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1/14 Tratamento das doenças genéticas Tratamento das doenças genéticas 2/14 Tratamento das doenças genéticas INTRODUÇÃO As doenças genéticas podem ser tratadas em qualquer nível, desde o gene mutante até o fenótipo clínico. O tratamento em nível de fenótipo clínico inclui todas as intervenções médicas ou cirúrgicas que não são exclusivas ao manejo de doenças genéticas. Os tratamentos atuais não são necessariamente mutuamente exclusivos, embora somente a terapia gênica, a edição gênica ou o transplante celular possam potencialmente fornecer uma cura. Apesar de avanços poderosos estarem sendo feitos, o tratamento global de doenças monogênicas atualmente é deficiente. O estado de melhora, mas ainda assim insatisfatório, das doenças monogênicas é devido a vários fatores que incluem: • Gene não identificado ou patogênese não compreendida: embora mais de 3.000 genes tenham sido associados com doenças monogênicas, o gene afetado ainda é desconhecido em mais da metade desses distúrbios. Entretanto, mesmo quando o gene mutante é conhecido, o conhecimento do mecanismo fisiopatológico é frequentemente inadequado e pode ficar bem atrás da descoberta do gene. Na fenilcetonúria (PKU), por exemplo, apesar de décadas de estudo, os mecanismos pelos quais o aumento da fenilalanina prejudica o desenvolvimento e a função cerebral ainda são muito pouco compreendidos. • Dano fetal pré-diagnóstico: algumas mutações agem prematuramente no desenvolvimento ou causam alterações patológicas irreversíveis antes de serem diagnosticadas. Às vezes, esses problemas podem ser previstos se há um histórico familiar de doença genética ou se a triagem de portadores identificar casais sob risco. Em alguns casos, o tratamento pré-natal é possível. • Fenótipos severos são menos suscetíveis à intervenção: os casos iniciais para que uma doença seja identificada normalmente são os mais gravemente afetados, mas eles são menos suscetíveis ao tratamento. Em tais indivíduos, a mutação frequentemente leva à ausência da proteína codificada ou a uma proteína mutante bastante comprometida sem nenhuma atividade residual. Por outro lado, quando a mutação é menos prejudicial, a proteína mutante pode reter alguma função residual e pode ser possível aumentar a pequena quantidade da função, suficientemente para ter um efeito terapêutico, conforme descrito. • O desafio dos alelos dominantes negativos: para alguns distúrbios dominantes, a proteína mutante interfere com a função do alelo normal. O desafio é diminuir a expressão ou o impacto desse alelo mutante ou sua proteína mutante codificada especificamente, sem prejudicar a expressão ou função do alelo normal ou sua proteína normal. 3/14 Tratamento das doenças genéticas TRATAMENTO ATRAVÉS DA MANIPULAÇÃO DO METABOLISMO Atualmente, a abordagem doença-específica mais bem-sucedida no tratamento de doenças genéticas está direcionada para a anormalidade metabólica em erros inatos do metabolismo. As principais estratégias utilizadas para manipular o metabolismo no tratamento deste grupo de doenças são: a anulação, a restrição dietética, a reposição, o desvio, a inibição enzimática, o antagonismo dos receptores e a depleção. Redução do substrato Estratégias para prevenir o acúmulo do substrato ofensor têm sido um dos métodos mais eficazes no tratamento de doenças genéticas. A abordagem mais comum é reduzir a ingesta dietética do substrato ou de um precursor deste, e atualmente várias dúzias de distúrbios — a maioria envolvendo vias catabólicas de aminoácidos — são controladas dessa forma. A desvantagem é que uma restrição severa da ingesta de proteínas pela dieta em longo prazo frequentemente é necessária, requerendo uma aderência estrita a uma dieta artificial que é onerosa para família, bem como para o paciente. Nutrientes tais como os 20 aminoácidos essenciais não podem ser totalmente retirados, entretanto, sua ingesta deve ser suficiente para as necessidades anabólicas, tais como a síntese de proteínas. As crianças com fenilcetonúria, por exemplo, são normais ao nascimento porque a enzima materna as protege durante a vida pré-natal. O tratamento é mais eficaz se iniciado imediatamente após o diagnóstico através da triagem neonatal. Sem o tratamento, ocorre um atraso no desenvolvimento que é irreversível, e o grau de déficit intelectual é diretamente relacionado com o atraso no início da dieta pobre em fenilalanina. Reposição O fornecimento de metabólitos essenciais, cofatores ou hormônios, cuja deficiência é devido a doenças genéticas, é simples no conceito e frequentemente simples na aplicação. Alguns dos tratamentos de defeitos monogênicos mais bem-sucedidos pertencem a essa categoria. Um 4/14 Tratamento das doenças genéticas primeiro exemplo é fornecido pelo hipotireoidismo congênito, em que 10% a 15% dos casos são originalmente monogênicos. O hipotireoidismo congênito monogênico pode resultar de mutações em qualquer um dos vários genes que codificam proteínas necessárias ao desenvolvimento da glândula tireoide ou da biossíntese ou metabolismo da tiroxina. Já que o hipotireoidismo congênito por todas as causas é comum (aproximadamente um em 4.000 neonatos), a triagem neonatal é realizada em vários países de modo que a administração de tiroxina possa ser iniciada logo após o nascimento, para prevenir danos intelectuais severos que, de outra forma, seriam inevitáveis. Desvio A Terapia de desvio é a utilização aumentada de vias metabólicas alternativas para reduzir a concentração de um metabólito nocivo. A principal utilização dessa estratégia está no tratamento de distúrbios do ciclo da ureia. Interrupção no ciclo da ureia Fonte: NUSSBAUM, 2016 A função do ciclo de ureia é converter amônia, que é neurotóxica, em ureia, um produto final benigno do metabolismo de proteínas excretado na urina. Se o ciclo estiver interrompido por um defeito enzimático como a deficiência de ornitina transcarbamilase, o consequente aumento da concentração de amônia somente pode ser parcialmente controlado por uma restrição proteica na dieta. Entretanto, os níveis sanguíneos de amônia podem ser reduzidos ao normal pelo desvio da amônia para vias metabólicas que normalmente possuem pouca significância, levando a síntese de 5/14 Tratamento das doenças genéticas compostos menos prejudiciais. Desse modo, a administração de grandes quantidades de benzoato de sódio a pacientes com altas concentrações de amônia força a ligação da amônia com a glicina para formar hipurato, o qual é excretado na urina. A síntese de glicina é então aumentada, e para cada mol de glicina formada, um mol de amônia é consumido. A estratégia da divergência metabólica. Neste exemplo, a amônia não pode ser removida pelo ciclo da ureia por causa de um defeito genético de uma enzima do ciclo da ureia. A administração de benzoato de sódio desvia a amônia para a síntese de glicina, e a metade do nitrogênio é subsequentemente excretada como hipurato. Inibição enzimática A inibição farmacológica de enzimas às vezes é utilizada para reduzir o impacto de anormalidades metabólicas no tratamento de erros inatos. Esse princípio também está ilustrado através do tratamento de heterozigotos da hipercolesterolemia familiar. Se uma estatina, uma classe de fármacos que inibe poderosamente a 3-hidroxi-3- metilglutaril coenzima A redutase, ou HMG CoA redutase (a enzima limitante da etapa da síntese do colesterol), é utilizada para diminuir a síntese hepática de novo do colesterol nesses pacientes, o fígado compensa aumentando a síntese de receptores de LDL a partir do alelo do receptor da LDL intacto remanescente. O aumento nos níveis de receptores de LDL diminui diretamente os níveis plasmáticos de colesterol LDL de 40% a 60% nos heterozigotos com hipercolesterolemia familiar; quando utilizado juntamente com o colesevelam, o efeitoé sinérgico e podem ser alcançadas diminuições ainda maiores. Tratamento da hipercolesterolemia familiar Fonte: NUSSBAUM, 2016 6/14 Tratamento das doenças genéticas Antagonismo de receptores Em alguns aspectos, a fisiopatologia de uma doença hereditária resulta do aumento e da ativação inapropriada de vias bioquímicas ou de sinalização. Em tais casos, uma abordagem terapêutica é antagonizar etapas críticas na via. Um poderoso exemplo é dado pelo tratamento investigacional de um distúrbio autossômico dominante do tecido conjuntivo, a síndrome de Marfan. A doença resulta de mutações no gene que codifica a fibrilina 1, um componente estrutural importante da matriz extracelular. A síndrome é caracterizada por várias anormalidades do tecido conjuntivo, tais como aneurisma aórtico, enfisema pulmonar e deslocamento das lentes oculares. Inesperadamente, a fisiopatologia da síndrome de Marfan é explicada apenas parcialmente pelo impacto da redução das microfibrilas da fibrilina 1 na estrutura da matriz extracelular. Foi descoberto que a principal função das microfibrilas é a de regular a sinalização através do fator transformador de crescimento-β (TGF-β), pela ligação deste ao grande complexo proteico latente do TGF-β. A abundância diminuída das microfibrilas na síndrome de Marfan leva a um aumento na abundância local de TGF-β não ligado e na ativação local da sinalização do TGF-β. Foi sugerido que esse aumento da sinalização do TGF-β constitui a base da patogênese de vários fenótipos da síndrome de Marfan, particularmente a dilatação progressiva da raiz aórtica, e aneurisma e dissecção, a principal causa de morte nessa doença. Além disso, um grupo de outras vasculopatias reconhecidas recentemente, tais como formas não sindrômicas de aneurisma aórtico torácico, também é dirigido pela sinalização alterada do TGF-β. Asinalização da angiotensina II é conhecida por aumentar a atividade do TGF-β, e o antagonista de receptor tipo 1 da angiotensina II, o losartan, um agente anti-hipertensivo amplamente utilizado, demonstrou atenuar a sinalização do TGF-β através da diminuição da transcrição de genes que codificam ligantes, subunidades de receptores e ativadores de TGF-β. O tratamento com losartan diminui substancialmente a taxa da dilatação da raiz aórtica em estudos clínicos iniciais em pacientes com síndrome de Marfan, um efeito que parece ser amplamente devido à sinalização diminuída do TGF-β. A nova utilização de um fármaco aprovado pelo Food and Drug Administration (FDA), o losartan, para tratar uma rara doença hereditária, a síndrome de Marfan, provavelmente representa um paradigma que será repetido regulamente no futuro, à medida que triagens de pequenas moléculas químicas para identificar compostos com potencial terapêutico — frequentemente incluindo as milhares de fármacos aprovados pelo FDA — sejam realizadas para identificar tratamentos seguros e eficazes para outras doenças genéticas incomuns. 7/14 Tratamento das doenças genéticas Depleção As doenças genéticas caracterizadas pelo acúmulo de compostos prejudiciais às vezes são tratadas pela remoção direta do composto do organismo. Esse princípio é ilustrado pelo tratamento de homozigotos com hipercolesterolemia familiar. Nesse exemplo, para os pacientes cujos níveis de LDL não podem ser diminuídos através de outras abordagens, um procedimento chamado de aférese é utilizado para remover o LDL da circulação. O sangue total é removido do paciente, o LDL é removido do plasma através de um dos vários métodos, e o plasma e as células sanguíneas são devolvidos ao paciente. A utilização da flebotomia para diminuir o acúmulo de ferro da hemocromatose hereditária fornece outro exemplo de terapia de depleção. TRATAMENTO PARA AUMENTAR A FUNÇÃO DO GENE OU DA PROTEÍNA AFETADA O conhecimento aumentado da fisiopatologia molecular das doenças monogênicas tem sido acompanhado por um pequeno “porém” promissor aumento em terapias que — em nível de DNA, RNA ou proteína — aumentam a função do gene afetado pela mutação. Alguns dos novos tratamentos têm levado à melhoria marcante da vida de indivíduos afetados, uma consequência que, até recentemente, pareceria fantástica. Essas terapias moleculares representam uma faceta do importante paradigma abrangido pelo conceito de medicina de precisão ou personalizada: o diagnóstico, prevenção e tratamento de uma doença — adaptados a pacientes individualmente — com base em um conhecimento profundo dos mecanismos subjacentes as suas etiologia e patogênese Tratamento em nível de proteína Em várias situações, se o produto de uma proteína mutante é produzido, pode ser possível aumentar sua função. Por exemplo, a estabilidade ou função de uma proteína mutante com alguma 8/14 Tratamento das doenças genéticas função residual pode ser aumentada. Com enzimopatias, a melhora na função obtida por essa abordagem normalmente é muito pequena, na ordem de poucos por cento, mas esse aumento é frequentemente tudo o que é necessário para restaurar a homeostase bioquímica. O tratamento pode ser feito a partir do aumento da função de uma proteína com terapia de pequenas moléculas, que são compostos com pesos moleculares que variam de poucas centenas a milhares. Elas incluem vitaminas, hormônios não peptídeos e de fato a maioria dos fármacos, se sintetizados por químicos orgânicos ou isolados da natureza. Uma nova estratégia para identificar os fármacos em potencial é utilizar uma triagem de alto rendimento de bibliotecas de compostos químicos frequentemente contendo dezenas de milhares de produtos químicos conhecidos contra um fármaco-alvo, tal como a proteína cuja função está interrompida por uma mutação. Outra possibilidade é o aumento da proteína, que é uma abordagem terapêutica rotineira em somente algumas doenças, todas envolvendo proteínas, cujo principal sítio de ação está no plasma ou no líquido extracelular. O primeiro exemplo é a prevenção ou interrupção dos episódios de hemorragia em pacientes com hemofilia pela infusão de frações de plasma enriquecidas com o fator apropriado. Modulação da expressão gênica Há décadas, a ideia de que se poderia tratar uma doença genética através da utilização de fármacos que modulavam a expressão gênica teria parecido fantasiosa. O aumento do conhecimento das bases normais e patológicas da expressão gênica, entretanto, tem feito essa abordagem factível. O aumento da expressão gênica a partir do Locus Selvagem ou Mutante obtém efeitos terapêuticos pelo aumento da quantidade de RNA mensageiro (RNAm) transcrito a partir do locus selvagem associado com uma doença dominante ou de um locus mutante, se a proteína mutante ainda reter alguma. Uma terapia eficaz deste tipo é utilizada para controlar o angioedema hereditário, uma condição autossômica dominante rara, porém potencialmente fatal, causada por mutações no gene que codifica o inibidor de esterase do complemento 1 (C1). O aumento da expressão gênica a partir de um Locus não afetado pela doença é uma estratégia terapêutica relacionada é aumentar a expressão de um gene normal que compensa o efeito da mutação em outro locus. Essa abordagem é extremamente promissora no controle da anemia falciforme e da β-talassemia, para as quais fármacos que induzem a hipometilação do DNA estão sendo utilizados para aumentar a abundância da hemoglobina fetal (Hb F), a qual normalmente constitui menos de 1% da hemoglobina total em adultos. O aumento dos níveis de 9/14 Tratamento das doenças genéticas Hb F beneficia esses pacientes porque a HbF é uma transportadora de oxigênio perfeitamente adequada na vida pós-natal e porque a polimerização da desoxiemoglobina S é inibida pela Hb F. A redução da expressão de um produto de um gene mutante dominante é uma outra proposta importante porque a patologia de algumas doenças hereditárias resulta da presença de uma proteínamutante que é tóxica para a célula, conforme observado com proteínas em tratos expandidos de poliglutamina, como na doença de Huntington, ou em doenças como as amilidoses hereditárias. A doença autossômica dominante transtiretina amiloidose é o resultado de qualquer uma das mais de 100 mutações de sentido trocado na transtiretina, uma proteína produzida principalmente no fígado que transporta o retinol (uma forma de vitamina A) e tiroxina nos líquidos corporais. Os principais fenótipos são a polineuropatia amiloidotica, devido à deposição de amiloide nos nervos periféricos e a miocardiopatia amiloidótica, devido a sua deposição no coração. Ambas as doenças encurtam bastante a expectativa de vida, e o único tratamento atual é o transplante hepático. Entretanto, uma terapia promissora é fornecida por uma tecnologia chamada de RNA de interferência (RNAi), a qual pode mediar a degradação de um alvo específico de RNA, tal qual o que codifica a transtiretina. Brevemente, pequenos RNAs que correspondem a sequências específicas do RNA- alvo — denominados de pequenos RNAs de interferência (siRNAs) — são introduzidos nas células através de, por exemplo, nanopartículas lipídicas ou vetores virais. As fitas do RNA de interferência, com aproximadamente 21 nucleotídeos de comprimento, se ligam ao RNA- alvo e iniciam a sua clivagem. O salto de éxon é à utilização de intervenções moleculares para excluir um éxon de um préRNAm que possui uma matriz de leitura mutante, resgatando desse modo a expressão de um gene mutante. Se o número de nucleotídeos no éxon excluído for um múltiplo de três, nenhuma mudança da matriz (frameshift) ocorrerá, e se o polipeptídeo resultante com os aminoácidos deletados reter alguma função suficiente, terá como resultado um benefício terapêutico. O método mais amplamente estudado de indução de salto de éxon é através da utilização de oligonucleotídeos antissenso (OASs), que são moléculas sintéticas de fita simples de 15 a 35 nucleotídeos que podem se hibridizar com sequências correspondentes específicas em um pré-RNAm. O exemplo mais claro da potência dessa estratégia é proporcionado pela distrofia muscular de Duchenne. Por fim, a edição gênica tem sido desenvolvida para introduzir alterações de sequências genômicas sítio-específicas no DNA de organismos intactos, incluindo primatas. A correção da sequência de um gene mutante no seu contexto natural de DNA, em um número suficiente de células-alvo, seria um tratamento ideal. Essa nova tecnologia, utiliza endonucleases criadas por engenharia genética que reconhecem uma sequência específica no genoma, tal como a sequência na qual uma mutação de sentido trocado esteja incorporada. Posteriormente, um domínio nuclease cria uma quebra de duplafita, e mecanismos celulares para o reparo direcionado por homologia (RDH) então reparam a quebra, introduzindo o nucleotídeo selvagem para substituir o mutante 10/14 Tratamento das doenças genéticas Modificação do genoma somático através de transplantes As células transplantadas conservam o genótipo do doador, e, consequentemente, o transplante pode ser considerado como uma forma de terapia de transferência gênica porque ele leva a modificações no genoma somático. Existem duas indicações gerais para a utilização de transplantes no tratamento de doenças genéticas. Em primeiro lugar, células ou órgãos podem ser transplantados para introduzir cópias selvagens do gene em um paciente com mutações neste gene. Este é o caso, por exemplo, da hipercolesterolemia familiar homozigota, na qual o transplante de fígado é um procedimento eficaz, porém de alto risco. A segunda e mais comum indicação é a substituição de células, para compensar um órgão danificado pela doença genética, por exemplo, um fígado que se tornou cirrótico na deficiência de α1 -antitripsina. O transplante de células-tronco é definido pelas duas propriedades das células: pela capacidade de proliferar para formar tipos celulares diferenciados de um tecido in vivo; e pela sua capacidade de se autor-renovar — que é formar outra célula-tronco. Somente três tipos de células- tronco estão em utilização clínica no momento: células-tronco hematopoiéticas, as quais podem reconstituir o sistema sanguíneo após o transplante de medula óssea; células-tronco da córnea, as quais são utilizadas para regenerar o epitélio córneo; e células-tronco da pele. Estas células são derivadas de doadores imunologicamente compatíveis. A possibilidade de outros tipos de células- tronco serem utilizadas clinicamente no futuro é enorme, pois a pesquisa de células-tronco é uma das áreas mais ativas e promissoras da investigação biomédica. Embora seja fácil exagerar o potencial de tal tratamento, o otimismo sobre o futuro em longo prazo da terapia com células-tronco se torna justificado. O transplante de fígado é o único tratamento conhecido que tem benefícios. Por exemplo, a doença hepática crônica associada com fibrose cística ou a deficiência de α1AT podem ser tratadas somente por transplante de fígado, e juntas essas duas doenças explicam uma grande fração de todos os transplantes de fígado realizados na população pediátrica. O transplante de fígado agora tem sido utilizado para mais de duas dúzias de doenças genéticas. Atualmente, a taxa de sobrevida em 5 anos para todas as crianças que receberam transplantes de fígado está na faixa de 70% a 85%. Para quase todos esses pacientes, a qualidade de vida geralmente melhora, a anormalidade metabólica específica necessitando de transplante é corrigida, e nessas condições nas quais o dano hepático tenha ocorrido (como a deficiência de α1AT), o fornecimento de um tecido hepático saudável reestabelece o crescimento e o desenvolvimento púbere normal. 11/14 Tratamento das doenças genéticas Os problemas principais que limitam a utilização mais ampla do transplante para o tratamento de doenças genéticas são: a mortalidade após o transplante, significativa, e a morbidade da infecção sobreposta, devido à necessidade de imunossupressão e à doença enxerto versus hospedeiro; e o suprimento finito de órgãos, sendo o sangue do cordão umbilical uma exceção singular. Para todas as indicações, mais do que o dobro deste número é adicionado à lista de espera a cada ano. Além disso, ainda deve ser demonstrado que os órgãos transplantados geralmente são capazes de funcionar normalmente por toda a vida. Uma solução para essas dificuldades envolve a combinação de células-tronco e a edição do genoma correspondente ou terapia gênica. TERAPIA GÊNICA A terapia gênica é a introdução de um gene biologicamente ativo em uma célula para alcançar um benefício terapêutico. Esse sucesso recente estabelece firmemente que o tratamento de uma doença genética em seu nível mais fundamental — o gene — será altamente possível. O objetivo da terapia gênica é transferir o gene terapêutico o mais cedo possível na vida do paciente para prevenir os eventos patogênicos que danificam as células. Além disso, também deve ser possível a correção das características reversíveis das doenças genéticas para várias condições. No tratamento de doenças hereditárias, a utilização mais comum da terapia gênica será a introdução de cópias funcionais do gene relevante nas células-alvo apropriadas de um paciente com uma mutação de perda de função (porque a maioria das doenças genéticas resulta de tais mutações). Nessas circunstâncias, onde o gene transferido se insere precisamente no genoma de uma célula deveria ser, a princípio, geralmente não importante. Se a edição gênica para tratar doenças hereditárias se tornar possível, então a correção do defeito no gene mutante no seu contexto genômico normal deve ser ideal para suavizar problemas, tais como a ativação de oncogenes próximos através da atividade regulatória de um vetor viral, ou a inativação de um supressor de tumor devido a uma mutagênese de inserção pelo vetor. A terapia gênica também podeser levada a inativar o produto do alelo mutante dominante, cujo produto anormal causa a doença. Um gene apropriadamente produzido por engenharia genética pode ser transferido para as células-alvo através de uma de duas estratégias gerais. A primeira envolve a introdução do gene nas células que estavam em cultura do paciente ex vivo (fora do organismo) e depois a reintrodução das células no paciente após a transferência gênica. Na segunda abordagem, o gene é injetado diretamente in vivo no tecido ou líquido extracelular de interesse (do qual é captado pelas células- alvo). Em alguns casos, pode ser desejável direcionar o vetor a um tipo celular específico; isto 12/14 Tratamento das doenças genéticas normalmente é alcançado através da modificação da cobertura do vetor viral de forma que somente as células designadas se liguem às partículas virais. As células-alvo ideais são as células-tronco (que são autorreplicativas) ou células progenitoras retiradas de um paciente (eliminando assim o risco de uma doença do enxerto versus hospedeiro); ambos os tipos celulares apresentam potencial de replicação substancial. A introdução do gene em células-tronco pode resultar na expressão do gene transferido em uma grande população de células-filhas. O vetor ideal para a terapia gênica deve ser seguro, prontamente desenhado e facilmente introduzido no tecidoalvo apropriado, e deve expressar o gene de interesse para o resto da vida. De fato, nenhum único vetor é provavelmente satisfatório no que diz respeito a todos os tipos celulares de terapia gênica, e um repertório de vetores provavelmente será necessário. Uma das classes de vetores mais amplamente utilizadas é derivada dos retrovírus, vírus de RNA simples que podem se integrar no genoma do hospedeiro. Eles contêm somente três tipos de genes estruturais, os quais podem ser removidos e substituídos pelo gene a ser transferido. A geração atual de vetores retrovirais tem sido construída para torná-los incapazes de se replicarem. Além disso, eles não são tóxicos para a célula, e somente uma pequena cópia do DNA viral (com o gene transferido) se integra ao genoma do hospedeiro. Aterapia gênica para o tratamento de doenças humanas apresenta riscos gerais de três tipos: a resposta adversa ao vetor ou combinação doença-vetor, que entre as principais preocupações é que o paciente terá uma reação adversa ao vetor ou ao gene transferido. Tais problemas devem ser amplamente antecipados com estudos apropriados em animais e estudos preliminares em humanos; mutagênese de inserção causando malignidade, ou seja, que o gene transferido irá se integrar ao DNAdo paciente e ativar um proto-oncogene ou inativar um gene supressor de tumor, levando a possibilidade de desenvolver câncer; e por fim, a inativação de inserção de um gene essencial para a viabilidade, que, em geral, não terá efeito significativo porque se espera que tais mutações letais sejam raras e destruam somente uma única célula. Embora os vetores pareçam favorecer a inserção em genes transcritos, a chance que o mesmo gene seja interrompido em mais de algumas poucas células é extremamente baixa. Embora tenha sido demonstrada uma melhora em aproximadamente uma dúzia de doenças monogênicas, um grande número de outras doenças monogênicas é candidato em potencial para essa estratégia, incluindo degenerações da retina; condições hematopoiéticas, tais como anemia falciforme e talassemia; e doenças que afetam as proteínas hepáticas, tais como fenilcetonúria, distúrbios do ciclo da ureia, hipercolesterolemia familiar e deficiência de α1AT. 13/14 Tratamento das doenças genéticas MEDICINA DE PRECISÃO: O PRESENTE E O FUTURO DO TRATAMENTO DE DOENÇAS MENDELIANAS O tratamento de doenças monogênicas incorpora o conceito de medicina de precisão adaptado ao paciente de modo individual tão profundamente como qualquer outra área de tratamento médico. O conhecimento da sequência mutante específica em um indivíduo é central para várias das terapias-alvo descritas neste capítulo. A promessa da terapia gênica para um indivíduo com uma doença mendeliana deve estar baseada na identificação do gene mutante em cada indivíduo afetado e no planejamento de um vetor que irá entregar o gene terapêutico ao tecido-alvo. De modo similar, abordagens baseadas na edição gênica requerem conhecimento da mutação específica a ser corrigida. Além disso, entretanto, a medicina de precisão irá necessitar frequentemente do conhecimento do alelo mutante preciso e de seu efeito específico no RNAm e na proteína. Em vários casos, a natureza exata da mutação irá definir o fármaco que irá se ligar a uma sequência regulatória específica para aumentar ou reduzir a expressão gênica. Em outros casos, a mutação irá ditar a sequência de um oligonucleotídeo alelo-específico para mediar o salto de um éxon com um códon de término prematuro, ou de um siRNA para suprimir um alelo dominante negativo. Um manual de pequenas moléculas irá gradualmente se tornar disponível para suprimir códons de término particulares, para agir como chaperonas que irão resgatar proteínas mutantes do enovelamento incorreto e da degradação do proteassoma, ou potencializar a atividade de proteínas mutantes. O tratamento genético não está somente se tornando mais e mais criativo, está se tornando cada vez mais preciso. O futuro promete não somente uma vida mais longa para vários pacientes, mas uma melhor qualidade de vida. REFERÊNCIA NUSSBAUM, Robert, MCINNES, Roderick, WILLARD, Huntington, Thompson e Thompson, Genética Médica, Tradução da 8ª Edição, Elsevier Editora Ltda, 2016. 14/14 Tratamento das doenças genéticas
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