorial ou expediente. As notícias normalmente são opinativas e publicadas sem assinatura. Os sites ou blogs possuem logomarcas e nomes muito parecidos com sites jornalísticos tradicionais, o que confundem o leitor. A interface gráfica é poluída e, na maioria das vezes, imita um grande site de notícias com novas reportagens a cada minuto. Nota-se a presença de muitas propagandas (ads do Google), entre outros macetes que ajudam a enganar o leitor. O mercado da pós-verdade e das fake news levantam questões conceituais da profissão que merecem ser repensadas como, por exemplo, o cuidado constante na apuração, o senso crítico e a formação mais abrangente, além da compreensão ampla de metodologia e pesquisa. O público se torna parte do trabalho ao remodelar componentes textuais e visuais de um projeto (...). O problema é que não sabemos lidar com essa mediação presentificada. “O 17 Estudo da USP embasa lista dos 10 maiores sites de "falsas notícias" no Brasil. https://www.issoenoticia.com.br/artigo/projeto-da-usp-lista-10-maiores-sites-de-falsas-noticias-no-brasil 3/14 Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação XXVI Encontro Anual da Compós, Faculdade Cásper Líbero, São Paulo - SP, 06 a 09 de junho de 2017 www.compos.org.br www.compos.org.br/anais_encontros.php 10 mundo aparece através das notícias como se fosse iluminado por uma strobe light – vemos poses exageradas, posturas desajeitadas, faces ameaçadoras, mas os movimentos seguros que podem dar significado a essas aparições têm frequentemente lugar no escuro”, diz Mich Stephens no livro A history of News (1988). Interpretar e decodificar essa presentificação em base de dados está transformando o jeito de se fazer Jornalismo. As notícias falsas são frugais como um brigadeiro gourmet e na opinião do jornalista Leandro Beguoci, publisher da Revista Nova Escola, elas “só existem porque as pessoas precisam de notícias, verdadeiras ou não, para alimentar as próprias certezas. No mercado das convicções, elas oferecem uma solução customizada para cada necessidade. Mas isso não tem nada a ver com Jornalismo”. O surgimento de agências de fact-checking mostra que nada mais continua a ser como era antes: o livro não é mais o que era, o jornal não cessa de se transformar, a foto, o cinema e o vídeo se expandem até a perda de quaisquer fronteiras. Tudo é efêmero. E um fator que impulsionou a avalanche de fake news foi a evolução do meio internet, transformando os consumidores em pessoas ávidas, como profetizou (LÉVY, 1999), para experimentar formas de comunicação diferentes daquelas que as mídias clássicas nos propunham. A cultura participativa, apontada por (SHIRKY, 2010) mostra estreitamente esta relação entre transmídia e inteligência coletiva, com uso dos meios de comunicação e a mobilização de um conteúdo, seja ele on-line ou off-line. Nesse contexto, o jornalismo ético está voltando para sua essência; do mesmo modo que os biólogos fizeram. Segundo Lipton (2007, p. 16), o ambiente funciona como uma espécie de “empreiteiro”, que interpreta e monta as estruturas e é responsável pelas características da vida das células. Mas é a “consciência” celular que controla os mecanismos da vida, e não os genes. Não seria diferente no ambiente social. Pedimos comida pelo celular, mas também frequentamos feiras de produtos orgânicos. Vamos na balada de música eletrônica e também ouvimos jazz enquanto ajudamos na horta comunitária do bairro. Pedimos pizza pelo APP, mas também cozinhamos para os amigos. A gente não é uma coisa ou outra, somos as duas, temos uma consciência que nos move, seja em busca de seus pares, de causas, ou de jornalismo com credibilidade. Para PEBORGH (2013:104), a gestão bem-sucedida dos recursos compartilhados é essencial para estabelecer uma boa comunicação e um vínculo de confiança entre as partes, bem como uma visão comum de futuro. Nunca se discutiu tanto o jornalismo, pois as eleições americanas trouxeram à tona a dimensão dos riscos trazidos por informações falsas, manipuladas. Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação XXVI Encontro Anual da Compós, Faculdade Cásper Líbero, São Paulo - SP, 06 a 09 de junho de 2017 www.compos.org.br www.compos.org.br/anais_encontros.php 11 Os jornalistas que vivem controlados pelo relógio, obcecados pela novidade, travam, segundo Nelson Traquina, “uma luta aparentemente perdida de reagir aos últimos acontecimentos”. Eles esquecem – mergulhados na linha de produção – de ter um tempo de decantação como ensinava Deleuze. É preciso tempo para apurar, equipes e verba para construir credibilidade na era da pós-verdade. Como pensavam Milton Santos e Paulo Freire, a globalização nasce perversa no século XX, mas pode ser repensada se trouxer de volta a dignidade humana. Veículos tradicionais e éticos já estão vendo melhorias em suas receitas de assinatura, pois a eleição do presidente Trump veio alertar globalmente sobre os riscos das notícias falsas para a sociedade. Considerações finais Fica evidente a necessidade de um novo olhar para a questão da pós-verdade no campo teórico-acadêmico, capaz de ir além da tendência de tratá-las de forma compartimentada, apenas levando em conta o quesito fake news. Ser um comunicador ético é uma postura para a vida e deve também permear todas as produções jornalísticas. Os tempos realmente estão conturbados, a vida mais complexa e os algoritmos mais sofisticados, mas a prestação de serviço, com credibilidade e embasada em princípios éticos, continua sendo um dos principais pilares do Jornalismo e a implantação de códigos de princípios para fact checks nas redações veio para validar o noticiário junto ao leitor. Iniciativas coletivas entre veículos maiores e menores – em uma ajuda mútua – só podem trazer benefícios e receitas para os grupos de mídia. Referências bibliográficas BRETON, Philippe, Proulx, Serge. A Explosão da Comunicação. Lisboa: Bizâncio, 1997. CANAVILHAS, João. SATUF, Ivan (Orgs.) Jornalismo para dispositivos móveis: produção, distribuição e consumo. Covilhã: UBI/Labcom, 2015. Disponível em http://www.labcom-ifp.ubi.pt/livro/137. Acessado em 09/09/2016. CORTÁZAR, Julio. O jogo da amarelinha. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999. COUTO, Mia. Espaços Ficcionais. São Paulo: Autêntica, 2008. DARNTON, Robert. 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